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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.1 São Paulo  2023  Epub 14-Out-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n1.10 

Artigo

Sexualidades1

Sexualidades

Sexualities

Sexuαlités

Adalberto Antonio Goulart2 

2Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPRPE)


Resumo

Tal qual o inconsciente que pulsa, dinâmico e, portanto, móvel por definição, a criar-se e recriar-se, constantemente em produção e em trânsito permanente, a sexualidade humana não é terreno de certezas, definições ou segurança. Nesse sentido, já não caberia falarmos de sexualidade ou gênero como algo a contemplar tão somente a heterossexualidade ou a homossexualidade. Precisamos considerar todas as possibilidades conhecidas e ainda não conhecidas, visto que a natureza subversiva do desejo não pode ser aprisionada, sob pena de desnaturalizarmos a condição humana, que é livre e plural para sermos quem somos, contemplando a diversidade que, bem ou mal, produziu tudo o que temos em termos de civilização e cultura.

Palavras-chave pulsão; inconsciente; desejo; sexualidade; pluralidade

Resumen

Tal cual el inconsciente que pulsa, dinâmico y, por lo tanto, móvil por definición, a crearse y recrearse, constantemente en producción y en tráfico permanente, la sexualidad humana es terreno de incertidumbres y no de definiciones y seguridad. En ese sentido, ya no cabe hablar de sexualidad o de género como algo contemplativo tan solo de la heterosexualidad o la homosexualidad. Necesitamos considerar todas las posibilidades conocidas y no conocidas, ya que la naturaleza subversiva del deseo no puede ser aprisionada, bajo pena de desnaturalización de la condición humana, que es libre y plural para que podamos ser quienes somos, contemplando la diversidad que, bien o mal, produjo todo lo que tenemos en relación a civilización y cultura.

Palabras clave pulsión; inconsciente; deseo; sexualidad; pluralidad

Abstract

Similarly, to the unconscious that is pulsating, dynamic, and therefore, mobile by definition, creating and recreating itself, constantly in production and in permanent transit, human sexuality is not a terrain of certainties, definitions, or security. In this sense, we should no longer speak of sexuality or gender as something that contemplates only heterosexuality or homosexuality. We need to consider all known and unknown possibilities, since the subversive nature of desire cannot be imprisoned, under penalty of denaturalizing the human condition, which is free and plural to be who we are, contemplating the diversity that, for better or for worse, produced everything we have in terms of civilization and culture.

Keywords drive; unconscious; desire; sexuality; plurality

Résumé

Tel que l’inconscient qui pulse, dynamique et, conséquemment, mobile par définition, tout en se créant et se recréant constamment en production et en circulation permanente, la sexualité humaine n’est pas un terrain de certitudes, de définitions ou de sécurité. Dans ce sens, il ne conviendrait pas de parler de sexualité ou de genre comme quelque chose qui ne valorise rien d’autre que l’hétérosexualité ou l’homosexualité. Il nous faut considérer toutes les possibilités connues et encore inconnues, vu que la nature subversive du désir ne peut pas être apprivoisée, sous peine de dénaturaliser la condition humaine, qui est libre et plurielle pour que nous soyons exactement ce que nous sommes, tout en valorisant la diversité que, tant bien que mal, a produite tout ce que nous avons en termes de civilisation et de culture.

Mots-clés pulsion; inconscient; désir; sexualité; pluralité

É isto, amor: o ganho não previsto,

O prêmio subterrâneo e coruscante,

Leitura de relâmpago cifrado,

Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre,

Salvo o minuto de ouro no relógio

Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,

Depois de se arquivar toda a ciência

Herdada, ouvida.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, “Amor e seu tempo”

No mundo em que vivemos, não é novidade para ninguém que ideais questionáveis como a religião, a política, o poder e, consequentemente, as tentativas frustradas de abolição das diferenças não guardam nenhuma relação com a psicologia, a medicina, a psicanálise, a ciência, mas podem dar origem, e dão, como assistimos cotidianamente, ao preconceito e à violência.

Quatro anos antes de sua morte, Freud recebeu a carta de uma mãe solicitando que ajudasse seu filho. A resposta, enviada há 88 anos, continua fundamental e deveria nos surpreender por ainda tornar-se necessária (“A resposta de Freud”, 2017).

19 de abril de 1935

Minha cara senhora,

Lendo a sua carta, deduzo que o seu filho é homossexual. Chamou fortemente a minha atenção o fato de a senhora não mencionar esse termo na informação que acerca dele me enviou. Poderia lhe perguntar por que razão? Não tenho dúvidas que a homossexualidade não representa uma vantagem; no entanto, também não existem motivos para se envergonhar dela, já que isso não supõe vício nem degradação alguma. Não pode ser qualificada como uma doença, e nós a consideramos como uma variante da função sexual.

A análise pode fazer outra coisa pelo seu filho. Se ele estiver experimentando descontentamento por causa de milhares de conflitos e inibição em relação à sua vida social, a análise poderá lhe proporcionar tranquilidade, paz psíquica e plena eficiência, independentemente de continuar sendo homossexual ou de mudar sua condição.

Sinceramente, meus melhores desejos, Freud

A descoberta de que muitos dos chamados traumas tinham origem em fantasias marca a decepção sofrida por Freud em relação à sua neurótica, comunicada em carta a Fliess de 21 de setembro de 1897 – carta 69 (Masson, 1986) –, data que alguns consideram corresponder ao nascimento da psicanálise, conjuntamente com o abandono da teoria da sedução, que supunha apenas a existência de traumas sexuais concretos para explicar a etiologia das neuroses.

A partir de então, o estímulo endógeno passou a ocupar o centro de suas atenções e recebeu o nome de Trieb, traduzido do alemão para o português como pulsão. Assim, a psicanálise começa a conceber um aparelho mental com origem na fonte biológica endógena, ponto de intersecção entre o orgânico e o mental.

O termo pulsão (Trieb) aparece em Freud, pela primeira vez, no “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/2006a), quando propõe a ideia de que o sistema psi estaria exposto a quantidades de excitação provenientes do interior do corpo e nisso se encontraria a mola pulsional (Triebfeder) do mecanismo psíquico.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2006d), partindo da análise das inversões e das perversões, Freud mostra que o objeto da pulsão sexual é contingente e que seus alvos são variados. Aqui, tal qual no “Projeto”, supõe que um tipo específico de excitação surgiria dos órgãos somáticos (zonas erógenas), a excitação sexual. A pulsão sexual, portanto, se compõe de várias pulsões parciais. Estas se definem por suas fontes e seus alvos e incluem, notadamente, as pulsões oral, anal, fálica e genital, com suas variações.

A pulsão nunca poderá ser objeto da consciência, e mesmo no inconsciente só poderá ser representada por uma ideia ou um representante. Tem o papel de ser a chama propulsora da vida em todos os seres vivos, um estímulo sobre a mente, derivado de uma necessidade que a obriga a trabalhar para fazer cessar ou diminuir a excitação, mediante uma ação organizada sobre o mundo externo. Não seria, portanto, apenas uma descarga fisiológica. É observada no ser humano através de suas representações psíquicas. O núcleo da mente seria então formado pelos representantes da pulsão, quota de afeto e representação ou ideia, que darão origem ao afeto e à capacidade para pensar. Assim, temos que a pulsão, sendo endossomática, começa a fundar o psiquismo por meio do registro de suas representações, as quotas de afeto. O afeto, por sua vez, corresponde à descarga dessa excitação, como uma tradução subjetiva da quantidade de energia pulsional (Laplanche & Pontalis, 1967/1992). O registro mnêmico dessa descarga afetiva relaciona-se à série prazer/desprazer e dá origem à representação, que futuramente poderá se desenvolver em fantasia e pensamento. Dessa maneira, podemos pensar que a estrutura mental é composta por uma estrutura afetiva e por uma estrutura ideativa (Andrade, 2003).

A matriz afetiva é originada da descarga somática sobre a qual se desenvolverão as estruturas ideativas. É a etapa corporal do psiquismo, que corresponde ao que Freud denominou de ego corporal (quando o papel do ego psíquico é desempenhado pelo objeto na preservação da vida). A estrutura afetiva da mente humana seria formada pelos registros mnêmicos de percepções de vivências afetivas dos primórdios da vida, quando as sensações de prazer e desprazer ocupavam todo o psiquismo, num mecanismo de biorregulação presente em todos os seres vivos. Com o amadurecimento do organismo, as quotas de afeto primitivo vão se proliferar em traços mnêmicos ou representações, criando circuitos associativos – chamados de colaterais por Freud no “Projeto” – e desenvolvendo as estruturas ideativas. Aos poucos, as estruturas ideativas vão prevalecendo sobre as afetivas, desenvolvendo o ego psíquico e com ele o processo secundário, no qual, se tudo correr bem, predominará o princípio da realidade, que futuramente dará origem à capacidade para pensar. Ao final, o pensamento nada mais seria do que uma descarga pulsional atenuada e provisória, que diminuirá a urgência da descarga da energia pulsional.

Convencido da origem sexual da mente, Freud, a princípio, via o trauma como consequência de abusos sexuais sofridos, mas outro tipo de trauma acabou se evidenciando com os estudos sobre o narcisismo: o trauma da ferida narcísica sofrida pelo ego. Quer dizer, de início a pulsão sexual é imune a traumas por ser autoerótica, o que não ocorre com as pulsões de autopreservação. Estas são vulneráveis à frustração e ao desprazer traumático para o ego ainda imaturo, que, com a repetição de falhas em sua relação de dependência com o objeto, poderá ter o seu desenvolvimento prejudicado, ferido narcisicamente.

A princípio classificadas como pulsões de autopreservação (pulsões do eu) e pulsões sexuais (libido), mais adiante, os estudos sobre o narcisismo demonstraram que as pulsões sexuais também atuavam no ego (autoerótico) e posteriormente buscariam satisfação ligando-se aos objetos. Já as pulsões de autopreservação, de início dependentes do objeto, aos poucos se tornariam mais independentes deste. Em outras palavras, uma parte das pulsões sexuais permanece ligada às pulsões de autopreservação, dando-lhes componentes libidinais.

Vendo a libido como uma energia comum a ambas as classes de pulsão (de autopreservação e sexuais), Freud cria uma segunda classificação, que engloba as duas classes de pulsão como uma única pulsão de vida. Concebe a dualidade com a pulsão de morte a partir da tendência de todo ser vivo a retornar à sua condição inorgânica.

Numa nota de rodapé, em Psicologia de grupo e a análise do ego(1921/2006b), Freud refere-se à oposição entre pulsões de vida e de morte e diz que as pulsões sexuais são os representantes mais puros das pulsões de vida.

Observamos que, apesar de Freud incluir as pulsões sexuais e as pulsões de autopreservação no grupo das pulsões de vida (Eros), ele às vezes utiliza, para as pulsões de vida, os termos pulsões sexuais e libido, ampliando assim o conceito de sexual em psicanálise. A palavra libido, que na primeira teoria designava especificamente a energia da pulsão sexual, passou a ser usada genericamente como equivalente de pulsão de vida. É importante lembrar que já em 1905 Freud se referia à sexualidade com uma noção ampliada, para além do comportamento sexual, tendo como referência o movimento da libido, sendo essa última o princípio de coesão, de ligação, que está na origem do funcionamento anímico.

Como Eros compreende também o sexual, o conceito de sexualidade se amplia em vários aspectos. Freud diz que a sexualidade é o que se opõe à morte. O psíquico se organizaria eroticamente em duas vias: a da sexualidade e a da sublimação, sendo a sublimação uma manifestação de Eros, a se realizar através de outros objetos não diretamente sexuais. Compreende-se a sublimação como o destino da pulsão sexual que se realiza na cultura, sem deixar de ser sexualidade, ou seja, será o destino que se dá ao desejo que não pode ser satisfeito diretamente, criando novas possibilidades de satisfação, através de novos objetos no campo da sociedade e da cultura.

Mas o quadro geral da pulsão sexual, como uma exigência de trabalho feita ao aparelho psíquico a partir da estimulação proveniente de fontes somáticas, provocando uma pressão que procura descarga, envolvendo objetos, em sua busca de atingir o alvo da satisfação, e dando origem, portanto, ao desejo, não se altera.

Laplanche e Pontalis (1967/1992) pontuam que a sexualidade é nomeada Eros não como força perturbadora, mas como princípio de coesão, de ligação. Já a pulsão de morte, pelo contrário, tem como objetivo dissolver os agregados e assim desobjetalizar e destruir. Podemos ver nessa afirmação o que diz Green (1983/1988) a respeito das funções de ligação e desligamento referentes às pulsões de vida e de morte, respectivamente. A pulsão de morte, nessa postulação, não é mais um fator que pressiona para o desenvolvimento, mas um esforço em direção à inércia, ao inanimado.

Freud propõe que os movimentos psíquicos estão situados num modo de ser sexual; não há estados dessexualizados na mente. A originalidade freudiana está em situar a origem da sexualidade na intersecção entre o somático e o psíquico.

Como a pulsão inclui necessariamente um objeto, e sendo a quota de afeto um componente da pulsão, a percepção da descarga somática/afeto é indissociável da percepção do objeto; daí o ego corporal estar também indissociado do objeto, o que faz o sujeito perceber o objeto como seu próprio corpo, do qual vai diferenciar-se à medida que as estruturas ideativas se desenvolverem. Por outro lado, como as estruturas afetivas nunca se extinguem, haverá sempre um objeto interno representado com o sujeito. Na visão de Ferrari (1995, 2004a, 2004b, 2004c),3 este será o primeiro e único objeto (objeto originário concreto, o próprio corpo).

Ser o afeto vivenciado com o objeto é da mais alta importância na compreensão do que ocorre na relação transferencial e contratransferencial de uma análise, deflagrador natural dos processos neuroquímicos, como evidenciam os estudos sobre attachment e empatia. Esses estudos mostram que, embora a situação transferencial não seja igual à relação original mãe-bebê, seu campo de operação se situa em registros mnêmicos que reproduzem um clima afetivo que propicia aquisições afetivas e ideativas capazes de modificar a estrutura da personalidade (Goulart, 2009).

Temos então que o inconsciente dinâmico é produzido ininterruptamente, a partir das demandas corporais pulsionais, criando marcas, representações mentais em seu caminho para a descarga, a satisfação. Da mesma maneira, a consciência, como órgão sensoperceptivo, também é produzida de maneira ininterrupta.

Platão, em O banquete (380 a.C./2020), diz que de início a humanidade tinha três sexos: o masculino, o feminino e o andrógino – esse último, como a fusão dos dois anteriores. Outras duas espécies de fusão também existiam, segundo conta: mulher/mulher e homem/homem.

O masculino era procedente de Hélio (Sol), o feminino de Geia (Terra) e o andrógino de Selene (Lua). O tipo andrógino, mais audacioso, tentando escalar o Olimpo e ameaçando os deuses, foi dividido em duas partes por Zeus, para que se tornasse mais humilde. Apolo, filho de Zeus, foi encarregado de virar as faces para o lado em que a separação havia sido feita (o umbigo) e curar a ferida. Enfraquecido e carente, o ser humano passou a buscar a metade contrária, na tentativa de uma reunião.

Foucault (1976/1997) diz que, na Antiguidade clássica, o interesse era voltado para a formação do amado e para o prazer, não para a sua identidade de gênero, não havendo, portanto, preocupação em relação ao par homem/mulher ou a algum padrão estabelecido.

Apenas no início do século 18 o sexo foi colocado em discurso, passando a ser investigado cientificamente somente no século 19, transformando-se em condição para a compreensão da saúde, da patologia e da identidade, num artifício de subjetivação, na relação do sujeito consigo mesmo. Com o conceito de pulsão em psicanálise, a sexualidade desvinculou-se da genitalidade, tal como era vista até o século 19, e de um suposto determinismo anatômico e fálico/edípico. Nada estaria preestabelecido, portanto.

O conceito de bissexualidade há tempos estava presente no pensamento de Freud. Lembremos a carta 52, de 6 de dezembro de 1896, quando Freud escreve a Fliess se referindo à sua concepção da bissexualidade nos seres humanos (Masson, 1986). Mais tarde tal questão foi discutida largamente nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade(1905/2006d), tendo a cultura como pano de fundo essencial e definidor de masculino e feminino, ativo e passivo, heterossexualidade e homossexualidade, homem e mulher.

Sigmund Freud (1905/2006d), ao referir-se à dificuldade em definir o masculino e o feminino, apresenta algo de revolucionário à comunidade científica, ou seja, que a identidade de gênero não se submete à constituição genética ou à realidade anatômica. A atividade masculina pode predominar, em dado momento, sobre a passividade feminina, mas não a exclui. Da mesma forma, a passividade feminina poderá predominar em outros momentos sobre a atividade masculina, mas também não a exclui, obviamente. Em outras palavras, feminilidade ou masculinidade, enquanto identidades de gênero, são construções que não dependem da genética ou da anatomia.

Gênero é performance, é construção cultural sobre a diferença sexual, tendo o desejo como fator de descentramento, ao longo e de acordo com as vicissitudes do desenvolvimento de cada um, com interferências que vão desde o desejo dos pais e seus ancestrais até os múltiplos processos identificatórios, históricos, e os percalços edípicos, envolvidos pelo caldo cultural da sociedade em que se vive.

Esse é o ponto, segundo Freud (1913/2006c), em que a filogênese (representada pelo crime parricida e primevo da humanidade na horda primitiva) une-se com a ontogênese, com a história construída por cada criança (em que as tendências afetuosas e hostis deverão se integrar, agrupando-se e produzindo uma identificação no lugar de um crime).

À luz da psicanálise, compreendemos que as primitivas interações com as figuras parentais de ambos os sexos envolvem variadas colorações de masculino e feminino, as quais, por sua vez, desempenham importante papel na estruturação do aparelho mental, de maneira que tendências masculinas e femininas estão presentes e atuantes (ora com predominância de umas, ora com predominância de outras) no psiquismo de homens e mulheres.

Ferrari (1995, 2004a, 2004b, 2004c), a partir de suas investigações e de sua concepção do objeto originário concreto, fala de feminilidade e masculinidade de base (2000), terminologia por ele criada para definir a coexistência, em cada indivíduo, de modalidades de ser masculinas e femininas, no contexto do patrimônio genético, como uma preconcepção transmitida filogeneti-camente, dotada de uma mensagem relativa ao funcionamento dos sistemas homem e mulher, e que recebe influências da constelação edípica, particular para cada indivíduo.

Portanto, para esse autor, feminilidade e masculinidade de base são aspectos pertencentes à área corpórea de cada indivíduo, independentemente da sua identidade de gênero. Entram em atividade a partir do nascimento e buscam nos cuidadores uma confirmação para a base preconcebida, o que daria a primeira orientação para a entrada na constelação edípica e todo o seu desenvolvimento, passando por inúmeras aquisições, frustrações e transformações ao longo da vida, num equilíbrio dinâmico e instável entre as imagos maternas e paternas.

Diferentemente de como Freud uma vez compreendeu, hoje podemos pensar no complexo de Édipo não como uma etapa a ser resolvida e superada na adolescência, mas como um processo que vai nos acompanhar durante toda a existência, enriquecendo a configuração egoica e a própria identidade de gênero.

Porque não existe ainda, nem existirá nunca na vida, uma definitiva escolha de gênero. Sou um menino, sou um quase menino, tenho algo de menina... Esta é uma pergunta que homens e mulheres se fazem durante toda a vida. Não é verdade, como Freud afirmava, que, uma vez que se supera o complexo edípico, tem-se a escolha de objeto, acabou. Acabou coisa nenhuma! Começa a história! Começa a história da identidade ontogenética. Um instante: essa história acaba somente com a vida do homem ou com a vida da mulher. Não existe um homem, como não existe uma mulher, existe um equilíbrio entre aspectos femininos e masculinos de base, sobre o qual se baseia a identidade de gênero. E a identidade de gênero, por sua vez, é dinâmica, conforme as situações, conforme a passagem histórica do sujeito. A identidade é outro tanto dinâmica quanto é a vida. Não tem nada de garantido para ninguém. (Ferrari, 2004a)

A escolha do objeto, como Freud postulava, do ponto de vista atual, não fecharia a questão edípica, mas marcaria a passagem da etapa filogenética (voltada para a sobrevivência, com sentimentos de posse, ciúme, necessidade de marcar e proteger o próprio território) para o predomínio dos aspectos ontogenéticos (ativação na puberdade e construção da maneira específica de ser daquele indivíduo, seja homem ou mulher) na constelação edípica. E como cada corpo específico dá origem a uma mente específica, a questão não se reduziria a ser homem ou mulher, mas a ser aquele homem específico ou aquela mulher específica. No entanto, se estamos aqui, vivos e criativos, gostemos ou não, é em consequência de uma cena primária, do relacionamento sexual dos nossos pais. Em outras palavras, o complexo de Édipo é fundante da humanidade (Freud, 1913/2006c) e constituinte da subjetividade (Lisondo, 2004).

O fato de que todos nós dispomos de aspectos masculinos e femininos, num equilíbrio instável e dinâmico, com predominância de um ou de outro, se por um lado pode nos tornar mais inseguros, por outro lado nos oferece a possibilidade de aprender com a experiência que a vida proporciona, com maior flexibilidade e capacidade de adaptação.

Todas essas questões levantadas como hipóteses atuais e aqui apresentadas nos levam a uma conclusão de extrema importância, ou seja, de que mais relevante do que a escolha do objeto externo seria a escolha do próprio corpo, da própria maneira de ser nesse corpo único e específico, com a sua identidade única e específica, e com o seu modo de ser e de viver a sua identidade e o seu gênero, também únicos e específicos (Goulart, 2017).

Não são escolhas definitivas, mas, ao contrário, são instáveis e mutáveis, a depender das circunstâncias da vida e do viver. Assim, a plasticidade da identidade estaria condicionada ao equilíbrio instável da constelação edípica e da própria identidade de gênero.

Estímulos provenientes da corporeidade encontram-se com aqueles produzidos pela família e pela cultura, resultando na construção de significados próprios para estabelecer uma personalidade própria.

Masculinidade ou feminilidade nascem com o corpo de cada indivíduo, e caberá a ele harmonizar-se com ela, elegê-la, construí-la e construir-se em torno dela, dia após dia, em seu desenvolvimento ontogenético, buscando o que predomina em presença de seu oposto, porque ambos, se considerados isoladamente, parecem ser inapreensíveis (Goulart, 2008). Os limites entre os gêneros são permeáveis e pouco precisos, trazendo novas configurações familiares, sociais e culturais. A sexualidade humana é desvinculada da reprodução e de uma resposta feminina ao desejo masculino e vice-versa.

Como lembra Orduz (2022), sistemas autoritários, totalitários, como o fascismo e o nazismo, que defendiam a pureza racial e sexual e a abolição das diferenças, com ameaça e perseguição a todo aquele que desafiasse a ideologia do regime, culminaram no genocídio de milhões de pessoas, como todos sabemos. Também sabemos que nem o ideal de pureza, nem o nazismo ou o fascismo desapareceram; incrustados em nossa sociedade, emergem de tempos em tempos, a ameaçar a pluralidade da existência humana. São movimentos anti-humanidade, antivida, baseados em um narcisismo de morte, e portanto desobjetalizante, pondo em risco tudo aquilo que não refletir a própria imagem, incluindo, aqui, escolhas não heterossexuais, entendidas como aberrações ou desvios patológicos por não terem a reprodução como objetivo.

Lembremos que, já nos Três ensaios, Freud ensina sobre a natureza dinâmica, móvel e instável da sexualidade humana, que não necessariamente tem a reprodução como fim, mas que tem natureza plural, admitindo diversas possibilidades.

Tal qual o inconsciente que pulsa, dinâmico e, portanto, móvel por definição, a criar-se e recriar-se, constantemente em produção e em trânsito permanente, a sexualidade humana não é terreno de certezas, definições ou segurança.

Nesse sentido, ao considerar a dinâmica, o movimento, o trânsito, o trans, em psicanálise já não caberia falar de sexualidade ou gênero como algo a contemplar tão somente a heterossexualidade ou mesmo a homossexualidade. Precisamos considerar todas as possibilidades conhecidas e ainda não conhecidas, visto que a natureza subversiva do desejo não pode ser aprisionada, sob pena de desnaturalizarmos a nossa condição humana, livre e plural para sermos quem somos, contemplando a diversidade que, bem ou mal, produziu tudo o que temos em termos de civilização e cultura.

1Trabalho apresentado na 19ª Jornada de Psicanálise de Aracaju, em 2022.

3O primeiro objeto da mente, fundador do psiquismo, na compreensão de Ferrari, seria o próprio corpo, o objeto originário concreto (ooc), de onde emanam sensações marasmáticas em busca de acolhimento, organização e sentido, num processo mediado pela função catalisadora/facilitadora dos cuidados maternos.

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Recebido: 01 de Novembro de 2022; Aceito: 09 de Março de 2023

Adalberto Antonio Goulart adalbertogoulart@uol.com.br

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