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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./jun. 2021
CARTA-CONVITE
A escrita da experiência clínica e seus dilemas na atualidade
Claudio Castelo FilhoI; Elsa Vera Kunze Post SusemihlII; Equipe editorial
IEditor
IIEditora associada
Inicialmente, gostaríamos de agradecer à grande colaboração dos colegas que nos antecederam nesta tarefa e que nos ajudaram, por meio de longas conversas, a nos inteirarmos dos meandros deste complexo e árduo trabalho que é a editoria da Revista Brasileira de Psicanálise. Nosso obrigado a João Baptista Novaes Ferreira França, Elias Mallet da Rocha Barros, Leopold Nosek, Bernardo Tanis, Silvana Rea e, muito especialmente, Marina Massi, pelo tempo e pela gentilíssima atenção que nos dedicou para que esta transição se desse da forma mais profícua possível.
Nosso primeiro número será dedicado aos keynote papers do Congresso Internacional de Psicanálise de Vancouver e também publicará trabalhos coletados ao longo da gestão de Marina. A partir do segundo volume deste ano de 2021, daremos início à temática que pretendemos focalizar durante nossa direção.
Na nova gestão que agora iniciamos, privilegiaremos a publicação da experiência clínica dos psicanalistas praticantes. Interessa-nos principalmente o que nós, brasileiros, estamos vivendo em nossos consultórios (e atualmente na experiência online) e as evoluções obtidas nessas vivências.
Esse tema já foi abordado de forma muito oportuna em artigo de Bernardo Tanis, ex-editor deste periódico, "A escrita, o relato clínico e suas implicações éticas na cultura informatizada" (2015). Consideramos que vários aspectos cruciais e instigantes permanecem e são foco de muitos questionamentos, dúvidas, anseios, curiosidade e turbulência na nossa atividade - tal como ressaltou Freud, nos primórdios, ao se referir às questões éticas e científicas que o assaltaram durante anos até decidir-se a publicar o seu famoso "Fragmento da análise de um caso de histeria" (1905/1969a), o caso Dora.
Acreditamos que a prática clínica é o que nos distingue, enquanto psicanalistas, de outros pensadores que se valem somente do arcabouço teórico psicanalítico, como já destacava Freud (1915/1969b) ao se diferenciar de autores contemporâneos a ele na discussão sobre a existência do inconsciente. A prática clínica faz toda a diferença e corrobora o adágio popular que diz que a teoria na prática é outra. Isso indica que pode ser encontrado algo na prática que venha a desmentir a teoria e, então, será necessária a disposição para questionar a teoria e talvez abrir mão daquilo que se pensa. Esse é o vértice do cientista, diferente daquele do filósofo, cujo pensamento não se confronta com a prática, ou mesmo daquele do crente religioso. O cientista/psicanalista precisa estar aberto ao que a prática vai lhe apresentar, que pode colocar por água abaixo todo um sistema dedutivo científico. No entanto, o que mais frequentemente ocorre é a realização da teoria na prática revelar dimensões ou universos nunca antes percebidos. Ela muda aquele que a "enxerga" ou a "vive".
Neste ponto, contudo, deparamo-nos com situações complicadas e aparentemente insolúveis. Insolúveis?
Glen Gabbard, no artigo "Disfarce ou autorização: problemas e recomendações a respeito da publicação e da apresentação de material clínico" (2002), observa que, ao se escrever sobre a clínica, surgem inúmeros problemas e paradoxos. Não só acerca da experiência clínica em si, seus desenvolvimentos ou entraves, tanto práticos quanto teóricos, mas acerca da própria problemática de escrever sobre a clínica e de como o fazer. Tudo isso está no nosso foco de interesse.
Como falar da clínica? Isso implica toda sorte de questões legais e éticas, que podem impactar sobre uma qualidade mais estimulante do texto. Ainda assim, gostaríamos que os analistas contassem mais o que se passa nos seus atendimentos, que apresentassem os impasses que experimentam, com vivacidade e atualidade, para que possamos aprender com os colegas. Almejamos um desenvolvimento do pensamento metapsicológico da clínica e maior troca sobre o que se faz entre nós, brasileiros. Destacamos que somos um país no qual os psicanalistas têm muita experiência em seus consultórios, o que não se dá assim em muitos outros lugares. Interessa-nos saber mais o que se passa neles.
Temos, porém, uma trava: existem muitas limitações para se discorrer sobre a prática clínica. A confidencialidade ética é a mais relevante. Como lidar com isso? Há uma mudança drástica em andamento no que tange à exposição de material clínico. O formato que se vale de vinhetas clínicas parece ter se tornado o preferencial e, para muitos, suficiente para apresentarem seus pontos. Entretanto, outros necessitam, para uma escrita mais aprofundada, de relatos mais detalhados e extensos. Daí o dilema: a autorização de um paciente tem serventia legal, mas cabe igualmente a discussão se ela de fato representa uma autorização. Pode haver arrependimentos futuros por parte do paciente e isso gerar complicações. Questões associadas à relação transferencial, à autoridade atribuída pelo analisando ao analista e à necessidade de agradá-lo, ou ser visto por ele como um caso especial, ou ter notoriedade pública, como se dessa forma se tornasse alguém excepcional, podem vir no bojo dessa "autorização". Além do mais, quais as consequências posteriores a ela, que podem se desenrolar na análise que se seguirá?
Há muitos de nós que valorizam mais o relato da experiência emocional durante os atendimentos. Prescindindo de informações da vida dos analisandos fora dos consultórios e não considerando relevantes os fatos ditos históricos ou do cotidiano extra-analítico deles, baseiam-se sobretudo na descrição da dinâmica ocorrida nas sessões. Já muitos outros consideram altamente importantes os mesmos históricos e informações obtidos por meio de "anamneses", tomando os fatos mencionados pelos pacientes a respeito da vida fora das sessões como fundamentais para sua abordagem.
Ao editar a rbp, não temos como evitar tais questões éticas e jurídicas, mas seria útil desenvolver uma reflexão e quiçá um pensamento próprio, nosso, quanto a essas intricadas situações - e escrever sobre isso, ao mesmo tempo que se procura uma forma de falar da vivência compartilhada com o paciente.
No que se refere à confidencialidade, ela se torna ainda mais complexa por conta dos atendimentos online, que se impuseram, bem como pela divulgação dos trabalhos e livros por meios digitais, que abrangem um potencial público leitor muitíssimo mais amplo do que jamais puderam supor nossos antecessores.
Nosso convite visa o desenvolvimento de uma escrita que traga algo novo e ampliador no que tange a essas questões - algo vivo, vindo diretamente da experiência de nossos colegas atuantes, ao lado de valiosas contribuições teóricas que possam também ser apresentadas, sempre considerando a necessidade de respeitar os requisitos pertinentes a nossa valiosa publicação científica.
Esperamos que essa carta sirva de estímulo para a produção e o envio de trabalhos que permitam desenvolver e aumentar nosso escopo em área tão sensível e essencial.
Os trabalhos deverão ser encaminhados para o email da revista - rbp@rbp.org.br - até a data-limite de 5/4/2021. As orientações para a submissão de artigos encontram-se em nossa página eletrônica: www.rbp.org.br.
Referências
Freud, S. (1969a). Fragmento da análise de um caso de histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 7, pp. 1-119). Imago. (Trabalho original publicado em 1905) [ Links ]
Freud, S. (1969b). O inconsciente. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 165-217). Imago. (Trabalho original publicado em 1915) [ Links ]
Gabbard, G. (2002). Disfarce ou autorização: problemas e recomendações a respeito da publicação e da apresentação de material clínico. Livro Anual de Psicanálise, 16, 199-213. [ Links ]
Tanis, B. (2015). A escrita, o relato clínico e suas implicações éticas na cultura informatizada. Revista Brasileira de Psicanálise, 49(1),179-192. [ Links ]