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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo jul./set. 2018
OUTRAS PALAVRAS
Fazendo supervisão1: um espaço compartilhado para pensar a clínica com pacientes de difícil acesso
Doing supervision: a shared space to reflect on the clinical practice with hard-to-reach patients
Haciendo supervisión: un espacio compartido para pensar en la clínica con pacientes de difícil acceso
Faire de la supervision: un espace partagé afin de penser la clinique de patients d'accès difficile
Denise Salomão GoldfajnI; Bartholomeu de Aguiar VieiraII
IPós-doutoranda em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Psicanalista associada da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)
IIMestre em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
RESUMO
Neste artigo, os autores descrevem uma experiência de supervisão compartilhada oferecida pelo Laboratório de Pesquisas e Intervenções Psicanalíticas do Instituto de Psicologia da USP. A supervisão ocorre em grupo e baseia-se no modelo de investigação das teorias implícitas do psicanalista, que busca investigar como o encontro clínico é pensado pelo psicanalista e expandido pela discussão em grupo. O terapeuta apresenta o relato da sessão, e o grupo é convidado a associar livremente. A associação livre produzida nesse tipo de dispositivo é apreciada como capacidade de sonhar, ou possibilidade de perlaborar os conteúdos inconscientes e a afetação do par como elementos que circulam no campo transferencial e determinam o manejo clínico. Os autores apresentam a discussão de um caso clínico com um paciente de difícil acesso, buscando demonstrar como o dispositivo de supervisão compartilhada possibilita gestar a função psicanalítica dos participantes do grupo.
Palavras-chave: supervisão, metapsicologia do psicanalista, sonho, paciente de difícil acesso
ABSTRACT
In this article, we describe an experience of shared supervision offered by the Laboratory for Research and Psychoanalytic Interventions of the Institute of Psychology, University of São Paulo. The supervision happens in group and it is based on the investigative model of the psychoanalyst's implicit theories. This model seeks to investigate how the clinical encounter is thought by the psychoanalyst and how it is expanded by the group discussion. The therapist presents the session report and the group is invited to associate freely. The free association that is produced in this kind of apparatus (supervision) exercises the ability to dream and the possibility to elaborate over again (perlaboration) unconscious contents and the pair's affect. As elements that circulate in the field of transference, they guide the therapeutic work. Discussing a clinical case of a hard-to-reach patient is our attempt to demonstrate how the apparatus of group supervision permits the gestation of the psychoanalytic function of those who are part of the group.
Keywords: supervision, psychoanalyst's metapsychology, dream, hard-to-reach patient
RESUMEN
En este artículo, describimos una experiencia de supervisión compartida ofrecida por el Laboratorio de Investigaciones e Intervenciones Psicoanalíticas del Instituto de Psicología de la Universidad de São Paulo. La supervisión ocurre en grupo y se basa en el modelo de investigación de las teorías implícitas del psicoanalista, que busca investigar cómo el encuentro clínico es pensado por el psicoanalista y expandido por la discusión en grupo. El terapeuta presenta el relato de la sesión y el grupo es invitado a asociar libremente. La asociación libre producida en ese tipo de dispositivo es apreciada como capacidad de soñar, o posibilidad de perlaborar los contenidos inconscientes y la afectación del par como elementos que circulan en el campo transferencial y que determinan el manejo clínico. Presentamos la discusión de un caso clínico con un paciente de difícil acceso buscando demostrar cómo el dispositivo de supervisión compartida posibilita gestar la función psicoanalítica de los participantes del grupo.del Instituto de Psicología de la Universidad de São Paulo. La supervisión ocurre en grupo y se basa en el modelo de investigación de las teorías implícitas del psicoanalista, que busca investigar cómo el encuentro clínico es pensado por el psicoanalista y expandido por la discusión en grupo. El terapeuta presenta el relato de la sesión y el grupo es invitado a asociar libremente. La asociación libre producida en ese tipo de dispositivo es apreciada como capacidad de soñar, o posibilidad de perlaborar los contenidos inconscientes y la afectación del par como elementos que circulan en el campo transferencial y que determinan el manejo clínico. Presentamos la discusión de un caso clínico con un paciente de difícil acceso buscando demostrar cómo el dispositivo de supervisión compartida posibilita gestar la función psicoanalítica de los participantes del grupo.
Palabras clave: supervisión, metapsicología del analista, sueño, paciente de difícil acceso
RÉSUMÉ
Dans cet article, nous décrivons une expérience de supervision partagé, offerte par le Laboratoire de recherches et d'interventions psychanalytiques de l'Institut de psychologie de l'Université de São Paulo. La supervision a lieu en groupe et se base sur le modèle de recherche des théories implicites du psychanalyste, qui a pour but investiguer comment la séance clinique est envisagé par lui et élargie par la discussion en groupe. Le thérapeute présente le récit de la séance et le groupe est invité à faire une libre association. L'association produite dans ce dispositif est saisie comme la capacité de rêver ou la possibilité de perlaborer les contenus inconscients et l'affectation du pair, en tant que des éléments qui circulent dans le champ transférentiel et qui déterminent le maniement clinique. Nous présentons la discussion d'un cas clinique d'un patient d'accès difficile, tout en cherchant de démontrer comment le dispositif de supervision partagée permet de préparer la gestation de la fonction psychanalytique des membres du groupe.
Mots-clés: supervision, métapsychologie du psychanalyste, rêve, patient d'accès difficile
Introdução
Com base no trabalho realizado no Laboratório de Pesquisas e Intervenções Psicanalíticas (psiA), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), descrevemos uma experiência de supervisão clínica, com ênfase na elaboração da relação entre paciente e analista pensada a partir de uma dinâmica grupal. A adesão é voluntária, e a atividade é oferecida a alunos do IP que já tenham terminado sua supervisão curricular e a pesquisadores de pós-graduação que desejem ampliar sua experiência clínica. Os pacientes são provenientes da Clínica-Escola Durval Marcondes, da USP. Cabe ao psiA indicar um supervisor qualificado para responsabilizar-se pela condução do grupo. Pede-se que cada participante traga, se possível, um relato escrito da sessão para ser discutido pelo grupo. Os participantes se alternam na apresentação dos casos, de acordo com suas necessidades. Solicita-se aos participantes que associem livremente sobre os relatos, buscando o que lhes chama a atenção na escuta do caso. Nesse processo, observa-se a criação de um dispositivo de supervisão que favorece uma aprendizagem compartilhada, em que a experiência que cada participante traz com seus pacientes pode ser aproveitada por todos.
O funcionamento do grupo de supervisão baseia-se na investigação sobre as teorias implícitas do analista. Joseph Sandler (1983) observa que os psicanalistas, sobretudo em supervisão, fazem uso de teorias oficiais e de teorias implícitas para construir o relato de cada sessão clínica. As teorias oficiais corresponderiam aos conceitos e teorias de autores consagrados no campo, e as teorias implícitas a como cada psicanalista utiliza as teorias oficias, incluindo na construção do relato clínico elementos pré-conscientes e inconscientes da vivência do encontro com cada paciente. Para Sandler, é na clínica que as teorias psicanalíticas são testadas em seu valor heurístico. No entanto, diferentemente do modelo científico clássico, as teorias psicanalíticas não podem ser aplicadas de maneira literal, pois correm o risco de se tornar redutoras e de pouca eficácia, uma vez que dependem do contato singular entre paciente e analista.
De acordo com Sandler, a teoria oficial - por exemplo, os textos de Freud - serviria de estrutura, mas precisaria ser elástica, enriquecendo-se e construindo-se com a singularidade do encontro clínico. Nesse sentido, teorias como as de Winnicott e Bion seriam resultantes de teorias implícitas que foram sendo testadas na própria prática psicanalítica e na experimentação clínica, passando a ser consideradas teorias oficiais enquanto outras teorias implícitas eram geradas. Sandler afirma que é especialmente necessário estar atento às elasticidades teórico-clínicas entre as teorias oficiais e as teorias implícitas, que podem expandir ou limitar a compreensão do processo terapêutico, pelos elementos transferenciais e contratransferenciais que surgem no contato afetivo com os pacientes.
Décadas antes, Ferenczi já apontava para a necessidade da elasticidade na clínica. No artigo “Elasticidade da técnica psicanalítica”, ele destaca a importância dos elementos sensíveis na clínica, o tato, a empatia, e descreve um terceiro elemento: “Levanto aqui um problema que nunca foi apresentado, o de uma eventual metapsicologia dos processos psíquicos do analista no decorrer da análise” (1928/1988, p. 310).
Sabemos que, a partir das ideias expostas por Ferenczi, um modelo único para a formação de psicanalistas começou a ser estabelecido. Popularizado como modelo Eitingon, a formação do psicanalista dependeria de dispositivos que constituiriam um tripé: o estudo teórico dos textos psicanalíticos, a análise pessoal do analista e a supervisão clínica. Se por um lado esses dispositivos colaboraram para uma ortodoxia formal, por outro lado estabeleceram a importância da afetação do psicanalista no processo de tratamento do paciente.
Gabbard (1995) sustenta que, com a expansão da compreensão dos processos emocionais vividos pelo analista (transferência e contratransferência), a supervisão clínica de base analítica não pode mais ser pensada apenas como uma atividade de transmissão do método clínico de uma geração para outra, pois seu valor vai além da difusão de aspectos formais da técnica. A supervisão passa a ser uma experiência do próprio método de investigação da construção de teorias, que no campo psicanalítico se inicia com o encontro entre o psicanalista e seu paciente e que, metodologicamente, se estende, ampliando os sentidos e os significados desse encontro.
Como vimos, Ferenczi inaugurou a ideia de investigar a metapsicologia dos processos psíquicos do analista no decorrer da análise do paciente, investigação essa que se tornou o dispositivo central para o psicanalista exercer seu ofício e o instrumento primordial para refletir sobre a metapsicologia do encontro entre paciente e analista.
Ogden (2005) simplifica a equação das metapsicologias de um e de outro (psicanalista e paciente) quando diz que fazer supervisão é uma forma de sonhar a sessão clínica. Para Ogden, o sonhar é um conceito radical na psicanálise, está na raiz de um método de descoberta, ou seja, de uma epistemologia propriamente psicanalítica. O sonhar é entendido como a forma de perlaborar os processos inconscientes e torná-los significativos através de mecanismos próprios, que só podem ser compreendidos relacionalmente. Segundo o autor:
Na tradição de Bion, entendo o sonhar como um trabalho psicológico inconsciente, feito individualmente (seja dormindo, seja em vigília) a partir da experiência emocional vivida. Nessa perspectiva, a experiência de supervisão é uma experiência em que o supervisor tenta ajudar o supervisionando a sonhar com os elementos de sua experiência com o paciente que puderam ser apenas parcialmente sonhados (seus sonhos interrompidos) ou que foram totalmente impossíveis de sonhar (seus sonhos não sonhados). (p. 1266)
A experiência de supervisão ajuda o terapeuta a ampliar sua possibilidade de sonhar com o paciente, permitindo a ele que continue o processo imaginativo interrompido (interrupted dreams) ou não sonhado (undreamt dreams) no momento da sessão. Entendemos que o relato do caso clínico, em supervisão, não é somente fato nem somente ficção. Trata-se de uma construção narrativa que pode revelar uma multiplicidade de estados mentais, elementos emocionais e significados corporais, que se iniciam no encontro clínico, mas que continuam ativos na mente do analista e que alimentam a função psicanalítica dos participantes da supervisão.
A escuta no grupo de supervisão é em si um processo paralelo entre supervisionando e supervisor, e entre paciente e analista, no qual os “personagens” do relato clínico se enriquecem a partir dos elementos que mobilizam nos participantes da supervisão. Segundo Ferro (2009), os personagens que emergem na trama das sessões encenam a dinâmica entre os invariantes (elementos de estados mentais, corporais e emocionais que se mantêm inalterados em diversas configurações e narrativas) e o enredo articulado no material manifesto que se constitui em material de análise, tanto na relação terapêutica como no processo de supervisão.
Para que esse processo ocorra, é necessário criar um ambiente favorável, nem totalmente idealizado nem totalmente destituído da expectativa de que algo se produza nesse processo e amplie o campo de trabalho. A atenção é dada ao modelo de funcionamento do par, observando-se os momentos em que um encontro entre inconscientes irrompe e pode ser entendido pela dupla.
A supervisão clínica torna-se um espaço para o exercício reflexivo da própria subjetividade do analista. Cabe ao coordenador do grupo estabelecer um ambiente seguro e espontâneo para elaborar a sessão clínica. Ogden sugere que a escrita das sessões clínicas é uma forma de incentivar o analista a sonhar com o paciente.
Assim, entendemos a supervisão como um espaço compartilhado, em que o relato da sessão ganha matizes e dimensões que permitem que as teorias oficiais e implícitas sejam investigadas e expandidas pelo grupo de supervisão. Para demonstrar o caráter dinâmico desse processo, relatamos a seguir a evolução de um caso clínico acompanhado pelo grupo num período de dois anos. Nesse trabalho, o pensar compartilhado produzido pelo grupo nos levou a examinar e a elaborar a clínica com pacientes difíceis.
Os papéis no grupo de supervisão não obedecem a uma hierarquia horizontal rígida, supervisor-supervisionando. A assimetria é percebida entre os participantes pela diferença de tempo de clínica. Usamos aqui a figura da coordenadora do grupo (supervisora) e de um dos apresentadores de caso (supervisionando) apenas para estabelecer posições de contraste, proporcionando um diálogo entre como a informação do caso foi apresentada e como foi processada por esses dois participantes. Estilisticamente, buscamos mostrar o processo de supervisão como um diálogo em forma de jogral, um meio de expressão proveniente da Idade Média, utilizado em festejos populares como entretenimento e também como método de transmissão cultural.
Acreditamos que os elementos descritos até aqui serão reconhecidos no jogral a seguir.
Caso clínico
Supervisora
Neste tipo de supervisão, espera-se que a experiência de analista seja desenvolvida por meio do uso do grupo como suporte para a busca dos próprios recursos de teorização e experimentação clínica. Procura-se demonstrar que uma das funções da supervisão é gestar a função psicanalítica a partir do grupo de supervisão.
O analista em supervisão é alguém que tenta transformar sua compreensão com base na experiência de escutar o paciente, de narrar ao grupo e de escutar o que sua narrativa produz nos participantes do grupo. Assim, fazer supervisão é poder compartilhar e elaborar uma narrativa em transformação.
Supervisionando
Entendo o processo de supervisão como uma ocasião para desenvolver a experiência da prática clínica, o que se torna possível graças ao ato de compartilhar com colegas um relato de sessão. Pretendo demonstrar de que maneira um caso de difícil condução deu origem a reflexões que modificaram a dinâmica afetiva durante as sessões. Esse caso é pertinente enquanto disparador, pois envolve uma paciente com grande sofrimento psíquico e de difícil manejo.
S é uma mulher de mais de 40 anos, cuja apresentação poderia ser descrita como curiosa. Seu cabelo costuma estar bagunçado, suas roupas às vezes têm pequenos furos, e já a vi usando um relógio parado ou de cabeça para baixo. Seu olhar geralmente busca o contato visual direto e fixo, e sua fala, quase ininterrupta e raramente reflexiva, tende a assumir um caráter acusató-rio e difamador.
Sua busca inicial por análise foi feita sob a demanda de precisar que alguém a escutasse, pois para ela “a vida é muito difícil e cheia de sofrimento”. Contudo, desde a primeira conversa para o agendamento da entrevista, ainda ao telefone, S faz questão de deixar claro que ela não precisa de tratamento, mas que, como é de graça e ela não tem nada para fazer no horário, ela iria conversar comigo.
De acordo com a paciente, ela foi injustiçada e sofreu as mais duras privações desde a infância. Ainda bebê, foi para um abrigo, onde diz ter recebido bons cuidados. Embora sua mãe estivesse viva, ela era incapaz de cuidar dos filhos, pois vivia institucionalizada em razão de uma doença mental. Quando S saiu do abrigo, aos 18 anos, voltou a ter contato com a mãe, visitando-a ocasionalmente
Ao longo do tratamento, eu me surpreendo com sua funcionalidade, apesar das adversidades. No momento em que a conheci, a paciente mantinha um casamento, cuidava da educação do filho e fazia faculdade de direito. No entanto, todas essas atividades eram atravessadas pelo caos afetivo. Para S, o marido, que era estrangeiro, havia se casado com ela somente por necessitar de visto para permanecer no país. Ele se ausentava de casa por períodos prolongados. O filho é descrito como uma criança solitária na escola, com dificuldades de aprendizado e desenvolvimento. Já a faculdade de direito era vivida como um dos muitos campos de batalha em que S travava verdadeiras cruzadas, tanto contra os alunos quanto contra os professores.
Mostrava-se bastante agressiva em face da experiência com a alteridade. Fazia parecer que, diante de um mundo invejoso, a única defesa era o ataque. No entanto, seus movimentos eram sempre interpretados por ela como autodefesas. Por exemplo, numa das sessões, S conta que descobriu uma propriedade da mãe, mulher que ela imagina já ter sido rica, mas cujas posses lhe foram tiradas por ser adoentada. Nessa situação, S luta na justiça para obter o direito de propriedade do terreno. Esse ato de justiça, que ela proclama fazer em nome da mãe, seria também um golpe de sorte para ela, que me diz haver, sob o solo da casa, muito ouro e petróleo.
Seus projetos irrealizáveis e suas fantasias de poder ilimitado ora me entristeciam, ora me irritavam, pois S não aceitava meu convite para que pensássemos juntos sobre o que tudo isso significava para ela. Qualquer tipo de intervenção era percebido como uma interrupção indevida. Fosse uma simples pergunta para melhor compreender o material, fosse uma interpretação, minhas falas eram sempre cortadas, ignoradas ou deturpadas. S me fazia pensar que precisava do dispositivo de escuta como um continente que suportasse e resistisse, impassível e imóvel, a todos os movimentos dela.
A transferência estabelecida ao longo do tratamento tinha uma particularidade interessante. Ao mesmo tempo, havia um desejo de dependência, um anseio de ser escutada integralmente e uma total onipotência. Às vezes, eu tinha a impressão de que S não fazia nenhuma questão de estar ali comigo, e que minha presença não produzia nenhuma diferença no modo como ela experimentava as emoções decorrentes de suas histórias. Outras vezes, eu sentia que qualquer movimento meu a irritava sobremaneira, e que um dia inevitavelmente seria alvo de um de seus processos. Assim andava a contratransferência nesses dias.
Estar com S era uma experiência complexa. Minha impressão geral era de que ela sofria gravemente pela forma como vivenciava a si mesma e aos outros. Por meio de uma ampla negação de qualquer possibilidade de sofrer, S se convencia de viver com grandiosidade e de maneira autocentrada as experiências pelas quais passava. Durante as sessões, eu percebia que seus estados afetivos de desespero e caos provocavam uma experiência ambivalente em mim, ao mesmo tempo de acolhimento e de desafetação.
Supervisora
São várias as supervisões em que o colega nos conta suas peripécias com S, mostrando sempre essa mesma dinâmica. O personagem que ia se criando em nossa mente através de seu relato era claramente definido no espectro da literatura psicanalítica como paciente difícil (Ferenczi), esquizoide (Klein), borderline (Kernberg), narcísico (Kohut), não neurótico (Green). A descrição que ele nos dava indicava sua compreensão sobre a dinâmica e o diagnóstico da paciente. O manejo era a questão que mais emergia. Não importava o que ele dissesse ou não dissesse: nada modificava o processo analítico com S. O grupo se esforçava para dar sugestões, as quais o colega considerava que po-deriam surtir efeito, mas ele retornava à supervisão relatando não perceber mudanças.
Se para o analista do caso nada do que ele dizia ou fazia modificava a dinâmica das sessões com a paciente, para o grupo de supervisão essa mesma problemática também se repetia. De todas as descrições possíveis para a situação analítica apresentada pelo supervisionando, me veio à mente aquela feita por Betty Joseph (1992) dos pacientes de difícil acesso, identificados pelo estilo comunicativo. Segundo a autora, na dinâmica com esse tipo de paciente, a cisão na personalidade é percebida pelo analista através da dificuldade do paciente em receber, do terapeuta, uma compreensão emocional verdadeira. Ele pode parecer cooperativo e envolvido na análise, mas o analista nota que mudanças psíquicas não ocorrem no contato com o paciente. É como se uma parte dele se mantivesse de fora, observando, sem se envolver na relação com o analista, tornando difícil para o paciente reagir às comunicações produzidas em análise. De acordo com Joseph, do ponto de vista do psicanalista, as sessões com esses pacientes parecem não produzir nenhuma modulação emocional diferente para eles.
Isso me deu certa informação sobre outros “personagens” que estavam em cena: a inacessibilidade e a frustração. A experiência frustrante pela qual o colega passava com a paciente era não conseguir ter acesso a ela, não conseguir estabelecer um tipo de comunicação empática, por mais que tentasse.
Supervisionando
A contratransferência opera como um elemento diagnóstico nesse caso, pois a questão do negativo na paciente manifestava-se como vazio ou como nada. Segundo Green (1975), a resposta contratransferencial mais comum no atendimento desses casos é o analista sentir-se esvaziado de objetos, incapaz de pensar ou mesmo excluído da cena analítica.
O trabalho do negativo nessa situação se refere à operação da pulsão de morte, atualizada no mecanismo de cisão que o paciente-limite opera em sua relação com o objeto. Devido ao estatuto intrusivo dele, o paciente não tem outra saída a não ser se desvincular radicalmente, mas o efeito dessa atitude é um ataque à sua capacidade de pensar. Dito de outro modo, a cisão operacionalizada como modo de defesa pelo paciente é específica do caso de pacientes-limite. Ela tem o efeito disruptivo da pulsão de morte. O vínculo do sujeito ao objeto é desmantelado e vivido na forma de arquipélago. Tal relação produz um tipo de existência em que a capacidade de construir símbolos é bloqueada. Logo, o pensamento é paralisado.
Supervisora
Diante da “aula”, o grupo se cala, poucas ideias surgem. Uma pessoa no grupo expressa um sentimento de tristeza e cansaço ao se imaginar lidando com essa paciente. Terror e desejo de se desligar completamente da paciente pareciam predominar no grupo de supervisão. O colega luta para manter-se vivo e alerta, pesquisando e procurando aprender sobre o personagem que descreveu, usando recursos de fora da situação analítica. Em face da rigidez simbólica da paciente, o analista usa as próprias armas e se enche de teorias, protegendo-se de sua capacidade imaginativa e das emoções que a paciente lhe provocaria e que ele não gostaria de sentir. Sugiro ao colega que tente manter o relato mais próximo do que aconteceu ou não aconteceu na sessão e do que lhe ocorre espontaneamente, mesmo que possa lhe parecer estranho ou desconexo. Percebemos que a paciente vai sumindo da cena, e que o supervisionando ocupa esse espaço torturado pela preocupação de ser um bom analista para ela. A seguir, surge um novo personagem.
Supervisionando
S vive um medo constante de intrusão, o qual frequentemente emerge de seus relatos mais paranoides. Isso pode ser ilustrado por meio de uma situação típica: S entra com um processo judicial, dessa vez contra a faculdade. Ela me contava detalhes de como pretendia reverter a decisão de ter sido reprovada. No entanto, não lidava com o fato de ter obtido notas insuficientes em cinco matérias, o que justificaria repetir o ano. Para ela, uma perseguição do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) havia determinado o resultado negativo. Buscando ocupar o lugar de vítima, S na verdade valorizava o lugar de injustiçada, utilizando de forma estratégica essa postura. Era impossível aceitar o ocorrido, pois dizia ter um grande talento, beirando a genialidade. Seu saber seria mais do que suficiente para convencer qualquer um de sua causa, principalmente um juiz.
Ela falava consigo própria, o que fazia eu me sentir muito cansado. Ao me dar conta dessa sensação, associei, em minha mente, que era difícil prestar atenção na narrativa porque S temia entrar em contato com qualquer coisa que não corroborasse seu material. Eu pensava que me manifestar poderia ser insuportável para ela, acabando por produzir algum tipo de estilhaçamento. Pensava isso levando em consideração as grandes privações emocionais vividas por S na infância e ao longo da vida. Esses elementos, porém, pareciam ser usados como uma carta branca para ela sentir-se no direito de lidar com as pessoas com arrogância, desprezo e indiferença. Isso me impactou profundamente e produziu em mim uma distância anestesiada de seu relato, que se manifestou na forma de sono, material que levei para a supervisão.
Supervisora
O colega nos fala das formas como se distancia da paciente e de seu próprio mundo interno. Proponho a leitura, no grupo, do texto de Winnicott “O ódio na contratransferência” (1947/2000), como uma mudança na dinâmica grupal. A partir da leitura conjunta, discutimos as dificuldades para lidar com os sentimentos de ódio e frustração que emergem do contato com essa paciente. Vimos no texto de Winnicott que a natureza da carga emocional que recai sobre o analista em contato com esse tipo de paciente desperta reações afetivas de ódio e medo. Segundo o autor, o paciente psicótico está num estado de amor e ódio coincidentes, e espera que o analista se relacione dessa mesma forma com ele. “Nesse caso, se o analista demonstrar amor, ele certamente matará o paciente no mesmo instante” (p. 279). Entendemos que, se o analista não conseguir se dar conta da experiência brutal de amor e ódio coincidentes, ele não será capaz de manter o paciente em sua mente.
Acima de tudo, ele [o psicanalista] não deve negar o ódio que realmente existe dentro de si. O ódio, que é legítimo nesse contexto, deve ser percebido claramente, e mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura interpretação. (p. 279)
Assim, para que o analista faça bom uso de seu ódio, é necessário que ele o mantenha devidamente resguardado de enunciação, ou seja, de uso direto em interpretações ao paciente. Para isso, ele precisa estar em contato com a circulação desse sentimento dentro de si mesmo, ciente dela. O manejo clínico do analista implica sobreviver ao ódio, o dele e o do paciente.
O ódio passa a ser discutido como mais um personagem na relação analítica. Ele nos faz pensar sobre sua presença espectral na transferência e também sobre as qualidades assassinas que matam nossa capacidade onírica, presentes nas relações e no contato com nossos pacientes. Outros colegas do grupo contribuem com suas experiências. A leitura conjunta produz uma discussão que, longe de ser teórica, aviva a matriz clínica de cada um de nós, além de nos permitir pensar em algo que Winnicott descreveu como inevitável: a assustadora experiência do analista em contato com seu próprio ódio.
Idealizadamente, acreditamos poder alojar nossos pacientes longe de nossa destrutividade primitiva. Não se trata apenas de uma contratransfe-rência negativa, mas de um processo de ajuste em experiências primitivas na díade mãe-bebê, em que reconhecer o ódio é necessário. Winnicott observa:
Creio que, na análise de psicóticos e nas últimas fases da análise de pacientes normais, o analista irá encontrar-se numa posição comparável à de uma mãe com um bebê recém-nascido. Numa regressão profunda, o paciente não tem como identificar-se com o analista ou apreciar seu ponto de vista, da mesma forma que um feto ou um bebê recém-nascido é incapaz de sentir simpatia pela mãe. (p. 279)
Discutimos que um modo de o analista se aproximar do paciente pode ser espelhar em si o mesmo sentimento de ódio que o paciente expressa. Essa possibilidade de experimentar protossentimentos é a forma como a identificação projetiva opera. Esse foi um momento em que vivemos, em supervisão, um entendimento teórico-clínico integrado.
Supervisionando
Era necessário conseguir tolerar o sentimento de ódio contra uma pessoa que vivia de forma tão impiedosa e árida a experiência com a alteri-dade. Tratava-se de um processo duplo: não retaliar a paciente e não produzir uma dinâmica de sadismo/masoquismo. Essa possibilidade se tornou real quando se pôde reconhecer o ódio objetiva e adequadamente, como sugerido por Winnicott. Dito de outro modo, pude estar com a paciente quando entrei em contato com seus atos enquanto necessidades fundamentais. Assim, adquiri convicção a respeito de seu estado regredido a partir do atravessamento de meu próprio ódio, capaz de produzir também em mim um mundo profundamente cindido, em que estava com a paciente e, ao mesmo tempo, não estava. Passei a compreender que faz parte do manejo clínico ser capaz de odiar objetivamente, como propõe Winnicott; criar uma condição verdadeira de reconhecer e guardar de forma útil tais elementos.
Discussão
A experiência clínica descrita por vários autores no contato com pacientes de difícil acesso, como sugere Winnicott, exige muito do analista, levando ao limite a prática de tolerância à frustração e ao ódio, que só pode ser encarada pelo analista como uma forma de desenvolver sua própria plasticidade psíquica e corporal. No entanto, parece haver nesse exercício algo que nutre o paciente e que, com tempo e paciência, provoca pequenas rupturas, cria acessos e transformações na dupla e, portanto, no paciente. O que buscamos demonstrar neste trabalho relaciona-se mais com o processo de supervisão, que facilita essa plasticidade, do que com a performance do analista e do grupo de supervisão.
O cuidado da escuta numa situação de supervisão incide sobre a escuta da sessão clínica narrada por um analista que apresenta seu relato. Sabendo que esse processo é atravessado por uma diversificada gama de elementos emocionais, provenientes do contexto derivado da sala de análise, da relação entre os participantes do grupo de supervisão e da própria análise do psicanalista, ressaltamos a atenção e o cuidado com a capacidade de mobilização afetiva do membro do grupo que apresenta um relato nesse tipo de dispositivo. É necessário escutar livremente, sem a preocupação prévia de um “saber-fazer”. A transmissão do manejo clínico emerge da possibilidade de perlabora-ção do psicanalista.
Sobre os elementos trabalhados na supervisão, destacam-se as ansiedades contratransferenciais, que requerem sutileza de abordagem, a qual deve ser cuidada pelo analista que supervisiona e coordena do grupo. Entendemos que, fundamentalmente, a tarefa do grupo de supervisão não é investigar ou interpretar os sentimentos do apresentador do caso, mas ajudá-lo a identificar tais manifestações, tornando-as disponíveis para compreender a relação que se estabelece particularmente entre um analista e seu paciente. É o que Ogden descreve como ajudar o psicanalista que está apresentando um caso a continuar sonhando o que foi interrompido ou não sonhado durante o contato com o paciente. Pensamos que descobrir os afetos e as reações do psicanalista ao paciente é parte do processo, condição necessária, mas não suficiente. É preciso também que o psicanalista crie para si uma narrativa em que esses elementos tenham uma função de ampliação do campo de trabalho elaborativo.
Comparando modelos mais verticalizados ou didáticos e institucionais de supervisão com o dispositivo proposto, percebemos que as idealizações ou os receios de reprovação são elementos que podem inibir o relato livre da sessão e sua escrita, dificultando o acesso à imaginação do analista e afetando sua capacidade onírica. Propomos que o dispositivo em grupo pode ajudar nesse processo, ampliando as possibilidades discursivas. O modelo de supervisão em questão permite a circulação da palavra sobre o caso e evita cristalizações. Quanto às relações transferenciais nesse dispositivo, observamos que certa assimetria se mantém, pelas diferenças de experiência e tempo de clínica.
Destacamos a transferência fraterna estabelecida no grupo de pesquisa como uma das figurações transferenciais que facilitam a intimidade e a espontaneidade nesse espaço. Dito de outra forma, acreditamos que, através do grupo, cada analista pode instaurar um diálogo entre o investigador jovem e o jovem investigador, e entre o jovem analista em si e o analista amadurecido, por um amálgama de experiências que expandem a clinicidade de cada participante.
Assim, fazendo supervisão, nos inserimos num lugar diferente de um ideal de supervisão, marcado pela demanda e pelo desejo de uma didática explicativa ou por uma separação esquemática entre teoria e prática clínica. Trata-se de um processo de aprendizagem baseado numa dinâmica própria de autorização e reconhecimento, que visa tornar aquele analista o analista de seu paciente e, ao mesmo tempo, auxiliá-lo a reconhecer-se nesse processo.
Compreendemos o espaço de supervisão como um lugar de intimidade, confiança e respeito; um lugar em que emergem teorias oficiais e implícitas, encarnadas no relato clínico, circulando no exercício de um pensar compartilhado. Do mesmo modo que o centro de gravidade do processo de análise mudou ao longo dos anos, com ênfase nas comunicações, e não nas defesas, na dinâmica do par, e não no intrapsiquismo do paciente, gostaríamos de sugerir que isso também vem ocorrendo na supervisão: o estabelecimento de um laço e a possibilidade de compartilhar criativamente o trabalho clínico entre as posições de supervisor e supervisionando são os parâmetros que compõem um trabalho em conjunto, expressão que pode vir a substituir a noção de supervisão ainda em vigor.
Referências
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Correspondência:
Denise Salomão Goldfajn
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 1826, sala 813
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Bartholomeu de Aguiar Vieira
R. Prof. Rubião Meira, 107
05409-020 São Paulo, SP
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Recebido em 11/9/2018
Aceito em 1/10/2018
1 Trabalho apresentado no 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Fortaleza (CE), em novembro de 2017.