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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020
RESENHAS
Laços possíveis: experiências clínicas com casais e famílias
Maria Aparecida Quesado Nicoletti
Psicanalista. Médica. Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Coordenadora da Comissão de Casal e Família da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal). Coordenadora do grupo de estudos Vínculos de Casal e Família: Entre a Subjetividade e a Realidade Externa na Clínica Contemporânea, da SBPSP
Organizadoras: Renata Kerbauy, Márcia Barone Bartilotti e Gislaine De Dominicis
Editora: Aller, 2019, 288 p.
Resenhado por: Maria Aparecida Quesado Nicoletti
O livro e suas autoras
Trata-se de obra técnica, com densidade acadêmica apropriada para audiências compostas por iniciados em psicologia e em psicanálise, sobre condução clínica de psicoterapia de base psicanalítica, na modalidade psicoterapia breve de casal e família. As organizadoras são membros do corpo docente do renomado Instituto Sedes Sapientiae (iss) de São Paulo e de outras instituições associativas e acadêmicas. O contexto sociotécnico em que elas próprias se posicionam são os cursos de psicoterapia breve psicanalítica e de psicoterapia psicanalítica de casal e família. O prefácio do livro foi escrito por Mauro Hegenberg, o criador do modelo de abordagem de psicoterapia breve de casais adotado pelo iss.
A promessa que as organizadoras fazem ao público no título da obra parece clara: trazer ao leitor as vivências clínicas do terapeuta especialista na modalidade psicoterapia breve de base psicanalítica, no setting de casal e de família, configurado por teorias e técnicas utilizadas no iss. Desse modo, a expectativa do leitor, estimulada pelo título do livro, é encontrar nos capítulos que o compõem testemunhos qualificados sobre os movimentos intersubjetivos e intrassubjetivos observados na clínica e sobre como identificá-los, tendo por modelo explanatório as teorias e as práticas da psicanálise da vincularidade de casal e família.
A obra não segue um eixo linear de desenvolvimento. Ao contrário, sua estrutura tem o formato de uma coletânea, reunindo textos de diferentes autores, alguns dos quais não fazem parte do corpo clínico do iss. São autores brasileiros e estrangeiros convidados a colaborar com o desenvolvimento dos tópicos propostos pelas organizadoras. Com isso, o leitor pode começar sua leitura por qualquer capítulo, sem incorrer no perigo de não compreender os demais.
O livro está dividido em três partes, das quais as duas primeiras situam o leitor, respectivamente, na psicoterapia psicanalítica de casal e na psicoterapia psicanalítica de família. A terceira parte é dedicada à apresentação do manejo clínico com casais e famílias.
Outro aspecto interessante do livro: cada capítulo vem acompanhado por uma ou mais vinhetas de sessão terapêutica relacionadas com o tópico em discussão. Essa estrutura permite ao leitor principiante entender a prática clínica adotada pelos autores. Permite também que o leitor experiente aproveite a leitura para analisar comparativamente as propostas dos autores com sua própria prática.
Na parte 1, os dois primeiros artigos estão relacionados com a insatisfação vivida na vincularidade de casal. O primeiro, de autoria de Maria Lucia de Souza Campos Paiva, é dedicado à análise de um aspecto específico da vincularidade de casal, a sexualidade vivida na modalidade swing. Lançando mão do recorte sociológico da hipermodernidade, a autora discorre sobre conceitos relacionados com as vicissitudes dos vínculos amorosos moldados pela subjetividade pessoal e de grupo na contemporaneidade, e ilustra sua prática com duas vinhetas de casos clínicos envolvendo casais que praticam swing.
No primeiro deles, a vincularidade de casal começa a ser modificada quando o marido propõe à esposa, que amamentava a filha de 1 ano de idade, frequentar um local onde se realizam trocas de casais; a princípio, ela recusa, mas depois concorda, sob a ameaça do marido de ir só. A busca de ajuda terapêutica foi motivada por brigas do casal, iniciadas pelo marido, que passou a sentir ciúmes da esposa.
Já o segundo caso se refere à vivência conflituosa no interior da teia vincular formada pelo paciente e a esposa e, fora do casamento, pelo paciente e a amante, com quem frequentava casa de swing, situação que havia sido rejeitada pela esposa. Durante o desenvolvimento do atendimento, a analista percebe que o paciente se sentiu ameaçado quando encontrou o cunhado e a esposa deste em um ambiente de troca de casais que frequentava.
Andrea Maria de Senna Marques, autora do segundo capítulo, também trata da vivência de insatisfação na trama de vínculos familiares, elegendo as relações de gênero como tópico de interesse. Partindo da tese de mestrado na qual, em 2003, examinou a influência de fatores subjetivos e sociais na origem da insatisfação no relacionamento conjugal, fornece referências bibliográficas que tratam de psicanálise, sociologia e suas intersecções no contexto das discussões sobre feminismo e gênero. Conclui com a visão já consagrada pela teoria psicanalítica de casal e família de que a escolha conjugal implica a busca motivada por desejos não satisfeitos e pela ilusão de que o cônjuge venha a satisfazê-los. Examina a ambivalência e as dificuldades que permeiam as trocas intersubjetivas entre o casal, na compreensão dos papéis simbólicos que o outro assume na subjetividade de cada membro da dupla conjugal, vista a partir das relações de gênero.
No capítulo 3, Liliana Haydee Alvarez e Nilda Elena Neves analisam a obstinação dos membros da dupla matrimonial em se manter presos a um casamento cujos vínculos se mostram insatisfatórios e disfuncionais. Lançando mão dos construtos teóricos de autores clássicos da psicanálise da vincularidade para compreender a natureza e a intensidade do vínculo, as autoras identificam o apego obstinado observado no casal como um pacto de inseparabilidade sustentado pela degradação das trocas intersubjetivas da dupla.
Nos capítulos 4 e 5, Ana Claudia Domingues, Márcia Barone Bartilotti, Mauro Hegenberg, Alice Tamashiro e Aparecida Fusaro Framilio apresentam a proposta de atendimento e pesquisa sobre conjugalidade do iss. No capí- tulo 4, Ana Claudia discute um tópico de grande importância: o limite de tempo na psicoterapia breve de casal. No capítulo 5, seus colegas abordam as concepções e o modelo teórico-clínico adotados pelo grupo em suas práticas com casais e famílias.
Na parte 2, as autoras voltam sua atenção para o atendimento de família. Os capítulos 6 e 7 são dedicados à abordagem da transmissão transgeracional
No capítulo 6, Aparecida Fusaro Framilio, Alice Tamashiro, Márcia Barone Bartilotti e Renata Kerbauy reconhecem no desenvolvimento freudiano da psicanálise a descoberta das raízes da transmissão psíquica transgeracional, apontando, nos escritos do autor, as menções ao tema, feitas na extensa produção conceitual sobre a subjetividade humana e suas interfaces com elementos culturais. Assinalam ainda os mecanismos intersubjetivos que tornam possível falar sobre uma subjetividade de grupo. Em seguida, fornecem ao leitor referências bibliográficas originadas da escola de pensamento franco-argentina de psicanálise da vincularidade e de autores brasileiros que adotaram essa linha de pensamento para orientar seu trabalho psicanalítico com casal e família.
O material clínico que fecha o capítulo fala sobre a identificação de vivências de sofrimento entre indivíduos pertencentes a uma específica trama vincular de grupo familiar, na qual, à doença concretamente diagnosticada nos pais (mãe diabética e pai cardiopata), superpõem-se mecanismos de transmissão transgeracional de vivências de abandono e carência de afeto, observados pelas autoras em duas gerações precedentes e nas filhas do casal parental.
No capítulo 7, Alessandra Ciongoli, Renata Kerbauy e Waleska Silva continuam examinando a problemática da transgeracionalidade a partir de vivências de desamparo familiar. Tratam da estruturação vincular baseada em condensações projetivas, materializadas em um dos membros do grupo, ao qual é outorgado o papel de representante da doença da família ou portador do sintoma do grupo. Mantendo a mesma linha editorial dos outros capítulos, as autoras, enquanto apresentam os pilares conceituais em que se assentam suas práticas, fornecem ao leitor referências bibliográficas clássicas importantes, de forma que os leitores encontram no texto oportuna revisão de conceitos estruturantes da psicanálise de casal e família.
No caso clínico inserido no texto como exemplificação/materialização do elemento teórico abordado no capítulo, as autoras descrevem, a partir do atendimento de uma gestante, o encadeamento entre fatos históricos familiares e vicissitudes vinculares transmitidas pelas duas gerações antecessoras, atingidas por tragédias, perdas e dificuldades sociais incapacitantes no que diz respeito ao processo de subjetivação primário, necessário para a construção efetiva do equilíbrio requerido para o estabelecimento de laços intersubjetivos familiares baseados nas trocas entre sujeitos do vínculo.
No capítulo 8, Marina Herdeiro Lopes e Renata Kerbauy continuam o exame da influência da vivência de desamparo na origem do sofrimento e da patologia da subjetividade do grupo familiar, materializada em um caso de anorexia. O mecanismo de subjetividade patogênico é a insuficiência maternal em fornecer o suporte físico/subjetivo necessário para que o bebê supere e elabore o trauma inicial que caracteriza sua chegada ao mundo, por ser ele imaturo e não ter as condições necessárias para sobreviver e pertencer a esse mundo, que não conhece e não compreende. Falhas de formação da subjetividade, descritas por autores clássicos como Freud, Winnicott e Ferenczi, são entendidas pelas autoras como associadas à anorexia, doença compreendida como "patologia de continente genealógico familiar", enraizada na insuficiência de maternagem e no afastamento afetivo do pai, incapaz de perceber e validar o sofrimento da filha nas etapas preliminares de sua infância. As autoras terminam por apontar o vínculo terapêutico como alternativa reparadora das disfunções intra e interpsíquicas da vincularidade familiar.
No capítulo 9, Renata Kerbauy aborda a problemática do movimento corporal estereotipado como sintoma de falha na elaboração e reelaboração de desejos e proibições que permeiam os sujeitos pertencentes à rede de vincularidade familiar - desejos e proibições que são constituintes fundantes da identidade individual e familiar, presentes na formação vincular e ativos na manutenção do funcionamento intra e intersubjetivo, como estrutura de regulação narcísica dos pertencentes ao vínculo. Relata o caso de mãe e filho que apresentavam movimentos estereotipados repetitivos, localizados em um dos ombros, suscitando na analista a ideia de "dois 'eus' em um único corpo". Renata apoia-se em autores como Freud, Aulagnier, Winnicott e Kaës para "traduzir", com objetivos terapêuticos, o significado subjetivo da sintomatologia somática motora em espelho, localizada no ombro esquerdo da mãe e no direito do filho, observada durante a sessão.
No capítulo 10, Márcia Barone Bartilotti trata da extensão do sofrimento individual, por intermédio da vincularidade, para todos os membros de um grupo familiar composto por um casal parental e por dois filhos jovens. A origem do sofrimento foi a descoberta de câncer na mãe. São indicados os mecanismos subjetivos que permeiam todos os membros da família, quando um deles se defronta com doença grave. A proposta de consulta terapêutica, no modelo formulado por Donald Winnicott, é incorporada ao capítulo como estratégia de criação de vínculo possível entre a família e o terapeuta.
Rebeca Silva Paes, autora do capítulo 11, faz considerações a respeito da identificação projetiva como forma de comunicação intersubjetiva disfuncional, que pode ser identificada no trabalho clínico com família. Aborda também possíveis consequências sobre a terapeuta quando os vínculos estabelecidos pela família-paciente são do tipo projetivo-expulsivo. Reporta o atendimento clínico psicanalítico breve de uma jovem mãe de 29 anos de idade, os dois filhos, um menino de 8 e uma menina de 5, e a irmã, com 25 anos. Quando a terapeuta se sente incomodada ao atender a mãe e os filhos pela primeira vez, pensa em suspender o atendimento, mas em seguida identifica a natureza contratransferencial do seu mal-estar, capacitando-se então para dar continuidade ao tratamento, durante o qual vai desvendando a natureza da patologia transgeracional herdada pela mãe e a irmã. Revela ainda a presença do mesmo mecanismo patológico intersubjetivo em ação na vincularidade da mãe com os filhos: mito familiar, funcionamento psicótico e identificação projetiva expulsiva.
Na parte 3, Gislaine Varela Mayo De Dominicis e Ana Maria Nicolò falam sobre manejo clínico com casais e famílias. No capítulo 12, Gislaine apresenta técnicas mediadoras utilizadas pelos terapeutas de casal e família do iss para ampliar o poder da interpretação verbal na investigação de conteúdos inconscientes e pré-conscientes, ou em situações nas quais os recursos clássicos da interpretação verbal são insuficientes. Desenho livre, espaçograma e genograma são os destaques do capítulo.
Anna Maria Nicolò descreve, no capítulo 13, os parâmetros de observação e os instrumentos disponíveis para a prática da psicoterapia de base psicanalítica, incluindo a definição de setting, relação terapêutica, interpretação, transferência e contratransferência.
Apoiada em conceitos psicanalíticos freudianos e pós-freudianos - psicanálise individual e psicanálise de casal e família -, a autora apresenta a estratégia metodológica que usa para observar o funcionamento dos membros da família em tratamento. Adota diferentes pontos de vista observacionais, categorizados como posicional, político-econômico e espacial, com os quais busca investigar e compreender a vida mental dos membros do grupo familiar, o funcionamento fantasmático da família e a existência de mecanismos identificatórios baseados em identificação projetiva, com o que se constata a fundamentação de inspiração kleiniana com que organiza seu trabalho.
A autora enumera e comenta instrumentos terapêuticos clássicos da psicanálise que utiliza, descrevendo-os a partir de conceitos formulados por Freud, Winnicott, Grinberg, Kernberg, Segal, Eiguer e outros, incluindo a contribuição que ela própria fez, em 1993, ao tema do setting familiar, terminando por examinar as diferenças que reconhece entre a interpretação clássica, referente ao tratamento psicanalítico individual, e o tratamento de casal e família.
Sintetizando, Laços possíveis é um livro que trata de experiências clínicas de diferentes profissionais com psicoterapia de base psicanalítica, escrito em parceria entre psicanalistas que trabalham em uma tradicional instituição brasileira de ensino e pesquisa em psicologia e psicanálise, com a participação de profissionais de outras instituições brasileiras e estrangeiras.
Seu conteúdo está organizado de forma didática, com fundamentação teórica extraída de autores clássicos da psicanálise individual freudiana e pós-freudiana, bem como de psicanalistas de casal e família da linhagem franco-argentina, com o que se mostra uma obra de grande utilidade, tanto para leitores iniciados em psicologia e psicanálise que estejam buscando conhecimento sobre psicoterapia de base psicanalítica quanto para profissionais experientes, os quais podem aproveitar a leitura para analisar comparativamente as propostas dos autores com sua própria prática.
Correspondência:
Maria Aparecida Quesado Nicoletti
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