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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo jan./mar. 2015
OUTRAS PALAVRAS
Intersubjetividade ou inter-relação
Intersubjectivity or interrelation
Intersubjetividad o interrelación
Osvaldo Marba Ribeiro
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
O autor coloca que a comunicação não verbal entre duas pessoas (ou entre analista e analisando) existe, assim como diferentes teorias para explicá-la. Cita proposições de Klein, Winnicott, Bion, Andrade, Freud..., e escreve que, diferentemente desses autores, há outros que defendem a ideia de que a intersubjetividade seria uma interação de duas subjetividades que forma uma realidade comum às duas. Rebate as afirmações de alguns desses autores e sugere que o que normalmente é visto como intersubjetividade poderia ser chamado, de maneira mais apropriada, de inter-relação e implica que o analista tem uma relação objetal com o analisando e este se relaciona com o analista. Acrescenta que intersubjetividade, no sentido de comunicação direta entre duas subjetividades, não pode existir se aceitarmos as colocações de Kant e Bion da impossibilidade de alcançarmos o objeto em si e por não termos contato direto com a realidade externa, como afirmam Freud, Winnicott, Bion, Popper, Damásio e outros.
Palavras-chave: intersubjetividade; inter-relação; comunicação; comunicação não verbal.
ABSTRACT
According to the author, there is a nonverbal communication between two people (or between analyst and analysand), as well as different theories to explain that communication. He nominates some author's positions (eg. Klein, Winnicott, Bion, Andrade, Freud, etc.), and writes that, unlike them, there are other authors who defend the idea of intersubjectivity as an interaction of two subjectivities, establishing the same reality to both of them. He refuses some of these author's ideas and proposes an exchange: what is normally considered intersubjectivity should be more properly called interrelation and it means that analyst has an object relation with the analysand, who relates to the analyst. He adds that there's no intersubjectivity, as straight communication between two subjectivities, if we accept Kant's and Bion's positions about being impossible to reach the object itself and because we don't have direct contact with external reality, as stated by Freud, Winnicott, Bion, Popper, Damásio and others.
Keywords: intersubjectivity; interrelation; communication; nonverbal communication.
RESUMEN
El autor expone que la comunicación no verbal entre dos personas (o entre analista y analizado) existe, al igual que diversas teorías para explicarla. Menciona a Klein, Winnicott, Andrade, Freud, entre otros, y escribe que, a diferencia de estos autores, otros defienden la idea de que la intersubjetividad sería una interacción de dos subjetividades para formar una realidad común a los dos. Refuta las ideas de algunos de estos autores y sugiere que lo que se traduce normalmente como intersubjetividad podría ser llamado, más apropiadamente, de interrelación e implica que el analista tiene una relación de objeto con el analizado y este se relaciona con el analista. Agrega que la intersubjetividad, en el sentido de la comunicación directa entre dos subjetividades, no puede existir si aceptamos las citas de Kant y Bion de la imposibilidad de alcanzar el objeto en sí mismo y por no tener contacto directo con la realidad externa, como afirman Freud, Winnicott, Bion, Popper, Damásio y otros.
Palabras clave: intersubjetividad; interrelación; comunicación; comunicación no verbal.
Introdução
A finalidade deste artigo é apresentar e questionar a aceitação do emprego do termo intersubjetividade com o sentido de confluência e interpenetração direta de duas subjetividades, criando uma realidade comum às duas. Concordo com seu uso com o significado de duas subjetividades que procuram compreender-se através do que muitos (Freud, Andrade e Roussillon, por exemplo) chamam de identificação empática, tal como está definida no verbete “empatia” da Enciclopedia del psicoanálisis:
empatia - Identificación pasajera y consciente con un objeto con la finalidad de comprenderle, no para hacerse permanentemente similar a él, ni para hacerlo similar al sujeto. El sujeto no pierde su identidad, pero asume, sólo por un corto tiempo, el papel del objeto. (Eidelberg, 1971, p. 129)
Freud, acredito, concorda com essa definição, pois escreve:
Assim tomamos em consideração o estado psiquico da pessoa produtora, e nos introduzimos nele, tentando compreendê-lo por comparação com o nosso próprio. Tais processos de empatia e comparação é que resultam na economia da despesa, que descarregamos pelo riso” (1905/1976a, p. 212).
A nota do editor, James Strachey, no mesmo trabalho, nos informa o seguinte:
Uma outra influência algo importante para Freud, por volta daquela época, foi a de Theodor Lipps. Lipps (1851-1914) era um professor de Munique que escrevia sobre psicologia e estética, e ao qual se atribui a introdução do termo Einfühlung (empatia)”.
Freud, em “Psicologia de grupo e a análise do ego”, parece reconhecer isso ao escrever:
Defrontamo-nos com o processo que a psicologia chama de “empatia” [Einfühlung], o qual desempenha o maior papel em nosso entendimento do que é inerentemente estranho ao nosso ego nas outras pessoas. [...] Um caminho, por via da imitação, conduz da identificação à empatia, isto é, à compreensão do mecanismo pelo qual ficamos capacitados para assumir qualquer atitude em relação a outra vida mental. (1921/1976e, pp. 135-136 e 139 [nota])
Meltzer (1967/1971, 1987) vai um pouco além. Para ele, a compreensão empática do analista é o pilar central do processo analítico. Havendo uma compreensão empática, mesmo que o analista fale coisas inadequadas, estará beneficiando o paciente mais prejudicado, que capta sua compreensão por meios não verbais. Se sentimos que o paciente está com medo, automaticamente há uma reação corporal, afetiva, impensada. É a essa reação que o psicótico, a criança pequena e os animais respondem, e não ao que dizemos a seguir.
Intersubjetividade ou inter-relação
A comunicação não verbal entre duas pessoas (ou entre analista e analisando) existe, assim como diferentes teorias para explicá-la. Melanie Klein afirma que essa comunicação ocorre através do mecanismo de projeção/introjeção do mundo interno de um no mundo interno do outro (1934/1970, pp. 355-356). Winnicott considera que ela se processa num espaço real, mas não físico, que existe entre os dois (ou no relacionamento dos dois) e que ele denomina espaço transicional (1971/1975a, p. 17).
Bion torna explícito o que já estava implícito em Klein e introduz a imagem de dois sujeitos em relação, dentro de um espaço intersubjetivo, enfatizando o conceito de um componente interpessoal da identificação projetiva (Bion, 1962/1977, 1962/1963/1966). Ele afirma: “o analista vivencia que está sendo manipulado para desempenhar um papel, não importa quão difícil de reconhecer, na fantasia do outro” (1962/1977). A identificação projetiva, para ele, não é uma simples projeção de um aspecto de si mesmo no outro (sujeito→objeto) ; consiste, além disso, em uma tentativa de levar o outro a sentir e reagir em conformidade com o desejo existente na fantasia onipotente do projetor (sujeito↔objeto ou mã↔bebê).
É fácil aceitar que essa interação interpessoal ocorre em um espaço interpessoal que me parece equivalente ao espaço transicional de Winnicott. Acredito que é o que está implícito no conceito de reverie (Bion, 1962/1977), no qual a dupla mã↔bebê não pode ser tratada como sendo entidades psicológicas separadas. Diz Winnicott: “Não existe mãe sem bebê, nem bebê sem mãe” (1968/1975b p. 124). Para evitar conclusões apressadas, convém não esquecermos que ele também afirma que o bebê cria a mãe (1954[19675]/1993, p. 163).
Outro ponto a considerar é que parece haver um consenso de que a apreensão do mundo externo não é feita diretamente e sempre ocorre com algum tipo de transformação deformadora. Aos 82 anos de idade, Freud assim se manifestou:
A realidade sempre continuará sendo “incognoscível”. A elaboração intelectual de nossas percepções sensoriais primárias nos permite reconhecer no mundo exterior relações e dependências que podem ser reproduzidas ou refletidas fielmente no mundo interior do nosso pensamento, pondo-nos seu conhecimento em situação de “compreender” alguma coisa no mundo exterior, de prevê-la e, possivelmente, modificá-la. Assim também procedemos em psicanálise. (1940[1938]/1976d, pp. 225-226)
Andrade considera:
O notável da metapsicologia é que ela nos remete para a realidade interna, que é intras-subjetiva. Mesmo assim, através de processos aparentemente fechados, nos fornece meios de entender o que se passa no mundo interno de outrem, através da janela da percepção. [...] A captação do que se passa no mundo interno do outro não é produto de uma mera percepção, mas da identificação que ocorre após a percepção. Como foi dito anteriormente, o mundo interno é subjetivo e não transmissível em sua substância de representação. O que é captado pela percepção é apenas o que se expressa através do corpo. O conteúdo de sentimento e representação pode ser intuído ou inferido por identificação, isto é, a percepção de determinadas expressões são associadas aos sentimentos e às representações daquele que percebe. (1990, pp. 7 e 13)
Podemos, também, aceitar a afirmação de Pally de que “a emoção não só conecta a mente e o corpo de um indivíduo, mas as mentes e os corpos entre indivíduos” (1998, p. 349). Se nossa mente estiver sintonizada com nosso corpo, manifestaremos, por meio de nosso corpo, uma emoção que será percebida pelo “corpo” do paciente através do que chamamos identificação introjetiva (Klein, 1934/1970, pp. 355-356) ou identificação empática (Freud, 1921/1976e), e a mente do paciente reagirá ao que for percebido e responderá com uma identificação projetiva, que modificará sua atitude corporal e será percebida pelos nossos sentidos (pelo nosso corpo). Meltzer, já citado, afirma que os psicóticos reagem ao que sentimos, não ao que falamos. Portanto, através de nossos sentimentos, podemos estabelecer um relacionamento não verbal com nossos pacientes.
Andrade teoriza de forma semelhante:
Como Freud observou, a empatia é uma forma de identificação, e sendo esta a primeira relação afetiva, só por meio da identificação empática o analista consegue perceber as comunicações afetivas não abrangidas pela palavra. Por isto, para lidar com o conteúdo mental dessa fase, não é tão importante o que o analista diz, mas como diz, isto é, que sua atitude seja compreensiva (no sentido de acolher o afeto e não de entender em nível verbal). Ao se fazer continente das identificações projetivas do paciente, o analista não está somente compreendendo a fantasia inconsciente, mas acima de tudo acolhendo uma necessidade afetiva de identificação primária (pré-objetal), não satisfeita na época devida por não ter sido compreendida pelo objeto primitivo. (1990, p. 12)
A escola kleiniana procurou ampliar o conceito de identificação de Freud introduzindo os conceitos de identificação projetiva e introjetiva, mas isso só ratificou o que foi dito acima (Haimann, 1952/1969, pp. 143-144).
Damásio, neurologista, escreve:
As imagens que cada um de nós vê em sua mente não são cópias do objeto específico, mas imagens das interações entre cada um de nós e um objeto que mobilizou nosso organismo, construídas na forma de padrão neural, segundo a estrutura do organismo. O objeto é real, as interações são reais e as imagens são tão reais quanto uma coisa pode ser. E, no entanto, a estrutura e as propriedades da imagem que vemos são construções do cérebro inspiradas por um objeto. [...] E, como do ponto de vista biológico você e eu somos suficientemente semelhantes para construirmos uma imagem bastante semelhante de uma mesma coisa, podemos aceitar sem hesitar a ideia convencional de que formamos a imagem de uma coisa específica. Mas isso não é verdade. (1999/2000, p. 495-496)
O objeto é real, mas o que percebemos é uma construção de nosso cérebro. Como diz Winnicott, a mãe é real, mas, ao mesmo tempo, é criada pelo bebê.
Kant defende que a realidade objetiva é incognoscível. Para Bion, não conseguimos atingir o “O”. Sobre isso, Ferrão escreve:
Bion postulava que a realidade da experiência emocional analítica era considerada uma coisa-em-si, no sentido kantiano e, por conseguinte, desconhecida e incognoscível por natureza. Designava-a pelo signo “O”. As evoluções de O são os fenômenos secundários que são disponíveis para transformação feita tanto pelo analisando quanto pelo analista. (1998)
Entretanto, alguns autores estão tentando defender a ideia de que inter-subjetividade é uma interação de duas subjetividades formando uma realidade comum às duas e que não necessita de nenhum substrato físico para sua existência.
Owen Renik escreve:
Aceitar que uma psicanálise clínica seja intersubjetiva significa reconhecer que o encontro clínico analítico consiste numa interação de duas subjetividades. [...] Reconhecer a intersubjetividade [...] nos obriga a redefinir a natureza da perícia e da autoridade do analista. [...] o analista não pode ser considerado um especialista na mente do paciente - um especialista que possa, de maneira impessoal, compreender a vida psíquica do paciente. (2004/2006, p. 42)
Essa citação provoca em mim dois questionamentos: como devo definir/entender a palavra “interação”? Como entender a frase “redefinir a natureza da perícia e da autoridade do analista”?
Renik prossegue:
O reconhecimento de que os insights, na análise clínica, são criados intersubjetivamente também nos obriga a rever criticamente o princípio do anonimato analítico. A regra técnica de que o analista deveria, tanto quanto possível, tentar evitar uma autoexposição deriva do entendimento de que psicanálise clinica é um empreendimento no qual se dá, ao paciente, a oportunidade de projetar representações psíquicas na figura do analista, de modo que este consiga, objetivamente, observar as projeções. [...] Uma vez que reconheçamos que as verdades analíticas são cocriadas por analista e paciente, ao invés de reveladas pelas observações objetivas das projeções do paciente, feitas pelo analista, o fundamento lógico da tentativa do analista de minimizar sua autoexposição passa a ser obsoleto. Justamente, ao contrário, para facilitar a troca intersubjetiva na situação clínica, o analista precisa estar disposto a tornar tão disponível quanto possível, para o paciente, a sua própria vivência relevante. (2004/2006, p. 44)
Este parágrafo, no meu entender, acaba com o conceito de transferência; ignora que o paciente já vem para a análise com reações comportamentais derivadas de seus problemas psíquicos, que não são cocriados, salvo no sentido que ele defende (na sua resposta aos comentários de Spillius, no mesmo número do Livro Anual de Psicanálise) de que tudo é cocriação.
Parece-me que Cavell também não concorda com Renik. Ela não aceita que analista e analisando construam a realidade da sessão e escreve:
Fala-se, atualmente, do modo como analista e paciente “coconstroem a realidade”. Cada um de nós constrói um quadro da realidade. (1998/2000, p. 95)
A consciência da separação entre analista e paciente, aspecto essencial da situação psicanalítica, é uma função do fato de que existe um mundo objetivo lá fora, maior do que os dois participantes, que lhes permite uma perspectiva para além deles próprios. (p. 81)
Atualmente, alguns psicanalistas sustentam que o modelo intersubjetivo da mente e da situação analítica torna obsoletas as ideias de verdade, de realidade e de subjetividade. [...] Sem a ideia de um mundo objetivo, com o qual estamos em contato e a respeito do qual tentamos ser mais ou menos objetivos, qualquer, assim chamado, modelo intersubjetivo desaba no paradigma de pessoa única. (p. 95)
Luis Carlos Menezes, num grupo de discussão científica pela internet (trabalho discutido: “Em defesa de uma certa racionalidade na psicanálise”), escreve:
O que se põe em questão é o determinismo, o acaso e o aleatório, a diferença e a repetição em psicanálise. [...]
Há alguma organização significante no paciente, algum perfil pulsional e conflitivo que imprima sua marca ao processo analítico e que nele encontre a possibilidade de uma reorganização, ou não há nenhum referente a priori no analisando, ainda que fosse sob o modelo do trauma e, nesse caso, em que consiste uma análise?
Apenas encontro de duas subjetividades, da qual ao menos uma delas, espera-se que seja a do analisando, obtém algum ganho? Mas, nesse caso, como se pensa que isso opera? Ou será que se considera que é inútil ou impossível tentar responder a isso, ou seja, fazer hipóteses, como as mencionadas acima sobre o sonho? Mergulhar-se-ia então num “subjetivismo extremado, pós-moderno”, em que o processo de análise fosse considerado como puro transcorrer aleatório? (Menezes, 1998, on-line)
Roussillon coloca ideias que me parecem semelhantes às que defendo:
O sujeito humano somente pode se constituir por meio da mediação de um outro, para ser mais preciso, de um outro-sujeito.
Portanto, ninguém contestará, sem dúvida, a importância do “fato” intersubjetividade.
As discussões começam quando se trata de “nomear” essa realidade e inscrevê-la num campo conceitual, ou seja, quando se trata da proposição de um modelo. (2011, P. 159)
Roussillon cita Lacan, Lagache, Renik, Stern, Green e outros, e expõe sua maneira de ver, a qual difere das concepções correntes de intersubjetividade que, segundo ele, tendem a fazer desaparecer ou não sabem situar os processos inconscientes, ameaçando deixar de lado o conceito de pulsão e, com ele, toda a questão do sexual (Roussillon, 2011, p. 160).
Apresenta o que chama de valor mensageiro da pulsão e diz que não podemos pensar a pulsão sem incluir a questão da resposta do objeto aos élans pulsionais do sujeito. Quase no fim do artigo, ele afirma:
Se a abordagem intersubjetiva em psicanálise supõe uma concepção “mensageira” da pulsão, ela supõe, também, que as três formas de “representação” pulsional concebidas por Freud - a representação-afeto, a representação-palavra e a representação-coisa - sejam concebidas não somente em sua versão intrapsíquica, mas também em seu valor intersubjetivo. (Roussillon, 2011, p. 164)
Resumindo, gostei do trabalho de Roussillon. Entretanto, senti falta de uma explicação mais clara de como ocorre o ato intersubjetivo. A mãe-espelho do início do trabalho e as considerações da página 163 não me parecem suficientes.
As questões expostas no trabalho “Intersubjetividade: progresso em psicanálise?”, de Franco Filho e Sandler (2005), são bem mais contundentes ao criticar o conceito de intersubjetividade:
Como novo paradigma, a intersubjetividade se apresenta como uma contestação, mais do que crítica, aos fundamentos do que tem sido conhecido como psicanálise. (p.102)
Quanto mais a psicologia e o movimento psicanalítico se prendem ao raciocínio filosófico, mais se criam teorias sem respaldo da observação empírica. Assumem “vida própria” dentro de universos de discurso idealista. (p. 103)
Se os teóricos da intersubjetividade levarem suas ideias às ultimas consequências, terão pela frente um trabalho de “reescrever” toda a psicanálise, com resultados que, inevitavelmente, levarão a um reenquadramento conceitual de nossa disciplina que ficará longe do marco freudiano que lhe deu especificidade e identidade. [...]
Não se trata aqui de ser contra ou a favor dessa reescrita. Trata-se de estar consciente de seus desdobramentos. [...] não haveria lugar para “verbetes”, tais como transferência, contratransferência, mente, pulsão, ego etc.
O que está em jogo é a identidade de nossa disciplina. Esse texto pretende ser uma reflexão sobre ela, mais do que uma crítica específica a um novo ponto de vista em psicanálise. (pp. 108-109)
Repetindo: para alguns, intersubjetividade implicaria uma comunicação direta entre duas subjetividades, isto é, sem que exista nenhum substrato físico mediando essa comunicação. Na teoria freudiana, em minha opinião, isso não ocorre. É verdade que Freud escreve sobre comunicação direta de inconsciente para inconsciente, mas verificamos (Ribeiro, 2010) que ele se refere à percepção da consciência primária ou do ego corporal, quase da mesma maneira que podemos ver nessa passagem de um texto de Andrade:
Com certa frequência ocorre a eclosão, na mente do analista, de uma ideia surgida a partir de algo transmitido pelo paciente sem que o analista tenha consciência da ligação entre esse algo e o que foi despertado na mente como uma intuição. É o fenômeno que Freud chamou de comunicação direta de inconsciente para inconsciente, sem passar pela consciência (Freud, 1912, p. 115-6; 1915e, p. 194; 1931i, p. 320). É uma forma de comunicação não verbal que ocorre na relação analítica, em nível primordialmente de afeto. (1989)
Nossa mente, nossa subjetividade, não tem contato direto com o mundo externo (vide adiante); portanto, não pode relacionar-se diretamente com a subjetividade do analisando.
Freud, em seu trabalho “Recomendações aos médicos que exercem psicanálise”, de 1912, esclarece como pensa ocorrer essa comunicação usando o exemplo do telefone, no qual ondas sonoras são transformadas em ondas elétricas no transmissor e voltam a ser transformadas em ondas sonoras no receptor:
Assim como o receptor transforma novamente em ondas sonoras as oscilações elétricas na linha telefônica que foram criadas por ondas sonoras, da mesma maneira o inconsciente do médico é capaz, a partir de derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente que determinou as associações livres do paciente. (Freud, 1912/1976f, p. 154)
Continuando este assunto, podemos citar o trabalho de Bonaminio (2008):
A “realidade do objeto” - e, para a psicanálise, o objeto é sempre um sujeito, isto é, um humano - a realidade do objeto, a sua resposta, e de forma ainda mais relevante, a “qualidade do objeto”, fez seu ingresso na cena da sala de análise há longo tempo (Bonaminio, 1991; 1993; 2003).
O próprio Green (2000), na sua admirável abordagem da questão do “intrapsíquico e intersubjetivo em psicanálise”, admite, “criticando”, por assim dizer, Freud, que “provavelmente ele não deu atenção suficiente à especificidade do humano no coração da vida”; Green afirma que “num certo momento [do desenvolvimento da psicanálise] ficou claro que era necessária uma revisão da teoria com o objetivo de incluir o papel da resposta do objeto”.
O próprio setting psicanalítico, a ecologia analítica (espaço, tempo, e presença do analista) é um encenar relacional intersubjetivo que Freud recalcou: a primeira relação objetal da mãe e da criança.
Eu não vejo como Freud pôde recalcar a primeira relação objetal da mãe e da criança e, mesmo assim, teorizar o complexo de Édipo, que se baseia nas relações objetais da criança com os pais.
Green (2001/2003) afirma que Freud sempre admitiu as relações de objeto e sua importância, entretanto deu mais espaço à teoria pulsional. Ele, Green, defende que pulsões e objeto são igualmente importantes no desenvolvimento da teoria psicanalítica:
A meta principal da psicanálise é a descoberta mais precisa possível dos processos intrapsíquicos inconscientes por meio do que revelam a associação livre no paciente e a atenção flutuante no analista. De fato, as dimensões intrapsíquicas e intersubjetivas são inseparáveis na abordagem psicanalítica. [...] Mais ainda, intersubjetivo não quer dizer interpessoal nem interativo. Trata-se da relação de dois sujeitos, o que implica a definição do que é um sujeito. Com frequência, tal definição é negligenciada ou ocultada. O mal-entendido está, igualmente, no centro do que chamamos a crise do entendimento psicanalítico. Ele favorece, no seio da psicanálise, o desenvolvimento de modos de pensamento muito distantes daquilo que as descobertas de Freud permitiram elaborar como concepção original do psiquismo, a evolução atual se dando, antes, em proveito de uma psicologia pseudopsicanalítica. (Green, 2001/2003, p. 489)
Penso que Bonaminio, em seu desejo de expandir a psicanálise e incluir nela o seu conceito de intersubjetividade, não se dá conta de que reduziu a psicanálise à sala de análise ou, quando muito, a algo que se refere somente aos seres humanos, visto que “o objeto é sempre um sujeito, isto é, um humano”.
O objeto transicional de Winnicott, como regra, não é um ser humano (Winnicott, 1971/1975a, p. 27); o objeto que causa a fome do bebê kleiniano não é um sujeito (Hinshelwood, 1989/1992, p. 426); da mesma forma, o “não seio” bioniano também não é humano (Hinshelwood, 1989/1992, p. 88).
Ogden (1995, p. 177), falando de subjetividade, propõe o terceiro analítico, compreendido como um terceiro sujeito, criado pela interação inconsciente entre analista e analisando:
Desde el punto de vista de la dialéctica continente/contenido, la identificación proyectiva se convierte en una conceptualización de la creación de la subjetividad en la dialéctica de interpenetración de las subjetividades. En tal relación dialéctica, proyector y “recipiente” entran en una relación de puesta-en-unicidad (at-one-ment) y separatidad donde la madre da forma a la experiencia del infante y, sin embargo (en el caso normativo), el moldeo de la madre al infante ha sido ya determinado por este. (Ogden, 1992, p. 114)
É conveniente pontuar que esta relação de colocação-em-unicidade não passa de uma metáfora teórica, como salienta Kernberg:
Um paciente com grave patologia caracterológica poderá surpreender o analista, muitos meses ou anos após o início do tratamento, de modo inesperado, com um emprego equivocado ou com uma distorção de toda a interpretação analítica que lhe foi transmitida. Talvez tenha sido a consciência desse problema que levou Bion (1963) a examinar a “perspectiva invertida” para descrever a situação na qual o paciente e o analista estão aparentemente de acordo com respeito a uma interpretação, quando na verdade o paciente agarra-se a uma ambiguidade na escolha de palavras ou na entonação do analista para dar a sua interpretação um sentido não pretendido. (1980/1989, pp. 54-55)
Voltemos a Ogden: aceitando que duas pessoas deformam, isto é, “percebem” a realidade de maneiras dependentes de sua experiência passada e de sua estrutura genética, temos que aceitar que analista e analisando vão perceber o terceiro analítico de maneira diferente; logo, teremos dois terceiros analíticos, um do analista e outro do analisando, os quais, no decorrer da análise, tenderão a se tornar iguais sem nunca chegar a isso, assim como analista e analisando nunca chegarão a ver a “realidade” do mesmo modo porque sempre serão indivíduos diferentes.
Não estou indo contra as ideias de Ogden; repeti com outras palavras o que ele diz em seu artigo “Analisando formas de vitalidade e desvitalização da transferência-contratransferência”:
O terceiro analítico é experimentado pela personalidade individual, tanto do analista quanto do analisando, não sendo, portanto, uma experiência idêntica para ambos (Ogden, 1995, p. 177).
Para Winnicott (1971/19753), o ser humano é mais do que o indivíduo e sua psique. O ponto central desta afirmação parece-me devido ao fato de que o Homem é impensável sem seu correlato cultural, social, ou seja, sem sua vida de relação.
Winnicott diz que há uma relação objetal na qual o objeto é, simultaneamente, criado e descoberto pelo bebê. Esse objeto que é criado pelo bebê, portanto, sendo uma fantasia, também tem uma existência real que independe do bebê:
A característica essencial é [...] o paradoxo e a aceitação do paradoxo: o bebê cria o objeto, mas o objeto estava ali, esperando ser criado (1968/1975b p. 124).
Além de teorizar sobre esses objetos criados, Winnicott afirma que não há contato direto entre os bebês e os objetos externos (ver adiante).
Algunos bebés son lo suficientemente afortunados como para tener una madre cuya adaptación inicial activa a la necesidad del bebé fue suficientemente buena, y ello les permite forjarse la ilusión de encontrar efectivamente lo que han creado (alucinado). [...] A la larga ese bebé crece y llega a decir: “Sé que no hay ningún contacto directo entre la realidad externa y yo mismo, sólo una ilusión de contacto [...]” A los bebés cuya experiencia ha sido algo menos afortunada los trastorna realmente la idea de que no haya ningún contacto directo con la realidad externa. (1954[1967]1993, p. 163)
Parece-me que Bion defende algo semelhante:
Supõe-se assim que, quando não existem elementos α, possam empregar-se os elementos β e que os elementos α sejam um estágio posterior de elementos β, ou seja, o trabalho onírico α opera sobre os elementos β, e não diretamente sobre os dados sensoriais. (Bion, 1992/2000, p. 191)
Freud também aceita essa ausência de contato direto (1950[1895]/1976c). Para ele, nossas terminações nervosas selecionam os estímulos que recebem e nosso contato é com a resultante dessa seleção. Ele afirma que não conhecemos nem nosso próprio inconsciente nem a realidade do mundo exterior.1
Vejamos o que diz Luria, em seu livro Curso de psicologia geral:
Filósofos idealistas como G. Berkeley, D. Hume e E. Mach, e psicólogos como H. Helmholtz e Johannes Muller formularam a teoria da energia específica dos órgãos dos sentidos. Segundo ela, os órgãos não refletem a influência do mundo exterior nem informam acerca dos processos reais que ocorrem no meio ambiente, limitando-se a receber das ações exteriores os impulsos que lhes estimulam os seus próprios processos. Logo, os órgãos dos sentidos não refletem as influências exteriores, mas são apenas excitados por elas e o homem não percebe os objetos do mundo exterior, mas somente os seus próprios estados subjetivos, que refletem a atividade dos órgãos dos sentidos. Noutros termos, isto significa que os órgãos dos sentidos não põem o homem em contato com o mundo exterior, mas, ao contrário, o separam deste. Isto se insere na filosofia do idealismo subjetivo, teoria idealista que recebeu o nome de solipsismo. (1959/1979, p. 57)
Com uma visão mais atual, passamos a perceber que a teoria do idealismo subjetivo impõe que se permaneça na subjetividade, mas não é isso que ocorre com o ser humano, como afirma o filósofo Popper:
Acredito que eu seja a 'central' para minhas próprias experiências e interpretações. Escapo do solipsismo utilizando essas experiências para a compreensão de outras pessoas e do mundo em torno de mim (Popper & Eccles, 1977/1992, p. 14).
Popper sustenta que a mente se inicia a partir do inato, do interior, visto não conhecermos nada do exterior; temos ações instintivas e fazemos hipóteses que, se derem certo, serão aceitas pelo inconsciente e passarão a operar automaticamente, por repetição. Ele coloca que o primário é o cérebro e sua capacidade inata para sentir e interpretar todos os estímulos que recebe através dos sentidos; para ele, a percepção só ocorre após esse trabalho interpretativo do cérebro. Assim, nega a validade dos dados sensoriais como primários no conhecimento e diz que o que chamamos dados é o resultado do trabalho elaborativo da mente.
Meltzer, em “Além da consciência”, ensina:
Sem dar-se conta, em certo sentido, ela [Klein] adotou uma visão muito platônica da vida mental, ou seja, que o significado do mundo é algo gerado internamente depois desdobrado fora (Meltzer, 1992, p. 398).
Defendo a ideia de que só percebemos os objetos de nosso mundo interno, mas, mesmo assim, conseguimos, pelo menos em parte, ir ajustando essa percepção à “realidade externa” ao adequarmos nossos objetos internos aos seus correlatos externos, em conformidade com os resultados obtidos pela nossa experiência. Julgo que é algo assim que Freud colocou ao falar do conceito de “princípio de realidade”.
Conclusão
Não se trata de defender ou atacar a teoria da intersubjetividade, mas de examiná-la mais de perto e, em minha visão, essa mesma palavra é usada para nomear duas teorias muito diferentes: 1. intersubjetividade referindo-se a duas subjetividades que se comunicam diretamente e criam uma realidade comum às duas; 2. intersubjetividade referindo-se a duas subjetividades que se comunicam indiretamente, utilizando processos verbais ou não verbais.
A utilização de outra terminologia (inter-relação) serviria para evitar confusões entre essas duas teorias. Entretanto, temos que reconhecer a dificuldade de isso ocorrer, pois a palavra intersubjetividade já está consagrada pelo uso.
Com o exposto nas páginas acima, espero ter deixado claro que apoio as posições de Andrade, Damásio, Roussillon, Franco Filho e Sandler, entre outros; que rejeito inteiramente a possibilidade de comunicação direta de duas subjetividades, não só por sua incompatibilidade com os principais fundamentos da teoria psicanalítica, mas também por sua incompatibilidade com os conceitos científicos e neurológicos atuais, como colocados no corpo do trabalho; que aceito inteiramente a existência de comunicação indireta de duas subjetividades, por identificação empática, através de seus egos perceptivos (ego animal, de Freud; consciência expressiva, de Melshon; consciência primária, de Damásio; ou experiência emocional, de Bion).
Em meu entendimento, a mãe não observa o bebê - objeto real, realidade em si, o qual, segundo Kant e Bion, é incognoscível; o que ela observa é o que ela acha que o bebê é. Entretanto, através do princípio de realidade, a mãe tende a se adaptar à “realidade” do bebê e este a se adaptar à “fantasia” da mãe (e vice-versa); caso contrário, a possibilidade de comunicação será afetada, abrindo caminho para a fantasia que leva ao delírio.
Na análise, corresponde a ir-se resolvendo a problemática transferencial (e contratransferencial) de modo que o analisando passe a se relacionar cada vez mais com o analista e não com a projeção que ele faz do analista, e vice-versa.
NOTAS
1 “O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica: em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo exterior e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos dos sentidos” (Freud, 1900[1901]/1970b, p. 651)
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Recebido em 5.12.2013
Aceito em 30.10.2014