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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
RESENHAS
A normopatia na formação do analista
Marta Quaglia Cerruti
Psicanalista. Membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapietiae de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
Autora: Maria Helena Saleme
Editora: Escuta, São Paulo, 2008, 151p
Resenhado por: Marta Quaglia Cerruti
O que é um psicanalista? Como e por que alguém chega a ser um psicanalista? Interrogações como essas convocaram Maria Helena Saleme a produzir seu livro. As reflexões que ela nos apresenta ao longo de seu trabalho têm como pano de fundo sua experiência de muitos anos como analista, analisanda e formadora de analistas no Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo.
Leitora atenta da obra freudiana, Maria Helena milita a favor da psicanálise entendida como uma indagação profunda de qualquer verdade normativa sobre o ser do homem. E por essa razão, ancorada sobretudo em sua prática como formadora de analistas, aponta para um fracasso sistemático: as instituições responsáveis pela formação de psicanalistas tendem a aprisionar seus membros nas suas experiências transferenciais de origem, o que tem como consequência a perda da vivacidade, da singularidade de estilo e da criatividade dos analistas em formação. Há uma forte burocratização das instituições encarregadas da transmissão do legado freudiano.
Um cenário que remonta às origens da psicanálise: a Sociedade Internacional, fundada pelo próprio Freud, contava com um comitê cujo objetivo era garantir a difusão da verdadeira psicanálise. Isso acabou por gerar uma situação na qual discordar de um conceito ou propor novas derivações teóricas foram interpretados como resistência, como um sinal de insuficiência da análise daquele que interrogava. São inúmeras as rupturas e expulsões ao longo da existência da Sociedade Internacional. Até os dias de hoje continuamos a testemunhar esse estado de coisas, o que torna urgente questionar de que maneira é possível garantir uma formação viva e criativa, que não seja calcada na exclusão dos diferentes e no alinhamento dos iguais?
Nos grupos humanos organizados ao redor de objetivos comuns atuam, simultaneamente, forças de coesão e forças desorganizadoras, o que gera inúmeros conflitos. As organizações se mantêm coesas e unidas por meio do amor de transferência dos participantes e da idealização do líder. As diferentes instituições psicanalíticas não estão imunes à ação desses mecanismos libidinais responsáveis pela união das massas.
Sustentadas em uma constante revisão purificadora da teoria freudiana, as instituições formadoras acabam por perpetuar e aprisionar, e, porque não dizer, até por negar os excessos que o próprio Freud nos propõe. A exigência de que seus membros mantenham uma eterna reverência transferencial, bem como a crença imaginária de que há um mestre capaz de garantir o impossível, impedem a criação e a potência de seus membros.
Maria Helena vai tecendo seus argumentos principalmente a partir de dois pontos. O primeiro se refere às constantes rupturas e expulsões de membros divergentes que vão ocorrendo ao longo da existência da Sociedade fundada por Freud. O segundo ponto diz respeito ao uso dos conceitos psicanalíticos como justificativa para as rupturas e expulsões: a discordância interpretada como resistência ao conceito; a tônica no conceito de castração enfatizando a exigência da aceitação de leis intransponíveis, sendo a interdição o fator indispensável para criar a cultura, livrando o homem de seus excessos e trazendo a ordem e a segurança. E, por fim, a transgressão entendida como análoga à não aceitação da castração, o que exclui a possibilidade de uma transgressão ética capaz de abrir novas derivações tanto teóricas como práticas.
O ponto sobre o qual reflito é a mudança de foco da teoria das neuroses que foi causado e provocou, simultaneamente, o enrijecimento da teoria psicanalítica. Verifica-se este fato pela importância (negativa) que o termo transgressão veio a ocupar dentro da teoria, a perda da ênfase no ponto de vista econômico e a transformação de um método clínico em teoria exigente. Na mesma linha, o diagnóstico também passou a ser mais valorizado. A teoria estrutural centrou-se no conceito de castração, que foi se ampliando sobremaneira; "colocar limites" passou a ser a palavra de ordem para os pais, as reivindicações eram rapidamente interpretadas como "não aceitação da castração". Esquecemos a possibilidade legítima de haver uma transgressão ética. (p. 99)
Ora, se para ser um psicanalista é condição necessária que se enfrente o próprio desamparo, o que requer abrir mão da proteção incondicional de um mestre, é urgente a necessidade de se repensar a maneira pela qual as instituições formadoras estão organizadas. Maria Helena observa, em sua prática como supervisora, que com frequência muitos analistas omitem algumas intervenções com receio de que elas possam transgredir alguma norma da psicanálise.
Podemos dizer que coexistem dois projetos na psicanálise: um transgressivo e libertário, e que, sob os excessos que Freud aponta, reconhece a potência do ser humano; o outro adaptativo e normativo, e que se presentifica no engessamento das diferentes instituições formadoras, bem como no uso da psicanálise como uma forma de poder.
A partir da diferenciação entre fingimento e simulacro feita por Baudrillard - o primeiro como um movimento que mantém intacto o princípio da realidade, e o segundo como um movimento no qual falso e verdadeiro se confundem, formando algo estranhamente semelhante ao original, porém mumificado -, Maria Helena postula que a doença presente nas instituições formadoras é o imperativo de que seus membros produzam um simulacro daquele que está incluído, daquele que supostamente carrega os emblemas fálicos dessa instituição.
Ancoradas na produção de um simulacro de saúde mental as instituições geram, no decorrer da formação de uma analista, um doente da normalidade e da adaptação. Daí o empréstimo do conceito de normopata, de Joyce McDougall, que dá título ao livro.
O normopata é aquele que segue cegamente as regras estabelecidas, contanto que isso lhe garanta poder e reconhecimento. Tal como o burocrata nazista Eichmann, que declara não ter, do ponto de vista pessoal, nada contra os judeus, mas que com o intuito de ser um funcionário exemplar apenas obedecia a ordens superiores. Na normopatia a alteridade é recusada, e a moral e a ética se confundem. É assim que a burocratização da transmissão da psicanálise, que confunde a transgressão com ataque e doença, acaba por transformar a vivacidade e a criatividade de uma analista em normopatia, o que pode ser entendido, por paradoxal que seja, como resistência à própria psicanálise. A transgressão tomada sempre como algo da ordem da patologia tende a uma normatização do social.
A psicanálise não é um dogma, tampouco é um artigo de fé. E por isso não deve se confundir com os organismos que pretendem ser seus representantes. Segundo Maria Helena:
A psicanálise não é uma questão de ensino e sim de transmissão. A transmissão da psicanálise se passa pela identificação com a postura ética de outros analistas. A teoria está escrita, alguém pode conhecer todos os livros escritos sobre o assunto e não será, por isso, um psicanalista. A psicanálise possui uma ética e uma liberdade de pensar que se contamina e é transmitida na convivência com o psicanalista quando ele mostra como ouve e como se posiciona frente às questões. A transmissão se dá no contágio. (p. 105)
A rigidez e o aprisionamento na técnica ignoram a singularidade do par que se forma durante o trabalho analítico, bem como tiram da cena algo fundamental: a possibilidade de que o analista se surpreenda com os caminhos a que o encontro com seu paciente pode conduzir. Maria Helena propõe a inclusão dos corpos no encontro analítico. E incluir o corpo significa incluir as intensidades, recuperando o valor da clínica calcada na teoria freudiana das pulsões. Trata-se de recuperar a força e a potência do ponto de vista econômico da teoria freudiana.
As possibilidades de novas intensidades nos encontros são infindáveis, assim como as possibilidades de criação e de representação. (p. 132)
Trata-se, portanto, de recuperar a noção de inconsciente como despatologizado e reconhecido como potência do ser falante. E, sobretudo, como um representante radical do humano que não é passível de qualquer adaptação a norma social, sem com isso ser algo anormal. Hoje presenciamos a insistência da medicina em eliminar essa radicalidade em nome dos ideais homeostáticos da saúde. O que está em jogo, quando se discute a formação de analistas, é a noção do que pode ser considerado cura e normalidade, bem como o destino que almejamos para o sofrimento psíquico.
Correspondência:
Marta Quaglia Cerruti
[Instituto Sedes Sapietiae de São Paulo]
Rua Jericó, 255, cj 38 Vila Madalena
05435-040 São Paulo, SP
Tel: 11 3814-1105
marta.cerruti@terra.com.br
Recebido em 11/4/2011
Aceito em 11/5/2011