SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número3Compulsão à repetição: pulsão de morte "trans-in-vestida" de libidoO masoquismo masculino nos sujeitos: a repetição inconsciente índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

O dia a dia de um psicanalista Teorias fracas. Teorias fortes

 

El día a día de un psicoanalista. Teorías débiles. Teorías fuerte

 

The day-to-day of a Psychoanalyst. Weak theories. Strong theories

 

 

Cecil José Rezze1

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O autor propõe teorias fracas como meio de investigação psicanalítica, tanto para a clínica quanto para os conceitos. Inicia com as dificuldades em grupos psicanalíticos, tanto em discutir a situação clínica quanto os conceitos. Como instrumento de trabalho descreve quatro situações clínicas que são acompanhadas de comentários, tanto os feitos durante a sessão quanto as reflexões que essas situações suscitaram e que desaguaram nas teorias fracas, como as do despontar da criatividade, prudência, hipnotismo, de causalidade e outras. Estas serviram de instrumento para o exame de uma teoria forte – transformação em alucinose – e permitiram sugerir que está ligada ao vínculo de ódio, enquanto com o uso das teorias fracas, salienta-se a importância dos vínculos de amor e conhecimento. A correlação destes fatos vai determinar um novo posicionamento teórico e clínico. Com o exame do fator probabilidade encaminha-se para a conclusão sobre a pluralidade das teorias na psicanálise atual, por enquanto mantendo uma unidade. Breve exame das teorias cognitivas e neurociências trazem perspectivas de enriquecimento, embora de difícil uso para um psicanalista comum, sendo que estes acréscimos não mudam a situação de pluralidade.

Palavras-chave: transformação em alucinose; vínculos; pluralidade; neurociência; memória implícita; common ground; probabilidade.


RESUMEN

El autor propone teorías débiles como medio de investigación psicoanalítica, tanto para la clínica cuanto para los conceptos. Inicia con las dificultades en grupos psicoanalíticos, tanto en discutir la situación clínica cuanto los conceptos. Como instrumento de trabajo describe cuatro situaciones clínicas acompañadas de comentarios, tanto los hechos durante la sesión cuanto las reflexiones que éstas situaciones despertaron y desembocaron en las teorías débiles, como las de despuntar de la creatividad, prudencia, hipnotismo, de causalidad y otras. Estas sirvieron de instrumento para el examen de una teoría fuerte – transformación en alucinosis – y permitieron sugerir que está ligada al vínculo de odio, mientras que, con el uso de las teorías débiles, resalta la importancia de los vínculos de amor y conocimiento. La correlación de estos hechos va a determinar un nuevo posicionamiento teórico y clínico. Con el examen del factor probabilidad se encamina para la conclusión manteniendo la unidad. Breve examen de las teorías cognitivas y neurociencias traen perspectivas de enriquecimiento, a pesar de difícil uso para un psicoanalista común, siendo que estos acrecimos no cambian la situación de pluralidad.

Palabras clave: transformación en alucinosis; vínculos; pluralidad; neurociencia; memoria implícita; "common ground"; probablilidad.


ABSTRACT

The author proposes weak theories as a mean of psychoanalytical investigation, both for clinical purposes and for the concepts. It starts out with the difficults in psychoanalytical groups, both in discussing the clinical situation and the concepts. As work tool, it describes four clinical situations that are followed by comments, both those made during the session, and the reflections that these situations have evoked and that flown into weak theories, as well as those belonging to the drawn of creativity, caution, hypnotism, causality and others. These have served as a tool for the examination of a strong theory – transformation in hallucinosis – and allowed the suggestion that it is connected to the bond of hatred, while, with the use of weak theories, the importance of the bonds of love and knowledge is highlighted. The correlation of these facts will establish a new theoretical and clinical positioning. With the examination of the probability factor, one walks toward the conclusion on the plurality of present psychoanalysis theories, while keeping a unity. A brief review of the cognitive theories and neurosciences bring perspectives of enrichment, albeit of difficult use for the ordinary psychoanalyst, when these additions do not change the situation of plurality.

Keywords: transformation in alucinosis; bonds; plurality; neuroscience; implicit memory; common ground; probability.


 

 

Ao começar o trabalho senti-me na situação de quem estivesse tentando escrever uma história. Isto porque vinham à minha mente lembranças de sessões que me remetiam a situações comuns da vida e como elas são encaradas no cotidiano.

Assim fui me dando conta de inúmeras observações que fazemos no decorrer da conversa que temos com o analisando e que constituem um campo enorme de falas, observações, comentários, exemplos de certas situações, ditados, máximas etc. por parte do analista e outro tanto do cliente que ainda acrescenta inúmeros fatos de sua vida, de outras pessoas, sonhos, tudo isto permeado de emoções de variada qualidade e intensidade.

É de conhecimento de todos que quando algo desta natureza é levado a reuniões clínicas, seminários, grupos de estudo, em geral, forma-se uma imensa Babel onde as mais variadas e respeitáveis teorias analíticas são usadas, dificilmente desfazendo o tumulto. Isto ocorre até mesmo quando os participantes pertencem a uma mesma escola de pensamento.

Tenho participado de diversas dessas reuniões e noto que muitas vezes o fato é destacado. Considera-se, então, que existe uma profunda diferença entre as teorias psicanalíticas e sua possibilidade de aplicação clínica, dando a sensação, a muitos colegas, de uma situação intransponível, gerando uma impressão de falsificação e desconforto. Às teorias psicanalíticas disponíveis chamarei de teorias fortes, como as da transferência, do complexo de Édipo, do instinto ou pulsão, da identificação projetiva, da cisão, da forclusão, do holding, e outras. De forma sintética, creio que a definição citada por Mora (1977) dá-nos algo satisfatório a esse respeito.

Uma teoria é um sistema dedutivo no qual certas consequências observáveis se seguem da conjunção entre fatos observados e a série das hipóteses fundamentais do sistema. (p. 394)

Assim, para o mundo físico, a lei da atração universal de Newton nos dá um exemplo acabado e completo, além de que a abstração da teoria pode ser apresentada em sua fórmula matemática elegante e sintética:

Podemos ainda descrevê-la como: matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado da distância. Assim se explica que na força de atração da gravidade a pequena massa de nosso corpo seja poderosamente atraída pela enorme massa da terra na distância mínima que nos separa dela.

As teorias psicanalíticas terão características mais complexas, embora possamos considerá-las ainda como inclusas na definição de Mora acima. Consideremos a teoria da transferência (Freud, 1920/1976a).

É obrigado (o cliente) a repetir o material reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo como pertencente ao passado. Estas reproduções, que surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo e seus derivativos, que são invariavelmente atuados (acted out) na esfera da transferência, da relação do cliente com o médico. (p. 31)

Esta teoria partiu da experiência e introduziu relações fundamentais e definidas: as relações com o analista e que são atuadas e não recordadas. Ainda introduz um fragmento do mito de Édipo, que já fora introduzido numa teoria anterior que é a do complexo de Édipo. Portanto, algo da antiga Grécia, provavelmente de Sófocles, embora este mito já tivesse sido citado na Ilíada de Homero. Considere-se a elegância e síntese do texto, embora tenhamos perdido a característica abstrata e matemática da teoria da atração universal, ganhamos em riqueza humanística.

Ganhamos em riqueza humanística, mas perdemos em precisão. E o que dizer quando nos deslocamos para o cotidiano do trabalho analítico?

 

Teorias fracas – cotidiano de um psicanalista

A

Para facilitar a redação e o entendimento serão colocados em itálico as descrições dos eventos da sessão e os comentários que surgiram contemporaneamente; em caractere comum serão colocados os comentários que surgiram após reflexão sobre o texto anterior.

Este dia analítico começa no anterior, quando tenho uma reunião de grupo de estudos à noite. Daí me organizar para não dormir muito tarde, pois começo a trabalhar às 7h10 da manhã.

Procuro chegar com folga e, antes de receber o cliente e iniciar o trabalho, tomo uma xícara pequena de café fresco. Tenho um lugar físico confortável e que me agrada. Mentalmente procuro estar disponível para o que se inicia.

Tomadas estas medidas, passo a esperar o cliente. Começa o meu dia psicanalítico propriamente dito.

A descrição acima contém teorias implícitas. Uma é de que o analista deve providenciar uma condição física atendendo a suas necessidades de conforto; outra, que deve cuidar de seu estado físico e mental para estar disponível para a análise.

Já estou na sala de análise e consulto o relógio. Bem, há algum atraso. Já se passam cinco minutos do combinado. Reparo que espontaneamente me tranquilizo: ela às vezes se atrasa um pouco. Fico ali com uma ideia ou outra no espírito. Ideias fugidias, algo do encontro com o grupo... Dou-me conta de que já se passaram mais sete ou oito minutos.

Há uma teoria que explica o atraso: o hábito que ela tem, às vezes, de se atrasar. Parece que esta teoria surge em função de atenuar sentimentos desconfortáveis no analista – outra teoria.

Bem, lá começam certas inquietudes: às vezes ela se atrasa até de dez a quinze minutos, é meio imprevisível. Difícil dizer o que a leva a se atrasar; pouco provável é ser o trânsito, pois ela mora mais ou menos próximo. Também, difícil saber o que a move. Estou ali à espera. Vem? Não vem?

As teorias são descartadas com as dúvidas: Vem? Não vem?

Já estamos com alguns minutos mais. Talvez não venha.

Ela falta às vezes. Pode ocorrer após sessões turbulentas em que se vê ameaçada e atacada. Às vezes, ocorre após o fim de semana (ela vem quatro vezes de segunda à quinta). A quinta-feira passada foi de alguma proximidade e no após sessão pode ter havido mudanças, ou mesmo, pela separação do fim de semana. O fato é que elementos que são vividos com proximidade e compreensão podem se tornar terrivelmente hostis e ela iniciar a sessão apavorada com minha presença.

"Talvez não venha". "Ela falta às vezes".

Isto leva a supor teorias causais que justificam a ausência hoje. Seriam faltas como reação a sessões anteriores turbulentas; sessões em que houve maior proximidade e compreensão, mas que a ausência de fim de semana transforma em elementos contrários – hostis e apavorantes.

Vou devaneando.

Procuro explicitar meu estado mental: é um devaneio e não algum outro estado que poderia ser temido.

Ontem tivemos um dos dias mais produtivos de nossa jornada que já dura dois anos com diversas ameaças de interrupção.

Há uma avaliação, por parte do analista, sobre a produtividade da dupla. Está implícita uma teoria sobre como opera a psicanálise, ou seja, com produtividade – fato avaliável pelo analista.

O tempo vai passando e eu estou realmente esperando.

Agora reflito um pouco: preenchi sua ausência com memórias de sua presença. Bem, isto me leva a pensar que eu não sei nada, a não ser que ela não está. Inclusive acontecimentos alheios a ela podem tê-la impedido de comparecer.

A sessão vai chegando ao fim. Estive trabalhando todo o tempo com um parceiro ausente sobre o qual nada fiquei sabendo.

Avalio esta passagem como sendo uma atividade em que o fim do tempo disponível e a privação da cliente levam-me a reflexões a que considero uma teoria – a do pensar.

Só pude devanear e agora tomar mais contato com o estar só. Uma preciosa parte de minha vida foi utilizada nesta tarefa que me propus a fazer: psicanálise.

Há uma teoria sobre mim e sobre psicanálise, incluindo uma afirmação de uso ou perda da própria vida. Creio que isto condiz com outra teoria, que aprecio muito, e que coloco em forma de narrativa. A vida é como a areia que existe em uma ampulheta, cuja quantidade não podemos avaliar. Quando a ampulheta é virada e isto ocorre uma vez apenas, a areia se escoa pelo buraquinho da ampulheta, cujo diâmetro também não se sabe. Terminada a operação, terminou a vida.

B

Está na sala de espera. Recebo-a e dirigimo-nos à sala de análise. Ao entrar ela acende a lâmpada central, embora já haja uma iluminação de apoio acesa. Deita-se.

A providência de acender a luz, que fica em seu olho, sugere alguma necessidade que não é propriamente de iluminar o ambiente, parece-me. No entanto, não tento nenhuma exploração a respeito. O próprio ato sugere um anúncio luminoso que diz: perigo!

Tendo a indagar sobre uma premonição do analista: intuição ou temor. O fato adverte, por parte da analisanda, uma resposta possivelmente assustada, violenta, intimidada? Não é nada disto? Creio que me movo no que chamo de prudência, é o que me ocorre e me permite ficar em silêncio, aguardando.

Prudência é uma teoria? Pelo menos é o substrato com que me situo e posso operar.

Diz que estava cansada pelo fim de semana.

Faço algum comentário do qual não me lembro.

Fica em silêncio.

Passa a narrar sobre eventos que se passaram no fim de semana usando uma forma descritiva muito rica, tanto em relação aos fatos e acontecimentos, quanto em relação aos sentimentos que foram vividos.

A narrativa vai introduzindo um clima mental de bem-estar. Embora os momentos anteriores tenham sido nomeados por mim como de prudência, agora poderiam ser ditos como de prazer ou entretenimento. Seus dotes sugerem uma escritora. Não tenho propriamente o que falar diante do que parece ser o despontar de uma atividade criativa. Sendo o despontar da criatividade do cliente na sessão algo essencial ao trabalho analítico, cabe ao analista a função de deixá-lo fluir livremente.

Apesar destas observações não fico propriamente tranquilo; poderia ela estar me hipnotizando a fim de que eu não pudesse testemunhar outros estados de espírito que poderiam ser sentidos como insuportáveis?

Quase no fim da sessão tomo uma pequena pausa para comentar o que me havia chamado a atenção: que ela estava extremamente feliz por viver essas experiências e que também estava feliz naquele momento e que nunca a vira assim antes.

Vê-se qual foi a direção que segui, quanto às cogitações sobre criatividade e hipnotismo.

Porém, devo acrescentar que subjaz aí uma outra teoria – a que se deve dar conhecimento ao cliente dos seus estados de bem-estar, felicidade, criatividade durante o encontro. Isto porque, embora ele os viva, habitualmente não os reconhece e nomeia e, assim, fica sem poder reconhecê-los ao longo de sua análise ou vida.

Ao sair, olha-me de lado com um sorriso discreto de satisfação. Parece algo de cumplicidade, entendimento...

C

Relembra que veio me procurar há três anos, mas não pôde iniciar a análise por motivos econômicos. Agora foi possível (fala em tom satisfeito). Estende-se um pouco mais a respeito.

Isto evoca em mim a lembrança da sessão anterior e como ele a viveu com sentimentos de participação e colaboração.

Esta situação me parece importante, ou seja, o analista poder avaliar qual o sentimento que preside o início do encontro, em que clima mental a dupla começa a se mover. Pareceu-me que a descrição dele de bem-estar e a minha lembrança dizem respeito a certo estado de conforto espiritual ou mental.

São feitos vários movimentos e os afetos que tinham uma direção de aproximação mais amorosa, parecem caminhar para a desconfiança.

Devido às fortes emoções envolvidas torna-se difícil prosseguir na descrição do ocorrido, mas vamos continuar.

Falo algo sobre estas impressões e ele faz alguns comentários.

A seguir toma de uma manta que deixo em cima de uma mesinha para o uso dos clientes. Eles raramente a usam e quando o fazem cobrem parte do corpo e menos frequentemente todo o corpo, quando, em geral, tiram os sapatos ou estendem a manta somente até a canela. Noto que o cliente cobre também os sapatos de maneira que a manta entra em contato com a sola de seu sapato.

Nada falo, mas estes fatos me chamam a atenção. Penso que ele pôde servir-se da manta.

Acomoda-se com a manta cobrindo-se todo.

No clima emocional que se desenrolava achei oportuno, embora com certa dúvida, fazer um comentário sobre ele aceitar a manta e poder cobrir-se.

Passa a dizer que a manta tem mau cheiro e que ela é usada por todos os clientes.

O tom é de irritação e violência e ele vai aumentando a intensidade da voz.

Diz que o cheiro é muito ruim e que está é com cheiro de merda e o que eu (o analista) quero é torná-lo uma merda.

A ideia de que o cliente está alucinando permite certo distanciamento. Até este momento as emoções podem ser contidas nas palavras e no divã, onde permanece deitado.

Vai num crescendo, fica enfurecido, diz que eu sou um merda, levanta-se e sai.

A ação tornou-se necessária.

Ao transcrever a sessão, sinto dificuldade porque parece que há algum estopim, uma palavra que eu diga, uma entonação de voz, o ritmo da fala, enfim, algo que eu não localizo e aparentemente ele também não, e que faz uma viragem e desencadeia uma avalanche de sentimentos violentos. Também fico na dúvida se isto é assim ou somente um pretexto, pois quando existe uma sessão em que ele se aproxima afetivamente, como a passada, parece que volta com algo já engatilhado para um desastre.

Quanto ao estopim, entramos em outra teoria fraca e que vai adquirir um caráter narrativo. Acredito que o cliente localiza em mim alguma característica, alguma idiossincrasia na qual ele se apoia para fazer a viragem de sentimentos. Se eu pudesse localizar o que é, talvez pudesse participar mais livremente da vivência naquele momento. Difícil colocar em palavras, mas creio que se eu suportar a intensidade da convivência, acredito que esta pessoa possa iluminar aspectos de mim a que ela tem acesso e eu não. Isto pode parecer óbvio, porém a vivência que tive deste fato foi muito forte, como o clarão de um raio que tudo ilumina numa noite escura.

Quanto a ele voltar com algo engatilhado para o desastre é uma afirmação do analista que pode ser investigada em outra direção. Em termos de sua sobrevivência e na forma em que o cliente opera, talvez este "engatilhado" seja uma forma de se organizar complexamente, pois não tenho o sentimento de ser agredido, mas o de ver uma pessoa em intensa dor. A vivência é desconcertante. Fica-se sem graça e sem saber o que fazer.

Fatos assim, nesta forma e intensidade, são infrequentes na sala de análise. Quando ocorrem, talvez nos levem a refletir sobre quais as possibilidades de duas pessoas de fato se relacionarem.

D

Está no horário, na sala de espera.

Bom dia, cumprimenta dando as mãos.

Entramos na sala de análise.

Breve silêncio.

Queixa-se de que não dormiu bem, parte, talvez, pelo seu jeito de ser que fica remoendo as coisas.

A ex-mulher fica fazendo exigências e ele não sabe o que fazer; não dá um basta. Se o carro quebra, ela cai por cima do escritório para dar um jeito. Aí não pagou seguro e nem IPVA. Se comenta, ela diz que não enviaram o boleto e que o automóvel é usado para levar os filhos dele. São sempre exigências, mais dinheiro e logo, briga. Por que suporto isto? Por que não dou um basta?

Também falei com meu filho que me mostrou a redação que fez para o cursinho. Estava regular. Eu disse a ele que não podia escrever de supetão. Tinha que escrever, ler, refletir. Ele reage dizendo que no exame é na hora que você escreve. Usei até o exemplo do futebol em que você treina os passes, os chutes a gol. Ele diz que é para eu parar, que estou pegando no pé.

Meu tio é quem cuida de tudo, manda em tudo, não consulta ninguém, é arrogante e o cliente descreve detidamente certas divergências familiares.

Tenho a impressão de que me cabe ouvir e que, sem dúvida, eu estou do lado dele contra este permanente abuso a que ele está submetido e ao qual não reage.

Não vejo o que dizer.

Ele prossegue.

Fico com tudo isto na cabeça, não durmo direito, parece um mata-borrão que vai absorvendo tudo.

A referência ao mata-borrão é como se soasse uma campainha em minha mente anunciando algo e eu não sei o quê. Mas é muito importante.

Creio que devo falar algo, além do que ele parece esperar que eu o faça.

Comento que ele me tem como uma pessoa que está a favor dele e que vai ajudar a dar um basta na situação. Mas que a situação não é clara porque, na verdade, fica um borrão.

Continuo atento à imagem do mata-borrão.

Ele prossegue: é, o mata-borrão era usado porque quando se escrevia com pena, ficava um excesso de tinta e ele tirava o excesso. Também se tinha um borrão, caía tinta, ele servia para limpar.

Ele se interessou. Começamos a conversar como numa prosa comum.

Digo: É, usando o mata-borrão a escrita fica preservada e vai ficando uma impressão no mata-borrão.

Ele: É, o mata-borrão até tem uma forma arredondada a fim de que você passe de um lado para o outro.

Eu: É, e a primeira vez que você passa fica a escrita no mata-borrão. Ele: É, mas fica invertida.

A conversa prossegue espontânea e livremente e eu me pergunto o que é aquilo. Psicanálise? Talvez.

Eu: Com o uso a escrita vai se superpondo e aí fica tudo borrado no mata-borrão. Então, parece que são elementos diferentes. A escrita fica clara e preservada e o mataborrão fica com tudo acumulado e superposto.

Ele: É como eu fico, tudo fica superposto na minha cabeça e eu não distingo nada.

Bem, agora me pareceu que tudo se juntava e que a história do mata-borrão, que foi se desenvolvendo espontaneamente, fazia sentido.

Então digo: Agora estou pensando no que você me falou no início da sessão. Parece que cada pessoa define a escrita dela: a ex-mulher, o tio, o filho. Com o filho, no início, você até faz a escrita com o exemplo do futebol e os fundamentos como o passe, o chute a gol e assim por diante. Mas depois fica o mata-borrão.

Ele de pronto: Mas você pensa que é fácil. Eu fico aqui ouvindo você falar com toda essa dureza comigo [fala sentido].

Eu: Pô! Agora você inverteu. A escrita era sua: a do mata-borrão que eu desenvolvi com você. Agora que você pode lê-la, você não quer saber, passou a escrita para mim e você ficou o mata-borrão.

Ele fica surpreso e ri intensamente: É mesmo!

O tempo se esgotou, ele se levanta, dá-me a mão com um sorriso afetuoso e satisfeito.

Vou fazer outros comentários mais à frente.

 

Reflexões sobre as teorias fracas

Ganhei recentemente um livro – Carta a D, história de um amor – em que o autor, um filósofo, fala, aos 82 anos, do amor atual e antigo pela sua mulher da mesma idade e da maravilhosa capacidade de intuição dela.

Eu necessitava de teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade. (Gorz, 2008, p. 41)

Atendendo às minhas necessidades de comunicação, cunhei o termo "teorias fracas" e agora posso verificar a que isto corresponde nas vivências experimentadas com o cliente e como posso refletir sobre elas.

Com as narrativas de situações com os clientes e mais os comentários, vou constituindo um universo que, à medida que escrevo, vai se expandindo livremente, permitindo ao leitor inserir-se nele com a liberdade que lhe for possível. O que ocorreu parece semelhante ao que certos escritores nos confidenciam: que seus personagens vão ganhando vida e que eles é que passam a dirigir os acontecimentos. Então, estamos próximos de uma narrativa, uma história que se desenrola. Nela os nossos personagens são as teorias fracas que vão se materializando continuamente.

Mas, semelhantemente ao romance onde os personagens são ambíguos, contraditórios, mutáveis, instáveis, variáveis, constantes e que podem se alterar na trama, também as nossas teorias fracas imitam a literatura. Elas surgem e desaparecem; são mutáveis e, às vezes, constantes; apresentam-se como pressupostos e, às vezes, como crenças; parecem narrativas curtas ou longas.

Como fazer um exame para que possamos constituir algo minimamente estruturado, mas que a teoria não se torne "um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade", como escreve o nosso homem apaixonado?

A

A primeira aparição não costuma frequentar as páginas psicanalíticas; trata-se da convivência com o cliente ausente. Semelhante ao livro citado, o estilo literário é o do monólogo; o narrador conta a sua relação personificando o interlocutor ausente. Este fato introduz uma teoria fraca, em geral não suspeitada pelos analistas, ou seja, quer o cliente avise ou não o faça sobre sua ausência, o analista vive uma experiência com ele. Ela pode ser escamoteada pela leitura de um livro, escrever algo, tomar providências no consultório, telefonar etc. Cada uma destas manifestações implica as emoções que o analista vive de acordo com sua personalidade.

Em nossa imprevista aparição surge o monólogo (figura literária) para atender as nossas necessidades.

Monólogo pode ser uma teoria fraca para aplicar-se à situação. Contra– argumentando, poder-se-ia dizer que monólogo é um método. Deixo em aberto.

Além do monólogo, vejamos as teorias que surgiram e as dificuldades de caracterização implícitas.

Teoria ou pressupostos surgem de início quando o analista propõe uma série de providências para favorecer a disponibilidade para o trabalho.

Teorias causais – "ela às vezes se atrasa um pouco" – leva a outra teoria: uma teoria pode estar a serviço de aliviar angústia.

Teorias causais podem se complexas como a que relaciona estados de aproximação com comportamentos violentos.

Teorias podem ser descartadas, como em: Vem? Não vem? Aí se introduziu a dúvida. Dúvida é a base na qual o analista trabalha ou, melhor dizendo, na qual ele vive na sessão.

Teorias que estimam produtividade e fazem avaliação perpassam o trabalho com muita frequência.

Teoria do pensar surge em função de eu concluir que estive trabalhando com um parceiro ausente, implícita a privação.

Teoria e pressupostos em forma narrativa surgem ao considerar que parte preciosa da vida foi consumida na tarefa da análise e sua explicitação pela metáfora da ampulheta.

B

Prudência implica a premonição para certos estados mentais e a disponibilidade do analista para o amplo aparecimento deles. A forma descritiva da premonição pode ser: um anúncio luminoso – perigo! Premonição implica estados que podem ser de terror, pavor ou bem-estar, satisfação... A premonição diz respeito a uma possibilidade de antecipar e é tanto mais valiosa quando nos ajuda a perceber dor no cliente, mesmo antes que ele o comunique.

Prudência e premonição são teorias fracas e precariamente articuladas.

Teoria do despontar da criatividade como algo central em psicanálise. A função do analista é permitir que a dupla se transforme em um par e daí nascer algo nunca existente anteriormente ou ter acesso ao que anteriormente nunca emergiu.

Teoria do hipnotismo implica que certas emoções estão sendo usadas em lugar de outras, que talvez fossem insuportáveis.

A descrição de como a cliente sai da sala de análise – com um discreto sorriso de satisfação – é uma sequência descritiva, mas creio que seja importante estar atento a estas manifestações, pois elas podem nos conduzir diretamente ao âmago das emoções em curso. Esta afirmação não contradiz o dito popular: "Quem vê cara não vê coração". Mantendo as duas afirmações juntas creio termos uma figura de linguagem que é o oxímoro.

C

Até aqui estive descrevendo as teorias fracas como faria o escritor de um romance ao desejar caracterizar os personagens com receio de que o leitor os perdesse ou não os discriminasse claramente. Mas, agora, vou deixar o leitor livre e sujeito à sua própria sorte, só me permitindo os lembretes: fortes emoções; alucinação; já engatilhado para um desastre; fica-se sem graça e sem saber o que fazer; a vivência é desconcertante; fatos infrequentes; quais as possibilidades de duas pessoas de fato se relacionarem?

D

Creio que a teoria do mata-borrão seja uma excelente aproximação para o que denominei uma teoria fraca. A expressão mata-borrão surge espontaneamente no decurso da vivência da dupla. Tem uma característica pregnante, ou seja, permite um aumento crescente de significados que surgem na vivência do par. Refere-se a uma possibilidade crescente e variada de experiências emocionais que vão se desenvolvendo. Permite um desenvolvimento evolutivo que pode culminar com uma aproximação da pessoa a si mesma, como parece indicar a relação com o cliente na situação proposta. Última qualidade: é fugaz.

 

Conclusão

A conclusão é de que não podemos concluir conforme os cânones das teorias fortes, pois corremos o risco de que "a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade". Assim, a conclusão só pode ser a apresentação de todo o trabalho e o significado ficar a cargo do leitor.

A relação entre teorias fracas e fortes

Para fazer a relação, de início, explicitarei uma teoria forte – transformação em alucinose – complementada por outras teorias ou partes delas. A seguir considerarei o uso que se faz das teorias fortes e a relação com o uso que estou fazendo das teorias fracas.

Bion (1970/1973) assinala que o analista, por meio da denudação de memória e desejo e o "ato de fé", pode "estar-de-acordo" com a alucinação do cliente e que "para apreciar a alucinação o analista precisa participar do estado de alucinose". Neste viés "a alucinose não será um estado patológico ou mesmo normal exacerbado, mas um estado acessível e sempre presente que é revestido por outros fenômenos que o ocultam" (p. 40). Isto abre uma ampla perspectiva de exploração dos estados psíquicos na clínica, o que tenho feito através de diversos trabalhos (Rezze, 1995, 1997a, b, c, 2003, 2006, 2009).

Ao examinar os trabalhos que produzi, cogito de que a forma que tenho utilizado o conceito extravasa àquele dado por Bion.

Vejamos. Em alucinose (Bion, 1965/1983) podemos destacar dois termos: ação e rivalidade. O primeiro, em que o lema do cliente é que "ações falam mais alto que as palavras". A rivalidade aí se insere como disputa entre os métodos do cliente e analista, em que qualquer resultado implica superioridade, ora do cliente, ora do analista o que colocaria a análise num "acting-out de rivalidade" (p. 161).

Na mesma linha de pensamento, Bion (1965/1983, p. 162) faz uma descrição estilizada de uma situação clínica, que podemos considerar superponível ao descrito para o cliente que usou a manta.

O quadro geral que o paciente apresenta é o de uma pessoa ansiosa para demonstrar sua independência de qualquer coisa além de suas próprias criações. Estas criações são o resultado de sua suposta habilidade para usar seus sentidos como órgãos de evacuação que estão aptos a envolvê-lo com um universo que foi gerado por ele próprio; a função dos sentidos e sua contraparte mental é criar o mundo perfeito do paciente. A evidência de imperfeição é ipso facto evidência para a intervenção de forças hostis invejosas. Graças à capacidade do paciente em satisfazer todas as suas necessidades a partir de suas próprias criações, ele é inteiramente independente de qualquer pessoa ou de qualquer coisa que não sejam seus produtos e, portanto, está além de rivalidade, inveja, avidez, mesquinharia, amor ou ódio; mas a evidência dos sentidos desmente suas prédeterminações; ele não está satisfeito.

O que descrevi para o cliente que usou a manta permitiria considerar a "intervenção de forças hostis e invejosas", conforme o texto anterior e ainda: "Rivalidade, inveja, avidez, roubo, juntamente com o seu sentido de ser inocente, merecem consideração como invariantes sob alucinose" (Bion, 1965/1983, p. 157). Portanto, tomando estas características, as transformações em alucinose se inserem, a meu ver, no que Bion chama de vínculo de ódio, ficando à parte os vínculos de amor e conhecimento.

Posso dizer que a situação clínica por mim apresentada satisfaz a todos esses quesitos e, portanto, permite a realização do conceito de alucinose. Porém, surgem aqui situações específicas que as teorias fracas nos ajudariam a elucidar.

Assim, temos a teoria fraca do estopim e do algo engatilhado para um desastre. Na primeira, considera-se a possibilidade de o cliente iluminar algo sobre mim e, consequentemente, da relação entre nós; na segunda, não há o sentimento de eu ser agredido, mas a experiência de viver com alguém em intensa dor. Também, no episódio da manta, onde "fica-se sem graça e sem saber o que fazer", desencadeia-se uma situação de perplexidade, dor, mas não de desintegração e estímulo a uma "atuação" por parte do analista.

Portanto, estamos em uma situação que está aquém ou além do conceito de transformação em alucinose. Isto porque em minha observação tudo o que Bion descreve acho válido, porém o estado de alucinose, quando há a denudação de outros fatores que o ocultam, mostra um espectro mais amplo em que se incluem os vínculos de ódio, amor e conhecimento, usando os conceitos de Bion. Digamos que é uma área em que estamos fora da razão e fora do que se conceitua como inconsciente, numa personalidade relativamente conservada.

Vínculos de conhecimento e amor

E creio poder prosseguir a investigação levando em conta os vínculos de conhecimento e amor.

Quanto ao vínculo de conhecimento, sugiro, em trabalho anterior, usar uma "fresta" (Rezze, 2003) que implicaria, para o cliente, um reconhecimento de seu estado mental antes que se tente qualquer tipo de interpretação, pois estas serão imediatamente assimiladas pelas transformações em que o resultado é alucinose. Sendo possível haver uma fresta, o cliente pode fazer uso do pensamento e assim caminharmos para transformações em conhecimento (K) e progredirmos, possivelmente, para transformações em O. Estes estudos se deram no que chamo de teorias fortes, porém a fresta é uma teoria fraca.

Quanto ao vínculo de amor, tomemos dois fatos ocorridos. O primeiro é o da manta, em que apesar da violência manifesta e evidente, o analista aproxima-se da compaixão em relação ao que está acontecendo, portanto, o vínculo de amor que tem origem no analisando. O segundo, seguindo as teorias fracas, quando suspeito do efeito hipnótico em B, teríamos manifestações que não são aparentemente agressivas, até pelo contrário, através de rica narrativa, sugerem a criatividade, mas que sob o viés que estou seguindo também podem sugerir transformação em alucinose, pois não há praticamente espaço para a participação do analista, só lhe restando, na maior parte do tempo, a possibilidade de ouvir.

Segundo estes desenvolvimentos chegamos à conclusão de que estamos trabalhando de forma tal que as invariantes assinaladas por Bion (rivalidade, inveja, avidez, roubo, juntamente com o seu sentido de ser inocente) não são suficientes e teríamos que acrescentar outras que supostamente ampliariam o campo. Creio que isto não é possível, pois criaríamos contradições internas na teoria original e, então, estaríamos mais próximos de um monstrengo do que de uma contribuição científica. Mais adequado manter as diferenças sem falsos acordos.

Acréscimos ou modificações de teorias

Sugestões de modificações podem gerar conjecturas interessantes. Assim, a grade (Bion, 1962/1966a) sugeriu: extensão para uma grade de elementos β (Korbivcher, 1999) e um desenvolvimento no eixo negativo (Braga, 2003; Chuster e Conte, 2003; Meltzer, 1987; Sanders, 2002; Rezze, 2005, 2008). As dificuldades de acréscimos ou modificações de teorias surgem já no título do trabalho Turbulência nos conceitos ao tentar criar uma grade em -K (menos conhecimento) (Rezze, 2005) e prosseguem no estudo do aparecimento do conceito de transformações em alucinose com Aprender com a experiência emocional. E depois? Turbulência! (Rezze, 2006). A turbulência é o termo– chave nesta investigação.

Porém, pontuemos a expansão do campo conforme estou investigando e a não inclusão dos achados conforme o manto protetor das teorias de Bion. Isto nos abre o campo para duas considerações. A primeira é a inclusão de situações novas em conceitos que já não suportam acréscimos e que tornam as teorias tão abrangentes que perdem o significado. A segunda é a proliferação e a vastidão das teorias. Isto nos leva ao número de teorias que vão surgindo e, em cada uma, um novo objeto de observação com uma nova nomenclatura, exigindo enorme esforço de cada analista para tão somente situar-se no campo. Creio ser impossível um psicanalista moderno poder dar conta de tal extensão de conhecimento e ter a realização da experiência de onde provém do infinito do acontecer entre analisando e analista. Podemos conjecturar, sobretudo com o auxílio de computadores, que poderíamos encontrar os pontos comuns entre os principais leitos psicanalíticos e uni-los em um único referencial teórico. Tal feito hercúleo teria perdido em seu âmago a essência: a vida analisando-analista.

Fator probabilístico

Importante é o fator probabilidade tanto no dia a dia do psicanalista, quanto nas teorias que formam o corpo da psicanálise. Assim, no convívio, a presentificação do cliente vai depender de inúmeros fatores por onde sua alma transita (memórias, experiência, vivência do momento, crenças etc.). Somente alguns deles terão a possibilidade de emergir no contato com o analista. Este, por sua vez, na vivência vai ter a possibilidade de algumas percepções e conexões dentre os inúmeros fatores que compõem a sua personalidade. Dentro destas probabilidades há o emergir de algo apreensível, eventualmente comunicável por parte do analista.

Algo semelhante ocorre no campo das teorias psicanalíticas. Estas se situam em um campo vasto de conhecimento que são influenciados, pelas culturas, pelas situações geográficas dos povos envolvidos, da língua que no momento predominantemente é a inglesa, dos novos conhecimentos emergentes como os da física, da teoria do caos, da teoria da complexidade e das neurociências. Por outro lado, os analistas terão a possibilidade, no correr de suas vidas, de entrar em contato com apenas algumas correntes do pensamento analítico, o que vai depender, além dos fatores acima, daqueles inerentes à Sociedade de Psicanálise onde fez sua formação, da política predominante na direção da instituição, da orientação do grupo quanto à sobrevivência, sobretudo onde a psicanálise depende do seguro-saúde do estado (Kernberg, 2008; Dreher, 2008). Por último, porém mais importante, é a personalidade do analista. Ele tomará uma direção possível neste vasto campo de probabilidades.

Epílogo

Estou considerando que as teorias fortes surgiram das teorias fracas. Assim, proponho pensar nos gênios ou místicos (Bion, 1970/1973) da psicanálise não como tais, mas como um de nós analistas no cotidiano, vivendo como nós as suas dificuldades com os seus clientes. Ao escrever eles têm dúvidas; vão por vias diversas, algumas abandonadas. A necessidade de ordenação é, sobretudo, dos póstumos que tentam traçar uma linha evolutiva e compreensiva. Temos que considerar que o trabalho dos autores foram feitos em dúvida e sem saber onde eles iriam parar. Seguindo os trabalhos de Freud, seria imprevisível anteciparmos a chegada ao instinto (pulsão, drive ou triebe) de morte (Freud, 1920/1976a). Aliás, ele próprio e os póstumos não conseguem assimilar o conceito (Freud, 1937/1976b, p. 278). Cita-se Melanie Klein como exceção, mas creio que as pulsões de morte para ela têm um significado diferente do que em Freud (Hinshelwood, 1992).

Assim, as teorias fracas formam a base do desenvolvimento das teorias fortes que serão o resultado da intervenção da personalidade do analista sobre as teorias fracas. A posteridade é que deu às suas teorias o caráter de teorias fortes ou consagradas.

A afirmação frequente da assimilação ou introjeção bem-sucedida das teorias, por parte do analista, pode corresponder a uma afirmação de corrupção da personalidade do psicanalista. O indivíduo cresce se ele puder dizer: isto que eu vejo de tal ou qual forma talvez corresponda de alguma maneira ao que tal autor, consagrado ou não, descreveu de tal ou qual forma. Isto não acontecendo, ocorre um curto-circuito em que a produção científica pode ser enorme, consolidando ainda mais um viés psicanalítico consagrado. Em maior ou menor intensidade ninguém se livra disto.

Enfim, a conclusão é sobre o indivíduo e o que ele usa na relação com o outro, no caso o analisando.

Esta matéria-prima será transformada por diferentes analistas produzindo, conforme suas mentes, diversas teorias. Tornar uma teoria forte depende de publicação e aceitação. Será contingente à língua, ao povo, ao momento histórico, à política predominante no meio psicanalítico e muitos outros fatores. Consequentemente, os produtos serão diversos e, devido às limitações humanas, o que se produz é de imenso valor tanto para quem produz, que em geral levou uma vida inteira nesta produção, quanto para quem apreende e usa, que também levou uma vida inteira nesse mister.

Assim, tenta-se manter uma unidade na psicanálise, com frequência tentando aterse a Freud. Este seria um possível common ground (Dreher, 2008) como se vê em congressos em que se usa um tema original de Freud como uma motivação que seria pertinente a todos os psicanalistas e a contribuição destes.

Penso que o peso está no que chamei de teorias fracas. Se puder ter em mente que todas as teorias fortes psicanalíticas delas derivam, teremos um denominador comum em psicanálise.

O risco de dispersão e pluralidade pode acentuar-se tanto que a psicanálise, como a conhecemos hoje, pode desaparecer. Por enquanto, ainda temos, na pluralidade, uma unidade.

Pós-escrito

Considero este trabalho uma pesquisa realizada na clínica, metodologia e teoria psicanalíticas e que se dá no referencial da metapsicologia, porém não apenas no sentido freudiano do termo.

Afirmo ter feito uma pesquisa psicanalítica. Mas em que campo? A psicanálise é uma ciência?

Em "Controvérsias psicanalíticas", Green (2005) afirma: "Do meu ponto de vista, a psicanálise não é nem ciência e nem hermenêutica. É uma prática baseada em pensamento clínico e que leva a hipóteses teóricas" (p. 632). Para Wallerstein (2005b) que defende a procura de uma base comum (common ground) no pluralismo contemporâneo da psicanálise atual, a opinião é diversa da de Green considerando a psicanálise disciplina independente "baseada na investigação dos processos mentais inconscientes, mas com interfaces... variando desde a filosofia e a linguística em uma extremidade do espectro e com a psicologia cognitivista e a moderna neurociência na outra extremidade" (2005a, p. 635). Nesta sintética afirmação, palavras condensam situações de dimensões incomensuráveis como: Que filosofia? Quais escolas linguísticas? E como utilizar o que se chama de neurociência, mas que tangencia a neuropsicologia, neurofisiologia, neuropsiquiatria, neurocirurgia, neurofarmacologia etc.? Não bastasse isto, como relacionar com a pluralidade das teorias psicanalíticas, para as quais a procura de um suposto common ground é tão rebatida por Green? Estas questões têm um encaminhamento dado por Anna Ursula Dreher sobre a pesquisa em psicanálise, especialmente a conceitual, em interessante artigo publicado pela Revista Brasileira de Psicanálise – "Pluralismo na teoria e na pesquisa: e agora?" (2008, pp. 131-153).

Creio que contribuições das diversas áreas do saber humano fazem parte das teorias psicanalíticas de forma implícita ou explícita, como podemos ver na obra de Bion onde se entrelaçam as luzes da filosofia, matemática, poesia, prosa, física e outras disciplinas, relativa à pessoa de acervo cultural incomum.

Assim, tomando a citação de Wallerstein, deixarei de lado os aspetos filosóficos e linguísticos já explorados por diversas escolas psicanalíticas. Sem dúvida, o aceno à neurociência é promissor. Alguns autores têm dado contribuição notável e entre os psicanalistas alguns me são acessíveis. Assim, Doin (2003) e Soussumi (2005), entre nós, apresentam extensas aproximações entre conceitos psicanalíticos e as variadas e heterogêneas contribuições das neurociências. Soussumi (2003), de forma criativa, relaciona sua peculiar forma de trabalhar psicanaliticamente com conceitos oriundos das neurociências, fazendo uma tessitura pessoal quanto aos conceitos empregados. Mancia, a propósito dos achados relativos ao sonho (2001), reflete sobre o fato de que os investigadores têm ideias discordantes mesmo quando o meio de investigação é comum, como o eletroencefalográfico. Em outro trabalho (2006), com mais de 110 citações bibliográficas, tece um fio valioso em que as diversas contribuições se ajustam a um uso que combina com suas visões teóricas e práticas da psicanálise. Creio ser que um trabalho notável porque um psicanalista comum dificilmente chega a conhecer a estrutura do sistema nervoso central a fundo. Os analistas que utilizam as neurociências, servem-se do conhecimento das várias estruturas cerebrais como os núcleos, a substância cinzenta de vários giros, suas conexões e riqueza sináptica que faz sentido junto às conexões neuronais (axônicas) que ligam tais estruturas podendo formar, a meu ver, um novo tipo de localizacionismo: o dinâmico ou funcional. Além disto, Mancia (2006) nos apresenta rica teorização em que serve-se de referências de diversas fontes das neurociências mesclando-as com as investigações cognitivas. Examina a memória explícita que relaciona com a memória consciente e com o inconsciente reprimido, na acepção de Freud; a memória implícita na sua equivalência com o inconsciente, não o dinâmico ou reprimido conceituado por Freud. Na memória implícita são registradas as vivências primitivas, mesmo as pré-natais. A linha de pensamento do autor estabelece ligação destes complexos conhecimentos com as relações primitivas entre mãe e bebê, relacionando estes dados com a situação em sala de análise.

Os conhecimentos das neurociências são amplos, heterogêneos e em grande número, sendo que Ramachandran (2003) nos fala em dez mil apresentações anuais na área. Alguns autores apresentam trabalhos que contém uma linha estrutural, formando um todo teórico. Assim, Damásio (1994/2002) propõe uma contraposição ao dualismo cartesiano (res cogitans, res extensa) – O erro de Descartes – desenvolvendo um continuum corpomente, envolvendo num todo o corpo e o sistema nervoso. Edelman (1992) parte de noções de Darwin da seleção na evolução, suas investigações sobre o sistema imunológico que lhe renderam o Prêmio Nobel, e a TNGS (Teoria dos Grupos Neurais Seletores) que considera placas neurais chamadas mapas que têm a função seletora neuronal e, assim, o autor constitui um todo coerente para explorar a mente. Ramachandran (2004, 2007) parte de casos particulares de patologia neurológica, como a dor em membros que foram amputados, membros fantasmas, e assim chega a uma visão ampla e geral na conexão do sistema nervoso com as produções humanas no campo da percepção, das artes, da criatividade e até mesmo explorando a origem da vivência de Deus.

Apesar da possibilidade de ampliar os conhecimentos psicanalíticos com estas vastas contribuições, vale a pena considerar a resposta de Ramachandran (2004) quando indagado sobre a contribuição da neurociência: "... ainda não atingimos o estágio em que possamos formular grandes teorias unificadas sobre mente e cérebro. Toda ciência tem de atravessar uma fase inicial conduzida por "experimentos ou fenômenos – em que seus participantes ainda estão descobrindo as leis básicas – antes de atingir um estágio mais sofisticado de teoria" (p. 26-27).

Vejo algo a complementar.

Embora as vinculações estabelecidas com as neurociências pareçam "naturais" para os autores considerados, para o psicanalista comum elas parecem um tanto forçadas. Fico com a impressão de que os conhecimentos adquiridos pelas neurociências nos dão uma visão macroscópica em relação aos afetos, às emoções e à mente. Isto difere das vivências com as quais os analistas lidam na sessão, onde conflitos, vínculos, insights, realizações etc. são microscopicamente delineados, usando a metáfora médica.

Diante da fragilidade de qualquer teoria para alcançar a extensão do ser humano, estas teorias proveem um novo campo que se estrutura e que pode servir de apoio, assim como todas as outras teorias, na pluralidade em que vivemos. Porém¸ seguindo nossa investigação, estas teorias aumentam a pluralidade do campo e algumas bem poderiam ser consideradas fortíssimas.

Concluímos que as teorias fracas são a base comum, tanto para o analista praticante quanto para aquele que queira refletir sobre as teorias psicanalíticas e de outras áreas, no que concerne ao aprender e investigar em nosso sempre nascente campo de trabalho.

 

Referências

Bion, W. R. (1966a). O aprender com a experiência. In W.R. Bion, Os elementos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962)         [ Links ]

Bion, W. R. (1966b). Os elementos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1966. (Trabalho original publicado em 1963)         [ Links ]

Bion, W. R. (1983). Transformações: mudança do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago, (Trabalho original publicado em 1965)         [ Links ]

Bion, W. R. (1973). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, (Trabalho original publicado em 1970)         [ Links ]

Braga, J. C. (2003). Uma grade ampliada para examinar o âmbito do alucinatório. Trabalho não publicado.         [ Links ]

Chuster, A. & Conte, J. (2003 ). Uma grade negativa. In Arnaldo Chuster & cols. W. R. Bion, novas leituras: a psicanálise: dos princípios ético-estéticos à clínica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Damásio, A. R. (2002). O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras (trabalho original publicado em 1994).         [ Links ]

Doin, C. (2003). Psicanálise e neurociência: uma questão de interesse prático. Revista Brasileira de Psicanálise, 37 (2/3), 547-572.         [ Links ]

Dreher, A. U. (2008). Pluralismo na teoria e na pesquisa: e agora? Revista Brasileira de Psicanálise, 42 (2), 131-153.         [ Links ]

Edelman, G. (1992). Bright air, brilliant fire: on the matter of the mind. New York: Basic Books.         [ Links ]

Freud, S. (1976a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 18, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920).         [ Links ]

Freud, S. (1976b). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 23, pp. 239-287). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937).         [ Links ]

Gorz, A. (2008). Carta a D: história de um amor. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Green, A. (2005). The illusion of common ground and mythical pluralism. International Journal of Psychoanalysis, 86, 627-32.         [ Links ]

Hinshelwood, R. D. (1992). Dicionário do pensamento kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Korbivcher, C. F. (1999). Mente primitiva e pensamento. Revista Brasileira de Psicanálise, 33 (4), 687-707.         [ Links ]

Kernberg, O. (2008 ). A necessidade de ampliar a pesquisa na e sobre psicanálise. Livro Anual de Psicanálise. (Tomo 22, pp. 25-30). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Mancia, M. (2001). A psicanálise e as neurociências: um debate tópico sobre os sonhos. Livro Anual de Psicanálise. (Tomo 15, pp. 273-280). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Mancia, M. (2006). Implicit memory and unrepressed unconscious. International Journal of Psychoanalysis, 87, 83-104.         [ Links ]

Meltzer, D. (1987). Il modelo della mente secondo Bion: note su funzione alfa, inversione della funzione alfa e griglia negativa. In D. Meltzer, Letture Bioniane. Roma: Borla.         [ Links ]

Mora, J. F. (1977). Dicionário de filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote.         [ Links ]

Ramachandran, V. S. (2003). O futuro da pesquisa sobre o cérebro. Revista Cérebro e Mente, 17. Núcleo de Informação Biomédica da Universidade Estadual de Campinas.         [ Links ]

Ramachandran, V. S. (2004). Fantasmas no cérebro. Rio de Janeiro: Record. (Trabalho original publicado em 1998)         [ Links ]

Ramachandran, V. S. (2007). Sobre a sua mente. Conferência. www.ted.com/talks/lang/eng/vilayanur_ramachandran_on_your_mind.html.         [ Links ]

Rezze, C. J. (1995). Fórum temático: estudo de uma sessão analítica: identificação e rastreamento na clínica dos conceitos de inconsciente, sexualidade, recalcamento e transferência, SBPSP. São Paulo, 30 de agosto.         [ Links ]

Rezze, C. J. (1997a). Édipo: as múltiplas faces da sexualidade. Alter: Jornal de Estudos Psicodinâmicos, 16 (1), 67-84.         [ Links ]

Rezze, C. J. (1997b). Interpretação: revelação ou criação? Formulação psicanalítica. In: França, Maria Olympia de A. F. (org.). Bion em São Paulo: ressonâncias. (pp. 37-63). SBPSP; Imprensa Oficial do Estado: PUC, (Apresentado em: Simpósio Bion em São Paulo: Ressonâncias; São Paulo, 14-15 de novembro)         [ Links ]

Rezze, C. J. (1997c). Transferência: rastreamento do conceito e relação com transformações em alucinose. Revista Brasileira de Psicanálise, 31 (1), 137-66.         [ Links ]

Rezze, C. J. (2003). A fresta. In Paulo César Sandler & Teresa Rocha Leite Haudenschild (Orgs.). Panorama. (pp. 41-56). São Paulo: SBPSP, Departamento de Publicações.         [ Links ]

Rezze, C. J. (2005). Turbulência nos conceitos ao tentar criar uma grade em -K (menos conhecimento). Apresentado em Reunião Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 21 de maio.         [ Links ]

Rezze, C. J. (2006). Aprender com a experiência emocional: e depois? Turbulência! Revista Brasileira de Psicanálise, 39 (4), 133-47.         [ Links ]

Rezze, C. J. (2008). Tentativo di creare una griglia in -K (meno conoscenza). In Studi ed esperienze a partire de Bion, Stefania Marinelli. Roma: Borla.         [ Links ]

Rezze, C. J. (2009). Turbulências: do aprender com a experiência emocional ao pensamento selvagem. In Cecil José Rezze, Evelise de Souza Marra & Marta Petricciani (Orgs.). Psicanálise: Bion: transformações e desdobramentos (pp. 13-29). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Sanders, K. (2002). Modificaciones de Meltzer a la tabla de Bion. Apresentado no Encontro Comemorativo aos 80 Anos de Donald Meltzer. Barcelona.         [ Links ]

Soussumi, Y. (2003). Uma experiência prática de psicanálise fundamentada pela neuro-psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, 37 (2/3), 573-596.         [ Links ]

Soussumi, Y. (2005). As neurociências e psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, 39 (3), 129-134.         [ Links ]

Wallerstein, R. S. (2005a). Dialogue or illusion? How do we go from here? International Journal of Psychoanalysis, 86, 633-638.         [ Links ]

Wallerstein, R. S. (2005b). Will psychoanalytic pluralism be an enduring state of our discipline? International Journal of Psychoanalysis, 86, 623-626.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência

Cecil José Rezze
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Dr. Alberto Seabra, 132
05452-000 São Paulo, SP
e-mail: cjrezze@uol.com.br

 

[Recebido em 12.11.2009, aceito em 9.12.2009]

 

 

1 Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo USP. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Analista didata do Instituto de Psicanálise da SBPSP.