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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

TEMÁTICOS

 

O mal-estar na formação psicanalítica: ameaças à função generativa dos Institutos e Sociedades em que ocorre a formação psicanalítica1

 

Processes of infantilization in psychoanalytic training: threats to the generative function of the institutes/societies in which psychoanalytic training takes place

 

El malestar en la formación psicoanalítica: amenazas a la función generativa de los Institutos y Sociedades en los que se desarrolla la formación psicoanalítica

 

Le malaise au sein de la formation psychanalytique: des menaces à la fonction générative des instituts et des sociétés où se passe la formation psychanalytique

 

 

Angelika StaehleI; Tradução de Elsa Vera Kunze Post Susemihl

IPsicóloga, supervisora e analista didata da Associação Psicanalítica Alemã (DPV). Por muitos anos, membro da Diretoria Executiva e diretora da formação em análise de adultos e crianças da DPV. Membro e ex-presidente do Fórum de Análise Infantil da Federação Psicanalítica Europeia (EPF). Membro do Comitê de Educação e Supervisão (2012-2017) e presidente do Comitê de Educação Psicanalítica (2017-2021) da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Docente na Universidade de Frankfurt e no Instituto Psicanalítico de Frankfurt. Atua em clínica psicanalítica privada em tempo integral, com crianças, adolescentes e adultos, individualmente e em grupos. Frankfurt / a.staehle@t-online.de

 

 


RESUMO

Neste artigo, a autora focaliza a transmissão da psicanálise através da formação das próximas gerações. Destaca a tensão entre a necessidade dos psicanalistas de trabalhar em conjunto em uma instituição e a de manter certa distância, que possibilite uma terceira perspectiva quanto à sua identificação com o Instituto. Nesse contexto, apresenta o novo mandato do Comitê de Educação Psicanalítica (pec) e o seu projeto Encontros de Sociedades sobre Educação. Discute a questão da participação de candidatos/analistas em formação dentro dos Institutos. Aborda especialmente o desafio da supervisão na formação e suas vicissitudes. Outro tópico considerado são os seminários teóricos e a exigência de que os professores não confundam a necessária transmissão da tradição com idealizações do passado psicanalítico, e aceitem a natureza finita da sua compreensão da psicanálise.

Palavras-chave: transmissão da psicanálise, identidade psicanalítica, supervisão, seminários teóricos, participação de candidatos


ABSTRACT

This paper focuses on the transmission of psychoanalysis in training to the next generation. The tension between the need for psychoanalysts to work together in an institution and still maintain a certain distance for a third perspective in their identification with their Institute is highlighted. In this context, the new mandate of the Psychoanalytic Education Committee and its project' Meetings of Societies on Education' is presented. The question of the participation of candidates/analysts in training in the Institutes is discussed. The particular challenge of supervision in training and its vicissitudes is a main focus. A further topic are the theoretical seminars and the need that teachers do not confuse the necessary transmission of tradition with dogmatic idealization of the psychoanalytical past and can accept the finite nature of their understanding of psychoanalysis.

Keywords: transmission of psychoanalysis, psychoanalytic identity, supervision, theoretical seminars, participation of candidates


RESUMEN

Este artículo se centra en la transmisión del psicoanálisis a través de la formación las próximas generaciones. La tensión entre la necesidad de que los psicoanalistas tengan que trabajar juntos en una institución y la de mantener una cierta distancia que permita destacar una tercera perspectiva respecto a su identificación con su Instituto es relevante. En este contexto, se presenta el nuevo mandato del Comité de Educación Psicoanalítica y su proyecto Encuentros de Sociedades sobre Educación. Se discute la cuestión de la participación de candidatos/analistas en la capacitación dentro de los Institutos. Su enfoque principal es la supervisión en la formación y sus vicisitudes. Otro asunto son los seminarios teóricos y la necesidad de que los maestros no confundan la necesaria transmisión de la tradición con las idealizaciones del pasado psicoanalítico, y acepten la naturaleza finita de su comprensión del psicoanálisis.

Palabras clave: transmisión de psicoanálisis, identidad psicoanalítica, supervisión, seminarios teóricos, participación de candidatos


RÉSUMÉ

Cet article a son focus sur la transmission de la psychanalyse par l'intermédiaire de la formation des prochaines générations. On met en relief la tension entre le besoin des psychanalystes de travailler ensemble dans une institution et de garder une certaine distance, de façon à permettre une troisième perspective concernant son identification à son Institut. Dans ce contexte, on présente le nouveau mandat du Comité d'Education Psychanalytique et son projet Rencontres de Sociétés à Propos de l'Education. On discute encore de la question de la participation de candidats/analystes en formation dans les Instituts. L'un des points principaux, en particulier, c'est le défi de la supervision dans la formation et ses vicissitudes. Un autre point concerne les séminaires théoriques et le besoin des professeurs ne pas confondre la transmission nécessaire de la tradition et les idéalisations du passé psychanalytique, pouvant ainsi accepter la nature finie de leur compréhension de la psychanalyse.

Mots-clés: transmission de la psychanalyse, identité psychanalytique, supervision, séminaires théoriques, participation de candidats


 

 

Transmissão e generatividade2

A questão fundamental é: qual o conteúdo da psicanálise que queremos transmitir às novas gerações, como o fazemos e quais as dificuldades que encontramos na sua transmissão para a próxima geração de psicanalistas? Essa é a questão que pretendo abordar neste artigo.

Há sempre duas perspectivas complementares a serem consideradas nos diferentes modelos de formação:3 a do indivíduo e a da instituição. Para o indivíduo, a formação está relacionada ao desenvolvimento pessoal, que visa o tornar-se analista. Já para a instituição, trata-se de formar futuros membros, que venham a se responsabilizar pela continuidade, transmissão e desenvolvimento da psicanálise, dentro da instituição e com os pacientes. Nessa última perspectiva, a capacidade generativa é essencial para a transmissão da psicanálise como ciência e como organização constituída.

Entendo por generatividade, de acordo com King (2011, p. 1072), "as formas socialmente mutantes que permitem a 'chegada à maioridade' da próxima geração e, portanto, sucessivamente também a - inevitavelmente ambivalente - preparação da substituição de uma geração pela próxima". Por sua própria natureza, a formação psicanalítica representa um espaço experiencial no qual uma geração mais velha de professores analiticamente experientes e uma geração mais jovem de candidatos comprometidos se encontram durante muitos anos. A geração mais velha se empenha explicitamente em passar aos colegas mais jovens a sua compreensão clínica e sociocultural da psicanálise. Por outro lado, a geração mais jovem quer se beneficiar e aprender com a riqueza da experiência de seus colegas mais velhos, mas também almeja encontrar respostas próprias para a questão de como os conceitos psicanalíticos se inserem na vida prática de sua geração e permanecem, ao mesmo tempo, científica e culturalmente atualizados.

Dessa forma, além de uma cooperação mútua, surge uma tensão geracional na transmissão do conhecimento psicanalítico. A forma e o manejo experimentado nessa tensão intergeracional parecem ter influência significativa na identificação do candidato com o método psicanalítico durante a formação, bem como na construção de sua identidade psicanalítica.

A questão a respeito do que entendemos por identidade e, mais ainda, por identidade psicanalítica é complexa. A identidade analítica provavelmente se refere a um senso de solidez com relação àquilo que é a própria identificação central com a psicanálise como teoria e como prática, e a um crescente senso de confiança em saber o que se está fazendo, mesmo quando não se sabe o que está ocorrendo em uma sessão. Trata-se de encontrar a própria voz como analista e ser capaz de desenvolver uma qualidade particular de escuta - escutar tanto as comunicações inconscientes do paciente como a si mesmo, em meio a uma complexa interação entre os dois lados de uma dupla.

Poder-se-ia dizer que uma identidade psicanalítica significa sentir-se "em casa" no papel de psicanalista e, espera-se, na instituição; mas significa também a necessidade de desalojar-se de uma posição demasiadamente estabelecida - permanecer em uma posição confortável demais não promove a criatividade. Decorre disso que não se estabelece uma identidade psicanalítica de uma vez por todas; antes, ela é adquirida através de um trabalho em andamento [work in progress], que continua por toda a vida de um analista.

 

O contexto institucional

O funcionamento institucional dos institutos e sociedades psicanalíticas é uma mistura extremamente complexa de questões pessoais, dinâmicas de aprendizagem e de grupo, e processos de tomada de decisão. Portanto, com frequência apresenta também controvérsias e é guiado por conflitos. Soma-se a isso a principal característica dos institutos de psicanálise: sua organização é composta essencialmente por relacionamentos intensos entre pares, o par formado pelo candidato com seu analista, o par supervisor e supervisionando, o par do candidato com seu paciente da supervisão oficial, e o pareamento transgeracional. Os candidatos ficam imersos em uma relação profundamente pessoal e significativa com o seu analista didata4 ao longo de muitos anos, relação que precisa ser profundamente regressiva para ser efetiva, na esperança de que venha a transformar a vida deles para melhor.

Para muitos psicanalistas, a psicanálise se baseia fundamentalmente no encontro que ocorre entre duas pessoas. Isso tem como consequência, em termos institucionais, que os psicanalistas em grande parte não consideram que estão inseridos no seu Instituto quando conduzem seu trabalho. A falta de limites institucionais firmes pode levar a uma ambiguidade que não é contida e resultar em graves conflitos institucionais. Eisold comenta acertadamente:

Conflitos latentes, transferências negativas, percepções potenciais que minam a idealização ou distorções narcísicas - toda a "radioatividade" psicológica, na terminologia de Kernberg, que influencia os múltiplos relacionamentos de pares na psicanálise - encontra, fora dos pares, um terreno fértil dentro da instituição frouxamente continente e, mais ainda, dentro de outras instituições mais distantes. (1994, p. 792)

De maneira paradoxal, segundo Eisold, isso leva com frequência a um sistema organizacional com limites excessivamente impermeáveis, hierarquias rígidas e atribuições inflexíveis de papéis e tarefas. As organizações insistem, então, na pureza ideológica, resistem a mudanças e reagem facilmente com uma retirada para o isolamento, ilhando-se. As Sociedades perdem, assim, sua capacidade de responder a mudanças ambientais. Essa situação pode levar o candidato a filiações dogmáticas a determinados conceitos e à perda do pensamento crítico; para alguns candidatos, implica também certa obrigatoriedade em confirmar as teorias de seu próprio analista. Por outro lado, existe o perigo de essa tendência ser apoiada ou induzida por analisas didatas que almejam seguidores, candidatos que compartilhem suas opiniões, o que acontece muitas vezes de forma bastante disfarçada. Nesse contexto, gostaria de citar Fornari Spoto, quando se refere à Sociedade Britânica de Psicanálise:

A convicção no seu próprio modelo de formação é uma base necessária para proporcionar uma formação eficaz, mas também pode gerar a fantasia narcísica de ser esse um modelo único, e uma fantasia a ela relacionada, de ser esse modelo o portador do padrão dos cânones analíticos. (2017, p. 100)

A pergunta decisiva é: que tipo de relação temos com a comunidade analítica e com sua história? Será que acreditamos em uma fidelidade simplista e alienante ou é possível considerarmos que nossas filiações incluem uma noção de terceiridade?5

O contexto institucional é necessário para os psicanalistas, pois é nele que se dá a possibilidade de troca de ideias, de acordo com o conceito de um aprender ao longo de toda a vida. Bolognini (2014) ressalta as "dificuldades encontradas pelos psicanalistas que convivem em um ambiente institucional organizado e estruturado". Ele se refere à necessidade de os analistas "saírem de uma transferência estritamente familiar e ao perigo de se protegerem em um claustro familiar de autossacrifícios, depois de terem adquirido sua qualificação". Nesse contexto, Bolognini enfatiza a importância da colaboração entre os analistas nas instituições. Trata-se de um

quarto elemento - a aquisição da capacidade de trabalhar com os colegas -, ao lado do modelo de formação com seus três pilares: análise, supervisão e seminários. Esse quarto elemento é essencial para a futura formação dos analistas: a aquisição da capacidade de trabalhar em conjunto com os colegas e de se tornar parte das atividades de intercâmbio científico e da vida institucional, como uma função permanente da identidade psicanalítica.

 

A experiência do Comitê de Educação Psicanalítica da IPA

Volto-me agora para a apresentação do novo mandato do Comitê de Educação Psicanalítica (pec) da Associação Psicanalítica Internacional (IPA).

O antigo Comitê de Educação e Supervisão tinha como foco a supervisão,6 com o objetivo de orientar e ajudar as Sociedades a manterem seus padrões de formação de acordo com o modelo escolhido. A orientação de praticar supervisão foi pensada como guardiã da integridade dos diferentes modelos. Deve-se considerar aqui, no entanto, que um modelo de formação pode funcionar somente como um protótipo ou como uma especificação ideal.

Segundo a nova orientação do PEC (2018), a função de supervisão e fiscalização foi encerrada e substituída pelo foco em ajudar os Institutos e Sociedades a manterem e desenvolverem práticas educacionais de qualidade: 1) facilitar e melhorar a troca de ideias e experiências de educação e formação entre todos os Institutos e Sociedades da IPA; 2) promover um processo de reflexão e autoestudo relacionado aos processos essenciais de educação e formação dentro e entre as Sociedades; e 3) fornecer aconselhamento e consultoria, quando solicitados, às organizações constituintes da IPA. Isso deve ser feito com interesse e respeito às variações e às diferentes condições e estilos culturais e sociais. Esperamos que as Sociedades sintam sua autonomia respeitada, e experimentem antes um apoio do que um controle por parte da IPA.

Um dos meios de pôr essa orientação em prática foi o desenvolvimento e a implementação de Encontros de Sociedades sobre Educação. O objetivo do PEC é aprofundar a autorreflexão dos Institutos e Sociedades e, assim, melhorar a qualidade da educação psicanalítica. Para tanto, três Sociedades se reúnem durante conferências regionais - por exemplo, Associação Psicanalítica Americana (APSAA), Federação Psicanalítica Europeia (EPF) e Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal) - e trocam informações de como cada uma discute e avalia a própria formação. Cada Sociedade participa com quatro ou cinco membros (por exemplo, o diretor do Instituto e de formação, um analista didata, um analista não didata que seja membro ou um membro recente, e o presidente do corpo discente). A discussão se dá em grupo e é moderada por um membro do pec, que fornece uma caixa de ferramentas para esses encontros das Sociedades. (No site da IPA, pode-se encontrar o webinar do PEC e um podcast sobre o projeto Encontros de Sociedades sobre Educação.) O trabalho em grupo feito nesses intercâmbios nos ajuda a conhecer e valorizar melhor as diferenças que se desenvolveram histórica e culturalmente nos diferentes Institutos e Sociedades. Dessa forma, podemos construir pontes entre distintas abordagens para a formação e aprender mutuamente.

No projeto do PEC Encontros de Sociedades sobre Educação, pudemos observar a importante influência que exerce a história esquecida ou reprimida dos Institutos, aquela que não é lembrada, nem falada. Esse fato se mostrou muito instrutivo para todos os participantes, em especial para os representantes dos candidatos, que muitas vezes nunca tinham ouvido falar a respeito da história que levou à consolidação de posições e regulamentações da formação nos seus respectivos Institutos.

Nesses encontros também colocamos como tema para discussão a participação dos candidatos na vida institucional e na governança. Mesmo institutos psicanalíticos conhecidos por serem muito resistentes a mudanças maiores têm introduzido inovações nas últimas duas décadas. Encontramos atitudes e práticas bastante diferentes com relação à inclusão dos candidatos/analistas em formação na vida da Sociedade e na governança. Em alguns Institutos, especialmente naqueles que trabalham com o modelo francês, ainda se argumenta que, em razão do seu estado regressivo e de se encontrarem emaranhados em múltiplas transferências, os candidatos devem ser protegidos da tentação "de abrir a porta do quarto dos pais". O treinamento/formação é então organizado de tal forma que os candidatos se concentrem em sua formação e sejam "preservados" das questões políticas. O lado positivo dessa posição é que ela favorece um espaço protegido aos candidatos para que desenvolvam a própria atitude e o próprio pensamento psicanalíticos e se insiram livremente na pertinência institucional. Por outro lado, ela pode conduzir a uma espécie de infantilização e exclusão. Mesmo quando a participação ativa dos candidatos na Sociedade é encorajada, é como se estivessem sendo levados "pela mão" a fazê-lo, o que pode vir a obstruir a necessária desidealização dos analistas e supervisores de formação. A exclusão, nesse caso, pode persistir mesmo após a qualificação final e o término da formação. No caso dos candidatos infantilizados, podemos considerar o efeito Peter Pan, que os faz se sentirem crianças eternamente e manterem a sensação de que o tempo está congelado; não se tornam membros após a finalização, conservando o status de candidato para sempre. Pude observar isto em mais de um Instituto: um analista didata muito carismático cria um grupo de candidatos talentosos e interessados ao seu redor, mas transmite-lhes o tempo todo a ideia de que ainda não são suficientemente bons. A triste consequência é que os candidatos, por um tempo muito prolongado, não ousam se candidatar à qualificação final.

No entanto, há Institutos em que os candidatos participam da governança, elegem representantes que participam nas diferentes instâncias da Sociedade e têm sua própria organização de candidatos no nível institucional da EPF e da Organização Internacional de Estudos Psicanalíticos (Ipso), o que significa que eles se organizam formando seus próprios grupos de pares no processo de tornar-se um analista. A experiência internacional estimula fortes sentimentos de alteridade e diferença em comparação com a atmosfera familiar do próprio Instituto de formação. Sobre isso, Charles Baekeland, presidente eleito da Ipso, afirmou:

Ouvir colegas internacionais falar sobre a dinâmica de seus Institutos, às vezes fortemente hierárquicos ou infantilizadores, ou onde existe uma idealização do atual autor da moda, que por acaso integra a sua Sociedade, põe em acentuado relevo a dinâmica do Instituto a que se pertence. (2019, p. 510)

Em minha opinião, a experiência internacional, em doses adequadas, deve fazer parte do processo de formação e ser apoiada.

 

Ensino: supervisão e seminários

Gostaria agora de me voltar especificamente para a supervisão oficial dos candidatos e para o ensino de teorias psicanalíticas.

A supervisão, a meu ver, constitui o lugar principal para o ensino e a aprendizagem da psicanálise, pois é ali que se reúnem a teoria, a prática e a ética psicanalíticas, emolduradas pelas diferentes experiências do(a) supervisor(a) e do(a) supervisionando(a).

Na supervisão analítica, o principal desafio, em minha opinião, é estabelecer uma relação de trabalho de apoio e solidária com o candidato, no campo de tensão entre dependência e encorajamento para a autonomia, no qual o psicanalista supervisor mantém em equilíbrio diversos papéis, plenos de expectativa e contraditórios, como os de orientador, professor, modelo, colega e examinador, de forma a incentivar o candidato a encontrar o próprio caminho e um modelo de trabalho individual.

É interessante voltar-se para a história do movimento psicanalítico e verificar a transformação ocorrida no objetivo e na forma como uma supervisão tem sido realizada. Nas décadas de 1920 e 1930, a relação geracional entre candidatos em treinamento e analistas professores era caracterizada por um razoável distanciamento, no qual os candidatos frequentemente eram colocados numa posição próxima àquela dos pacientes, ainda que estivessem em formação. Desse modo, no início a supervisão visava principalmente esclarecer os conflitos pessoais do candidato na sua relação com o paciente. Não se deve equiparar essa modalidade, que se dirigia à transferência patológica do próprio candidato para com o paciente, com a nossa compreensão atual da contratransferência durante a supervisão.

Em 1926, Max Eitingon se opôs a esse modelo de supervisão. Ele justificou sua rejeição dizendo que o candidato de fato poderia aprender muito sobre si mesmo numa análise pessoal e em seminários teóricos. No entanto, em ambas as áreas ele não aprenderia a utilizar seu conhecimento no tratamento de pacientes. Por essa razão, Eitingon recomendou a padronização a partir de uma "análise-controle". Correspondia a um modelo de formação no qual o candidato deveria aprender por meio do seu trabalho prático e com uma supervisão. O supervisor deveria ser alguém diferente do analista didata do candidato, especialmente porque as tarefas didáticas haviam então sido incluídas na supervisão. O modelo de Eitingon, que separa a análise didática e a supervisão durante a formação, foi assim estabelecido nos anos seguintes.

Tendo em vista a relação geracional entre candidato e supervisor, surgiu uma nova alternativa, que pode ser resumida sob o lema ensino ou tutoria (Cabaniss et al., 2001). A partir da diferenciação entre ensino e mentoria na função do analista que ensina, houve um afrouxamento do modelo exclusivamente hierárquico no relacionamento com o candidato. No entanto, imagens análogas, como a de mestre e aprendiz ou de professor e aluno, continuaram a ser utilizadas no período seguinte. Essas imagens correspondem a uma necessidade real de transmissão de experiência e conhecimento entre duas gerações. Do lado do professor, elas denotam o desejo de passar conhecimento para os mais jovens; do lado do aluno, seguem o desejo de receber conhecimento e orientação advindos de pessoas mais velhas experientes e competentes. Contudo, em uma relação entre gerações entendida exclusivamente de forma assimétrica, surge o problema de o mestre eventualmente produzir alunos mestres, ou então "fracassos mestres", quando a avaliação da competência é feita de acordo com gostos e preferências pessoais do supervisor, e não com base em critérios científicos. Isso infelizmente tem acontecido com frequência na história da formação psicanalítica, e o perigo da repetição persiste. Para fazer frente a esse problema, surgem novos modelos, que levam a uma virada interpessoal na supervisão (Berman, 2000; Szecsödy, 2013), e que também representam uma virada no entendimento das relações geracionais. Assim, Berman fala de uma supervisão que não seja um empreendimento puramente didático, mas um processo contínuo de avaliação mútua, que inclui temores mútuos em manifestar a própria fraqueza. O autor não se refere a uma forma crua de autoexposição por parte do supervisor. Antes, enfatiza que a compreensão do paciente pode ser desenvolvida em conjunto pelo supervisor e pelo candidato. Ele aponta as limitações fundamentais do conhecimento do supervisor. Isso estabelece a base para compreender a supervisão como um espaço aberto para o aprendizado mútuo, que ajuda o candidato a encontrar o seu próprio caminho e um modelo de trabalho individual.

Evidentemente, há também ambivalência por parte da próxima geração, que se estende desde uma possível idealização até uma rejeição (in)consciente do conhecimento analítico advindo da experiência da geração mais velha. Os motivos subjacentes são múltiplos. Ao desejo de assumir a posição do analista o mais rápido possível, soma-se o fato de que o medo da abertura incerta do processo analítico pode, por exemplo, levar os candidatos a repudiar a atitude tradicional de aguardar e observar os possíveis desdobramento da transferência e da contratransferência, avaliando essa atitude como um conceito supostamente desatualizado. Algo semelhante pode se dar em relação a conceitos familiares, como neutralidade e abstinência. Além disso, uma firmeza substantiva e convincente da geração mais velha é necessária aqui.

No contexto da ambivalência intergeracional, atitudes libidinosas e agressivas surgem e se misturam entre os mais velhos e os mais jovens. Uma compreensão generativa dos conflitos envolvidos requer dos candidatos e dos analistas didatas que lidem com um campo de tensão que tem sinais invertidos para ambos. O supervisor necessita sobretudo de clareza conceitual e, simultaneamente, abertura para o desconhecido e para o seu próprio não conhecimento a fim de transmitir seu conhecimento. Já o candidato precisa estar disponível para admitir o seu não conhecimento e receber o conhecimento do supervisor a fim de assumir gradualmente, cada vez mais, a responsabilidade pessoal por uma perspectiva compreensiva e emocional de si mesmo e de si como analista interagindo com o paciente (Szecsödy, 1999).

Entrementes, um método não destrutivo - antes, construtivo - de lidar com a competição intergeracional durante a formação é oferecido pelo reconhecimento da existência inevitável de teorias implícitas do analista na situação clínica (Bohleber, 2009; Sandler, 1983). Na formação, não é mais possível ensinar padrões simplistas de teorias "certas" ou "erradas" ou de interpretações "certas" ou "erradas". Ao longo das últimas décadas, ocorreram grandes mudanças em razão dos grupos de trabalho [working parties] sobre ensino. As publicações que surgiram a respeito (Junkers & Erlich-Ginor, 2008; Szecsödy, 2014) abriram a possibilidade de um clima na formação psicanalítica que põe a preocupação com as teorias explícitas e implícitas do candidato no lugar de um conhecimento supostamente "certo" ou "errado". Durante as discussões de caso e nas supervisões, os pontos "fortes" e "fracos" da competência psicanalítica dos candidatos são agora descobertos em conjunto, garantindo-se dessa maneira antes de mais nada a possibilidade de adquirir competências. O foco passa a ser o que o candidato pensou e fez, e não mais o que também se poderia ou deveria pensar a respeito. Isso de forma alguma leva à pura afirmação. Precisamente por se sentirem respeitados, os candidatos absorvem muito do pensamento de cada um. A supervisão é baseada no princípio de primeiro procurar na outra pessoa onde e o que ela pensou e fez, e a partir daí formular possíveis extensões e alternativas.

É necessário, no entanto, lembrar ainda que se cria uma situação contraproducente para os candidatos quando se desenvolve um conflito entre diferentes atores que participam da sua formação, muitas vezes uma competição inconsciente. É possível que surja uma confusão de papéis - por exemplo, entre o analista pessoal e o supervisor.

Gostaria de me voltar agora para os seminários clínicos e teóricos da formação psicanalítica. A formação psicanalítica atual põe grande ênfase em ajudar os alunos a desenvolver sua própria identidade analítica, dando-lhes muito espaço para a própria compreensão do material clínico e teórico nos seminários.

Atualmente, em muitos Institutos, o currículo inclui as obras de Freud e os mais importantes desenvolvimentos pós-freudianos e contemporâneos de diferentes abordagens, e também aqueles mais centrados na análise de crianças e adolescentes. Mas isso não se dá em todos os Institutos. Em alguns, os candidatos ainda se veem envolvidos em brigas entre escolas psicanalíticas concorrentes de analistas didatas de destaque. Os candidatos são então pressionados a se adaptar a seu ambiente intelectual e emocional. Essa pressão pode ser guiada por uma atitude fundamentalista que leva quase à doutrinação e à adesão cega a uma teoria, que é considerada aquela que contém a verdade. Com frequência, a situação está mais disfarçada numa adesão apenas a textos freudianos clássicos. Nessas Sociedades, a apresentação de um artigo, talvez com uma abordagem bioniana, tem grande probabilidade de ser rejeitada. Essa é uma situação que ainda acontece, e não deixa de ser um sistema profundamente atraente, pois se apresenta cheio de reafirmações de certezas. É reconfortante pertencer ao grupo que tem a teoria correta, porém o preço a ser pago é o de uma identidade que não está enraizada em aprender com a própria experiência e elaborá-la, mas que se constrói a partir de uma espécie de falso self analítico.

 

Considerações finais

Com o nosso sentimento de segurança abalado pela atual conjuntura cultural, política e econômica, e ainda em meio à pandemia, os grupos - e as instituições psicanalíticas não estão excluídas - apresentam disposição aos estados primitivos. Facilmente escorregamos para uma polarização entre dogmatismo e arbitrariedade e perdemos nossa maneira de funcionar como grupos de trabalho. Acredito fortemente que o analista em formação não deve se intimidar. Antes, deve ousar fazer perguntas, e se estranhar alguma argumentação, deve pedir esclarecimentos.

Nossa formação se torna generativa quando permite aos candidatos o contato e o encontro com toda a ampla gama de diferentes conceitos. Na melhor das hipóteses, muitos professores com diferentes orientações se encontram disponíveis para tanto. Nessa cultura de formação multidimensional, ambivalências e conflitos de rivalidade inter e intragerações naturalmente continuarão a se desenvolver. Nesse contexto, é responsabilidade da geração mais velha criar condições de enquadre para uma rivalidade criativa, ao invés de destrutiva. Um relacionamento geracional construtivo é possibilitado pela capacidade, por parte da geração mais velha, de renunciar a seguidores e de contar com uma estabilidade narcísica que prescinde de retribuições quando os candidatos seguem seu próprio caminho.

Somente será possível preservar o potencial criativo da formação psicanalítica se os professores não confundirem a necessária transmissão da tradição com uma idealização dogmática do passado psicanalítico, e se puderem aceitar a natureza finita de sua compreensão da psicanálise, bem como da de seus próprios professores em cada caso (Blaß, 2013). Esse processo, potencialmente doloroso, poderá ser manejado pelos professores na medida em que também puderem sentir-se confiantes na efetividade duradoura de seus papéis enquanto modelos analíticos. O relacionamento entre gerações abre um espaço para o desenvolvimento dos candidatos e analistas mais jovens, no qual podem utilizar-se dos conceitos tradicionais centrais de seus professores como base para sua própria identidade psicanalítica e construir a partir dela a sua própria atualização criativa da psicanálise.

 

Referências

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Recebido em 28/7/2021
Aceito em 11/8/2021

 

 

1 Artigo elaborado a partir da apresentação feita no LII Congresso Internacional de Psicanálise, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) - realizado em Vancouver, Canadá, em julho de 2021, no formato online -, na mesa-redonda "Os processos de infantilização na formação psicanalítica".
2 nt: "A generatividade foi descrita por Erikson como a preocupação com o desenvolvimento da comunidade humana e o bem-estar das próximas gerações. Em nossa cultura, a atividade profissional é percebida como a forma mais significativa de contribuição individual para a sociedade". Cf. Magalhães, M. O. & Gomes, W. B. (2005). Personalidades vocacionais, generatividade e carreira na vida adulta. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 6(2),71-79. https://bit.ly/3EV1xPI.
3 nt: ao longo do texto, o inglês training foi traduzido não por treinamento, mas por formação, como é corrente na Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi).
4 nt: ao longo do texto, o inglês training analyst foi traduzido por analista didata, como é corrente na Febrapsi.
5 nt: a primeiridade é algo que existe em si mesmo, a secundidade deve estar relacionada a alguma outra coisa, e a terceiridade requer uma relação mais complexa, seja ela uma relação entre três coisas, uma relação entre relações, ou talvez ambas ao mesmo tempo.
6 nt: a palavra original é oversight, traduzida aqui também por supervisão, mas deve-se ter em mente que não se trata da supervisão do trabalho clínico com pacientes, e sim de uma supervisão institucional.

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