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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo jul./set. 2013
ARTIGOS
A situação do narcismo primário para Winnicott1
The situation of primary narcissism according to Winnicott
La situación del narcisismo primario según Winnicott
Leopoldo Fulgencio
Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
RESUMO
Neste artigo pretende-se mostrar que Winnicott redescreveu a noção de narcisismo primário, apoiando-se nas indicações de Freud mas acrescentando-lhes desenvolvimentos significativos. Para ele, as relações mais primitivas do bebê devem considerar a sua extrema imaturidade e a sua dependência do ambiente, de maneira tal que não haveria sentido supor uma unidade pertencente ao bebê, mas que tal unidade corresponderia, na verdade, ao conjunto bebê-ambiente. Nesse caminho, procura-se também, ao final, estabelecer um diálogo com Roussillon, opondo sua consideração de que no narcisismo primário a sombra do objeto primário recairia sobre o self à afirmação de que no início não há sombra possível do objeto sobre o self porque não há uma realidade não-self. Tais distinções têm como objetivo explicitar que tipo de situação transferencial, que tipo de objetivo analítico a ser alcançado está presente nos casos em que o paciente e seu analista precisam retomar a situação do narcisismo primário.
Palavras-chave: narcisismo primário; sombra do objeto; self; ambiente; adaptação.
ABSTRACT
This article aims to show that Winnicott redescribed the notion of primary narcissism, based on Freud's ideas, but adding significant developments. According to Winnicott, the baby's most primitive relationships must take into account its extreme immaturity and its dependence on the environment, so that the assumption of a unit belonging to the baby wouldn't make any sense; such unit would rather correspond to the baby and the environment as a whole. Consequently, a dialog with Roussillon is suggested in order to oppose her idea that in primary narcissism the shadow of the primary object would fall on the self, to the statement that at the beginning there is no possible shadow of the object on the self because there is not a non-self reality. The purpose of these differences is to elucidate what type of transferential situation, what type of analytical objective to be achieved, is present in cases in which the patient and the analyst must go back to the primary narcissism situation.
Keywords: primary narcissism; the shadow of the object; self; environment; adaptation.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es mostrar que Winnicott reescribió la noción de narcisismo primario, basándose en las ideas de Freud, pero añadiéndoles desarrollos significativos. Para él, las relaciones más primitivas del bebé deben considerar su extrema inmadurez y su dependencia del ambiente, de modo que no tendría sentido suponer una unidad que pertenece al bebé, sino que esa unidad correspondería, de hecho, al conjunto bebé-ambiente. En ese camino, se busca también, finalmente, establecer un diálogo con Roussillon, oponiendo su consideración según la cual en el narcisismo primario la sombra del objeto primario incidiría sobre el yo a la afirmación de que en el principio no hay sombra posible del objeto sobre el yo porque todavía no hay una realidad no yo. Esas distinciones tienen como objetivo explicitar qué tipo de situación transferencial, qué tipo de objetivo analítico a ser alcanzado, encontramos en los casos en los cuales el paciente y su analista tienen que retomar la situación del narcisismo primario.
Palabras clave: narcisismo primario; sombra del objeto; yo; ambiente; adaptación.
A noção de narcisismo primário está associada à questão do surgimento do sujeito psicológico; é uma questão de compreensão e descrição da origem ou das origens2. Não se trata apenas de um problema teórico, mas da compreensão de uma situação que dá origem ao indivíduo, a um modo de ser e se relacionar com o mundo, modo que alguns pacientes precisam revisitar ou reexperimentar no curso do processo psicoterapêutico psicanalítico. Tão mais grave é a patologia, maior a necessidade, como diria Winnicott, de corrigir essa experiência passada (1945/1997, p. 36). No entanto, mesmo em pacientes menos graves, a situação de revivência desse modo de ser no mundo é retomada na relação transferencial, cabendo ao analista sustentar o setting para que essa experiência possa ser vivida.
Neste artigo farei uma série de considerações que procuram explicitar, diferenciar e esclarecer os pontos de vista de Freud e Winnicott sobre o narcisismo primário para, no final, poder dialogar com a análise que Roussillon (2010) fez sobre esse tema. Não se trata de retomar a diversidade de proposições realizadas ao longo da história do desenvolvimento da psicanálise, mas de, explicitadas duas posições clássicas, procurar fornecer um tipo de descrição desse fenômeno, que possa contribuir para um melhor entendimento e ação do analista no manejo da transferência nos casos em que o paciente precisa reviver algo da situação do narcisismo primário no processo analítico.
O ponto de vista de Freud sobre o narcisismo primário
Em Freud, a noção de narcisismo primário refere-se à questão da condição inicial do indivíduo. Freud, ao comentar a relação entre o autoerotismo e o narcisismo, afirma: "O eu (moi) se encontra originariamente, logo no início da vida da alma, investido pulsionalmente e, em parte, capaz de satisfazer suas pulsões sobre si-mesmo. Nós chamamos este estado de narcisismo e esta possibilidade-de-satisfação autoerótica" (1915/1988, pp. 179-180). A clássica afirmação de Freud, considerando que as pulsões eróticas estão presentes desde o início, explicita o problema: "é necessário, então, que alguma coisa, uma nova ação psíquica, seja acrescentada ao autoerotismo para que, então, o narcisismo seja formado" (1914/2005, p. 221). Freud também se refere ao narcisismo primário como sendo um estado inicial da vida em termos de uma unidade indiferenciada do eu, suficiente a si mesmo (1916-17/2000, p. 432).
A questão dos relacionamentos iniciais, para ele, está colocada em termos de dois tipos de objeto primordiais: o próprio eu e a mãe (ou pessoa que cuida inicialmente da criança). Diz Freud:
Nós dissemos que o ser humano tem dois objetos sexuais originários: ele-mesmo e a mulher que lhe dá seus cuidados, e nisto nós supomos o narcisismo primário de todo ser humano, narcisismo que pode eventualmente vir a se exprimir de maneira dominante na escolha de objeto (1914/2005, p. 231).
Por um lado, essa afirmação de Freud nos leva a supor que ele pensa a situação inicial do bebê em termos de relações de objeto3, por outro, que é a partir dessa situação inicial que ocorrerá a diferenciação identificatória em termos de gênero4.
Laplanche e Pontalis esclarecem que, após a formulação da segunda tópica, Freud teria suprimido a distinção entre o narcisismo primário e o autoerotismo, associando-os, no entanto, a "um estado rigorosamente 'anobjetal', ou pelo menos 'indiferenciado', sem clivagem entre um sujeito e um mundo exterior" (1986, p. 370). Na conclusão deste verbete, indicando qual é a situação a ser tomada como sendo o referente do conceito de narcisismo primário, eles afirmam:
parece-nos possível conferir sentido ao que foi intenção de Freud quando, retomando a noção de narcisismo introduzida por H. Ellis, a alargou até fazer dela uma fase necessária na evolução que vai do funcionamento anárquico, autoerótico, das pulsões parciais, à escolha de objeto. Nada parece opor-se a que designemos pelos termos "narcisismo primário" uma fase precoce ou momentos básicos, que se caracterizam pelo aparecimento simultâneo de um primeiro esboço do ego e pelo seu investimento pela libido, o que não implica que este primeiro narcisismo seja o primeiro estado do ser humano, nem que, do ponto de vista econômico, esta predominância do amor de si mesmo exclua qualquer investimento objetal (1986, p. 370).
Nesse sentido, podemos afirmar que Freud designa como narcisismo primário uma situação ou estado do indivíduo que caracteriza sua origem e o ponto de partida sobre o qual vão se desenvolver todas as relações de objeto e todos os processos de identificação e diferenciação do indivíduo em relação ao outro.
O ponto de vista de Winnicott sobre o narcisismo primário
Tendo em mente este quadro conceitual, procurarei mostrar como Winnicott redescreve a noção de narcisismo primário, tanto em termos das críticas que faz a esta concepção quanto se referindo à unidade inicial como sendo um amálgama entre o bebê e o ambiente que o sustenta.
Para Winnicott, o bebê, no seu início, é uma existência humana extremamente imatura e totalmente dependente do ambiente, de tal forma que "o lactente e o cuidado materno juntos forma uma unidade" (1960/1983, p. 40). É nesse sentido que ele pôde afirmar que o bebê não existe: "se vocês mostrarem um bebê, mostrarão também, com certeza, alguém cuidando desse bebê, ou ao menos um carrinho no qual estão grudados os olhos e os ouvidos de alguém. O que vemos, então, é a 'dupla amamentante'" (1958/1978, p. 165).
Para ele, a integração do indivíduo em uma unidade pessoal, unidade a partir da qual os relacionamentos com objetos podem ser possíveis, é uma conquista do processo de amadurecimento:
O centro de gravidade do ser não começa no indivíduo. Está na organização total. Através de um cuidado suficientemente bom da criança, da técnica, do holding e do manejo geral, a casca é gradualmente conquistada e o cerne (que o tempo todo nos pareceu ser um bebê humano) pode começar a ser um indivíduo (1958/1978, p. 208).
Nesse estágio inicial, Winnicott não vê interesse algum em caracterizar ou supor a existência de algum eu (primordial ou primitivo) que poderia caracterizar uma unidade do indivíduo. Para ele, seria ilógico pensar em termos de um indivíduo simplesmente porque não há, ainda, um self individual capaz de distinguir entre o EU e o não-EU (1988/1990, p. 153).
Assim, para Winnicott, o narcisismo primário é o nome dado à situação de fusão do indivíduo com o seu ambiente: "No narcisismo primário o ambiente sustenta o indivíduo - e o indivíduo ao mesmo tempo nada sabe sobre ambiente algum - e é uno com ele" (1955/1978, p. 380). Ao narcisismo primário corresponde, pois, o estado de amálgama entre o indivíduo e o ambiente, anterior à possibilidade efetiva do indivíduo de reconhecer a exterioridade do ambiente e de seus objetos (1988/1990, pp. 153-156).
Descrição da situação inicial do narcisismo primário
Na tentativa de explicitar a concepção de Winnicott, procurarei fazer uma descrição da maneira como ele considera ocorrer o início do processo de desenvolvimento afetivo, com o objetivo de caracterizar qual referente empírico ele deu à situação do narcisismo primário.
Com o amadurecimento no útero chegando a termo, o bebê precisa nascer para ter atendida a sua necessidade de ser5, ou seja, o ambiente vai tornando-se vagarosamente inadequado para a permanência do bebê. Com o nascimento, a mãe-ambiente que envolvia o bebê por todos os lados, amando-o por todos os lados, passa, agora, a sustentar e amar o bebê como algo que está fora dela (Winnicott, 1988/1990, p. 151). A mãe, que é ainda mãe-ambiente, precisará saber o que seu bebê precisa para poder atender às suas necessidades específicas, exigindo dela que compreenda (descubra) o que é que o seu bebê precisa em tal e tal momento, com tal e tal incômodo ou reclamação etc. A mãe encontra-se, nesse momento do nascimento do bebê, nos casos em que ela é saudável, em um estado propício para a compreensão do seu bebê, um estado - que Winnicott caracteriza como sendo o de preocupação materna primária (1996/1997, p. 236) - que a torna apta a realizar uma comunicação profunda ou direta (comunicação evidentemente não verbal e não propriamente mental) com aquilo que o bebê precisa para ser e continuar sendo, seja no que diz respeito às necessidades instintuais e corporais, seja no que diz respeito às necessidades relacionais. Em termos mais sintéticos, a mãe sustenta o ser do bebê.
Do ponto de vista do bebê, suas necessidades são atendidas como se fosse uma consequência natural do que ele está vivendo. Ele não tem, ainda, maturidade para saber o que precisa ou mesmo para alucinar objetos (o seio, por exemplo), suas necessidades o levam a procurar algo em algum lugar (1954/1978, p. 340), sem saber exatamente o que pode satisfazê-lo. Quando a mãe, que entende o que o bebê está procurando, coloca, por exemplo, o seio exatamente no lugar em que o bebê procura algo (supondo que seja isso que corresponde à necessidade do bebê), o bebê pode significar essa experiência dando a ela o seguinte sentido: "era justamente disso que eu precisava".
É por isso que Winnicott diz que o bebê vive, nesse momento, uma ilusão de onipotência (1988/1990, p. 126), ou seja, o que ele encontra é, na verdade, uma criação dele (advém a partir dele); em outros termos, o bebê cria o seio que encontra (1953/1975, p. 27). Esse seio que ele encontra é o seio de que ele precisa, é o seio da sua necessidade (se a mãe se adaptou adequadamente), e não exatamente o seio objetivamente dado; é, pois, além de real, um seio subjetivo (pois é uma construção do bebê, certamente sustentada pelo ambiente, mas permanece, para o bebê, como uma construção sua)6. Diz Winnicott:
O bebê é o seio (ou objeto, ou mãe etc); o seio é o bebê. Isto está na ponta extrema da falta inicial de estabelecimento que o bebê tem de um objeto como não-eu, no lugar onde o objeto é 100% subjetivo, onde (se a mãe se adapta suficientemente bem e não de outra maneira) o bebê experiencia onipotência (1972/1994, p. 150).
É da ação criativa do bebê, sustentada pelo ambiente, que surge, ao mesmo tempo, a experiência do si-mesmo e o encontro com o objeto (subjetivo, criado pelo bebê). Para usar um esquema gráfico que expressa este fato, é como traçar a curva que dá, ao mesmo tempo, o côncavo e convexo, o si-mesmo e o objeto subjetivo, ligando-os como uma criação do si-mesmo em direção a este objeto. Pergunta: quem faz o traço? Resposta: é o bebê com a ação adaptativa adequada do ambiente.
O bebê passa a ter a experiência de um si-mesmo que, do ponto de vista do observador, só existe porque o ambiente foi suficientemente bom adaptando-se às necessidades daquele bebê. No início, essa vivência não é exatamente contínua, mas intermitente. É a sua repetição, sustentada pelo ambiente, que tornará tal integração, ou tais integrações, para ser mais preciso, mais estáveis.
Este si-mesmo, assim experienciado, não pode ser considerado um eu interno porque ainda não há dentro e fora, o bebê é uma unidade com a mãe, e esse si-mesmo só existe com esse ambiente, o ambiente é parte constituinte do si-mesmo.
Ainda que do ponto de vista do observador sejam vistos dois corpos (1958/1978, p. 165), do ponto de vista do bebê só existe aquilo que diz respeito a ele, sem nenhuma caracterização de exterioridade, ou seja, a realidade do si-mesmo, dos objetos, do tempo e do espaço é, para o bebê, uma realidade subjetiva. Diz Winnicott: "Para o bebê, o mundo externo não está diferenciado, assim como não existe mundo interno ou pessoal, e uma realidade interna" (1965/2001, pp. 216-217).
A maneira como Winnicott esclarece a situação inicial do bebê, em sua dependência e amálgama com o ambiente, é importante não só porque mostra uma descrição empírica dos fatos que caracterizam essa fase mais primitiva do desenvolvimento, mas também porque indica qual é a situação para a qual alguns pacientes precisam regredir - regressão à dependência, à "situação bem-sucedida original do narcisismo primário" (1955/1978, p. 384) - para retomarem um lugar (um modo de ser e estar) no mundo, que os possibilita agir a partir de si mesmos, refazendo e corrigindo uma situação traumática do passado.
Por outro lado, Winnicott refere-se à constituição do ego como um fenômeno que precisa ser compreendido como fruto da relação de dependência que constitui a unidade bebê-ambiente: "Parece que o estudo das defesas do ego leva o investigador de volta às manifestações pré-genitais do id, enquanto o estudo da psicologia do ego leva-o de volta à dependência, à unidade lactente-cuidado materno" (1960/1983, p. 43). A situação inicial que caracteriza o narcisismo primário corresponderia ao momento da gênese das integrações que levarão ao self e, posteriormente, à distinção EU-nãoEu (1958/1983, p. 35) e à conquista da unidade que caracteriza a pessoa inteira (1955/2000, p. 357).
O lugar da vida instintual e da sexualidade na situação do narcisismo primário para Winnicott
Ao diferenciar as necessidades do ego das necessidades do id (necessidades instintuais), Winnicott explicita o fato de que, no início, o lactente vive as pressões instintuais como sendo externas a ele:
Deve-se ressaltar que ao me referir a satisfazer as necessidades do lactente não estou me referindo à satisfação de instintos. Na área que estou examinando os instintos não estão ainda claramente definidos como internos ao lactente. Os instintos podem ser tão externos como o troar de um trovão ou uma pancada. O ego do lactente está criando força e, como consequência, está a caminho de um estado em que as exigências do id serão sentidas como parte do self, não como ambientais (1965c/1983, p. 129).
Nesta situação, vivendo em uma dependência absoluta do ambiente (em um ambiente que se adapta suficientemente), a criança vive a ilusão de que ela cria os objetos dos quais necessita. Neste momento, os instintos não podem ser uma criação do bebê, mas algo que pressiona e perturba seu ser, daí serem externos ao self. Só o conjunto de integrações no processo de desenvolvimento afetivo é que tornarão possível ao indivíduo considerar as pressões instintuais como algo que advém dele mesmo. Além disso, será somente com a conquista dessa integração dos instintos como algo que pertence ao eu que a vida instintiva poderá ser considerada como sinônimo de vida sexual; daí a possibilidade de afirmar que, para Winnicott, a sexualidade é uma determinada maneira, elaborada, de viver a vida instintual (cf. Abram, 2008; Green, 2005, 2011; Loparic, 2007; Phillips, 1988; Winnicott, 1965c/1983, p. 129; Winnicott, 1988/1990).
Se as pressões instintuais são consideradas, por Winnicott, como vividas, pelo bebê, sendo externas a ele, isso configura uma situação diferente da que Freud tinha em mente quando propôs a noção de narcisismo primário (para ele, sempre pensada em termos das pressões pulsionais, presentes desde o início, como sendo algo que é vivido pelo indivíduo como uma pressão que advém dele mesmo). Para Winnicott, o desenvolvimento do ego deve ser pensado, inicialmente, como algo que se dá pela sustentação ambiental da própria possibilidade e necessidade de ser do indivíduo, que só mais tarde, garantido o ser, poderá fazer uso da vida instintual: "de ser vem o fazer, mas não pode existir o fazer antes do ser" (1971/1999, p. 7).
A substituição da noção de narcisismo primário pela da situação que vai do ser ao fazer
Ao narcisismo primário deve-se referir, nesta perspectiva, a situação que pode dar as condições para a experiência de ser, e só posteriormente (ontologicamente falando) é que o indivíduo estaria às voltas com a questão dos instintos; descrição e formulação teóricas que divergem de modo significativo do que Freud havia proposto. Tal contexto torna, então, mais clara a afirmação de Winnicott de que ele, insatisfeito com a expressão narcisismo primário, procurou outro caminho, no qual pudesse explicitar a importância do ambiente, como também não reduzir a situação inicial à questão da administração da vida instintual:
Nunca fiquei satisfeito com o emprego da palavra "narcisismo" em conexão com isto, porque todo o conceito do narcisismo deixa de fora as tremendas diferenças que resultam da atitude e do comportamento geral da mãe. Sobrou-me, desta maneira, uma tentativa de enunciar de forma extrema o contraste entre o ser e o fazer (1972/1994, p. 149).
Em Winnicott, ainda que o corpo esteja sempre presente, a constituição dessa unidade psicológica não advém de uma diferenciação do Id no contato com o mundo, mas surge inicialmente como um amálgama com o ambiente que vai se diferenciando progressivamente, inclusive com a integração da vida instintual (como algo que passara a ser sentido como advindo de dentro do indivíduo). Talvez seja possível afirmar, ao menos no início, que o Ego surge como uma diferenciação do ambiente, reformulando a posição de Freud, para quem o ego advém do id.
Na situação do narcisismo primário, o que está em jogo é justamente a sustentação para que o indivíduo possa vir a ser a partir de si mesmo, e não como uma reação ao ambiente: "a alternativa a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila" (1960/1983, p. 47). O fundamental desse período inicial, que servirá como base para todas as efetivas relações de objeto que o indivíduo estabelecerá, é essa integração inicial que fornece a experiência de ser, de ser a partir de si mesmo. Diz Winnicott, nesse sentido:
Nos primeiros estágios do desenvolvimento da personalidade, a palavra-chave é a integração, que cobre quase todas as tarefas do desenvolvimento. A integração conduz o bebê ao estado de unidade, ao pronome pessoal "Eu [I]", ao número um; ela torna possível o "Eu Sou [I am]", que dá sentido ao "Eu faço [I do]" (1971/1999, p. 11).
Mas o que isso significa não tanto na situação inicial, na qual a mãe sustenta o bebê, mas na situação analítica, em que o analista se vê com pacientes que têm problemas justamente em ser? Os pacientes não são bebês, e não se trata, então, do mesmo tipo de adaptação ambiental que uma mãe realiza no cuidado do seu filho recém-nascido. A meu ver, a experiência de ser, sustentável pelo setting analítico, ocorre em função da possibilidade de o analista dar as condições para que o paciente possa ser entendido, ter seu gesto acolhido, estar no lugar que o paciente coloca o analista, funcionando como um ambiente que reconhece as necessidades do paciente (mesmo que não esteja a seu alcance poder atender a essas necessidades), um ambiente que pode, pois, sustentar as necessidades de ser do paciente sem ser invasivo, tal como Winnicott explicita ser o caso na introdução do seu Consultas terapêuticas empsiquiatria infantil (1971/1984), quando diz que nas primeiras entrevistas o analista deve ter a capacidade de estar no lugar do objeto subjetivo do paciente.
Nesse ponto, é necessário lembrar que não se trata de abolir as regras de neutralidade e de abstinência, necessárias ao trabalho do psicanalista, mas de garantir uma sustentação ambiental (relacional) que não quebre a continuidade de ser do paciente, dando as condições de setting para que, na repetição que caracteriza a neurose (ou psicose) de transferência, o paciente possa agir a partir de si mesmo (tal como Freud comenta, no jogo do fort-da, a passagem da passividade à atividade, no retorno encenado da situação traumática da partida da mãe). Nessa perspectiva, seria um erro grosseiro colocar-se no lugar dos objetos que podem satisfazer os desejos do paciente, colocar-se na posição de uma mãe substituta, suficientemente boa, que viria substituir a mãe insuficiente ou invasiva da infância do paciente. Esse tipo de sustentação ambiental, necessária a casos mais graves (psicóticos, borderlines e algumas depressões) são, para Winnicott, casos que exigem um analista já bem treinado no trato de pacientes neuróticos, dado que esse tipo de especialização dos cuidados clínicos psicanalíticos exige um analista que tenha sido bem treinado na realização do que ele chama de "análise padrão". Pode ser que tais casos mais graves exijam que o analista saia do quadro clássico, mas isso exigiria um domínio prévio do que se faz quando isso não é necessário. Diz Winnicott, nesse sentido: "Acredito que este trabalhão não-analítico pode ser melhor feito por um analista que é versado na técnica psicanalítica clássica" (1965a/1983, p. 154).
Considerações sobre o ponto de vista de René Roussillon sobre o narcisismo primário
Roussillon (2010) procurou mostrar como Winnicott ofereceu esclarecimentos para o que Freud denominou como sendo o narcisismo primário, considerando, então, na afirmação de sua própria concepção e interpretação de Freud e de Winnicott, que há, no início, uma mistura entre o self e o objeto primário em função dos cuidados do ambiente e do rosto da mãe como espelho que reflete o self da criança. É dessa situação que surge o indivíduo, ou seja, como uma decorrência da relação com esse objeto primário; mas com o decorrer do processo de desenvolvimento, o indivíduo acabaria por esquecer de que seu self adveio de um "outro self". Roussillon considera que a formulação dada por Freud - em "Luto e melancolia" (1917/1988), na qual "a sombra do objeto recai sobre o ego" - corresponde ao protótipo do narcisismo primário. Para ele, as contribuições de Winnicott tornam esse conceito de Freud mais utilizável clinicamente, uma vez que além de descrever que tipo de relação ocorre entre a mãe e o bebê, esse tipo de entendimento também coloca em evidência que caberá ao analista (nos casos em que o indivíduo encontrou dificuldades em diferenciar-se e individuar-se como pessoa inteira distinta do outro, ou seja nos casos em que o indivíduo manteve-se mais ou menos misturado entre esse "outro objeto" [objeto primário]), fazer tal distinção entre o seu self e o outro self de onde ele adveio, ou ainda, dizendo de outra maneira, buscar o self atrás da sombra do objeto primário, diferindo-o dessa sombra.
Neste meu artigo, também procurei mostrar como as concepções de Winnicott podem esclarecer as de Freud, seguindo, no entanto, um caminho diferente daquele feito por Roussillon. A meu ver, Roussillon procura pensar a relação inicial do bebê com a mãe (ou o seio, como sendo o objeto primário) como um tipo de relação de objeto específico (usando o protótipo da sombra do objeto que recai sobre o self), enquanto na minha proposta procuro compreender o narcisismo primário em termos das relações do indivíduo com o ambiente, de modo que no início não haveria, propriamente falando, relações de objeto, dado que não haveria ainda maturidade para a existência, para o bebê, de uma realidade não-self.
Em termos sintéticos, talvez possamos dizer que Roussillon procura pensar o narcisismo primário como uma mistura entre o objeto e a sombra do objeto primário, enquanto eu, olhando para essa fase de outra perspectiva, a meu ver complementar à de Roussillon, procuro descrever o narcisismo primário como uma situação onde não há nem self nem objeto, mas um amálgama indiferenciado. Trata-se, a meu ver, de procurar apreender o mesmo tipo de fenômeno de duas perspectivas díspares e complementares, uma que privilegia as relações de objeto, e outra que privilegia as relações com o ambiente.
Se em Freud encontramos a afirmação de que o Ego aparece como uma diferenciação do id, em Winnicott, com sua noção de narcisismo primário, podemos compreender porque ele diz que não há id antes do ego e porque, talvez possamos afirmar, o Ego (aqui sinônimo de self)7 aparece como uma diferenciação do ambiente, do amálgama inicial bebê-ambiente, que nada mais é do que a situação que Winnicott nomeia como sendo o narcisismo primário. O self nasce e se apaga de maneira intermitente, em função das suas necessidades atendidas pela adaptação ambiental, até que ele se estabeleça como uma unidade do sujeito psicológico.
A experiência de ser, a mais fundamental e primeira das experiências (1989/1994, p. 177), não se dá porque a sombra do objeto recai sobre o self, misturando-se com ele, mas porque a sustentação ambiental - a devolução (pelo olhar e ação adaptativa da mãe) do próprio self da criança, self do qual a criança não tem nem percepção nem experiência - dá as condições para que esse self possa ser, para que, paradoxalmente, ele nada sendo seja, com a adaptação do ambiente fornecendo um objeto adequado às necessidades do bebê.
Caberia ao analista, considerando então que o ego (o self) advém da situação do narcisismo primário, não tanto diferenciar o self do objeto primário, mas fazendo novamente funcionar a situação do narcisismo primário, retomando o amálgama inicial em que não há diferenciação entre self e não self (para o paciente), dar a sustentação (adaptação) necessária para que o self possa afirmar-se, primeiro como um sou (expressão do gesto espontâneo, expressão da vivência da ilusão de onipotência), e depois, vagarosamente, com a emergência dos fenômenos transicionais e a fase do uso do objeto, chegar a um EU SOU. Nessa perspectiva, eu diria, não há sombra alguma do objeto recaindo sobre o self, mas a sustentação ambiental que fornece as condições para que o self surja a partir de si mesmo (ainda que para isso o ambiente, a mãe, tenham feitas infinitas adaptações para atender às necessidades da criança). Só mais tarde, depois da conquista da unidade eu sou é que a apreensão dos objetos e os processos propriamente projetivos e identificatórios poderão ter um lugar no quadro das relações de objeto stricto sensu. Antes disso não há, para o indivíduo, um objeto que possa fazer alguma sombra sobre ele mesmo: nessa fase, diz Winnicott, não há realidade não-self (1988/1990, Parte IV, Cap. 4 e 5).
Tal tipo de compreensão aumenta nosso poder de ação clínica, justamente na possibilidade de reviver (quando necessário) e interpretar (quando possível) o modo de ser narcísico de certos pacientes, não só em função da tarefa de separar o ego da sombra do objeto, mas de retomar a situação do narcisismo primário para dar as condições experienciais para que o self se constitua, pela sustentação ambiental, separado do objeto, separado do ambiente que o sustenta8.
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Correspondência:
Leopoldo Fulgencio
Rua Marcos Azevedo, 93
05428-050 Perdizes, São Paulo, SP
leopoldo.fulgencio@gmail.com
Recebido em 4.10.2012
Aceito em 15.3.2013
1 Este artigo corresponde a uma parte da pesquisa sobre a redescrição winnicottiana do método de tratamento psicanalítico, realizada com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (cNPq).
2 A questão das origens do sujeito psicológico corresponde a um ponto central, retomado e formulado de diversas maneiras pelos grandes pensadores da história da psicanálise. Em Lacan, esse problema está nota-damente colocado na sua apresentação do estágio do espelho (1949/1998), que talvez possa ser entendido como a sua tentativa de explicar o que é essa "ação", referida por Freud, que leva do autoerotismo ao narcisismo. Também em Klein essa questão está presente de forma central, principalmente quando ela se refere a pacientes muito graves, crianças esquizofrênicas ou autistas, como, por exemplo, é comentado na sua análise do caso Dick (1930/1996), na qual procura explicitar como ocorre a constituição do eu e a entrada no campo dos símbolos ou relações simbólicas; ainda que ela considere que desde o início pós-natal o bebê já tenha uma unidade a partir da qual pode realizar relações de objeto (1952/1996). Laplanche e Pontalis (1985), por sua vez, também reconheceram a importância desse problema, escrevendo um texto importante na história da psicanálise, no qual procuram interpretar o problema da origem, diferenciando-se de Lacan.
3 Perspectiva que, reconhecível em Ferenczi, aparece como um fundamento do pensamento de Klein, como ela mesma afirma: "O uso que faço do termo 'relações de objeto' baseia-se na minha asserção de que o bebê, desde o início da vida pós-natal, tem com a mãe uma relação (se bem que centrada primariamente em seu seio) imbuída dos elementos fundamentais de uma relação objetal, isto é, amor, ódio, fantasias, ansiedades e defesas" (1952/1996, p. 72).
4 Note-se, por exemplo, o comentário de Appignanesi e Forrester nesse sentido: "A vida do ser sexuado é uma perturbação do narcisismo primário. Os meninos só se tornam homens e as meninas só se tornam mulheres sendo expelidos, pelo complexo de castração, do narcisismo primário para a masculinidade e a feminilidade" (2010, p. 610).
5 Alguns autores têm afirmado que Winnicott, ao introduzir a questão do ser como fundamento e motor da existência humana, fez uma mudança na ontologia psicanalítica, uma ruptura epistemológica (Green, 2011; Loparic, 2001, 2006; Phillips, 1988; Roussillon, 2009).
6 A noção de objeto subjetivo corresponde a uma das grandes novidades propostas por Winnicott. Não se trata de um objeto alucinado nem imaginado, mas criado em um mundo em que não existe propriamente o bebê e os objetos que são não-bebês, mas em um mundo em que os objetos são também o bebê (por tratar-se de tema ainda pouco explorado, faço uma indicação mais extensa de algumas referências importantes de Winnicott a este tema: 1965b/1983, pp. 168-172; 1965d/1983, p. 56; 1971/1984, p. 12; 1971/1975, p. 177; 1971/1974, p. 140; 1988/1990, pp. 121-135, 123, 147-151). Poder-se-ia fazer uma crítica aos que consideram Winnicott um teórico das relações de objeto - especialmente Greenberg e Mitchell (1983) -, dado que o objeto subjetivo não seria mais um objeto (não há, no caso do objetos subjetivos, um sujeito que se relaciona com um objeto, como dois aspectos ou elementos distintos da realidade: A se relacionando com B). Neste sentido, Winnicott não seria propriamente uma teórico das relações com os objetos, no sentido que foi dado a esta expressão na história clássica da psicanálise mas, mais propriamente, um teórico das relações com o ambiente.
7 Cabe notar que Winnicott usa o termo ego em dois sentidos diferentes: 1) como sendo uma tendência do processo de desenvolvimento, tendência inata à integração (veja, por exemplo, em 1965/1983, p. 55); e 2) como a própria unidade do sujeito psicológico então integrado em seus diferentes níveis (veja, por exemplo, em Winnicott, 1958/2000, p. 405).
8 Há um ponto de análise complementar a estas feitas até aqui, no qual procuraríamos compreender qual a relação (a dinâmica relacional) existente entre a experiência dos fenômenos transicionais e a constituição do narcisismo do indivíduo, mas isso me relançaria em uma análise extensa que deixarei para outro momento, ainda que reconheça sua importância e complexidade.