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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo abr./jun. 2019

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Thomas Sydenham e o Epistolary discourse: uma ponte entre duas histerias

 

Thomas Sydenham and the Epistolary discourse: a bridge between two hysterias

 

Thomas Sydenham y el Epistolary discourse: un puente entre dos histerias

 

Thomas Sydenham et le Epistolary discourse: un pont entre deux hystéries

 

 

Eder Schmidt

Professor associado nas disciplinas psicologia médica e psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora

Correspondência

 

 


RESUMO

Uma observação das narrativas sobre a história da histeria revela que nem sempre aqueles que as elaboraram levaram em consideração o aspecto fundamentalmente historiográfico da proposta, tomando inferências como se fossem fatos históricos. Esse deslize originou narrativas que não deveriam ser classificadas como história, mas, mais apropriadamente, como mitologias. Com frequência, a trajetória da histeria começa na medicina egípcia, segue em um continuum por Hipócrates, pelas bruxas da Idade Média, pelos vapores do Iluminismo, até chegar à Salpêtrière, a Charcot e, em seguida, a Freud. Porém, do ponto de vista historio-gráfico (e evitando o anacronismo), esse curso pode não ser tão seguro. O artigo revê essa trajetória e propõe que a história da histeria implicaria dois estágios, separando-se a histeria doença do útero da histeria neurose. Uma ponte entre as duas concepções teria sido estabelecida por Thomas Sydenham, em 1682, no Epistolary discourse to the learned Dr. William Cole.

Palavras-chave: história da histeria, Thomas Sydenham, teorias uterinas, caráter histérico


ABSTRACT

Analysis of the narratives on the history of hysteria reveals that those who elaborated them did not always take into account the fundamentally historiographical aspect of that proposal, and some inferences were considered as historical facts. This error gave rise to narratives that should not be classified as histories, but rather as mythologies. All too often, the historical trail of hysteria is taken to begin in Egyptian medicine, and then follow a continuum: to Hippocrates, the witches of the Middle Ages, the Enlightenment, the Salpêtrière, Charcot, and then Freud. However, from a historiographical point of view (and avoiding anachronism), this appears not to be the reliable sequence. This paper reviews that trajectory and proposes that a history of hysteria would unfold in two stages, distinguishing hysteria, as a disease of the uterus, from hysteria, as a neurosis. In such a proposal, a bridge between the two conceptions would have been established by Thomas Sydenham in 1682, with the Epistolary Discourse to the Learned Dr. William Cole.

Keywords: history of hysteria, Thomas Sydenham, uterine theories, hysterical character


RESUMEN

La observación de los relatos sobre la historia de la histeria revela que quienes los elaboraron, no siempre han tenido en cuenta el aspecto fundamentalmente historiográfico de la propuesta, tomando inferencias como hechos históricos. Este desliz dio lugar a narraciones que no deberían clasificarse como historia, sino como mitologías. El trayecto histórico de la histeria comienza a menudo en la medicina egipcia, sigue en un continuum por Hipócrates, las brujas de la Edad Media, los vapores del Iluminismo, hasta llegar a Salpêtrière, Charcot y luego Freud. Sin embargo, desde un punto de vista historiográfico, y evitando el anacronismo, este camino puede no ser tan seguro. En este artículo se revisa esta trayectoria y se propone que la historia de la histeria involucraría dos etapas, separando la histeria, enfermedad del útero, de la histeria, una neurosis. Un puente entre las dos concepciones habría sido establecido por Thomas Sydenham, en 1682, en el Epistolary Discourse to the Learned Dr. William Cole.

Palabras clave: historia de la histeria, Thomas Sydenham, teorías uterinas, carácter histérico


RÉSUMÉ

L'observation des récits sur l'histoire de l'hystérie révèle que ceux qui les ont élaborés n'ont pas toujours pris en compte l'aspect fondamentalement historiographique de la proposition, en prenant certaines inférences comme s'elles étaient des faits historiques. Cette omission a donné lieu à des récits qui ne devraient pas être considérés comme de l'histoire, mais plutôt comme des mythologies. Le chemin historique de l'hystérie commence souvent dans la médecine égyptienne, suit un continuum à travers Hippocrate, les sorcières du Moyen Age, les vapeurs de l'Illuminisme, la Salpêtrière, Charcot et, ensuite, Freud. Cependant, d'un point de vue historiographique (et en évitant l'anachronisme), cette voie pourrait ne pas être si sûre. L'article reformule cette trajectoire et propose que l'histoire de l'hystérie se déroule en deux étapes, en séparant l'hystérie, la maladie de l'utérus, de l'hystérie que l'on appelle la névrose. Un pont entre les deux conceptions aurait été établi par Thomas Sydenham, en 1682, dans le Epistolary Discourse to the Learned Dr. William Cole.

Mots-clés: histoire de l'hystérie, Thomas Sydenham, théories utérines, caractère hystérique


 

 

A segunda metade do século XX viu surgir um número expressivo de publicações dedicadas à história das doenças mentais, escritas, na maioria dos casos, não por historiadores, mas por psiquiatras. No entanto, na opinião de George Mora (1970), eram textos que pecavam pela falta de rigor historiográfico, transformando-se em instrumentos para a glorificação de um ou de outro personagem célebre, transformado, através de uma narrativa tendenciosa, em avalista histórico das tendências ou dos pontos de vista daqueles que contavam a história. Anos mais tarde, Micale e Porter (1994) viriam a advertir quanto ao que chamaram de usable pasts.

Em um artigo clássico, Quentin Skinner (1969) alertou sobre o risco de escrever a história das ideias de uma perspectiva puramente textualista, desconsiderando o universo de autores e as reais questões que os teriam levado a focalizar um tema ou outro. Essa estratégia daria origem a abordagens cujos resultados não deveriam ser classificados como história, mas, mais apropriadamente, como mitologias.

São advertências que devem ser levadas em conta quando pretendemos traçar uma história da histeria, algo que nos dá, como psicanalistas, tanto prazer. Afinal de contas, a histeria foi o ponto de partida para a própria psicanálise, e foi atendendo pacientes histéricas que Freud inferiu as leis do funcionamento psíquico. Talvez essa inegável importância tenha permitido certa negligência historiográfica por parte de alguns daqueles que se debruçaram sobre sua história, levando-os a identificar a neurose histérica em documentos em que a leitura deveria ter sido outra.

Sem presentismos ou outras formas de anacronismo, desde quando é possível conceituar a histeria em consonância com a visão atual médico-psicológica e com o imaginário social contemporâneo? Afinal, trata-se de um termo que, inegavelmente, ultrapassa o discurso da prática - um termo que, a despeito de sua recusa por parte dos manuais classificatórios em saúde mental, ainda não perdeu sua capacidade de qualificar ou desqualificar as pessoas.

Portanto, qual seria o tratamento mais adequado a uma história da neurose histérica? Seria possível seguir o conhecimento da doença em um continuum no qual, a partir de equívocos derivados de um conhecimento rudimentar, imbuído de falsas crenças, atingir-se-ia uma visão culta, realista e definitivamente esclarecedora de seus meandros? Não é o que parece.

Observando-se propostas para uma história da histeria, percebe-se que o caminho mais trilhado começa na medicina egípcia, segue por Hipócrates, pelas bruxas da Idade Média, pelos vapores do Iluminismo, até chegar à Salpêtrière, a Charcot e, em seguida, a Freud. No entanto, do ponto de vista historiográfico, esse curso pode não ser tão seguro. Há um risco, como adverte Butterfield (1965, p. 5), de realizar uma leitura presentista da história, categorizando personagens e instituições como "os amigos e os inimigos do progresso". Além disso, não podemos dizer que, ao longo de toda essa trajetória, estaríamos abordando uma mesma ocorrência. Afinal, houve períodos em que a palavra histeria não era a única a ser usada (ou nem mesmo era usada) para designar a grande articulação imaginária comumente escolhida para guiar essa história.

O que sugerimos neste artigo é que seria mais apropriado abordar a história da histeria em dois estágios: um sobre a histeria enquanto doença do útero, quadro clínico afirmado até há não muito tempo, e o outro sobre algo totalmente diferente, a neurose histérica, ocorrência que já incluiria uma dimensão "psicológica". Nesse sentido, teria sido o médico inglês Thomas Sydenham (1624-1689), no Epistolary discourse to the learned Dr. William Cole,1 uma carta dirigida a um colega que pedia esclarecimentos sobre varíola e histeria, publicada em 1682, quem estabeleceu uma ponte entre essas duas concepções da histeria, propondo um importante desvio nas considerações sobre a etiologia do quadro histérico. A partir daí, a histeria gradualmente passou a ser abordada por outro ângulo, tornando-se insustentável a afirmativa de continuidade na história da doença, exceto através de presentismos.

Provavelmente, a expressão mais representativa dessa ponte seja a passagem clássica na qual Sydenham sublinha o polimorfismo dos sintomas histéricos: "Um dia seria insuficiente para enumerar todos os sintomas da doença histérica; tão diversos são e tão contrários uns aos outros, que Proteu não teve mais formas, nem o camaleão tão grande variedade de cores" (1717, p. 307). Talvez exatamente essa frase, em que ele destaca uma vocação para o mimetismo e a capacidade para assemelhar-se a "quase todas as doenças às quais os pobres mortais são propensos" (p. 302), marque o ponto em que a histeria começa a deixar para trás sua origem uterina para alinhar-se etiologicamente com as paixões.

 

O útero errante

As primeiras alusões a casos clínicos referidos ao deslocamento do útero parecem estar nos papiros de Kahun, datados de 1825 a.C. As queixas são muito diversas, mas a maioria dos relatos diz respeito a dores - nas costas, na cabeça, nos dentes, nos ouvidos ou em todos os membros. Essas queixas provêm de mulheres tomadas por alguma consequente incapacidade (para ver, falar, andar, ouvir etc.). Uma delas reclama de um cheiro, outra de dor ao urinar, e outra da cabeça inchada. Em meio a essa diversidade de queixas, o que se repete é sua atribuição ao útero, sem que, no entanto, seja possível inferir nos relatos uma relação de causa e efeito.

Exame de uma mulher cujos olhos doem tanto que não consegue enxergar, além de dor no pescoço. Você deve dizer dela: são descargas do útero em seus olhos. Você deve tratá-la fumigando seu ventre com incenso e óleo fresco, e fumigando seus olhos com gordura do pé do ganso. Você deve fazê-la comer um fígado fresco de asno. (The Kahun medical papyrus, s.d., coluna 1, linhas 1-5)

No papiro de Ebers (1550 a.C.), mais recente e mais completo que o de Kahun, nada aponta para algo além de problemas somáticos relacionados a uma disfunção, supostamente do útero.

Tratamento para fazer o útero de uma mulher descer ao seu lugar correto: misturar serragem de pinho com o sedimento da cerveja e com isso besuntar uma almofada em forma de tijolo, feita de tecido. Então, você deve fazer a mulher sentar-se sobre ela. (Eberspapyrus, s.d., 789 [93,18-93,20])

No entanto, ambos os papiros foram lidos como registros milenares da neurose histérica e de sua implicação sexual, como em Melman (1985) ou Roudinesco e Plon (1998). Não se trata de questionar se, através de um procedimento psicanalítico, as pacientes descritas podem ou não ser interpretadas como histéricas, mas sim apontar os riscos de não ser fiel ao texto. O texto para os intérpretes não parece ser o texto dos "sacerdotes" responsáveis pela escrita. De fato, e ao contrário do que já foi dito algumas vezes, não há no original qualquer indicação de que os sacerdotes egípcios estivessem lidando com a doença diagnosticada hoje como histeria. O que está, com efeito, registrado são meras expressões de uma ectopia do útero.

Essa forma de anacronismo, que Skinner (1969) definiria como a mitologia da prolepse, tem sido frequente nas narrativas históricas da psiquiatria (Micale & Porter, 1994). Ela constrói ficções como essa, disseminadas e repetidas entre os estudiosos, atribuindo a dado texto um significado retrospectivo, que não existia para o autor, mas que sustenta os pontos de vista do narrador.

De acordo com Helen King (1985), isso parece ser verdade na tradução de Émil Littré do texto de Hipócrates, feita entre 1839 e 1861. Hipócrates viveu na ilha de Cós entre os séculos V e IV a.C. e é considerado o pai da medicina. Entre os trabalhos que lhe são atribuídos, reunidos no Corpus hippocraticum, vários são de autoria duvidosa (Littré, 1839). Historiadores da histeria, como Ilza Veith (1973), sugerem que ele teria sido o autor do termo histeria no aforismo 35:5, referindo-se ao útero, hysterus, sua suposta origem. No entanto, em sua tese de doutorado, Helen King revisou as traduções do aforismo, questionando a versão clássica e unanimemente aceita, defendida, entre outros, por Ilza Veith. Em sua análise, King observa que nos textos ginecológicos da Grécia antiga, as patologias raramente eram nomeadas, sendo citadas em referência ao órgão mais afetado. No aforismo 35:5, onde Veith lê "mulheres que sofrem de histeria", King identifica "mulheres que sofrem de causas uterinas", o que refuta a presunção da autoria hipocrática do termo histeria.

Parece que tanto Veith quanto aqueles que geralmente afirmam que a histeria - da maneira como a entendemos hoje - já estava presente no Corpus hippocraticum confiam na tradução de Littré. O que se revela na tese de King é que, através de presentismos ou prolepses, a tradução de Littré "deve muito mais aos debates e às teorias do século XIX do que aos textos hipocráticos que ela supostamente deveria sintetizar" (1985, p. 106).

Em Sobre as partes afetadas, livro 6, capítulo 5, Cláudio Galeno (131-201), cuja influência sobre o pensamento médico durou até o século XVIIi, faz uma declaração radical: "[O útero] não viaja nem para o diafragma nem para qualquer lugar" (Galien, 1856, p. 693). A crença na mobilidade uterina, ele afirma, só pode ser sustentada na ausência do conhecimento revelado pelas dissecções, ou na ignorância das noções que ele, Galeno, apresentou.

Considerando a histeria uma doença ginecológica, Galeno a abordou em um capítulo específico sobre as alterações do útero. De fato, ele destacou a possibilidade de perda sensorial na histeria. No entanto, tratava-se de uma perda sensorial diferente daquelas desencadeadas pelos tumultos da alma consequentes aos transtornos do corpo, como a melancolia, o frenesi e a mania (Galien, 1854). Em outras palavras, ainda levaria algum tempo até ser feita uma associação entre a histeria e outras alterações específicas na vida mental.

 

Mistificação e desmistificação

A associação mencionada não aconteceu na Idade Média, uma vez que, respeitando-se o contexto histórico, uma relação das bruxas medievais com a histeria não faz nenhum sentido. Para médicos, padres ou pessoas comuns que lidavam com elas, não havia nenhuma doença envolvida em suas expressões e movimentos, mas tão somente a submissão aos desejos de algum demônio.

Em 1563, foi publicado na Basileia De praestigiis daemonum et incantationibus ac venificiis [Sobre as ilusões dos demônios e sobre feitiços e venenos], de Johannes Weyer, em um contexto no qual as numerosas obras escritas sobre a evidência da possessão demoníaca ainda eram incontestes. O Malleus maleficarum, de Kramer e Sprenger, publicado em 1487, foi a mais notória delas, descrevendo claramente como as bruxas podiam ser encontradas, condenadas e executadas; o livro funcionou como uma espécie de porta-voz oficial da Igreja.

Segundo a tese clássica de Weyer, seria possível distinguir entre magia e feitiçaria levando em conta o sexo de seu praticante e a natureza real ou ilusória da prática. Os mágicos, homens instruídos e prudentes, convocariam os demônios em uma ação criminosa voluntária e passível de punição. A experiência das feiticeiras, no entanto, seria totalmente imaginária, vivida em um estado físico e mental semelhante a um sonho. Sua própria feminilidade, sua fé vacilante e sua imaturidade as tornariam presas fáceis do Diabo, o verdadeiro criador daquilo que elas expressavam. A permeabilidade à sua ação refletiria uma tendência melancólica resultante da invasão do cérebro pelos vapores produzidos pelo aquecimento dos humores, infectando-o, especialmente naquelas cujo temperamento e tez as tornariam mais vulneráveis à persuasão (Wier, 1563/1567). No entanto, é importante notar que, quando Weyer propôs essa maior vulnerabilidade ao demônio, ele estava se referindo a mulheres tomadas pela melancolia, uma condição frequentemente associada à fraqueza do espírito.

Resumindo, do ponto de vista historiográfico, as afirmativas de que durante a Idade Média as histéricas foram queimadas como bruxas (Roudinesco & Plon, 1998) soam muito anacrônicas, ainda mais se considerarmos que, segundo Midelfort (1981), a maioria dos acusados de feitiçaria não exibia qualquer sinal de insanidade, tendo confessado seu "pacto" sob tortura.

 

Dos rudimentos da condução aos rudimentos da psicologia

Os desenvolvimentos da Revolução Científica trouxeram novas linhas de pesquisa sobre corpo e mente, cuja base era o sistema nervoso, de modo que o entendimento sobre a histeria também passou por grandes mudanças. No lugar das antigas explicações ginecológicas, novas hipóteses, fundamentadas nas descobertas sobre o cérebro e o sistema nervoso, levaram as teorias etiológicas sobre a doença a uma fase "neurológica".

Nas últimas décadas do século XVII, essa transição esteve ligada principalmente a dois nomes: Thomas Willis e Thomas Sydenham. Uma vez que ambos se encontravam imersos em um mesmo coletivo de pensamento, suas proposições guardavam certas características em comum, especialmente no que diz respeito à importância etiológica dos vapores e dos espíritos animais.

Willis (1666) foi um dos primeiros a relacionar a histeria ao sistema nervoso, incluindo-o no novo campo médico que ele chamou de neurologia.2Quanto à histeria, Willis a conceituava como uma doença convulsiva, causada pela compressão do cérebro e das raízes nervosas decorrente da explosão dos espíritos animais. Essa explosão poderia resultar de sua acumulação, de um comprometimento dos espíritos em si, de um aumento da força da morbisick matter,3 ou de uma interrupção na circulação do fluido nervoso (Willis, 1685).

A grande sombra contemporânea de Willis era Thomas Sydenham, cuja prática pouco se apoiava na neuroanatomia. Em seu Epistolary discourse, Sydenham afirma que os vapores histéricos nas mulheres e os vapores hipocondríacos nos homens seriam consequência dos movimentos irregulares dos espíritos animais no corpo, convergindo desordenadamente para as áreas do corpo, de maneira contrária às leis da economia humana, causando espasmos, dor ou mau funcionamento de órgãos. A maior ou menor dificuldade na circulação dos vapores dependeria de uma constituição mais ou menos compacta do corpo, uma vez que

a natureza deu a elas um corpo de porte mais delicado e esbelto, desenhando-o apenas para uma vida fácil, e para desempenhar o terno ofício do amor ..., mas deu aos homens corpos robustos, para que eles pudessem escavar e adubar a terra, matar as feras por alimento, e coisas do gênero. (Sydenham, 1717, p. 308)

Assim,

muito poucas mulheres estão totalmente livres dos ataques dessa doença, com exceção daquelas que, estando acostumadas ao trabalho, levam uma vida dura; sim, muitos homens que vivem vidas sedentárias e que têm o hábito de estudar muito sofrem da mesma doença. (p. 302)

Embora Willis tenha mencionado as paixões, em suas hipóteses sobre a doença histérica elas obtiveram um espaço bem menor do que nas concepções de Sydenham. Para este, haveria uma base mais intangível para a histeria, o que o levaria não só a enfatizar sua propriedade proteiforme e camaleônica, mas também a abordá-la como uma doença das paixões, "violentas perturbações da mente decorrentes de repentinos assaltos, sejam de raiva, de tristeza ou de paixões semelhantes" (p. 307). Embora inevitavelmente apoiado nas concepções fisiológicas de seu tempo, Sydenham não apenas foi além das concepções uterinas usuais como também foi o primeiro a trazer para o primeiro plano o papel das paixões na etiologia das doenças histéricas. Em um procedimento semiótico em relação a pacientes cujos dados clínicos pareciam atípicos, Sydenham aconselhava: "Eu sempre lhes indago, diligentemente, se elas não se veem principalmente afligidas com aquela indisposição quando foram perturbadas em sua mente e afligidas pela tristeza" (p. 307). Uma vez que elas confirmassem, ele se sentia abundantly satisfied quanto a se tratar da doença histérica.

Em um modelo de abordagem da histeria que viria a se tornar comum no final do século XIX, Sydenham propunha um conjunto de traços caracterológicos associados à doença. Em sua descrição, ao lado de uma opção pelo pessimismo e pelas piores paixões, ele incluiu inconstância ("e elas nunca mantêm uma média, constantes apenas para a inconstância"), incongruência ("às vezes elas amam exageradamente, e logo em seguida odeiam na mesma medida, sem qualquer razão") e relutância ("às vezes elas pretendem fazer isto ou aquilo, mas imediatamente mudam suas intenções, começam a fazer o oposto e ainda assim não o fazem, sendo tão hesitantes que sua mente não pode estar em absoluta tranquilidade") (p. 306).

Longe de qualquer leitura proléptica, o desvio sugerido por Sydenham pode ser visto como o dado que, pouco a pouco, abriu à histeria o caminho para além da neurologia, em direção ao campo dos distúrbios mentais: "Que seu corpo está tão desorganizado e, por assim dizer, cambaleante como uma casa em ruínas; pois sua mente está mais afetada do que seu corpo" (p. 306).

 

Uma histeria neurótica

Em Sydenham e Willis, podemos encontrar a origem do conceito de doença nervosa, estabelecendo-se uma expressiva mudança nas concepções etiológicas das alterações mentais. Uma de suas consequências tardias foi o conceito de neurose trazido por William Cullen (1785), uma entidade que englobava a histeria. No entanto, respeitando-se a distância entre o conceito de neurose de Cullen e aquele com o qual lidamos hoje, é digno de nota que em sua classificação a histeria foi agrupada junto a azia, cólica, cólera, diabetes e raiva canina, um grupo muito diferente do que entendemos hoje como neurose.

A partir de 1870, por cerca de 20 anos, a histeria tornou-se o carro-chefe do trabalho de neurologia do Hospital da Salpêtrière, na busca incessante por seus fundamentos neurológicos realizada por Jean-Martin Charcot (1825-1893). No entanto, não demorou até que a doença fosse abordada por outro ângulo. No decorrer do século XIX, gradualmente (e não sem retrocessos), vários autores passaram a observar as características comuns da histeria, agrupando-as em conjuntos caracterológicos, um alegado "caráter histérico", em que a ênfase estava muito mais nas implicações interpessoais do que nos supostos fundamentos neurológicos. Em 1880, Charles Richet, em "Les démoniaques d'aujourd'hui", o descreve como uma "histeria leve", um nervosismo já divorciado de suas manifestações neurológicas; embora considerando-a une affection, adverte: "Essa histeria leve não é uma doença real. É uma das variedades do caráter das mulheres" (p. 346).

O caráter histérico e a histeria leve de Richet passaram a ser frequentemente citados, tornando-se a base de uma produção significativa sobre a condição histérica, mas agora como algo bem distante do imaginário referido há milhares de anos. Henri Huchard (1882), nos primeiros parágrafos de "Caractère, mœurs, et l'état mental des hystériques", adverte que tais vestígios podem existir sem a ocorrência de ataques histéricos clássicos. Ele descreve um caráter histérico composto de irresponsabilidade afetiva, "contágio" de emoções e sentimentos, paixão exagerada, "espírito de oposição", histrio-nismo, tendência a mentir, entre outras características, tudo na presença de faculdades intelectuais preservadas ou mesmo superiores.

Henri Legrand du Saulle (1883) admite quatro níveis crescentes de sintomas na histeria, começando na histeria leve e atingindo a loucura histérica. Os traços gerais do primeiro estágio seriam aqueles usualmente descritos, mas ele aponta traços que preveem grandes dificuldades nas relações: são egocêntricas, desejosas de atenção, irritáveis, queixosas, sujeitas à euforia não planejada e a depressões injustificadas.

A histeria tornou-se tão trivial e banal que, nas palavras de Richet (1880), poderia surpreender saber que ela existe na Salpêtrière. Na verdade, a Salpêtrière foi talvez o último grande refúgio das teorias fundamentalmente neurológicas e ginecológicas sobre a histeria, sustentadas por Charcot.

Concluindo, seria possível interpretar elementos do que se concebe hoje como neurose histérica em grande parte do que foi descrito, ao longo dos tempos, como a doença histérica. No entanto, a história do termo hysteria deixa bastante claro que, não só na medicina, mas também no imaginário popular, há uma grande distância entre uma condição e outra. Teriam sido as afirmativas de Thomas Sydenham o que introduziu novos elementos na abordagem da doença, abrindo um longo caminho que, dois séculos depois, chegou à compreensão freudiana, totalmente apartada de tudo o que havia sido dito até o Epistolary discourse. E, uma vez que se fale de história, é necessário entender que a interpretação da histeria como patologia sexual, encontrada desde a medicina egípcia, pode ser psicodinamicamente apropriada, mas constitui um grave erro historiográfico.

 

Referências

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Correspondência:
Eder Schmidt
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Recebido em 24/9/2018
Aceito em 25/4/2019

 

 

1 O texto, originalmente em latim, teve como título Dissertatio epistolaris ad spectatissimum doctissimumq virum Gulielmum Cole, md, de observationibus nuperis circa curationem variolarum confluentium nec non de affectione hysterica - algo como Dissertação epistolar ao famoso e nobre Dr. William Cole sobre as recentes observações acerca do tratamento da varíola, bem como as que se referem à afecção histérica. No entanto, em algumas versões para o inglês, a exemplo daquela utilizada neste trabalho, Dissertatio epistolaris recebeu a tradução Epistolary discourse.
2 No original, a palavra é apresentada na ortografia grega,
νευρολογια, em referência à ciência dos nervos.
3 Uma referência frequente na literatura médica do século XVII, sendo também citada nas hipóteses etiológicas propostas por Thomas Sydenham e outros. Seu emprego indica tratar-se de um humor gerador de doenças nos diversos órgãos e sistemas, e em seu enfrentamento era fundamental a sua expulsão do corpo através da purgação (por drenagem, sangria, vômitos, diurese, sudorese etc.).

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