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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo 2010
RESENHAS
A clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas
Autor: Gley Cost
Editora: Artmed, 2010, 272p
Resenhado por: Celso Gutfreind,1
A psicanálise da dor contemporânea
Já não há tanta polêmica quanto a não sermos apenas um punhado de células. A qualidade de um parto, o aparato neurológico e o genoma podem influenciar o destino de um bebê. Mas antes haverá embate entre as possibilidades desse corpo e a qualidade dos encontros de seu dono com os outros. Dá-se na esquina o encontro, segundo a imagem precisa de Bernard Golse (2004), pesquisador da infância.
Portanto, afetos também decidem futuros e, sobretudo, a sua presença no encontro de um bebê com seus pais e sua comunidade.
Mas a esquina do Golse é mais habitada e complexa.
Não nos referimos ao mistério, sempre presente nas ruas e nas casas e que, de certa forma, não é o tema deste artigo. Referimo-nos a quando o corpo nasceu bem, a genética ajudou um bocado, os afetos foram predominantemente favoráveis, mas o bebê (e o adulto) é mais infeliz do que feliz.
Temos aqui outro tipo de mistério, que pode encontrar alguma resposta nos fantasmas, não como seres sobrenaturais, mas sentimentos não ditos naturalmente, não contados (elaborados) para o outro e escondidos na poeira de geração à geração. Precisamos chegar razoavelmente narrados para poder narrar. Parodiando Quintana, sem narração (ritmo para ele) não há salvação.
O livro A clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas, de Gley Costa e colaboradores, estuda outras possibilidades de resposta. Em sintonia com ideias desenvolvidas pela Antropologia da Saúde, defende a hipótese de que cada época produz seus sofrimentos. Mais que isto, detém-se na nossa.
A partir de casos clínicos, costurados por uma teoria clássica freudiana e também atual (Maldavsky, 2007), os autores traçam uma espécie de perfil daqueles que hoje mais procuram (ou não) o consultório de um psicanalista.
Os relatos, por um lado, não são animadores.
Foi-se o tempo de encontrar um homem ou uma mulher com dificuldades sexuais ancoradas na repressão sexual de uma era vitoriana. O sexo era um grande tabu. Facilmente, achávamos um nome para aquilo: histeria.
Foi-se o tempo de encontrar uma criança com medo de ser mordida por um cavalo, ancorado na ameaça de castração. A mãe havia ameaçado arrancar seu pênis se continuasse a manipulá-lo. Facilmente, achávamos um nome para aquilo: fobia.
Nesse ponto, é claro, evoluímos um bocado, e nossa era merece muitos pontos em seu favor.
Tratar esses pacientes era outros quinhentos, e nem Freud foi só acertos ao longo de seu trabalho. Ainda assim, contava com a capacidade simbólica de fóbicos e histéricos, hoje reduzida e tragada pelo vazio da época.
O entendimento das dores de sentimento de mundo, como aludia Drummond, parecia caber mais nas teorias vigentes. Também a técnica para tratá-las, embora nem sempre eficaz, soava melhor conhecida e nomeada: transferência, contratransferência, elaboração, entre outros pilares da psicanálise.
Muito além de qualquer síntese ou simplificação, Gley e seus colaboradores descrevem, com teoria e prática, o tipo de pessoas que andamos produzindo. Aqui os relatos continuam nada alentadores.
Claro que somos, psicanalistas ou não, grandes caçadores de sentidos ou nomes para nossas agruras. Sem eles, também esmorecemos. E esta obra, tal qual Freud fizera com os adultos histéricos e as crianças fóbicas, busca os seus. Patologia do vazio (ou desvalimento) é o maior deles e mais aberto que os clássicos, talvez mais subjetivo e, provavelmente, mais sofrido.
Os casos descritos são sigilosos, mas nada maquiados e tentam aproximar a época e suas pessoas. Na época, encontramos tempos muito virtuais, que rarefazem os verdadeiros encontros, necessários para que driblemos revezes de parto, genética, neurologia e nos tornemos seres humanos capazes de sentir e de amar apesar da dor, da morte ou da finitude que tanto interessou a Freud.
Esta rarefação inclui a frequente ausência física de pais e, especialmente, psicológica de mães, que andam isoladas, solitárias e incapazes de repassar uma verdadeira preocupação com o outro (empatia) que não receberam. São tempos ferrenhos de selvas consumistas, contribuindo para o desastre humano. Uma ânsia de não sei o quê, iludida pelo encontro material (falso), prejudica a nossa subjetividade (verdadeira), nossa capacidade de criar e aproveitar o que a vida pode oferecer de mais profundo e estruturante: o encontro consigo mesmo e com o outro.
Nas pessoas em si, aparece, então, o vazio, que se manifesta por uma dificuldade de sentir ou nomear o que se sente. E, como os conteúdos precisam vazar, acabam vazando em dificuldades de conter-se, em impulsividades desenfreadas, que tentarão, como último recurso na busca do alívio, a droga, a comida demais ou de menos, o sexo compulsivo, o desamor como um amor às avessas.
São tempos limites para a sobrevivência psíquica e, ampliando a visão, para a própria sobrevivência planetária.
A leitura desta obra, portanto, reaproxima a psicanálise da filosofia, como nos clássicos freudianos. Adoecer não é mais um privilégio das células. Tem a contribuição dos afetos, como já dissemos, e igualmente da época, tal qual o livro diz.
Mas não pensemos que se trata de um texto pessimista, como eram muitos dos filósofos brilhantes que influenciaram Freud e a psicanálise.
Gley e seus colaboradores não se encolhem para a morte (Tanatos), que parece, neste século, travestida de um grande vazio. Eles a encaram, propondo encontros banhados de tempo presente (Eros).
E vão à luta com interações, estudos e encontram este Maldavsky, que encontrara, em nota de rodapé de Freud, alguma possibilidade de compreender transtornos mais arcaicos de um mundo que, externamente, ampliou a sua loucura. O nosso mundo de hoje e sua loucura moldada por ele.
Nesse caso, o psicanalista torna-se mais flexível. A título de exemplo, tem a expressiva história de uma mãe que liga para o psicanalista e diz: – Doutor, minha filha vai morrer (capítulo 8, em parceria com Roberto Vasconcellos).
A história sugere que a mãe estava certa. A filha morreria de um vazio de interações insuficientes, que lhe tiraram a possibilidade de encontrar verbos como sentir, comer, viver. Fora esvaziada por células, afetos e época.
Mas esses autores parecem ter aprendido em Freud que para cada morte há uma vida. E o que propõem aparece de forma simples e profunda.
Já não vivemos momentos, na clínica e fora dela, de dizer grandes coisas. De interpretar ou nomear escancaradamente. O buraco está mais embaixo, porque está antes. São tempos de reaprender a sentir, a dizer pequenas coisas do aqui e agora e a dar valor ao que realmente interessa. É a hora de contar com humor e esperança.
É o que, segundo este livro, anda fazendo a psicanálise. Ou a prevenção, que se volta para os encontros dos bebês e de seus pais.
Ou, como conta outro psicanalista, Albert Ciccone (2007), são tempos em que nós, psicoterapeutas e psicanalistas, devemos estar mais afeitos a implicarmo-nos do que a explicar.
Referências
Ciccone, A. (2007). Naissance à la pensée et partage d'affects, apresentado no Colóquio "Vinculos tempranos, clinica y desarrollo infantil". Montevidéu, agosto. [ Links ]
Golse, B. (2004). O que nós aprendemos com os bebês? Observações sobre as novas configurações familiares. In L. Solis-Ponton (Org.), Ser Pai, Ser Mãe – Parentalidade: um desafio para o próximo milênio. (pp. 161-169). São Paulo: Casa do Psicólogo.
Maldavsky, D. (2007). La desvitalización y la enconomia pulsional vincular. No prelo. [ Links ]
Celso Gutfreind
[Recebido em 10.8.2010, aceito em 10.9.2010]
Rua Sinimbu, 320, ap. 201
90470470 Porto Alegre RS
e-mail: celso.gut@terra.com.br
[Recebido em 3.7.2010, aceito em 7.8.2010]
1 Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA.