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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

 

EM PAUTA

 

Psicanálise e literatura: sobre o pesadelo

 

Psychoanalysis and literature: about the nightmare

 

Psicoanálisis y literatura: sobre la pesadilla

 

 

Carlos de Almeida Vieira

Membro efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor faz um link entre literatura e psicanálise, inspirado em um ensaio de J.L. Borges sobre o pesadelo. Destaca nuances e as coloca lado a lado de questões contidas em obras de Sigmund Freud e de outros autores. Com isso, utiliza a observação dos escritores e poetas como subsídio à psicanálise no sentido da apreensão da realidade psíquica e da descrição fenomenológica do estado de pesadelo, o sonho de angústia. A intenção é também enriquecer o conhecimento dos estados da alma humana apresentado por escritores e poetas e, dessa maneira, atentar para a importância do vértice artístico como mais uma forma de observação no trabalho analítico.

Palavras-chave: pesadelo; sonhos de angústia; labirintos; espelhos; máscaras; observação fenomenológica.


ABSTRACT

Inspired by J.L. Borges' essay on nightmare, the author establishes a link between literature and psychoanalysis. He shows nuances that are put side by side with matters contained in the work of Sigmund Freud and other authors. Thus, he uses the observation of writers and poets as a contribution to psychoanalysis, in the sense of apprehending the psychic reality and the phenomenological description of the state of nightmare - the anguish dream. This paper aims to enrich the knowledge about the states of the human soul - a knowledge that was brought by writers and poets - and, therefore, it also aims to underline the importance of the artistic vertex as another way of observation in the analytic practice.

Keywords: nightmare; anguish dreams; labyrinths; mirrors; masks; phenomenological observation.


RESUMEN

El autor hace un enlace de la literatura con el psicoanálisis, inspirado en un ensayo de J.L. Borges sobre la pesadilla. Señala matices y los pone lado a lado con asuntos presentes en las obras de Sigmund Freud y otros autores. De esa forma, utiliza la observación de escritores y poetas como un subsidio al psicoanálisis en sentido de la aprehensión de la realidad psíquica y la descripción fenomenológica del estado de pesadilla, el sueño de angustia. La intención es enriquecer el conocimiento de los estados del alma humana traído por escritores y poetas y así prestar atención a la importancia del vértice artístico como otra forma de observación en el trabajo analítico.

Palabras clave: pesadillas; sueños de angustia; laberintos; espejos; máscaras; observación fenomenológica.


 

 

Quem lida com poetas e com ficção, lida com uma variadíssima gama de sentimentos comuns à psicanálise e à interpretação de textos: lida com o desejo, os sentimentos todos, todas as paixões, o imaginário, o sonho em suas múltiplas formas: ostensivas, mascaradas, reprimidas, transfiguradas, sublimadas; lida, em suma, com a intérmina fenomenologia do inconsciente e da memória, sem descartar as suas intersecções com a autoconsciência, à qual se confia a missão difícil de conservar-se lúcida e inteira em face das sombras móveis do Id ou as pressões terríveis do Superego.

(Alfredo Bosi, 2014, p. 19).

No livro A interpretação dos sonhos, no capítulo "Sobre a psicologia dos processos oníricos", seção D: "O despertar pelo sonho - A função do sonho - O sonho de angústia", encontramos o seguinte fragmento de descrição clínica de Freud:

um garoto de treze anos, de saúde frágil, começou a ficar angustiado e distraído, seu sono se tornou inquieto e era interrompido quase toda semana por um grave ataque de angústia acompanhado de alucinações. A lembrança desses sonhos era sempre muito nítida. Assim, ele podia relatar que o diabo tinha lhe gritado: "Agora te pegamos, agora te pegamos [...]!" (1900/2014, p. 614).

O pesadelo ou sonho de angústia revela ser um sonho interrompido, um sonho que não se deixa sonhar, um sonho que se quebra por uma angústia aterrorizadora, angústia que promove o despertar, e a mente, desse modo, fica livre de prosseguir em sua função de informar a respeito dos desejos inconscientes. O recalcamento se impôs diante da possibilidade de uma representação insuportável, intolerável. O pesadelo, desse modo, funciona como uma proteção enfática para que não se possam experimentar, mesmo que em sonho, cenas traumáticas que ainda se acham "proibidas" à consciência. Freud, no capítulo já mencionado, chega a dizer:

Assim, vamos propor a tese de que a repressão do Ics se torna necessária, sobretudo, porque o fluxo de representações no Ics, deixado a si mesmo, liberaria um afeto que originalmente tinha o caráter de prazer, mas desde o processo do recalcamento leva o caráter de desprazer (p. 610).

Anos mais tarde, precisamente nas "Novas conferências introdutórias à psicanálise" (1933/2010), no capítulo sobre uma "Revisão da teoria dos sonhos", referindo-se aos sonhos de angústia, Freud escreve:

O processo do sonho faz o produto de tal colaboração desembocar numa inocente vivência alucinatória, e garante assim a continuidade do sonho. Não contraria essa função o fato de o sonho acordar momentaneamente o sonhador, acompanhado de angústia; é antes um sinal de que o guardião vê a situação como perigosa demais e já não acredita poder dominá-la. Não é raro ouvirmos então, ainda dormindo, a observação tranquilizadora, que busca evitar o despertar: "É só um sonho!"

Adiante, Freud é enfático ao dizer:

Nas neuroses traumáticas é diferente; nelas os sonhos terminam, via de regra, com desenvolvimento de angústia. Acho que não devemos nos esquivar de admitir que nesse caso a função do sonho fracassa. [...] A fixação inconsciente num trauma talvez seja o maior desses impedimentos à função do sonho. [...] Nessas circunstâncias ocorre de a pessoa ficar insone, renunciar ao sono por temer o malogro da função do sonho. A neurose traumática nos mostra aqui um caso extremo, mas é preciso reconhecer também o caráter traumático das vivências infantis, e não devemos estranhar que também surjam transtornos menores da operação do sonho em outras circunstâncias (pp. 156-157).

O livro A interpretação dos sonhos, a autoanálise com Fliess e as observações clínicas da histeria são, sem dúvida, os pilares formadores da nova ciência - a psicanálise. Ocupado durante todo o tempo em sua pesquisa sobre a mente, Freud sempre unia suas observações clínicas a sua extensa experiência de analisar seus próprios sonhos, sempre ouvindo o seu "parceiro-analítico", W. Fliess. Tânia Rivera, em seu prefácio a A interpretação dos sonhos, "O sonho e o século" (214), faz uma observação muito importante:

A teoria psicanalítica tem como base sutil e, no entanto, firme e segura, nada menos que a trajetória de análise de um sujeito, graças ao estranhamento que seus sonhos lhe proporcionam. Freud, o criador da psicanálise, obviamente não contava com outro analista para realizar sua trajetória de análise pessoal, o que faz da sua a única "autoanálise" possível. Cada analista deverá, recorrendo a outros analistas, retomar e refazer de modo próprio, em sua formação, esta articulação fundamental entre sua vida e a teoria (pp. XXI).

No cap. 7, vemos mais uma vez uma alusão do próprio Freud a seus sonhos -particularmente, a seus sonhos de angústia. Escreve ele:

Há décadas que eu próprio não tenho mais nenhum sonho de angústia autêntico. Lembro-me de um que tive aos sete ou oito anos e mais ou menos trinta anos depois submeti à interpretação. Ele foi bastante vívido e me mostrou minha querida mãe com uma expressão facial singularmente calma, adormecida, sendo carregada para o quarto e deitada na cama por duas (ou três) pessoas com bicos de pássaro. Acordei chorando e gritando e atrapalhei o sono de meus pais (p. 611).

Relembro ao leitor minha citação do professor Alfredo Bosi acima. Se nosso tema neste artigo é o pesadelo, ou seja, os sonhos de angústia, estamos evidentemente no terreno da realidade e da ficção da experiência humana. Os artistas, os poetas e os críticos literários observam, escrevem e pensam sobre a natureza da realidade psíquica - natureza real e ficcional -, e nos subsidiam, através de suas pesquisas, com observações aprofundadas do onírico e de suas apreensões do indizível, do inaudível, mediante a linguagem simbólica e metafórica. Num artigo publicado pela Revista Psicanálise, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, afirmei:

Ainda que haja forças repressivas dentro do sonhar, sonhar é realmente uma construção imagética repleta de significados, funções e finalidades no trabalho analítico. Enquanto Bion nos fala da possibilidade de as experiências serem digeridas e transformadas em sonhos, os poetas parecem que fazem esses atos a cada momento. Os poetas são capazes de extrair das suas "pré-concepções", realizando-as no conhecimento, tanto as alegrias, amores e satisfações quanto as nossas tristezas e desesperos. Concluo esta digressão, citando mais uma vez Borges: "E se os pesadelos forem estritamente sobrenaturais?, se os pesadelos forem frestas do inferno?; por que não?; tudo é tão estranho que até isto é possível" (Vieira, 2012, p. 419).

Passo agora a trazer o que acho ser uma contribuição séria e profunda, dada por Jorge Luis Borges, ícone da literatura universal, homem que viveu toda a sua vida escrevendo em prosa e verso seus maiores pesadelos - seus sonhos, seus terrores constantes diante dos seus "labirintos", em frente aos seus "espelhos", a angústia permanente de ser "si mesmo", "o outro", e a percepção de suas máscaras em face do mundo. Adentro no genial e simbólico poema "O sonho", do livro A rosa profunda (1975/1999c, p. 93):

Quando os relógios da meia-noite prodigarem Um tempo generoso,
Irei mais longe que os vogas-avante de Ulisses
À região do sonho, inacessível
À memória humana.
Dessa região imensa resgato restos
Que não consigo compreender:
Ervas de singela botânica,
Animais um pouco diferentes,
Diálogos com os mortos,
Rostos que na verdade são máscaras,
Palavras de linguagens muito antigas
E às vezes um horror incomparável
Ao que nos pode conceder o dia.
Serei todos ou ninguém. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que fitou
Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,
Resignado e sorridente.

Uma viagem, uma viagem épica que Ulisses viveu, sofreu e, quem sabe, sua volta não foi uma volta e sim um sonho que nunca terminou. Os sonhos, intui o poeta, são uma vivência constante que não se restringe ao sono, mas, quem sabe, de modo mais efetivo, à vigília. Nossa mente, para suportar as vicissitudes do existir, necessita que nosso inconsciente da vigília esteja elaborando questões conflitantes para que possamos estar acordados. Sugere Borges que é possível resgatar restos que não podemos compreender. Restos, fragmentos, partículas de memórias espatifadas na infância precoce, consequências de experiências traumáticas que não puderam ser simbolizadas. O pesadelo é uma amostra disso, pois de repente o sonho não pode prosseguir, seu conteúdo fugaz obstrui a passagem pela simbolização. Não por acaso nosso poeta fala de "palavras de linguagens muito antigas", linguagem ainda incipiente, traços de memória, fragmentos de coisas oriundos da força da foraclusão. A mente não suporta o "horror incomparável", pois seria realizar o desejo proibido, a tentação diabólica do incesto e a violência da castração. No sonhar somos nós mesmos, somos nossa loucura privada, nossas "máscaras", como recursos de sobrevivência para suportarmos aspectos demoníacos da nossa natureza humana. Borges termina o poema "resignado e sorridente", pois o sonhar informa o que nós somos, o que não somos e o maior sonho da nossa vida - aquilo que me faz pensar ser -, a nossa ficção onírica da vigília. A vida é um imenso sonhar, e a experiência analítica pode nos ajudar a apreender os momentos de ficção e realidade que atravessamos do nascer ao morrer.

Em outro livro, A cifra (1981/19993), Borges, numa prosa poética chamada "Um sonho", assim escreve, dando mais uma contribuição à complexidade da vida e do sonhar:

Em um deserto lugar do Irã há uma não muito alta torre de pedra, sem porta nem janela. No único quarto (que tem um chão de terra e a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem que se parece comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que em outra cela circular escreve um poema sobre um homem que em outra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem (p. 342).

Na obra do poeta Borges, um dos seus maiores pesadelos é o tema do labirinto. A experiência analítica não seria a infatigável e interminável travessia pelos infinitos labirintos internos e os que a vida nos coloca? A cada momento que somos capazes de ter alternativas no enredamento dos labirintos, acontecem mudanças em nossa realidade psíquica e podemos respirar com prazer em espaços de vida sem o terror dos pesadelos noturnos e diurnos. Mas, às vezes, também somos interditados ao buscar uma saída e temos que tolerar o não saber, o não pensar e o não sonhar, aguardando mais um passo no sentido de abrir caminho. Assim, tanto no pesadelo quanto na vigília, vivemos momentos de "loucura pessoal", turbulentos mas vivíveis.

O nosso escritor Ignácio de Loyola Brandão, em seu livro A última viagem de Borges: uma evocação (2005) - que na realidade é a transcrição de uma peça de teatro -, mostra as aflições, os pesadelos e as angústias desse homem que passou toda a vida a procurar seu "Aleph". Ignácio, sonhando Borges, escreve:

BORGES: Tenho a resposta, agora sei. A vida inteira procurei a palavra que dissesse tudo, significasse tudo, exprimisse o todo, o universo, o homem, a vida, o sentido das coisas. A palavra sem arestas, sem erros, que contivesse em si todos os sinônimos, que não tivesse contrários (p. 160).

Vê-se que a angústia do poeta, como a do psicanalista, é a dificuldade de suportar que, por mais que observe e trabalhe, não consegue saturar o conhecimento, o que não o impede de prosseguir nesta busca incessante pela "verdade última".

Já no primeiro terço da peça, há um diálogo entre Burton e Borges que mostra bem essa viagem por veredas intermináveis. Sir Richard Francis Burton (aventureiro, descobridor das nascentes do Nilo, tradutor para o inglês de As mil e uma noites, do Kama Sutra e de Os Lusíadas) diz:

BURTON: Você precisa saber que vão tentar impedir que você chegue à Biblioteca. Vão tentar te desviar, atemorizar e até te destruir.

BORGES: Destruir? Como? Por quê?

BURTON: Só estou dizendo para tomar cuidado.

Mas antes você tem de encontrar a porta. E para isso precisa passar pela Galeria dos Espelhos.

BORGES: A poria... Espelhos, sempre os espelhos... Estou cansado de espelhos e labirintos, de tigres e de duplos. Até a minha memória se transformou em um labirinto.

BURTON: Mas você tem que enfrentar os espelhos, passar por eles, é o primeiro passo. Tudo depende deles, há milênios. Eles dão a aprovação.

BORGES: Há uma maneira de se convencer um espelho?

BURTON: O Espelho vê tudo. Só não vê o que está atrás de você. Cuidado, na Galeria existem espelhos que apenas nos mostram de costas. Estes, é preciso evitar. (p. 27).

Espelhos, labirintos, máscaras, tudo isso se transformou no grande pesadelo de Borges, que nos fornece metáforas: máscaras, labirintos e espelhos são imagens contidas na atividade onírica, tanto do sono como da vigília. Às vezes, somos capazes de adentrar neles, achar um pouco de nós neles, como o caminhar e a travessia de uma análise, em que podemos entrar nos nossos pesadelos, saber o significado de alguns deles, mas também evitar aqueles (pesadelos) que ainda não têm formas de pensamentos, e sim de fraturas, ideias em imagens visuais, as quais, por força do recalcamento e dos mecanismos mais primitivos (projeções maciças, foraclusão, negação etc.), não chegam aos instantes de "Aleph", e nossa vida prossegue, como a dos poetas, escritores e analistas a buscarem significados que não se alcançam.

BORGES fornece, em suas apreensões dos mistérios da mente, através da metáfora dos labirintos, espelhos, máscaras, tigres, procurando a palavra, a palavra certa, o momento crucial do sentido das coisas e a interminável angústia de se conhecer, conhecer o Outro, que foi ele mesmo e os demais. A palavra, ofício dos literatos, é a infinitude, o sentido de eternidade perene, mas é também a finalidade de sua arte, assim como da arte do psicanalista. Estamos hoje, no século xxi, às voltas com o indizível, o irrepresentável, para que possamos subsidiar nossos analisandos a resgatar o processo de simbolização. Começou-se em idade precoce, se fraturou; se não teve oportunidade da surgir, que surja na experiência analítica. Essa é a finalidade de uma análise, e também vem sendo a luta dos artistas, poetas e escritores, que Freud tanto reconhecia, mas ainda de maneira ambígua, temendo a pressão da academia, dos "homens de ciências", da sua busca incessante por ser coerente com um positivismo iluminista.

Vejamos agora a contribuição que nos oferece, ainda, nosso escritor J.L. Borges em seu magnífico ensaio, do livro das Sete noites, "O pesadelo" (198071999b). Nesse ensaio, o sonho é tema, além do sonho de angústia. A atividade onírica era uma preocupação borgiana - a angústia dele aparece, por exemplo, nessa passagem:

Não sabemos exatamente o que acontece nos sonhos: não é impossível que durante os sonhos estejamos no céu, estejamos no inferno, talvez sejamos alguém, alguém que é aquilo que Shakespeare chamou de "the thing I am", "a coisa que eu sou", talvez sejamos nós, talvez sejamos a Divindade. Isso se esquece ao acordar. Só podemos examinar dos sonhos sua memória, sua pobre memória (p. 244).

Borges tinha a mesma crença de Freud: aquilo com o que lidamos quando nós próprios sonhamos ou quando alguém nos relata seus sonhos é com a deformação da "pobre memória", do que escrevi no começo desse artigo, citando nosso professor Alfredo Bosi: a terrível força do Supereu e as sombras móveis do Id, fatores que nos distraem, nos afastam do sonho em si mesmo, e somente nos deixam os restos, os traços mnêmicos para serem desvendados. Mas o poeta, assim como o psicanalista, sabe que o foco é o conhecimento do Eu ou as máscaras variadas que escondem a verdade da realidade psíquica.

Parece que, pelo menos em pessoas que apresentam sintomas das neuroses atuais, traumáticas, estados obsessivos e condições psicopatológicas pré-psicóticas, a frequência dos sonhos de angústia é maior, evidenciando que os mecanismos de defesa, por sua fortaleza, impediram o sonhador de continuar o sono e o sonho. Estamos diante de instantes de "infernos subjetivos", revelando talvez "a coisa que eu sou"; essa revelação, no entanto, sucumbe por causa de uma angústia terrível, ameaçadora do sono, do sonho e do pensar, inclusive do trabalho de pensar onírico na inconsciência.

Volto ao texto de Borges, que, de modo didático e de dicionário, nos remete aos vários sentidos da palavra "pesadelo":

O nome em espanhol, pesadilla, não é muito feliz: o diminutivo para subtrair-lhe força. Em outras línguas os nomes são mais fortes. Em grego a palavra é efialtes: Efialtes é o demônio que inspira o pesadelo. Em latim temos o incubus. O íncubo é o demônio que oprime o adormecido e inspira-lhe o pesadelo. Em alemão temos uma palavra muito curiosa: Alp, que viria a significar o elfo e a opressão do elfo, a mesma ideia de um demônio que inspira o pesadelo... Chegamos agora à palavra mais sábia e ambígua, o nome inglês do pesadelo: the nightmare, que para nós significa "a égua da noite". Foi assim que Shakespeare o entendeu. Mas, segundo os etimologistas, a raiz é outra. A raiz seria niht mare ou niht maere, o demônio da noite... Há outra interpretação que pode servir-nos e que ligaria essa palavra inglesa, nightmare, com Marchen, em alemão. Marchen quer dizer fábula, conto de fadas, ficção; portanto nightmare seria a ficção da noite (pp. 246-247).

Há no texto de Borges uma ênfase na palavra "demônio", o que penso ser mais uma metáfora do que a palavra em si. Ousaria pensar que "o demônio" é algo que diz respeito a aspectos da nossa loucura pessoal, da parte psicótica da personalidade ou da força pulsional querendo adentrar na consciência onírica, mas imediatamente obstruída pela intensidade terrível do Superego. A cena se desfaz acordando, interditando a possibilidade de entrar em contato com imagens primitivas impossíveis de serem presenciadas. O grito se introduz, o pânico toma a cena, o sonhador acorda acompanhado de todos os sintomas de uma crise de pavor. Thomas Ogden escreveu em seu livro Esta arte da psicanálise (2010):

Uma pessoa consulta um psicanalista porque está sofrendo emocionalmente sem saber, ela é incapaz de sonhar (isto é, incapaz de elaboração psicológica inconsciente) ou fica tão perturbada com o que está sonhando que seu sonho é interrompido. À medida que é incapaz de sonhar sua experiência emocional, o indivíduo é incapaz de mudar, ou de crescer, ou de tornar-se diferente do que ele tem sido (p. 28).

No fim de sua peça teatral, citada acima, Ignácio de Loyola Brandão descreve o alumbramento de Borges ao ver o "Aleph":

BORGES: Vi de fora, agora estou entrando. Onde vi? A palavra, minha palavra não existe. Sou ela, sou eu mesmo e estou aqui, agora, dentro dela como sempre desejei. Posso ver tudo, porque tudo está contido aqui. Todas as coisas e eu incluído nelas. O Aleph? Estou dentro dele. "Um dos pontos de espaço que contém todos os pontos". (O Aleph, OCI, p. 686) Não passava de "uma pequena esfera furta-cor de quase intolerável fulgor". Parecia giratória, "mas compreendí que esse movimento era ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava". Ah! Sou Borges! Não o duplo (pp. 176-177).

Nos dias em que estava escrevendo este trabalho, um analisando que está comigo há quatro anos pede para ler um poema seu, no começo de uma sessão, afirmando que "ainda temos muito o que conversar sobre esses pesadelos que afligem minha vida dia e noite":

Esquecido de mim
Fragmentado pelas trações do mundo
intensas, desmedidas, esmagadoras
torno-me um ser desvalido,
informe, insólito, traços flutuantes.
Sem definição, sem cor, formas cinzentas
apenas lançadas no espaço vazio.
Sem colorido, nevoento... sombrio
Tênues linhas sumárias.
Resta-me apenas uma leveza
que o vento pode soprar e arrastar...
Para onde? Para onde ele for, talvez
Talvez o poeta ou analista me compreendam
Pela sutileza de seus versos
Que descrevem suas almas e a alma das coisas.
É preciso que entendam
a fala de meu coração,
De que estou farto
deste labirinto sem saída
e sem fio condutor.
Talvez do poeta e do analista o espírito
possam abrir meus olhos, minh'alma.
Que acolham meu grito
A opressão destas lúgubres paredes.
Que sintam meu choro de tristeza
e possam receber apenas como sou,
Apenas mim... Na singeleza de meu ser.

 

Referências

BORGES, J.L. (1999a). A cifra. In J.L. Borges, Obras completas (J.V. Baptista, Trad., Vol. 3, pp. 327-378). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1981)        [ Links ]

BORGES, J.L. (1999b). O pesadelo. In J.L. Borges, Obras completas (S. Molina, Trad., Vol. 3, pp. 242-255). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1980)        [ Links ]

BORGES, J.L. (1999c). A rosa profunda. In J.L. Borges, Obras completas (J.V. Baptista, Trad., Vol. 3, pp. 89-131). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1975)        [ Links ]

Bosi, A. (2014). Psicanálise e crítica literária: proximidade e distância. In C.R.P. Passos & Y. Rosenbaum (Orgs.), Interpretações: crítica literária e psicanálise (pp. 19-28). São Paulo: Ateliê Editorial.         [ Links ]

Brandão, I. de L. (2005). A última viagem de Borges: uma evocação. São Paulo: Global.         [ Links ]

Freud, S. (2010). Novas conferências introdutórias à psicanálise. In S. Freud, Obras completas (P.C. de Souza, Trad., Vol. 18, pp. 124-354). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1933)        [ Links ]

Freud, S. (2014). A interpretação dos sonhos (2ª ed., R. Zwick, Trad.). Porto Alegre: L&pm. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Ogden, Th. H. (2010). Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos (D. Bueno, Trad.). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Rivera, T. (2014). O sonho e o século. In S. Freud, A interpretação dos sonhos (2ª ed., R. Zwick, Trad., pp. XVII-XXVII). Porto Alegre: L&pm.         [ Links ]

Vieira, C. de A. (2012). Teria W.R. Bion lido Borges? O vértice estético-literário. Revista Psicanálise, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, 12(2),411-424.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Carlos de Almeida Vieira
SHIS QI 9, Lote E, Bloco I, Sala 310
Centro Clínico do Lago Sul, Lago Sul
71625-009 Brasília, DF
vieira041144@gmail.com

Recebido em 12.5.2015
Aceito em 26.05.2015

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