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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo abr./jun. 2019

 

INTERFACE

 

Psicanálise e neurociências: as pulsões e o psicossoma1

 

Psychoanalysis and neurosciences: drives and the psychosoma

 

Psicoanálisis y neurociencias: las pulsiones y el psicosoma

 

Psychanalyse et neuroscience: les pulsions et les troubles psychosomatiques

 

 

Lazslo A. Ávila

Professor livre-docente da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. Mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado pela Universidade de Cambridge, Reino Unido

Correspondência

 

 


RESUMO

São complexas e mesmo contraditórias as relações entre a psicanálise e as neurociências. O desenvolvimento dessas duas áreas do saber eventualmente as tem aproximado e muitas vezes as tem distanciado. Neste trabalho, pretendemos apresentar e discutir um modelo trazido da neuropsiquiatria, "importado" para a aplicação no campo psicanalítico, mais especificamente para a investigação da gênese dos sintomas psicossomáticos. Após essa apresentação, discutiremos algumas das implicações metapsicológicas envolvidas nessa aproximação. Para tanto, confrontaremos o modelo de Marková e Berrios com o célebre modelo do aparelho mental descrito por Freud em O ego e o id, visando reapresentar o modelo e torná-lo mais útil para a reflexão dos psicanalistas quanto às inúmeras problemáticas que cercam o dilema da relação mente-corpo, ou mente-cérebro, questão de fundo na interlocução da psicanálise com as neurociências.

Palavras-chave: psicanálise, neurociências, pulsão, psicossomática, psicossoma


ABSTRACT

The interrelationships between Psychoanalysis and Neurosciences are complex, even contradictory. In the course of their evolution, these two areas of knowledge have at times been brought together, despite having often diverged. In this article we present and discuss a model culled from neuropsychiatry and "imported" for application to the psychoanalytic field-more specifically, for investigating the genesis of psychosomatic symptoms. This is followed by a discussion of selected metapsychological implications of this approach. To this end, the model proposed by Berrios and Marková (1995) will be set against Freud's eminent model of the psychic apparatus described in The Ego and the Id (1923), so as to reintroduce the model and render it more useful, allowing psychoanalysts to reflect on the numerous issues surrounding the dilemmas of the mind-body, or mind-brain, relationship-a crucial question underlying the interlocution between Psychoanalysis and the Neurosciences.

Keywords: psychoanalysis, neurosciences, drive, psychosomatic, psychosoma


RESUMEN

Son complejas e incluso contradictorias las relaciones entre el Psicoanálisis y las Neurociencias. El desarrollo de estas dos áreas del saber eventualmente las ha aproximado y muchas veces las ha distanciado. En este trabajo pretendemos presentar y discutir un modelo traído desde la neuro-psiquiatría e "importado" para aplicación en el campo psicoanalítico, más específicamente para la investigación de la génesis de los síntomas psicosomáticos. Después de esa presentación discutiremos algunas de las implicaciones meta-psicológicas involucradas en esa aproximación. Para ello confrontaremos el modelo de Berrios & Marková (1995) con el célebre modelo del aparato psíquico descrito por Freud en "El Yo y el Ello" (1923), con el objetivo de volver a presentar el modelo y hacerlo más útil para la reflexión de los psicoanalistas frente a las innumerables problemáticas que rodean el dilema de la relación mente-cuerpo, o mente-cerebro, cuestión de fondo en la interlocución del Psicoanálisis con las Neurociencias.

Palabras clave: psicoanálisis, neurociencias, pulsión, psicosomática, psicosoma


RÉSUMÉ

Les relations entre la psychanalyse et les neurosciences sont complexes, voire contradictoires. Le développement de ces deux domaines de la connaissance les a éventuellement rapprochés et les a souvent éloignés. Dans ce travail, nous nous proposons de présenter et de discuter un modèle issu de la neuropsychiatrie et "importé" pour une application dans le champ psychanalytique, plus spécifiquement pour l'étude de la genèse des symptômes psychosomatiques. Après cette présentation, nous discuterons de certaines implications métapsychologiques impliquées dans cette approche. À cette fin, nous confronterons le modèle de Berrios & Marková (1995) avec le célèbre modèle de l'appareil psychique décrit par Freud dans Le Moi et le Ça (1923), visant à représenter le modèle et le rendre plus utile à la réflexion des psychanalystes concernant les nombreux problèmes qui entourent le dilemme de la relation corps-esprit, ou cerveau-esprit, question de fond dans l'interlocution de la psychanalyse avec les neurosciences.

Mots-clés: psychanalyse, neurosciences, pulsions, psychosomatique, psychosome


 

 

Para clareza de exposição, dividimos a primeira fase de nossa discussão nos seguintes itens: a) duas epistemologias distintas: ciências naturais vs. ciências humanas; b) corpo-organismo vs. corpo erógeno/biográfico; c) fatos vs. significados, evidências vs. interpretações; d) o cérebro e a mente: bases biológicas da consciência vs. intersubjetividade e linguagem; e) o ser humano como fenômeno único e ao mesmo tempo compósito, biológico e simbólico.

A epistemologia é a área da filosofia encarregada de investigar as formas como o conhecimento é produzido, indagando sobre suas origens e processos de verificação, e buscando fornecer os critérios pelos quais o conhecimento produzido pode ser incorporado ou refutado no conjunto complexo e articulado dos saberes, tanto sobre o homem quanto sobre a natureza. Desde René Descartes e sua célebre questão que cindiu as coisas da natureza (res extensa) das coisas produzidas pela mente humana (res cogitans), inaugurou-se a divisão entre as ciências da natureza e as ciências humanas, derivando em consequência duas epistemologias regionalizadas. Os métodos das ciências naturais são, em geral, ditos positivos, incluindo a observação, a descrição minuciosa, a classificação, a experimentação, o teste de hipóteses, a reprodutibilidade dos resultados, a construção de leis gerais que possam ser universalizadas e a permanente checagem, que permite a refutação e a reelaboração tanto das hipóteses quanto das leis que foram deduzidas. É importante salientar que não estamos falando do positivismo, corrente filosófica iniciada por Auguste Comte e que encontra críticas atuais mesmo no campo das ciências ditas duras, como a física e a química, em face das revoluções conceituais trazidas pelos desdobramentos da física de partículas. Positivo refere-se a um contraponto metodológico diante do negativo, como o método dialético e, em geral, os fenômenos socioculturais, que por definição não podem ser submetidos à experimentação ou a comprovações empíricas, como os dados físico-químicos.

Já as ciências humanas utilizam métodos próprios, uma vez que seus fenômenos costumam ser únicos e não passíveis de repetição e/ou generalização. Seu modelo fundamental é a ciência histórica, que está sempre em movimento e jamais possibilita a apreensão fixa de seus processos em permanente mutação. A sociologia, a antropologia, a etnologia e outras áreas utilizam-se amplamente da observação, mas tiveram que desenvolver uma metodologia própria, denominada observação participante, visto que o sujeito observador necessariamente se põe na cena da observação, modificando-a. A "objetividade" pretendida nas ciências naturais revela-se inalcançável e mesmo indesejável no campo das ciências humanas, no qual o sujeito e o "objeto" são ambos sujeitos. Em consequência, as ciências humanas empregam amplamente critérios "negativos", como a plena inclusão da subjetividade do pesquisador no campo de sua pesquisa e o reconhecimento do caráter singular de cada um dos fenômenos observados. As ciências humanas abrangem, além das áreas já citadas, a economia, a geografia, a linguística, a semiologia, a psicologia e a psicanálise (há discussão quanto a se essa última pode ser considerada uma ciência). A psiquiatria, por sua vez, encontra-se numa posição intermediária, já que seu objeto é híbrido (Berrios, 2011/2015), sendo considerado que os sintomas e os transtornos mentais tanto têm base natural (biológica e físico-química) quanto são determinados pela cultura e pela personalidade dos sujeitos.

Muitas outras questões ainda estão envolvidas nessa separação entre as epistemologias regionais das ciências naturais e as das ciências humanas, porém neste artigo há vários pontos a considerar, e deixaremos essa importante discussão apenas delineada. Para os leitores interessados, recomendamos a leitura do epistemólogo brasileiro Hilton Japiassú (1975) e relembramos, quanto à psicanálise, a feliz fórmula proposta pelo filósofo francês Gaston Bachelard, que a definiu como a ciência do singular.

Passemos ao segundo ponto: o que é o corpo humano? Aparentemente trata-se de um objeto material, definido por uma anatomia e uma fisiologia, aparentado aos primatas, um organismo complexo com cerca de 37 trilhões de células. No entanto, esse corpo constitui um ser biológico que, embora regido pelas leis da evolução das espécies, se particularizou por ser um animal auto-domesticado (segundo Franz Boas), que conseguiu dominar o meio ambiente em que vive e construir culturas e civilizações. Cerca de 30 mil anos atrás, a espécie Homo sapiens, surgida 200 mil anos antes, começou a desenvolver os primórdios de atividades mentais e recursos de comunicação e socialização que culminaram na invenção da linguagem, na descoberta e controle do fogo e de ferramentas, e posteriormente no cultivo agrícola e no abandono do nomadismo, criando as primeiras cidades e o início da civilização. Desde então seu desenvolvimento foi imenso, e essa espécie relativamente frágil e vulnerável passou a dominar todo o meio ambiente e a submeter as demais espécies a seu controle. Ciência, arte e tecnologia foram seus recursos tanto de expansão quanto de autotransformação. Embora continuemos com o mesmo organismo biológico de nossos antepassados de 30 mil anos atrás, temos hoje condições de vida e atividades mentais absolutamente inéditas. O que denominamos mente define hoje o ser humano de forma muito mais radical do que seu corpo, que se tornou o instrumento habitado de sua personalidade.

Para a psicanálise, o corpo é sempre um corpo biográfico, o registro da história subjetiva na carne viva. Se, como Freud (1923/1995c) afirmou com todas as letras, o ego é antes de tudo um ego corporal, então todas as nossas vivências e experiências, todo o nosso percurso e destino serão inevitavelmente vividos tanto em nossa mente como em nosso corpo. No mesmo texto de 1923, Freud propôs o ego como a projeção de uma superfície, e por isso o corpo nunca será apenas um objeto exterior, mas será tanto imagem quanto esquema corporal.

Com os desenvolvimentos de sua teoria da libido e suas formulações metapsicológicas sobre as pulsões, Freud demonstrou que o corpo pessoal de cada um de nós é um corpo essencialmente traçado pela erogeneidade, pelos investimentos libidinais. Não somente as zonas erógenas, mas todo o corpo é libidinizado e desenhado continuamente pelos percursos pulsionais. Identificações e relações de objeto tanto constroem a mente como modelam o corpo pessoal. Georg Groddeck (1992) propôs o termo vida orgânica da personalidade para salientar a indissociabilidade entre os domínios físicos e psíquicos da existência humana. Todas as emoções que vivenciamos são processadas e expressas em nosso corpo. Medo, desejo, angústia, amor são fatos psíquicos e somáticos, sempre e inevitavelmente. Retomaremos e aprofundaremos esses pontos quando discutirmos a psicossomática psicanalítica.

Passemos ao terceiro ponto de nossa argumentação: fatos vs. significados, evidências vs. interpretações. As ciências positivas, empíricas e experimentais, apoiam-se fortemente na produção de "fatos", tomados como dados objetivos e "reais". Consideram que a realidade "existe", independentemente de teorias e da presença e atitude do observador, e que a ciência progride na medida em que apreende, domina e reproduz esses "fatos", podendo inclusive predizê-los. Com efeito, essa ciência produziu incontáveis maravilhas, que não é necessário enumerar. Todavia, o que muitas vezes não se reconhece é que qualquer conhecimento humano é produto de uma atividade intelectual que não nasce do "olhar nu", da pura percepção da realidade, mas decorre sempre de uma teoria prévia, de um conjunto de significações que acolhe, registra, nomeia e dá sentido àquele "fato". Há sempre uma teoria anterior a uma observação. Um dado novo pode modificar uma teoria, mas algo só se torna um "dado", ou "fato", ou "evento" ao ser acolhido por uma mente que já tem meios prévios de significação.

A medicina hodierna sustenta-se no forte recurso das investigações físico-químicas e no emprego de sofisticadas ferramentas estatísticas. Seus modelos biológicos e seu instrumental tecnológico produzem descobertas capitais para o cuidado da saúde humana. Contudo, ao optar pelas ciências naturais em prejuízo das ciências humanas, adotou cegamente o modelo científico plenamente válido para a observação dos fatos naturais, mas não dos acontecimentos humanos. Assim, métodos e técnicas utilizados pelas neurociências, em busca da mesma legitimidade das chamadas ciências duras, lutam por produzir "evidências", que seriam fatos incontestáveis, indiscutíveis, reproduzíveis e previsíveis. E alcançam alguns resultados, dada a natureza de nosso organismo, ser vivo regido em grande parte pelos mesmos determinantes naturais que controlam a vida de qualquer espécie.

E no entanto eppur si muove: o ser humano não é só organismo; vamos além da biologia; somos biografia, história viva e singularizada. Certamente a medicina pode produzir muitos conhecimentos e desenvolver tratamentos e medicamentos com base nos experimentos e modelos animais. Não há mais nenhuma dúvida, após todas as descobertas dos últimos anos no âmbito da pesquisa genética, de que todo o nosso organismo é fundamentalmente idêntico ao dos primatas superiores, e que compartilhamos com todos os mamíferos uma extraordinária semelhança macroscópica, nos órgãos, nos tecidos, e microscópica, no nível das enzimas, das proteínas e dos mecanismos celulares. É existencialmente, porém, que o homem se diferencia de maneira essencial desses seus parentes biológicos. Podemos desvendar em detalhes os mecanismos fisiológicos, mas isso diz muito pouco sobre como o ser humano vive sua vida. É aí que reside toda a diferença: nossa mente, nossos sistemas simbólicos, a língua e a cultura. É esse universo simbólico que nos habita e que habitamos. E é dele que provêm as significações, que convertem os "fatos", supostamente objetivos, sempre em fatos pessoais, inevitavelmente subjetivos. Portanto, as ciências psi se baseiam em significações e interpretações, e delas extraem seus conhecimentos.

Com isso, adentramos nosso próximo ponto de argumentação, ou seja, como abordar as relações do cérebro com a mente, como articular as bases biológicas da consciência com as questões da intersubjetividade e da linguagem simbólica. Os grandes pensadores da neurociência contemporânea, como Eric Kandel, António Damásio, Mark Solms e Jaak Panksepp, vêm produzindo instigantes pesquisas e reflexões sobre o funcionamento cerebral e suas interações com diversificadas produções mentais. Sem dúvida, as próximas décadas trarão grandes insights sobre o que hoje é ainda obscuro e misterioso. De nossa parte, o que queremos ressaltar é que cérebro e mente não são apenas objetos distintos, mas são abordados por ciências distintas, com epistemolo-gias incomensuráveis.

Os conhecimentos advindos dos métodos das ciências naturais não podem ser aplicados diretamente aos fenômenos psíquicos. A mente exige uma abordagem própria, e foi isso que levou ao desenvolvimento das ciências humanas. Será com um método híbrido, uma ciência "mestiça", ou pelo menos com equipes multidisciplinares, baseadas no pensamento complexo (Morin, 2005) e numa perspectiva transdisciplinar, que se poderá abordar adequadamente essa enigmática interação e produção recíproca entre o cérebro e a mente.

A neurociência tem sido vista, geralmente, como uma ciência interdisciplinar, orientada para a medicina, mas que se utiliza dos conhecimentos e técnicas de inúmeras áreas do conhecimento, como a filosofia, a matemática, a bioquímica, a ciência da computação, a antropologia e a linguística (Kandel, Schwartz & Jessell, 1997). Observa-se a complexidade desse campo, área de intersecção de tantos saberes. A contribuição da psicanálise às neurociências vem se materializando através da Associação Internacional de Neuropsicanálise, fundada por Mark Solms (2005), e de outros trabalhos desenvolvidos por psicanalistas e psicólogos. O desafio enfrentado por todos esses profissionais é manter a especificidade de suas respectivas disciplinas e, ao mesmo tempo, ajudar a estruturar um campo que já nasce marcado como local de entrecru-zamento e interação.

Concordo com o que afirmam Winograd, Sollero-de-Campos e Landeira-Fernandez:

Desse modo, embora existam compatibilidades históricas entre psicanálise e neurociências, diferenças epistemológicas atuais relativamente à forma de produção de conhecimento podem ser fonte de resistências aos esforços atualmente renovados de colaboração. Assim, a primeira e mais importante condição para um encontro frutífero entre essas áreas de conhecimento consiste num respeito mútuo. Qualquer dessimetria resultante de imposições de um saber sobre o outro pode resultar numa implosão da interlocução, impossibilitando qualquer processo de colaboração. O que se espera, de fato, é que essas formas de compreender a natureza da mente humana possam convergir. (2007, p. 30)

Chegamos, agora, ao último ponto de nossa introdução: o ser humano como fenômeno único e ao mesmo tempo compósito, biológico e simbólico. Cremos já ter pavimentado o caminho para essa afirmação. É impossível dissociar no homem sua natureza corporal biológica, sintetizada na ideia do organismo, bem como em sua inscrição como membro sapiens, ramo dos primatas superiores da classe Mammalia, de sua igualmente inerente condição de ser habitante da linguagem, ser de cultura, movido e regido pela ordem simbólica, por ele mesmo criada.

Assim, para pensar essa criatura híbrida, "anfíbia" (já que vive em dois reinos), que é o ser humano, necessitamos de saberes também híbridos. O presente estudo é uma contribuição para essa interlocução. Apresentaremos um modelo provindo da neuropsiquiatria, aplicado à compreensão da origem dos sintomas psicossomáticos, e em seguida estudaremos suas implicações metapsicológicas, articulando-o com o modelo da segunda tópica freudiana.

Antes, porém, faz-se necessária uma sumária descrição das múltiplas contribuições nascidas da psicanálise que configuraram um campo novo extremamente fértil: a psicossomática. A psicossomática psicanalítica, distinta da medicina psicossomática (Ávila, 2002), adota plenamente o modelo clínico e os conceitos fundamentais da psicanálise, sendo uma aplicação ou uma implicação desta. Transferência, contratransferência, inconsciente, pulsão e todos os demais constructos elaborados ao longo da história do movimento psicanalítico são reconhecidos e empregados em sua teorização e em sua prática. Quanto a essa última, é fato que muitas vezes o setting não é o tradicional, mas frequentemente o hospital, o ambulatório e outros contextos de saúde. Isso, porém, não implica o abandono do método próprio à psicanálise, ou seja, o método de escuta e interpretação/construção.

Considera-se como o pai da psicossomática psicanalítica o médico Georg Groddeck (1866-1934), que foi aceito entusiasticamente por Freud em 1917 e tornou-se membro da Associação Psicanalítica de Berlim, onde conviveu com Franz Alexander, Melanie Klein, Michael Balint e outros (Ávila, 2003; Grossman & Grossman, 1967). Groddeck foi íntimo amigo de Sándor Ferenczi e chegou a tratá-lo em seu sanatório em Baden-Baden. Após os trabalhos pioneiros de Groddeck, a psicossomática ressurge fortemente na década de 1950, com diversos trabalhos significativos, como os de Glover (1949), Alexander (1950), Garma (1954), Balint (1957/1975), Perestrello (1958, 1987) e Sperling (1958/1978). Ao final dessa década, a partir do trabalho seminal de Pierre Marty e colaboradores (1962/1994, 1990), vai se constituir a Escola Psicossomática de Paris, da qual resultam até hoje inúmeros trabalhos relevantes, inclusive no Brasil. Em abordagens distintas, Donald Winnicott (1956/2000, 1982), Wilfred Bion (1961/1991, 1967/1982), Serge Leclaire (1979), Jean Laplanche (1981), Françoise Dolto (1984/1988) e Didier Anzieu (1985/1988) produziram textos importantes sobre o significado do corpo para a psicanálise, ao longo das décadas seguintes.

Vários autores contribuem de modo significativo para a atual psicossomática psicanalítica. A lista é bastante extensa, e deixaremos de fora diversos trabalhos, inclusive muitos brasileiros. Devem ser incluídos como representativos: Roger Wartel (1987/1990), Christophe Dejours (1989), Marilia Aisenstein (1994), Juan-David Nasio (2006/2008, 2008/2009), e talvez com maior projeção Joyce McDougall (1987, 1989/1991), além de Wilfred Bion, de quem retomaremos alguns conceitos.

Partimos aqui, da perspectiva da psicossomática psicanalítica, em busca de um modelo adequado para a representação da gênese dos fenômenos psicossomáticos, questão que atravessa muitas das obras citadas, e com esse fim recorreremos a um esquema nascido das investigações da Escola de Psicopatologia de Cambridge, Reino Unido.

 

O modelo de Cambridge para a formação dos sintomas mentais e sua adaptação para a psicossomática

Em 1995, Germán E. Berrios, neuropsiquiatra, historiador e epistemó-logo da psiquiatria, apresentou o primeiro traçado de seu modelo para demonstrar a heterogeneidade de formação dos sintomas mentais (Marková & Berrios, 1995), tema aprofundado e desenvolvido em inúmeros trabalhos posteriores, desse autor e de pesquisadores associados na Escola de Psicopatologia de Cambridge.

O modelo consiste essencialmente em cinco passos de formação do sintoma, desde sua origem como sinal cerebral até sua expressão concreta como ato de fala, quando o sintoma passa a ser objeto de negociação e intercâmbio com o clínico, encarregado de ouvi-lo, compreendê-lo e tratá-lo ou encaminhá-lo. O modelo permite ao clínico reconhecer as etapas de formação e diferenciar os sintomas com clara determinação biológica de outros sintomas que seriam suas "fenocópias".

Como membro dessa escola, minha tarefa no grupo de trabalho denominado O Insight e o Monitoramento das Funções Corporais e Mentais foi aproximar o modelo dos constructos psicanalíticos, a fim de propiciar sua "importação" e aplicação para o entendimento da gênese dos sintomas psicossomáticos (Ávila, 2004, 2005, 2012, 2016). A forma gráfica do modelo é apresentada a seguir:

 

 

Fazendo a adaptação do modelo de Cambridge para a compreensão do sintoma psicossomático, que apresentamos de forma extensa num artigo publicado em 2016 na revista Ide, seguem estas proposições:

• A via usual para a formação de um sintoma consiste numa via de "construção" (via C), que parte do sinal cerebral, atravessa a barreira da consciência, é "formatada" na sopa primordial (local de inscrição das experiências subjetivas e dos modelos culturais) e então recebe um nome e uma conceituação, que podem ser reconhecidos e tratados pelo clínico.

• Um caminho disfuncional é quando um sinal cerebral contorna toda essa sequência de formação e emerge diretamente na vida e no discurso do paciente. Então, a tarefa do clínico é auxiliar para que esse sintoma sem representação, que seguiu a via (b), possa vir a se desenvolver como um sintoma representável, através de conceitos que venham a funcionar como constructos primários, de modo que o paciente seja capaz de elaborar seus próprios constructos secundários e terciários e alcançar uma nova produção de sintoma.

• Por essa abordagem, portanto, trata-se de alcançar uma substituição sintomática: em vez de um sintoma "mudo", incapaz de consciência e de nomeação, buscamos fazer emergir um sintoma verbal e representável conceitualmente, passível de reconceituações.

• Assim, um sintoma antes processado de forma inconsciente e sem representação conceitual passa a ganhar uma forma verbal, articulável com as outras cadeias de representação do sujeito. Uma vez traduzido e nomeado na esfera psíquica, o sintoma é liberado de suas características psicossomáticas, suprimindo sua transcrição corporal e tornando-se apto para a elaboração psíquica.

• O paciente tanto pode vir a elaborar um novo conceito por meio da via C(c1), com o recurso de elementos da sopa primordial, quanto, no diálogo terapêutico, por meio da via C(c2) e dos constructos que clínico e paciente conjuntamente venham a produzir.

• Tais novos elementos se articulam para a nova via de formação sintomática, na qual, em vez de um sintoma psicossomático inconsciente, produz-se um sintoma conceitualizável e transformável, apto para a ação terapêutica.

Analisaremos em maior profundidade esses pontos adiante, mas talvez essa formulação sucinta já permita ao leitor perceber a riqueza de associações que um modelo originalmente concebido no campo da neuropsiquiatria pode trazer para iluminar aspectos da prática psicanalítica, quando diante da produção de sintomas psicossomáticos de um paciente, especialmente se esse paciente já tiver sido devidamente diagnosticado e tratado por médicos clínicos sem ter obtido resolução para seus sintomas - ou porque a etiologia de seu quadro já apresentava comprometimentos emocionais, ou porque o curso de seus sintomas se havia cronificado, ou porque o desfecho de seus tratamentos não havia trazido alívio do sofrimento, ou simplesmente porque o "paciente" quis se fazer sujeito de seus próprios sintomas. Em todos esses casos, uma psicanálise é indicada.

Agora nos cabe ampliar essa discussão. O que podemos inferir sobre a metapsicologia dos sintomas se, mais além de apenas designá-los como psicossomáticos, buscarmos aproximá-los do modelo de aparelho psíquico que Freud nos legou? Isso poderia representar uma contribuição ao entendimento da natureza das pulsões ao articulá-las com os processos de constituição do psicossoma.

Para tanto, retomemos o modelo proposto por Freud em 1923. Recordando que o próprio criador da psicanálise havia sugerido que seu modelo lembrava a estrutura de um olho, vamos fazer uma rotação de 90 graus (o que torna o gráfico ainda mais semelhante a um olho) e aplicar sobre o modelo da segunda tópica o modelo de Cambridge para a formação dos sintomas. Teremos então:

 

 

Ao compor dessa forma os dois modelos, observamos uma série de possibilidades de mútua fertilização e esclarecimento recíproco. Visando uma discussão sistemática, devemos iniciar pelo lado direito desse diagrama, ou seja, o que no modelo de Cambridge corresponde ao diálogo entre o clínico e o paciente (estágio 5) - ambos lidando com as diferentes expressões que os sintomas apresentam já enquanto atos de fala - e no modelo freudiano corresponde ao exterior do aparelho psíquico, na área de contato da consciência com a realidade (Pcp-Cs).

É esse o espaço em que decorre a análise, ou a consulta clínica de modo geral. É a comunicação consciente entre os dois sujeitos, um deles encarregado principalmente de narrar seus estados psíquicos, o outro encarregado principalmente de escutar, mas uma escuta ativa, que compreende e interpreta.

Ambos estão situados no campo semântico da língua (e da cultura) que compartilham e ambos estão produzindo continuamente uma variante desse campo semântico, que são os significados que eles vão construindo sobre seu relacionamento interpessoal.

Para a psicanálise, esse é o espaço da transferência e da contratransferência. Para o modelo de Cambridge, esse é o espaço em que os sintomas recebem sua formatação final, pois o clínico e o paciente negociam o modo e a forma como as expressões psíquicas do paciente serão reconhecidas, classificadas, diagnosticadas e tratadas. Combinando ambos os modelos, temos que é nesse encontro dos dois sujeitos que se darão as possibilidades de o processo funcionar enquanto comunicação adequada, compreensão profunda dos sentidos intercambiados e instrumento essencial para a mudança psíquica.

Passemos para o segundo momento, ou espaço topográfico, dos dois modelos. No modelo de Cambridge, é o segmento em que se elaboram os conceitos (estágio 4); no modelo freudiano, é o espaço do ego, local do funcionamento dos sistemas Cs e Pcs. Observe-se primeiro que, nessa área de contato do aparelho psíquico com a realidade externa, Freud anotou Pcs e ao mesmo tempo desenhou a calota acústica - segundo ele, essencial para os registros mnêmicos que darão forma às representações-palavra.

Numa psicanálise, o sujeito se põe em livre associação, buscando relatar tudo o que lhe passa pela mente, e junto com o analista vai encontrando as barreiras que se erguem na forma de resistências e que devem ser superadas pelo trabalho analítico. O analista se utilizará das ferramentas conceituais das teorias psicanalíticas, assim como da transferência, para construir interpretações que possibilitem ao sujeito em análise tanto entender seu próprio funcionamento psíquico quanto mobilizar as transformações necessárias para superar suas inibições e compreender o sentido de seus sintomas.

Com o modelo de Cambridge, formularíamos esse processo da seguinte maneira: o sujeito recebeu do interior de sua mente determinado material que pode ter atravessado ou não a área da sopa primordial (local em que estão situados os "moldes" pessoais e culturais). Se esse material contornou a sopa primordial, supomos que se descarregou diretamente na consciência e no corpo como sintoma psicossomático. Se ele passou pela sopa primordial, nela recebeu condições de formatação, com base nas experiências pessoais do sujeito, para se materializar enquanto conceito (em língua portuguesa, talvez possamos melhor designar isso como ideia e, na psicanálise, como representação). O que é esse conceito? Trata-se de algo que pode ser apreendido enquanto experiência nomeável; uma percepção, um pensamento ou um sentimento que tem um nome, uma tradução, uma representação compartilhável socialmente; algo semelhante ao que é conhecido na psicologia social como representações sociais (Moscovici, 2003). Trata-se, portanto, daquilo que permite que uma vivência subjetiva possa ser nomeada e apreendida pelo sujeito, e então comunicada.

O que é interessante ao articular os dois modelos é comparar o trabalho analítico com os dois passos denominados C(c1) e C(c2), que se relacionam com o trajeto mais normal e mais direto que é o C(a). O primeiro é um processo que retorna à sopa primordial para depois tornar-se ato de fala. O segundo é um caminho de construção secundária, em que de um conceito produz-se um novo conceito. Analiticamente considerado, esse processo caracteriza duas formas distintas de interpretação, realizadas pelo analista e pelo analisando.

O passo C(c1) ocorre numa análise quando é necessário um mergulho na história de vida e nos sedimentos mais profundos das inscrições psíquicas das experiências, tanto do analista quanto do analisando, para que determinada experiência emocional possa ser ressignificada. O analisando descreve ao analista uma vivência sua. Essa vivência tem um sentido, pois foi formatada na sopa primordial. No entanto, esse sentido, ou conceito, precisa ser desconstruído e ressituado, ganhando novas conotações e significações. Para tanto, analista e analisando recorrem a seus respectivos recursos internos (suas sopas primordiais) e numa negociação reelaboram o sentido para aquela particular experiência ou vivência.

Por sua vez, o passo C(c2) se assemelha ao que Freud (1937/1995b) denominou construções em análise. Muitas vezes o analista, embora consciente do caráter artificial de sua construção, necessita criar uma narrativa coerente que permita ao analisando, como se fora uma prótese, encontrar os elementos faltantes que darão inteligibilidade a uma vivência. Para fazê-lo, o analista recorre aos próprios elementos narrativos do analisando, porém "acrescenta" algo por sua conta. Esse novo elemento é o que dará a ambos condições de manejo para o que está acontecendo na sessão analítica, permitindo que um sentido seja elaborado no encontro transferencial.

Vamos agora buscar relacionar o terceiro momento, na área topográfica em que no modelo de Cambridge se situam a sopa primordial e o tempo da formação do conceito (estágio 3) e em que no gráfico freudiano se encontra o ego. Ressalte-se que Freud afirmava que o ego tem uma área inconsciente, e que nessa porção do aparato é que se encontra a maior parte das funções psíquicas: memória, desejos, fantasias, projetos. É também aí que Freud põe de uma forma curiosamente transversal a barreira da repressão.

Podemos comparar ambos os modelos estabelecendo algumas linhas de junção/disjunção entre as concepções de base na abordagem neuropsiquiátrica e a compreensão psicanalítica dos fenômenos mentais. O modelo de Cambridge não lida com (nem supõe) o funcionamento inconsciente no sentido freudiano, embora os avanços das neurociências não deixem nenhuma dúvida de que a maior parte dos funcionamentos cerebrais se dê de forma não consciente. Consideramos que aquilo que a Escola de Psicopatologia de Cambridge denomina sopa primordial pode ser descrito como processos mentais de elaboração (formatação) que fazem com que mensagens provenientes do cérebro e que sejam conscientizadas ganhem nesse espaço da sopa a forma concreta de um conteúdo pensável, percebido internamente e representado por um nome. Em linguagem freudiana, acredito que esse nome corresponde à noção de representação-palavra, transformação da representação-coisa provinda do inconsciente, que confrontada aos restos mnêmicos de palavras pode aceder à consciência, tornando-se conteúdo psíquico, passível de articulação com as outras cadeias de associação.

Os processos mentais ganham representação e podem ser conduzidos à ação (verbal ou motora) desde que o sujeito se aproprie do que eles significam, tanto para si mesmo como para os demais. É dessa maneira que a proposta da sopa primordial pode enriquecer a compreensão dos processos representacionais, psicanaliticamente considerados. Vivências subjetivas representadas tornam-se comunicáveis, ainda que assumam forma sintomática. É com base nessas vivências comunicáveis, acrescidas dos elementos afetivos, que uma consulta terapêutica pode se estabelecer e uma análise transcorrer.

Resta, contudo, entender a repressão, critério fundamental da psicanálise para que uma ideia seja impedida de ter acesso à consciência, ou seja, para que uma parte substancial do sistema inconsciente se constitua. A sopa primordial é composta de moldes pessoais e culturais, e podemos supor que nela também estejam contidas as regras, restrições e injunções que existem diluídas na cultura de que o sujeito participa, as quais, acrescidas daquelas regras e proibições pessoais advindas da formação singular do complexo de Édipo e do desenvolvimento da personalidade de cada sujeito, estabelecem o que deve ser reprimido e excluído da consciência, gerando conteúdos e processos inconscientes, motriz da formação de sintomas.

Dessa forma, complementamos a concepção da sopa primordial dividindo seus conteúdos em dois tipos: um feito de material disponível, moldes acessíveis e configurados no contexto familiar e cultural de determinado sujeito, e outro feito de material que, quando está sendo formatado, encontra injunções proibitivas, que o retiram do caminho usual (via C do modelo de Cambridge) e fazem com que permaneça inconsciente e em estado disperso, preconceituado, como uma experiência subjetiva que pode liberar sua carga afetiva, mas que não pode ser reconhecida conscientemente, ou seja, que permanece reprimida.

Passemos para o estágio 2, que corresponde à barreira da consciência. Nos termos da segunda tópica, estaria situado no ego, possivelmente na fronteira do consciente com o inconsciente. Creio que podemos compará-lo ao que Freud denominava escudo de para-excitações e ao que Bion denominava barreira de contato. Tratar-se-ia então de um anteparo que permite ao psiquismo não ser inundado de energia e conteúdos que ultrapassem sua capacidade de contenção, pondo-o em perigo. Para o modelo de Cambridge, essa barreira funciona principalmente para separar conteúdos que se transformam em sintomas daqueles que permanecem no interior da mente sem tradução exterior, ou daqueles que se descarregam enquanto sintomas psicossomáticos. Existiriam processos internos que nunca emergiriam como pensamentos, sentimentos, sintomas neuróticos, psicóticos ou psicossomáticos. Seriam perturbações internas, vivências sem nome e sem sentido, cuja expressão mais frequente, enquanto sintoma, seria a angústia.

Abordemos agora o estágio 1, em que no modelo de Cambridge se encontra o próprio cérebro, ou seja, o órgão central do sistema nervoso, que comanda todos os processos corporais, em maior ou menor grau. No diagrama da segunda tópica, aí se encontra o id, território das pulsões. Combinados os dois modelos, podemos supor que a definição freudiana da pulsão como entidade situada entre o psíquico e o somático, ou como a medida da exigência de trabalho imposta ao psiquismo devido às necessidades do corpo, seja articulável com a ideia do cérebro como o encarregado de manifestar e processar as demandas somáticas e convertê-las em produtos mentais e ações motoras, além das funções fisiológicas e metabólicas.

Ao cérebro cabe o controle e a liberação de hormônios, a regulação das funções vegetativas, o controle da motricidade, as manifestações da vida emocional como um todo e as atividades superiores do pensamento, da memória e da criatividade. É ele o órgão encarregado de mediar as demandas internas do organismo com a sobrevivência no ambiente externo. Freud concebeu as pulsões como expressões do biológico que só ganham acesso à consciência e possibilidade de satisfação ao se apresentarem na forma de representantes pulsionais. Esses representantes, de início representantes-coisa e depois representantes-palavra, são o caminho para a possibilidade da descarga pulsional e, na combinação com objetos libidinais, são o modo de alcançar a satisfação pulsional.

Bion trouxe uma importante contribuição ao entendimento da mente ao supor a existência dos pré-pensamentos e do sistema protomental. Ele escreveu: "Uma vez que é um nível em que o físico e o mental são indiferenciados, é razoável supor que, quando a aflição dessa fonte aparece, ela pode ser expressa tanto de formas físicas como de formas psicológicas" (1961/1991, p. 91).

Essa formulação, em nosso entender, permite pensar a utilidade do modelo de Cambridge para os psicanalistas compreenderem melhor os caminhos que as representações podem percorrer no interior do aparelho psíquico, e especialmente figurarem por que determinadas vivências subjetivas não podem ser adequadamente representadas na forma de palavras, convertendo-se antes em sintomas psicossomáticos.

É possível dizer que pensamentos e sentimentos provêm de sinais cerebrais (modelo de Cambridge), ou representantes das pulsões (Freud), que são formatados na sopa primordial e ganham representantes-palavra, ou conceitos, os quais vão permitir a expressão concreta dos atos de fala, ou comportamentos exteriorizados. Esses são os conteúdos habituais que aparecem nos relatos dos analisandos e dos pacientes clínicos dos médicos. Mas às vezes os sujeitos descrevem seus sintomas como corporais, ou psicossomáticos. Então, é preciso encontrar formas de retroceder ao plano psíquico, através das associações do sujeito e do mergulho nas sopas primordiais para buscar construir pensamentos que "digam" as vivências inominadas que causam sofrimento.

O sujeito recebe como sinal cerebral uma "informação", vivenciada subjetivamente. É possível que essa experiência não se caracterize nem como impressão sensorial, nem como sentimento, muito menos como pensamento. Se entendermos, porém, que ela é um pré-pensamento, poderemos dar-lhe um estatuto de reconhecimento, que a habilite a ser pensada e comunicada. Psicanaliticamente, isso significa que partimos da representação-coisa para a representação-palavra e daí para a elaboração e transformação psíquica. O sujeito que seguisse a via (b) do modelo de Cambridge teria caracteristicamente limitações em sua capacidade de simbolização. Através da análise, especialmente seguindo as vias C(c1) e C(c2), se buscaria "construir" para o paciente categorias de representação de suas vivências internas, e isso, se conseguido, liberaria o sujeito dos sintomas psicossomáticos.

Segundo Bion, se uma experiência emocional não pode ser elaborada, permanecendo em estado bruto de pensamentos beta, ela pode ou ser projetada para fora, no próprio meio cultural (acting out ou suposto básico), para que este tente lhe dar um formato compartilhável e compreensível, ou ser lançada dentro (sintoma psicossomático), para que o corpo dê conta dessa experiência incompreensível e não simbolizada.

Pensamos que a "importação" do modelo de Cambridge de formação de sintomas para a compreensão psicanalítica permite uma melhor apreensão dos complexos mecanismos das representações psíquicas e, ao mesmo tempo, ajuda a esclarecer aspectos significativos do psicossoma, ao descrever a gênese dos sintomas psicossomáticos. As pulsões nascem do id, num estado indiferenciado corpo-mente, somático-psíquico, e é investigando seus percursos e vicissitudes, como feito por Freud (1915/1995a) em sua metapsicologia, que poderemos prosseguir na busca pelo entendimento do que é a mente humana e de como ela se relaciona com o corpo humano na produção desse fenômeno único e compósito que é o ser humano.

 

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Correspondência:
Lazslo A. Ávila
Avenida Anísio Haddad, 8205, bloco 4, ap. 34
15093-745 São José do Rio Preto, SP
lazslo@terra.com.br

Recebido em 5/3/2018
Aceito em 25/4/2019

 

 

1 Trabalho apresentado na mesa-redonda "Psicanálise, psiquiatria e neurociências", no XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Fortaleza (CE), em 4 de novembro de 2017.

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