Introdução
Vivemos uma época marcada por catástrofes iminentes: mudança climática, crise alimentar, pandemia, guerra, tensões políticas entre países ameaçados pela guerra e a maciça proporção de pessoas desalojadas em consequência de guerras e perseguições, que hoje representam aproximadamente 100 milhões de indivíduos (United Nations High Commissioner for Refugees, 2022). A situação se caracteriza por extrema incerteza no momento da escrita deste artigo (junho de 2022), especialmente por conta da guerra na Ucrânia. Grandes grupos, etnias e subgrupos contidos em uma única nação estão sob pressão, e a ansiedade generalizada causa instabilidade e regressões grupais.
Ansiedades grupais podem organizar-se a partir de supostos básicos (Bion, 1952; Hopper, 2002), resultando em teorias da conspiração em que os outros/estrangeiros são percebidos como ameaça para a identidade de grandes grupos (Volkan, 1997). Teorias da conspiração podem funcionar como organizadores e continentes inflexíveis dessas ansiedades, nublando a distinção entre medos imaginários e problemas solucionáveis. Uma guerra nuclear é uma ameaça real para a existência da raça humana.
A crise dos refugiados de 2015 provocou conflitos em larga escala entre o medo e a assistência, em que avaliações realistas do que era possível e razoável entraram em colapso e medidas extremas foram implementadas, colocando, como consequência, grandes grupos em perigo, com claras violações de leis internacionais e convenções de direitos humanos (Varvin, 2017, 2019).
O colapso da ordem e da estrutura deixou muitas pessoas sob a ameaça de forças desorganizadas (máquina de guerra, tráfico de pessoas etc.), com desumanização em larga escala de pessoas comuns, especialmente nos campos de refugiados.
Neste artigo, vou discutir como a psicanálise pode desempenhar uma função mediadora em relação a tendências regressivas em níveis individuais, grupais e sociais. A psicanálise é capaz de desenvolver uma posição em que ansiedades sejam contidas, compreendidas e pensadas, de modo a prevenir a atuação de ideações vinculadas a ansiedades coletivas? A psicanálise consegue, de maneira razoável, funcionar nessa posição, de um terceiro em relação à forma dicotômica e antagonista vista em situações regressivas em massa, relacionadas à traumatização coletiva (Bohleber, 2002)?
A ideia da psicanálise como um terceiro mediador diante de conflitos e déficits intrapsíquicos e interpessoais é bem desenvolvida na literatura psicanalítica (Green, 2004; Kernberg, 1997; Ogden, 1994; Zwiebel, 2004). Freud estendeu o alcance dessa posição de forma a cobrir fenômenos sociais e culturais, como a religião (1939/1964a), os processos da civilização (1930/1961) e o funcionamento grupal (1921/1955). Neste artigo, o terceiro vai destacar a dimensão social e estrutural, e ser entendido “como um princípio lógico para localizar e mediar posições diferenciadas, como um padrão definidor do comportamento em termos de tarefas e papéis, e como um código compartilhado que provê as condições para os sujeitos humanos sustentarem uma perspectiva comum” (Muller, 2007, p. 238). Em situações de atrocidade, o código comum é destruído, e a restauração do padrão ético inerente a um código comum é um complicado processo sociopolítico, que também envolve o trabalho com as dimensões inconscientes do grande grupo.
Na psicanálise clínica, a elaboração pode ser vista como o processo de estabelecimento de uma terceira posição externa em relação a processos defensivos que talvez tenham sido estancados ou congelados. Essa posição terceira tem o potencial de instigar simbolização e reflexão, e está no centro do trabalho psicanalítico (Green, 2004). A elaboração implica chegar a um acordo com experiências difíceis do passado a fim de ir adiante, para o indivíduo não ser engolfado por determinações inconscientes moldadas, por exemplo, por um passado traumático. Para alcançar essa posição, deve-se descrever e pensar o passado doloroso, e acima de tudo deve-se demonstrar como o passado “trabalha” no presente, abrindo assim espaço para possibilidades futuras.
Processos reflexivos similares têm sido considerados importantes em níveis grupais e sociais. O trabalho de Alexander e Margarete Mitscherlich (1967) sobre as dificuldades do luto na Alemanha do pós-guerra exemplifica isso. A elaboração de atrocidades passadas, entretanto, tem se mostrado algo extremamente difícil e frequentemente evitado - por exemplo, na América Latina, na China e na antiga Iugoslávia.
Refletirei a respeito de possíveis maneiras pelas quais os insights psicanalíticos podem ser usados em processos de simbolização em níveis sociais e na aceitação de dificuldades passadas e presentes enfrentadas por grupos ou nações, evitando-se assim a regressão a supostos básicos e a soluções fantasiosas. Vou me centrar no modo como atrocidades afetam a mente das pessoas comuns e suas formações grupais. Essas violações atingem o núcleo da existência humana e têm o potencial de abalar as estruturas internas de segurança, as relações íntimas, o funcionamento de famílias e grupos e, em última instância, as estruturas sociais e a função de atribuição de significado exercida pela cultura.
O exemplo a seguir mostra alguns desses aspectos.
Um homem de meia-idade, nascido em uma extinta república soviética, disse em sua primeira sessão após a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro: “É a mesma coisa. Fizeram o mesmo em meu país. Tudo foi destruído, pessoas foram mortas, mesmo em corredores de evacuação ‘seguros’”. Ele retornou muitas vezes a uma experiência dolorosa, contada em fragmentos. Soldados foram à sua casa. Ele tinha uma arma apontada para sua cabeça, enquanto o pai era brutalmente agredido e humilhado, e a mãe, estuprada. A pior parte veio depois, quando viu o pai chorando amargamente. A “queda” do pai e a constatação de que ele próprio não tinha feito nada para proteger os pais o assombravam desde então – em sonhos, em alucinações e sob a forma de uma ansiedade generalizada que o acompanhava constantemente, obrigando-o a ficar escondido em sua própria casa a maior parte do tempo.
Havia todo um histórico antes desse fato. Ele tinha nascido logo depois que os pais retornaram de um exílio forçado no interior do sistema soviético, em que quase toda a população de sua república foi removida sob condições de extremo perigo. A maioria de sua família morreu – assassinada, pela fome ou por doenças.
Essas deportações representaram uma destruição maciça de sua cultura, bem como das relações sociais e íntimas, atingindo as gerações futuras. O paciente foi criado com um senso de prioridade de reconstrução, restauração e desenvolvimento – e depois tudo aconteceu de novo.
Forças opostas e reorganizações se instalam após grandes dificuldades e atrocidades, tanto em níveis individuais quanto em níveis grupais e sociais. A regra é a resiliência. Existem amplos exemplos de como grupos e sociedades recuperam-se, reconstroem-se e restabelecem relações (Ungar, 2008).
Resiliência e esgotamento
Em indivíduos e em grupos, podemos observar um equilíbrio entre resiliência e resignação (ou o que podemos chamar de esgotamento). Em um nível individual, esgotamento refere-se a um processo em que uma pessoa traumatizada luta contra a falta de sentido, a falta de previsibilidade e o desamparo, e assim gradualmente se retrai, mental e socialmente. Se não há cuidado ou ajuda, o retraimento pode se prolongar, levar a interações reduzidas com o mundo e perturbação em processos psíquicos vitais – falta de perspectiva diante da vida – e eventualmente conduzir ao adoecimento e à morte (Eitinger, 1969; Hoppe, 1968).
Resiliência refere-se a forças em busca de mudança, relação, criatividade e aprendizado, representando aspectos integrativos voltados ao crescimento e ao desenvolvimento. Implica uma condição de diálogo e fantasias ativas, criativas e transformadoras em relação ao futuro (Alayarian, 2007). A resiliência é, em geral, altamente dependente do contexto, sendo assim um processo social e coletivo (Hauser et al., 2006; Ungar, 2008).
A fenomenologia de estados pós-traumáticos é, em alto grau, caracterizada pela dinâmica entre “vitalidade” e “morte”, presença e ausência, estados de mente simbolizados e estados de mente sem representação ou precariamente representados.
Podemos observar processos similares em grupos e sociedades. A pesquisa empírica tem mostrado, por exemplo, maior morbidade e mortalidade em grupos compostos por pessoas altamente traumatizadas (Askevold, 1980; Eitinger, 1965, 1971), indicando esgotamento em nível grupal. A ausência de ajuda, tratamento e apoio para esses grupos após a Segunda Guerra Mundial (sobreviventes do Holocausto, marinheiros de guerra) demonstrou como a falta de resiliência era parte de um processo social de negligência. O estudo seminal de Keilson (Keilson & Sarpathie, 1979) sobre traumatização sequencial apontou, por outro lado, como o acolhimento e o apoio podem ser cruciais para o resultado resiliente.
A resiliência é caracterizada pela capacidade de aprender com a experiência (Hauser, 1999), tanto individualmente quanto em grupo (Ungar, 2012). Resiliência implica, portanto, o estabelecimento de uma terceira posição em processos sociais interativos, através da qual é possível obter uma perspectiva externa e assim refletir, em consonância com as concepções psicanalíticas do terceiro.
Uma questão central nessa conexão é como a traumatização é compreendida e como os processos de resiliência podem ser promovidos em indivíduos e grupos traumatizados.
Sustento que teorias atuais sobre traumatização podem desconsiderar processos de resiliência e inadvertidamente apoiar uma abordagem passiva e desvitalizante, em que a terceira posição socialmente determinada fica eclipsada.
Sobre a traumatização e a simbolização: desenvolvimento da terceira posição
O uso impreciso da palavra trauma (trauma como evento invasivo, como algo na mente, algo perpetrado às vítimas etc.) atrapalha nossa compreensão e nossos esforços de tratamento, e indica um desconforto em nossas relações com pessoas expostas a atrocidades. É como se algo estranho ou estrangeiro tivesse invadido a pessoa. Seu uso tende a desconsiderar as forças reorganizadoras que imediatamente se instalam em pessoas e grupos expostos, tornando-se o “trauma” algo estático na mente. Na perspectiva da terceira posição, isso sugere reificação e redução. Quando o termo é usado no discurso psicanalítico, pode alienar a pessoa afetada. Assim, a reflexão sobre a traumatização é algo necessário.
Perturbações da simbolização são centrais em processos de traumatização. Diferentes metáforas utilizadas, como buraco negro (Kinston & Cohen, 1986), vácuo psíquico (Riesenberg-Malcolm, 2004), círculo vazio (Laub, 1998), estados mentais não representados (Levine et al., 2013) e terror sem nome (Bion, 1962), representam dificuldades contratransferenciais na apreensão do material não simbolizado e causador de intensa ansiedade. Essas metáforas são tentativas de apreender não só a incapacidade, decorrente do trauma, de simbolizar partes essenciais da experiência pessoal e da experiência de si com os outros, mas também a maneira como essas perturbações afetam a fala traumatizada e a intencionalidade em interações sociais.
Levine (2021) usa o termo imperativo representacional para indicar o papel essencial que processos psíquicos elaborativos desempenham na regulação emocional e na simbolização desses processos. A atividade psíquica é governada por uma pressão inerente a formar representações e a conectá-las em narrativas significativas, afetivamente carregadas e coerentes. Essa pressão – o imperativo representacional -, originada de fontes internas (pulsões, transformações da memória) ou externas (por exemplo, percepções), ocasiona uma “demanda à mente” de trabalho psíquico. É essa demanda à mente que é alterada (enfraquecida, minada, atacada) durante a traumatização. A mente traumatizada gradualmente desiste, abandona a ancoragem da “demanda” ou desassocia essa parte da mente para preservar alguma funcionalidade mental através da perda da noção cronológica, em que o “passado” precede e se distingue do “presente” e do “futuro”. Em uma condição traumática, a ancoragem dêitica do tempo (Bühler, 1934) é minada e frequentemente “convertida” em uma experiência existencial e temporal desordenada. Como a ancoragem dêitica de uma pessoa no espaço e no tempo é básica para a integração de percepções, emoções e pensamentos na formação de símbolos, mudanças nessa ancoragem podem ser severas e experimentadas como catastróficas. Qualquer sinal que remeta aos sinais relativos ao perigo sentido anteriormente é considerado sinal de perigo e catástrofe. Essa maneira de perceber o ambiente, baseada em simetria, é caracterizada pela lógica imaginária. Na sua pior manifestação, a experiência do tempo é transformada em uma experiência fragmentada, desconectada da estrutura do tempo biográfico, com deficiência na capacidade de simbolizar estados sensíveis do corpo, na experiência intersubjetiva, assim como na relação do indivíduo com o campo sociocultural (Rosenbaum & Varvin, 2007). Nessas condições, percepções e sensações do corpo e do ambiente não são sequer conectadas através de formas imaginárias de pensamento. Em vez disso, pode-se dizer que elas adquirem uma natureza indicial (Peirce, 1984) – ou seja, intrusões e ataques imediatos, perceptuais e não simbólicos à mente –, termo semiótico que contém similaridades com os fenômenos descritos como buraco negro, vácuo psíquico e círculo vazio.
Sob essas circunstâncias, partes da personalidade podem ser experimentadas como vazias, ocas, com o surgimento constante de ansiedades indefinidas e não nomeadas. Para ser possível simbolizar a experiência traumática, a afirmação e a confirmação dos outros e da sociedade são primordiais. Os traumatizados precisam de narrativas que possam ir ao encontro das tentativas da mente de simbolizar experiências traumáticas. Quando estas são insuficientes ou falsas, algo amplamente demonstrado em contextos em que a traumatização grupal é negada ou negligenciada, a pessoa ou o grupo traumatizado ficam alienados, isolados e a sós com experiências emocionais caóticas e extremamente dolorosas.
O desenvolvimento da simbolização e da resiliência é relacional e altamente dependente de como a pessoa traumatizada é acolhida. As tentativas dos traumatizados de organizar um mundo interno caótico e significar a experiência são, dessa forma, dependentes da ativação de recursos internos através da relação com o outro e de narrativas pertinentes que auxiliem na construção de sentido. Isto é, a pessoa traumatizada precisa de ajuda para desenvolver uma terceira posição, a partir da qual possa observar e refletir sobre suas experiências.
Consideremos o exemplo a seguir.
Vinheta clínica: o sr. A
Um homem magro e malvestido, com cerca de 30 anos, entrou no consultório em um estado de extrema ansiedade. Ele imediatamente vasculhou a sala em busca de perigos. Olhou atrás dos quadros nas paredes, embaixo do sofá etc. Sentou-se tremendo, encarando o analista com os olhos arregalados. Quando questionado sobre sua situação, gaguejou: “Ele matou toda a minha família – o ditador. Não sobrou ninguém”. Morava com amigos e nunca ficava muito tempo em um mesmo lugar. Não tinha permissão de residência, e portanto nenhum direito civil.
Sua fala era de difícil compreensão, pois gaguejava e esquecia-se de palavras. Quando interrogado se tinha comida, pareceu surpreso e disse que amigos lhe davam comida de tempos em tempos. O analista então perguntou do que ele gostava na culinária de seu país natal e se podia se lembrar da comida da mãe. Com relutância, começou a falar sobre a comida que a mãe preparava para ele, o que o fez chorar. Tornou-se outra pessoa, respirando mais fundo, relaxando o corpo e obviamente sentindo-se mais seguro. Isso durou algum tempo antes de voltar a ficar tenso, com os olhos arregalados e ansiosos.
O processo de simbolização estava distorcido a ponto de não ser possível atribuir aos pensamentos uma posição temporal significativa em uma narrativa autobiográfica. A fragmentação temporal fazia com que emoções como ansiedade, agressividade e depressão o dominassem, e em alguma medida destruíssem seu esforço de atribuição de significado (Bruner, 1990) e formação de símbolos. Ele estava imerso em ansiedades caóticas, sem capacidade para pensar/refletir. O encontro com o outro, o psicanalista, tornou-se assustador e foi percebido como complexo, confuso e imerso em uma luta por poder. Quando memórias – não só da comida, mas também da relação mais antiga com um outro empático – emergiram, sua função simbólica foi restabelecida por um curto período. Uma lembrança emocional coerente aplacou sua ansiedade. Mas também tentou oferecer um contexto narrativo para sua experiência, mesmo que de maneira hesitante: “Ele matou toda a minha família – o ditador. Não sobrou ninguém”. Por um momento, a terceira posição foi cocriada por paciente e analista, tornando o pensamento possível.
É crucial que essas tentativas de atribuição de significado à experiência sejam empreendidas não só pelo analista, mas também pela sociedade e pela cultura. A rejeição de seu status de refugiado implicou para o paciente uma negação maciça da realidade do que lhe havia acontecido.
Para auxiliar na simbolização e dar apoio a processos restaurativos em indivíduos e grupos traumatizados, uma compreensão expandida da traumatização pode ser necessária.
Desenvolvimentos adicionais à compreensão da traumatização
A seguir, descreverei brevemente um modelo que pode servir como estrutura para o desenvolvimento de nosso pensamento sobre a traumatização (Rosenbaum & Varvin, 2007; Varvin & Rosenbaum, 2011). De acordo com a visão de que o trauma social e seus efeitos estão ligados à relação do indivíduo com os outros e com seu contexto social, três dimensões de interação podem ser identificadas.
1) Dimensão corpo-mundo
Esta dimensão concerne à relação do indivíduo com o outro em um nível corporal-afetivo diádico. Esse é o nível da regulação emocional dos estados afetivos mediada pelo corpo. Nesta dimensão, importantes processos emocionais regulatórios não verbais ocorrem entre o self e os outros, e há uma confiança autoapaziguadora baseada em relações objetais internas confiáveis.
O retraimento emocional diminuirá a possibilidade de usar os outros no processo de ativação de uma relação empática interna e, através disso, modular afetos negativos. Assim, o indivíduo pode mostrar-se incapaz de simbolização de sensações e de experimentação subjetiva. Com o sr. A, alguma capacidade de simbolização foi restabelecida por meio da presença empática e de intervenções do analista no contexto de cocriação da terceira posição.
Processos afetivos autorregulatórios e interações interpessoais regulatórias são centrais para manter a segurança subjetivamente experimentada (Schore, 2003). Isso diz respeito especialmente à regulação da excitação negativa ou desagradável, que depende de relações prévias de apego seguro e uma contenção inicial suficientemente boa por parte da mãe/cuidador. Tais relações, por sua vez, dependem de um contexto social e cultural que favoreça o crescimento, incluindo uma rede de apoio familiar e social. Mais ainda: aquilo que em um nível sociopsicológico é identificado como impulso à criação de ligações emocionais depende da crença compartilhada pelos participantes de uma díade ou de um grupo de que as emoções podem ser reguladas nesse nível, isto é, a criação de um “código compartilhado que provê as condições para os sujeitos humanos sustentarem uma perspectiva comum” (Muller, 2007, p. 235).
2) Dimensão sujeito-grupo
Esta é a dimensão da formação da identidade, em que se percebe a própria identidade enquanto membro de uma matriz: família, grupo e comunidade. É uma “filiação” baseada na capacidade de experimentar a si mesmo como parte do grupo e como algo distinto dele. O indivíduo é comum (como os outros no grupo) e ao mesmo tempo único/especial (diferente dos outros). O grupo funciona como um pano de fundo seguro, uma arena para as relações emocionais íntimas, mas também uma fonte de conhecimento sobre o que se é e o que se deveria/poderia ser. Em relações próximas/íntimas (família), aprende-se com os outros e adquire-se a capacidade de empatizar e assumir a perspectiva do outro.
Uma estrutura de identidade grupal em mau funcionamento cria um pano de fundo empobrecido para o desejo de mudança, empatia e reflexão. Em sociedades em que a família e o agrupamento ampliado relacionado (por exemplo, o clã, a tribo) são as unidades de organização mais importantes, e em que o pertencimento a tais grupos é de fundamental importância tanto para a identidade pessoal quanto para a identidade social, perturbações nesta dimensão podem resultar em graves efeitos desorganizadores.
3) Dimensão sujeito-discurso
Esta dimensão representa a relação do sujeito com a cultura no sentido mais amplo: mitologia, filosofia, ideologia, ética, moral, folclore, poesia, literatura, justiça e outras formas de discurso social. O discurso representa, a princípio, um sinal escrito, temporalizado e memorizado de uma cultura viva. Esses sinais não são particularmente estáveis no decorrer de longos períodos, mas são estáveis o suficiente para produzir mitos, narrativas, ideologias e paradigmas de crença e argumentação que convergem entre si, um “código compartilhado”. A maneira pela qual o sujeito relaciona-se com diferenças e divergências e com a expressão de paixões sociais baseadas em “princípios elevados” é parte da dimensão sujeito-discurso.
Inclui-se nesta dimensão a experiência do sujeito de estar fundado no tempo: tempo linear, tempo experiencial/dêitico (percebendo o presente em relação ao passado e ao futuro) e tempo existencial (associativo, sonhado).
Esta dimensão, por conseguinte, transforma a mente grupal, permitindo ao sujeito distanciar-se do grupo e ao mesmo tempo seguir fazendo parte de um movimento cultural. Assim, representa um princípio regulatório e uma dimensão que estrutura o significado nas outras dimensões.
Podemos ver as funções dessas três dimensões como uma conceitualização estendida da dimensão do terceiro. A relação discurso-cultura tem importância primordial, uma vez que estrutura e dá significado às outras dimensões, pois estabelece “um código compartilhado”. A relação diádica íntima, por exemplo, entre mãe e bebê, sendo essencialmente não verbal, é altamente dependente de uma estrutura grupal/familiar em bom funcionamento, que por sua vez depende de uma função cultural atribuidora de significado relativamente estável em grupos e sociedades.
As três dimensões devem ser vistas como inter-relacionadas em um todo, todas elas funcionando ao mesmo tempo. A relação íntima entre mãe/cuidador e bebê necessita de um grupo/família que ofereça não só apoio, mas também direção e significado ao processo de alimentar e cuidar do bebê. Isso é válido para todos os estágios de desenvolvimento. A família/grupo existe em um contexto cultural em que tradições e significados são transmitidos tanto oralmente quanto por escrito. Isso é bem focalizado no provérbio “É preciso uma vila para criar uma criança” [It takes a village to raise a child].
Quando grupos e etnias são atacados através de perseguições e genocídios, acontecem perturbações em todas as três dimensões.
A ideia da terceira posição em psicanálise é mais desenvolvida em relação à díade (Ogden, 1989). Destaco, entretanto, que ela está sempre previamente ancorada na dimensão sujeito-discurso, como uma preposição para estabelecer significado em níveis diádicos e triádicos, integrar experiências passadas e sabedoria em uma experiência vivida no presente, apontando para a esperança e para possibilidades futuras.
Traumatização e mudança
A elaboração implica reorganização de significado e abertura de espaços mentais e, no contexto cultural/social mais amplo, abertura de campos de possibilidades. A traumatização tende a estreitar as possibilidades por meio da fixação em imagens congeladas na mente, e procura reorganizar esta desfazendo-se de maus objetos – por exemplo, através da projeção. Tentativas de atribuir novos significados falham regularmente com a recorrência de emoções ansiosas, como vimos no caso do sr. A: a ativação de uma relação de objeto interna empática temporariamente restaurou a terceiridade e alguma organização em sua mente (Laub & Podell, 1995).
Tais situações em análise são cruciais na medida em que a presença de uma relação empática é sentida ao mesmo tempo que aquilo que foi perdido torna-se dolorosamente presente. Nesses momentos, a pessoa experimenta de modo retroativo as implicações da perda e da traumatização anterior. Podemos dizer que a psicanálise, através da possibilidade de oferecer sentido a uma experiência traumática a partir da terceira posição, ancora o sujeito em uma dimensão cultural em que a constatação e a simbolização do que aconteceu podem abrir possibilidades futuras. O momento “retroativo”, em um processo terapêutico ou em qualquer outro processo organizador, aponta tanto para trás quanto para frente (Larsen & Rosenbaum, no prelo).
A sra. B deu-se conta, em um momento como esse, das implicações de haver perdido seu filho. Ela procurou a terapia por questões relacionais. O tema da perda tinha sido abordado diversas vezes, porém foi evitado até uma sessão-chave, em que surgiu de repente após uma pausa na terapia. Ela deu-se conta, como disse então, de que “agora meu filho teria 13 anos”. Ela, que pertencia a uma minoria perseguida em seu país natal, tinha sido presa e maltratada, e seu filho havia falecido pouco depois de um parto realizado em circunstâncias terríveis. Sua vida tinha sido, depois disso, uma luta constante com um sentimento de culpa dominante e sintomas pós-traumáticos e depressivos. A constatação do que havia perdido ficou isolada em meio a uma postura crônica de solicitude, procurando saldar suas “dívidas”. Inconscientemente, identificava-se com o filho e, antes dessa sessão-chave, sonhava estar sufocando, sem nenhuma ajuda. Na sessão, o analista ficou identificado, na transferência, com a mãe impotente. Em uma sequência dramática, a sra. B lembrou-se de como, sozinha com o filho doente, teve de suportar assisti-lo sufocar até a morte devido a uma doença respiratória, como em seus sonhos de sufocamento. Essa experiência “retroativa” de sua perda desencadeou um movimento em que ela, com o analista, teve de elaborar as implicações do que havia acontecido e escolher um caminho para prosseguir sua vida. O desenvolvimento dessa experiência “retroativa” em uma dimensão simbólico-cultural foi um divisor de águas que transformou definitivamente sua vida.
Tal situação foi dependente de uma terceira posição reflexiva coestabelecida, em que a interação diádica com o analista – e as subentendidas relações triádicas/edípicas – pôde ser significada através da elaboração de sua relação com a família, tanto no exílio quanto em sua terra natal.
Poderia esse tipo de constatação “retroativa” operar em níveis sociais/coletivos? O trabalho de Mitscherlich sobre a inabilidade alemã em viver o luto demonstrou que uma intervenção psicanalítica em nível coletivo pode auxiliar nesse sentido – um processo árduo tanto no nível individual quanto no nível social, que se desenrola ao longo de gerações.
Conclusão
A psicanálise tem na ideia de tratamento sua origem e função principal. A dinâmica da transferência-contratransferência de uma díade terapêutica é, entretanto, integrada em um contexto determinado pelas regras do setting, do contrato, da ética, das leis e do significado atribuído pela cultura local a uma relação terapêutica. O analista deve estar integrado na relação emocional com o paciente e representar uma terceira posição através de sua função reflexiva (Kernberg, 1997). É essa terceiridade que torna a interpretação possível (Green, 2004).
Em relação ao modelo apresentado antes, o trabalho psicanalítico em nível diádico é sempre contextualizado por todas as três dimensões: corpo-mundo, sujeito-grupo e sujeito-discurso/cultura. Essas três dimensões funcionam como um todo, mesmo quando o paciente opera primariamente em um nível de déficit imaginário. Para que o imaginário seja simbolizado, o analista deve interpretar por meio da terceira posição.
A questão aqui é se a psicanálise pode representar a terceira posição em nível coletivo e desempenhar uma função que aborde a camada mais profunda do inconsciente social (Hopper, 2002), abrindo espaço para a elaboração dos efeitos da traumatização coletiva. Uma precondição é que atrocidades estão inscritas na memória coletiva. Esse é um processo coletivo em que afirmação e reconhecimento oficial são necessários, mas também em que narrativas convincentes são produzidas pela comunidade cultural: escritores, artistas, historiadores, sociólogos e outros. Nesse contexto, a psicanálise pode contribuir para uma terceira posição estruturante, em que desenvolvimentos obtidos pela relação diádica são possíveis, permitindo o reconhecimento mútuo (Muller, 1999). Nas palavras de Freud,
se a disponibilidade para guerrear é um efeito da pulsão de destruição, o recurso mais óbvio seria lançar mão de Eros, seu antagonista, para opor-se a ele. Qualquer coisa que encoraje o desenvolvimento de laços emocionais entre os homens deve operar contra a guerra. (1933/1964b, p. 212)