Introdução
A partir de vinhetas clínicas extraídas do tratamento de duas pacientes fortemente traumatizadas que permaneceram em análise comigo durante vários anos, foi possível detectar uma forte transferência positiva que ambas estabeleceram com a minha voz. Devo ressaltar que o intuito aqui não é tratar a voz apenas como fenômeno sensorial e concreto, mas também, e muito mais, como potencial transmissora de emoções que vinculam o paciente ao terapeuta na transferência, propiciando-lhe uma provisão ambiental adequada no processo de narrar e ressignificar a própria história que envolve o processo analítico – uma voz capaz de transmitir intenções e emoções que surgem no espaço intersubjetivo da análise.
A voz de um analista, carregada do tônus afetivo apropriado a cada intervenção ou interpretação em análise, que se compadece e empatiza com o sofrimento do paciente traumatizado, mostrou ser, conforme as observações clínicas descritas adiante, um importante elemento na relação transferencial total, um aspecto significativo na dinâmica relacional paciente-analista das duas pacientes apresentadas neste trabalho.
A paciente Francisca, já em nosso primeiro encontro, menciona que há algo de familiar em minha voz. Penso tratar-se de um comentário relacionado às características do meu sotaque, já que tanto eu quanto ela pertencemos à mesma região do país. No entanto, à medida que a aliança terapêutica se estabelecia e os aspectos regressivos da análise se manifestavam, fui me dando conta de que havia nas suas palavras algo do apelo de uma criança desamparada e traumatizada.
Muito tempo depois, ao retomar esse caso clínico à luz de algumas teorias psicanalíticas, bem como, é claro, das minhas intuições, fui obrigado a reconhecer que, no caso dessa paciente, a dita transferência com a minha voz talvez entrasse justamente no lugar onde havia, de fato, muitos espaços vazios na sua experiência emocional. Quando a paciente sinalizava sua ligação com minha maneira pessoal de falar com ela, minha entonação e todos os aspectos relevantes desse envoltório sonoro que abarca a relação do paciente com o analista, estava me apresentando uma sobreposição de possíveis demandas endereçadas a mim durante o seu processo analítico.
Francisca, uma mulher de meia-idade e de origem pobre, via de regra, teve relacionamentos traumáticos com as figuras masculinas que foram se apresentando ao longo de sua vida. Podemos citar o irmão abusador, depois os dois rapazes também abusadores, filhos de uma de suas patroas, e ainda seu próprio marido, descrito como um homem rude e violento. Penso na reverberação de todas essas vozes masculinas aterrorizantes em seu psiquismo.
Devo ressaltar que, muitas vezes, Francisca me solicitou por telefone e por áudios através de um aplicativo de celular. Devo também mencionar que, durante algumas das sessões de análise, ela verbalizou claramente que, diante da possibilidade da interrupção do processo terapêutico, queria garantir que poderia ao menos continuar escutando a minha voz.
Anos após o fim dessa análise e ao refletir sobre ela, eu me via sempre no papel tanto do analista maternal quanto do homem, objeto externo e real em quem Francisca podia confiar. No entanto, talvez por uma defesa minha, só muito tempo depois fui capaz de reconhecer que minha voz poderia ser uma mistura de vozes: da mãe acalentadora, que ela não teve; do pai, que ela nunca conheceu; e do amante, o primeiro homem que talvez tenha olhado e escutado essa mulher marcada pela violência e pelo sofrimento.
A outra paciente, a quem chamarei de Ayla, chegou a me desconcertar na primeira vez que disse: “Pra mim, é mais importante escutar o som da sua voz do que o conteúdo do que você diz”. Essa fala da paciente me fez crer que minhas interpretações e o meu manejo eram inadequados e que eu não estava me adaptando devidamente às suas necessidades em análise. No entanto, chamava muito a minha atenção o compromisso que ela tinha com o processo analítico. Desde o início Ayla fazia questão de pagar adiantado e no primeiro dia útil do mês. Era como se precisasse garantir o seu espaço, garantir que eu não o daria a outra pessoa. Aquele espaço e aquele tempo precisavam ser exclusivamente dela.
Após um longo período afastada da análise, ela retorna e se diz “quebrada”, sem condição de pagar o tratamento. Eu compreendo nessa fala um duplo comunicado, em que ela me endereça um pedido de sustentação (holding), no sentido winnicottiano do termo (Winnicott, 1960/1982). Ela precisava sentir que poderia contar comigo também nesse aspecto. Durante esse segundo período de análise, foi capaz de verbalizar com clareza que a voz de sua mãe era sentida por ela como perturbadora e que a voz de sua avó era acalmadora e organizadora, como a minha. Tempos depois, eu iria mais longe nessas ideias, lembrando-a dos episódios extremamente traumáticos que tinha vivido com o pai biológico ao telefone – nesse caso, uma voz portadora de traumas.
Acredito que, também no caso dessa paciente, a relação com a minha voz se estabelece em uma multiplicidade de vínculos. As transferências vão se sobrepondo ou se intercalando de acordo com o momento da paciente em análise. Ora sou o analista acolhedor e maternal, ora entro nos processos constitutivos daquela dimensão de sua experiência emocional que não existiu ou que aconteceu de forma muito negativa. Um exemplo disso seria a tentativa fracassada de se conectar com o pai biológico. Outro exemplo é a diferença da relação estabelecida entre nós e a que existiu com o seu padrasto abusador.
Entre as questões que habitaram a minha mente em relação às pacientes mencionadas sobressaíram-se as seguintes: qual terá sido a importância da transferência estabelecida por essas pacientes com a minha voz como um elemento destacado dentro da transferência total com o analista e a própria importância do elemento voz na constituição psíquica? Qual é a importância de uma voz que veicula continência, que funciona como agente terapêutico e antitraumático no processo analítico, e que ao mesmo tempo não se transforma em sedução?
Houve um momento analítico marcante quando Ayla, após ter encerrado a sua segunda análise comigo, me solicitou uma sessão com a justificativa de que havia tido um insight, o qual precisava muito me relatar.
Durante a sessão, ela falou sobre o reencontro com um homem com quem teve um caso de amor mal resolvido no passado e que se arrastou durante vários anos em sua vida. Esse reencontro reacendeu nela a esperança de ter encontrado o grande amor de sua vida. No entanto, em pouco tempo ela percebeu que o homem não abandonaria a esposa para ficar com ela, o que a fez refletir longamente sobre as possíveis razões de estar revivendo situações muito semelhantes de desilusão e abandono por parte daqueles a quem havia escolhido como parceiros afetivos. Esse período de introspecção possibilitou a ela o insight de que aquele homem reunia em uma mesma pessoa três importantes aspectos traumáticos internalizados por ela e associados a figuras masculinas de sua história: o pai biológico abandonador, o tio para quem ela se sentia sempre insuficiente e o padrasto abusador, que a colocou no papel de amante, da “outra”, um lugar de “terceiro excluído” no triângulo estabelecido entre eles e sua mãe. A partir de experiências vividas, todas essas vozes trazidas por ela convergiram para a relação estabelecida comigo e com a minha voz, permitindo que ela reencenasse comigo histórias significativas de seu passado.
Considerações sobre a voz: banho melódico, ritmo, inflexão
Neste ponto do artigo, pretendo abordar a importância da voz na construção do narcisismo e nas primeiras etapas de constituição do psiquismo, como um elemento que deixa marcas indeléveis nos processos emocionais primitivos do indivíduo. Vou traçar um paralelo entre esse período de experiências primitivas e sua atualização no processo analítico através das situações de transferência e regressão em análise. Em alguns casos, como os apresentados aqui, a vinculação do paciente com a voz do analista surge como forte indicativo de aspectos regressivos que podem vir a se tornar importantes aliados no trabalho analítico com esse paciente.
Didier Anzieu (1985/1989), ao retomar os mitos gregos de Eco e Narciso, assinala a primazia do espelho sonoro sobre o espelho visual no que diz respeito aos processos de constituição psíquica. Seguindo suas palavras, caso o espelho – sonoro ou visual – devolva ao sujeito apenas ele próprio, isto é, sua exigência de amor, seu desamparo, como no caso da ninfa Eco, ou sua procura de uma imagem ideal, como no caso de Narciso, o resultado será o desequilíbrio pulsional, que libera as pulsões de morte, promovendo a sua prevalência sobre as pulsões de vida.
Anzieu se apoia em uma vasta pesquisa para afirmar que o bebê está ligado a seus pais por um sistema audiofônico, formado pela cavidade bucofaríngea (responsável por produzir os elementos indispensáveis à comunicação). Assim, na vida embrionária, o espelho sonoro exerce um papel essencial na expressão das emoções. Podemos completar adiantando algumas informações a partir de pesquisas mais recentes ligadas ao desenvolvimento fetal, assinalando que, aos 5 meses, o feto já é capaz de perceber e reagir a sons do ambiente e, sobretudo, à voz materna.
Antes que o olhar e o sorriso da mãe que alimenta e cuida conduzam o bebê aos processos de formação de uma imagem de si que seja reconhecível e interiorizada, lançando as bases para a formação e o desenvolvimento de um self integrado, Anzieu defende a existência e a primazia do que ele nomeia de banho melódico, composto pelo som da voz da mãe, suas cantigas de ninar e o manhês (Laznik, 2011), uma forma singular com que as mães se dirigem aos seus bebês. Esses elementos com predominância das pulsões de vida formam o primeiro espelho sonoro do qual o bebê se valerá, apoiando-se nele para evoluir através de seus choros e balbucios, até ser capaz de formar as primeiras sílabas e palavras. O espelho sonoro, ou banho melódico, pressupõe a existência de um outro na vida do bebê que esteja em sintonia emocional com ele, muitas vezes nomeando, traduzindo, interpretando ou ainda antecipando as suas necessidades. Essa experiência primitiva e constitutiva se inicia antes mesmo do nascimento e se prolonga através do tempo pela relação estabelecida desde o período intrauterino entre o bebê e sua mãe.
Em seu importante trabalho O eu-pele (1985/1989), Anzieu observa que o espelho sonoro constitui o primeiro espaço psíquico para o bebê. Ele afirma que o self se constitui pela introjeção do universo sonoro (além do gustativo e do olfativo) num período de imaturidade psíquica em que podemos considerar o psiquismo do bebê em estado fusional com seus cuidadores. Segundo o autor,
as sensações auditivas, associadas no momento da emissão sonora às sensações respiratórias, que lhe fornecem uma impressão de volume que se esvazia e se preenche, preparam o self para se estruturar tendo em conta a terceira dimensão do espaço (a orientação, a distância) e a dimensão temporal. (p. 181)
Anzieu evidencia a existência desse espelho sonoro ou envoltório auditivo-fônico como elemento de constituição do self muito precoce e sua função fundante no aparelho psíquico da capacidade de dar significação, que posteriormente tornará o psiquismo apto aos processos de simbolização.
A pesquisa desenvolvida por Busnel (1997) e aquelas empreendidas junto a colaboradores (Busnel & Heron, 2011; Busnel & Melgaço, 2013; Busnel et al., 2002) mostram o papel fundamental da voz desde o início da vida, tocando o bebê humano ainda em seu período intrauterino. O encontro entre o bebê e o seu mundo se faz inicialmente por via sonora. A pesquisadora explica que, no que diz respeito à fala e ao som das vozes, o feto é capaz de captar as diferenças entre duas sílabas, frases, locutores, línguas, canções infantis ou até mesmo entre trechos de músicas. Segundo Busnel e Heron (2011), as capacidades do feto para discriminar os sons são bem documentadas e revelam um funcionamento auditivo eficaz, que vai sendo aprimorado durante as primeiras fases de desenvolvimento, logo após o nascimento. Ainda sobre as capacidades auditivas dos recém-nascidos, as autoras dizem que, entre os diferentes sons, o bebê humano demonstra uma preferência significativa pelas vozes femininas e, entre estas, pela voz da mãe.
Descobriu-se que o bebê humano também prefere a língua falada por sua mãe a outras línguas, o que indica não apenas que ele é capaz de distinguir sons diferentes percebidos ainda no período pré-natal, mas também que consegue reconhecê-los como semelhantes àqueles que escuta após o nascimento. Busnel e Heron (2011) afirmam que isso revela uma continuidade transnatal de capacidades auditivas, pois o feto memoriza e se habitua aos sons mais familiares, que passam a ser os seus preferidos após o nascimento.
Todas essas importantes informações me fizeram refletir sobre qual seria o papel da voz masculina: de que maneira o bebê percebe a voz do pai nesses primórdios constitutivos do psiquismo individual? Essa questão se fez pertinente porque a maioria dos textos consultados aponta uma clara preferência dos bebês pela voz feminina. Como pesquisador e clínico, eu me questionava ainda mais sobre o vínculo estabelecido por minhas pacientes com minha voz.
Acerca dessa questão em especial, Busnel e Melgaço (2013) afirmam que os bebês são sensíveis à voz do pai quando este fala com eles diretamente. Se a voz do pai está apenas presente no ambiente, essa voz, para o bebê ou para o feto, não terá o mesmo destaque que a voz materna. No entanto, se o pai fala com o feto e dele se aproxima, e ainda se toca nele, dirige-se a ele como a um ser humano adulto, sua voz tem um efeito tão importante quanto o da voz da mãe, em alguns casos até mesmo mais importante. As autoras admitem que alguns pais têm uma relação que parece ser mais próxima, verdadeira e real do que a relação da mãe com o bebê.
A psicanalista Laznik (2011), por seu turno, defende que o manhês é a língua que todas as mães do mundo empregam para falar com seus bebês. Nos últimos anos, porém, tem ganhado força nos círculos que pesquisam essa forma de comunicação o “parentês”, considerando-se a ativa participação do pai, assim como a de outros adultos, nos cuidados e na relação com o bebê. Laznik diz que, no campo da prosódia, “o manhês compreende um registro de voz mais alto que o de hábito, com uma gama de entonação restrita, mas com modulações e variações de altura muito exageradas, formas melódicas doces e longas, com amplas variações” (p. 95). A autora vai além e afirma que trabalhos recentes ressaltam ainda a importância da participação do bebê na qualidade da prosódia do manhês produzido pelo adulto, o que nos faz concluir que a dimensão intersubjetiva se estabelece desde um período muito precoce, devendo-se levar em conta o papel do bebê nela. Laznik prossegue:
Desde sete semanas de vida, o bebê prefere a produção sonora de uma mulher que fale em manhês; e ele prefere mesmo que seja numa língua estrangeira. Isso é muito perceptível quando recebemos bebês estrangeiros em consulta. Eles se mostram muito interessados pelo que contamos, desde que o adulto que se dirige a ele fale um bom manhês. Essas primeiras mensagens verbais, transmitidas através dos contornos melódicos – nós podemos dizer através da entonação –, os valores afetivos, eles motivam, eles direcionam para a comunicação verbal. Essa dimensão musical e poética, portadora desses valores afetivos, é superior à representação de palavras que podem ser não importa quais. (p. 95)
Um bom manhês, portanto, envolve toda essa dimensão musical e poética contida na afetividade que é transmitida pela mãe ou pelo cuidador através da voz. Tais descobertas de Laznik me fazem lembrar vivamente das palavras da paciente Ayla quando dizia que, para ela, importava mais o som da minha voz do que o conteúdo das palavras nas intervenções que eu fazia e endereçava a ela durante a análise. Estamos aqui o tempo inteiro tentando traçar paralelos entre as vozes constituintes do psiquismo em seu período mais primitivo e o papel do analista exercendo a função maternante durante a análise. No caso das duas pacientes a que me referi antes, a voz masculina tinha um papel importante de evocar a transferência. Isso me faz levantar a hipótese de que a origem da função paterna também pode ser encontrada nessa experiência com a voz paterna, com sua tonalidade diferente, com sua alteridade, que vem se sobrepor à voz materna. Embora a função paterna seja sempre associada à presença de limite e de corte da simbiose originária com a mãe, podemos propor a ideia de que o próprio limite seja aceito com maior facilidade pela criança se parte de um pai que inicialmente se põe em continuidade com a função de acolhimento e continência, típica da função materna. Em contraste com as experiências anteriores de figuras paternas severas e desautorizadoras, o analista ofereceria um ambiente de continência, que possivelmente estava sendo transmitido através da sonoridade de minha voz, gerando assim um clima de confiança e um efeito calmante e reassegurador.
Sem dúvida há muita diferença entre os cuidados maternos e o trabalho realizado no ambiente analítico, porém permanece nesse último a exigência de uma ética do cuidado com seus aspectos de acalmar, proteger e nutrir. A mãe participa da constituição psíquica do bebê com o banho melódico de palavras e significados. Por sua vez, o analista de pacientes traumatizados precisa desenvolver novas estratégias para a reparação de um psiquismo fraturado e fragmentado.
Para apoiar as minhas intuições clínicas, recorro a um breve trecho do trabalho de Trevarthen e Gratier (2005), quando afirmam que as emissões vocais são organizadas em falas verbais, que carregam igualmente uma musicalidade espontânea tão significativa quanto as palavras. Esses dois autores destacam que, para Fónagy, o sentido da fala está além das palavras, processo no qual o inconsciente se exprimiria espontaneamente através de sutilezas, da dinâmica e da rugosidade da voz viva. Ou seja, esses autores reconhecem que a voz tem o poder de evocar sensações tácteis, que seriam equivalentes a uma carícia na pele.
Gratier (2011), em outro trabalho, propõe ainda que existe uma continuidade entre o verbal e o musical, ligada à natureza da voz humana, que, de um lado, musicaliza a fala atribuindo-lhe as formas temporais e expressivas, através da modulação sutil de dimensões como altura, duração, intensidade e timbre, e, de outro, aporta o sentido aos sons musicais que ela produz, expressando o sentido para além das palavras. A autora conclui que as modulações da voz, nas suas múltiplas dimensões expressivas e dinâmicas, têm o poder de dizer aquilo que as palavras não dizem.
A forma, o ritmo, a entonação, ou, em outras palavras, a melodia da voz, que faz lembrar vivamente o banho melódico e o espelho sonoro de Anzieu (1985/1989), torna-se mais relevante que as palavras ditas, pois carrega o tônus afetivo que extrapola o significado das palavras.
Gratier (2011) afirma que a voz humana é um dos elementos de toda uma corporeidade que organiza a experiência do bebê, dando a ele um sentimento de existência. A autora, em consonância com Laznik (2011) e, de certa forma, com Anzieu (1985/1989), chama a atenção para a importância da prosódia – a parte da linguística que estuda a entonação, o ritmo e o acento (intensidade, altura, duração) da linguagem falada. Diz também que reagimos através da nossa voz, por vezes sem saber, já que é difícil controlar o ritmo, a entonação e a respiração quando somos tomados de fortes emoções. Nossa voz e sua dinâmica relacional são o produto e o reflexo, em muitas situações, das expressões do outro em relação a nós e das motivações internas para tocar o outro de certa maneira ou, ainda, para produzir nele um efeito subjetivo.
Gratier (2011) nomeia de assinaturas prosódicas essa forma muito particular de cada indivíduo se comunicar com a sua voz. Para ela, cada sujeito tem uma voz particular e característica, mas que também é influenciada pelo contexto cultural em que ele está inserido, sobretudo pelas motivações que pertencem ao campo da intersubjetividade, que compõem as trocas emocionais e culturais construídas no “entre-dois”. A voz transmite tonalidades de ternura, de impaciência, de raiva – enfim, de toda a gama de afetos.
Essas ideias me fazem retornar a Anzieu e a suas fecundas contribuições a respeito da importância do espelho sonoro na constituição psíquica, algo que, sem dúvida, repercute a posteriori na maneira como o indivíduo se posiciona frente ao mundo e às experiências. No espaço da análise, durante o trabalho com pacientes específicos, isso se mostra de modo contundente, através das comunicações verbais e não verbais que os pacientes manifestam na transferência e nos períodos de intensa regressão.
A paciente Francisca precisava ser sustentada, aquecida, acolhida e protegida pelo ambiente analítico. Isso a colocava em movimento, no rumo de sua emancipação e crescimento. Era como se precisasse ser apresentada ao mundo dos objetos e das palavras.
Diferentemente do paciente Marsias, atendido por Anzieu (1985/1989), que tinha uma mãe nutridora, mas que o deixava a maior parte do tempo sob os cuidados mecânicos de uma babá, a história de Francisca revela um começo de vida com muitas falhas e privações, sempre marcado pela violência. Lembro-me então de outra passagem de sua análise. Pergunto sobre o relacionamento com sua mãe, já que suas memórias mais primitivas estavam apagadas. Ela me conta da aspereza da mãe para com ela, chamando-a frequentemente de “nega safada”, o que logo associo ao que Anzieu nomeia de banho negativo de palavras. Terá sido sempre assim? O seu funcionamento psíquico e as demandas de Francisca na transferência me sugerem que o banho negativo de palavras deve ter sido muito frequente.
Penso que talvez os silêncios dessa paciente após algumas das minhas intervenções fossem um sinal de sua incapacidade de compreender o sentido das minhas palavras, embora para ela significasse muito permanecer usufruindo do dispositivo analítico que lhe era ofertado. Para ela, o mais importante parecia ser a presença, a companhia viva de alguém interessado nela e no que ela tinha a dizer, além da sensação de vínculo e apego encontrada na análise e com o analista.
Segundo Anzieu (1985/1989), quando a experiência do espelho sonoro acontece de maneira traumática nos primórdios da constituição psíquica, seja porque a relação com a voz materna se dá de forma perturbadora, confusa e desagradável, seja porque se dá de forma distante, monocórdica ou sem vida, no lugar de uma experiência envolvente e organizadora, abre-se espaço para o desenvolvimento de patologias narcísicas, psicossomáticas e de adaptação social e intelectual, entre outras possibilidades.
Quando o espelho sonoro, que deveria propiciar o banho melódico e de palavras positivas, revela ser um espelho sonoro discordante, isso acontece sem levar em conta o que o bebê sente, espera ou exprime. Nesses casos, podemos supor uma indisponibilidade e desinteresse do ambiente para com o ser nascente.
Outra forma de espelho sonoro com potencial para promover patologias se dá pela sua inadequação, quando é ora insuficiente, ora excessivo, passando de um extremo ao outro de modo arbitrário e incompreensível para o bebê. Quando a relação se estabelece dessa maneira, o bebê percebe as extremas modificações vindas do ambiente como um tipo de violência contra a sua constituição do self, o que nos leva a crer que a repetição e a frequência desses microtraumatismos prejudicarão a continuidade do ser do bebê.
Anzieu (1985/1989) também menciona o espelho sonoro que se torna patogênico por sua impessoalidade, caso em que o ambiente não ajuda o bebê a dar forma ao que ele próprio sente, nem ao que sua mãe sente por ele.
O contexto socioambiental da paciente Francisca era composto desde sempre por aspereza, aridez e violências emocionais, e seu encontro comigo, o tempo que permaneceu em análise, favoreceu a sua descoberta, ou redescoberta, de algo que seria um contraponto ao mundo hostil em que vivia. O espaço da análise e a minha presença apresentaram a ela uma conexão com outras possibilidades de ser e existir, de diferenciar-se, desenvolver-se e, quem sabe, tornar-se ela mesma. Mas seria ela capaz de tomar posse disso? Acredito que Francisca se agarrou, colou-se a mim, à maneira do funcionamento ocnofílico descrito por Balint (1993), apresentando extrema adesividade em relação a mim. O processo analítico, que deveria ser fonte de estímulo e movimento, foi se tornando um lugar para que seu psiquismo se mantivesse estático e estéril, bloqueando grande parte das possibilidades terapêuticas. Quando o paciente apresenta esse tipo de carência primordial na sua constituição psíquica, o objetivo da análise será fornecer, através de modificações adequadas do dispositivo analítico, a heteroestimulação necessária para que o paciente desenvolva a capacidade de simbolizar
Anzieu (1985/1989) observa que esse tipo de paciente, chamado por ele de carente e não neurótico, sempre ficará insatisfeito com o analista e a psicanálise. No entanto, a aliança simbiótica estabelecida durante o processo entre a parte autêntica do seu self e o analista permitirá que ele reconheça aos poucos e gradualmente, pela repetição na transferência dos estados de insatisfação, essas falhas, que poderão ser percebidas, nomeadas e superadas em condições favoráveis ofertadas pelo ambiente da análise.
Michael Balint (1993), em uma de suas obras mais significativas, A falha básica, tece importantes considerações sobre esse tipo de paciente com necessidades muito primitivas. Assim como Ferenczi (1932/1990, 1931/2011a, 1933/2011b, 1929/2011c, 1928/2011d) e Winnicott (1967/1994a, 1965/1994b, 1963/1994c, 1965/1994d, 1970/1994e, 1954/2000), Balint põe grande ênfase nos aspectos relacionais do trabalho analítico e considera a regressão terapêutica no setting analítico um meio de tornar possível a reparação dos danos causados por traumatismos muito precoces. Ele conceitua dois tipos de regressão: a benigna, considerada por ele a verdadeira regressão terapêutica, e a maligna, que aprisiona o indivíduo em um circuito de repetição e demandas insaciáveis, impossibilitando-o de ter acesso à simbolização dos traumas. Temas profundamente relevantes que menciono para lembrar de mais um autor – além de Ferenczi, Winnicott e Anzieu – que trouxe grandes contribuições ao trabalho com pacientes intensamente traumatizados.