Em seu artigo de 1968 “Indications and contraindications for child analysis”, Anna Freud discute o dilema que frequentemente confronta analistas quando sua observação mostra que o dano ao desenvolvimento de uma criança é “causado e mantido por influências ativas e ainda alojadas no ambiente”. Segundo ela, em face de fatores externos tóxicos, “todos os aspectos da personalidade da criança são afetados adversamente, a não ser que consistentes fontes de apoio se façam disponíveis”. No entanto, Anna Freud ressalta que, enquanto a criança vitimizada tem necessidade de ajuda terapêutica, o tipo de ajuda não é claramente determinado, “nem o papel do terapeuta” (1968/1971, p. 115).
Além de meu trabalho clínico em consultório e como professor e supervisor, um foco central de minha trajetória como psicanalista tem sido compreender o impacto traumático de “fatores externos tóxicos” na vida de crianças. Também tenho tentado aprender mais sobre os tipos de ajuda terapêutica que poderiam diminuir os efeitos a longo prazo de experiências traumáticas no desenvolvimento em curso da personalidade da criança. O fato de que o trauma de um vasto número de crianças e famílias atingidas pela violência e por outros eventos catastróficos com tanta frequência passa despercebido – sendo de fato raramente visto – em nossos consultórios e clínicas conduziu ao desenvolvimento de colaborações psicanaliticamente orientadas e abordagens de tratamento que descrevo a seguir.
A parceria do Centro de Estresse Traumático e Recuperação de Yale (YCTSR) com autoridades policiais, serviços de proteção à criança, avaliadores forenses de abuso infantil, equipes de departamentos de emergência pediátrica, ativistas contra a violência doméstica, e agências estaduais e federais resultou em nosso envolvimento com milhares de crianças e famílias durante as últimas três décadas. Os eventos que iniciavam nosso contato incluíam homicídio, homicídio seguido de suicídio, violência doméstica, agressão sexual, abuso físico e negligência, suicídio, acidente com veículo motorizado, além de eventos com grande número de vítimas, como tiroteios em escolas (incluindo o de Newtown, Connecticut, e o de Uvalde, Texas), o ataque terrorista de 11 de setembro e desastres naturais. Nosso contato compreendia desde intervenções agudas, contatos breves durante o período peritraumático (as primeiras 12 semanas após o evento traumático), até o compromisso clínico de longo prazo.
Anatomia de um pesadelo
Para nos aproximarmos da maneira como crianças experimentam eventos traumáticos, considere por um momento a experiência infantil de acordar de um pesadelo. Consegue lembrar o coração acelerado, a respiração ofegante, a sudorese e o pensamento confuso – desesperadamente procurando localizar os limites da experiência, tentando determinar o que é real em relação ao terror/ameaça que o despertou? Nesses momentos após o pesadelo, muitos de nós automaticamente procuram por fontes de segurança e alívio. Às vezes buscamos isso na presença dos outros e ali permanecemos imóveis, sem palavras diante de nossos pais, que talvez perguntem gentilmente sobre o sonho ruim que tivemos, antes de nos mandar de volta para a cama. Com poucas palavras disponíveis, podemos repetir, como um mantra, o lembrete “Foi só um sonho” e retornar ao nosso quarto. Outras vezes não há a quem recorrer. Fazemos o melhor possível acendendo as luzes e protelando o sono e os sonhos, onde reside o terror. Alertas aos esperançosos sinais de realidade e à noção de que a incerteza resultante (que percebe ameaças) estava somente em nossa mente, fazemos de tudo para “mudar de canal” e eliminar a instantânea e involuntária repetição de temas que evocam medo e temor. Apesar dos altamente individualizados e variados cenários dos pesadelos, todos compartilhamos os temas e as versões fundamentais de seus efeitos terroríficos.
Como psicanalistas, sabemos muitas coisas sobre os perigos e medos psíquicos dos quais nos defendemos. Nossa vida inconsciente. Para além da experiência direta do pesadelo, somos constantemente lembrados em nosso trabalho clínico – e em nossa própria vida – das mais proeminentes fontes de perigo e medo que residem em nosso mundo interno inconsciente: 1) a perda da vida, bem como da vida daqueles que amamos e dos quais dependemos; 2) a perda do amor dos outros e do amor-próprio; 3) os danos ao nosso corpo e os prejuízos funcionais; 4) a perda de controle dos impulsos, dos afetos e do pensamento integrador; 5) a perda da estrutura externa, da previsibilidade e da ordem que fornecem as bases à antecipação, ao planejamento e à resposta aos novos desafios.
Como bem sabemos, esse grande conjunto de perigos que alimenta nossos pesadelos também está à espreita em nossa vida de vigília. Enquanto nossos esforços com frequência são acompanhados por altos custos, nossa experiência de angústia-sinal nos alerta, nos prepara e nos permite tomar ações protetivas e defensivas. Com isso, no período que segue o pesadelo, o medo e a excitação diminuem, uma vez que a realidade se reafirma, e o sono pode novamente oferecer a oportunidade de múltiplas narrativas, proporcionando alternativas prazerosas aos aspectos assustadores de nossa imaginação.
Quando, por outro lado, temas fundamentais de nossos pesadelos desenrolam-se de maneira inesperada em nossa vida real, nossa capacidade de rapidamente distinguir o mundo interno do mundo externo e voltar a dormir simples e tragicamente desaparece. Ao contrário do que acontece na experiência do pesadelo, na situação traumática nossos medos inconscientes mais poderosos convergem com sua súbita concretização em eventos em relação aos quais não temos nenhum controle nem possibilidade de evasão.
Definição de trauma e estágios do trauma
Definimos a situação traumática como o dano ocasionado pela exposição a um perigo intenso e imprevisível, que acarreta a experiência imediata de perda de controle, desamparo e terror; ausência de angústia-sinal e imobilização dos métodos comuns para a diminuição ou a defesa contra a intensa excitação associada ao perigo (respostas de luta e fuga); e desregulação neurofisiológica, o que compromete respostas somáticas, afetivas, cognitivas e comportamentais aos estímulos. Em seguida à exposição a eventos traumáticos, as reações das crianças podem se manifestar/ocorrer em três fases: 1) fase aguda, iniciada logo após o evento, podendo durar vários dias; 2) fase peritraumática, com duração de até 12 semanas; 3) fase de longo prazo, para além das 12 semanas após a experiência traumática, quando o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e as condições relacionadas a ele emergem, indicando adaptações crônicas à impossibilidade de recuperação, as quais podem interferir de forma disruptiva, comprometendo a trajetória ótima de desenvolvimento de uma criança.
Em crianças, as disrupções imediatas e agudas refletem-se em sintomas nas seguintes áreas:
Somática: taquicardia, alterações na respiração etc.
Afetiva: mostra-se embotada, perturbada/caótica etc.
Cognitiva: autoculpabilização, falhas no funcionamento integrativo e executivo etc.
Comportamental: afastamento, agitação, interações agressivas etc.
Sintomas peritraumáticos apontam uma expressão mais organizada e persistente de desregulação traumática, e podem ser observados em uma gama de manifestações, que compreendem perturbações do sono (incluindo maior incidência de pesadelos); angústia de separação e comportamento apegado; hipervigilância; queixas somáticas; irritabilidade e comportamento opositor; regressão; impulsividade, distração e pouca capacidade de concentração; re-experimentação e re-atuação do evento em brincadeiras e conversas; emoções embotadas, anestesia e isolamento social; evitação de atividades e lugares; dissociação; comportamento agressivo; dificuldades escolares; e comportamentos de alto risco. Muitas crianças e adolescentes que demonstram o impacto traumático da exposição a eventos violentos recuperam-se e continuam naquilo que Anna Freud descreve como o caminho ótimo do desenvolvimento. Para várias outras crianças, porém, a última experiência de perigo incontrolável é demasiado íntima, e com muita frequência faltam recursos internos, familiares e ambientais para oferecer apoio e ajuda na recuperação.
Quando crianças não conseguem se recuperar de reações/sintomas agudos e peritraumáticos, reações de longo prazo refletem alterações de sistemas neurais básicos, assim como adaptações sintomáticas crônicas. Estas podem modificar severamente o curso normal do desenvolvimento infantil e resultar em consequências psicológicas, fisiológicas e sociais para a vida toda, que incluem problemas de vinculação/relacionamento, TEPT, transtorno de ansiedade, transtornos do humor, drogadição, comportamentos antissociais, comportamentos violentos e/ou abusivos, doenças crônicas e transtornos de personalidade. Essas evoluções de longo prazo revelam o alto preço que o trauma sem resolução cobra não só de indivíduos, mas secundariamente de membros de sua família e da comunidade. Tais impactos se mostram ainda mais profundos e críticos quando consideramos o número de crianças em risco de sofrimento de curto e longo prazo em decorrência de exposição a violência intensa e a outros eventos catastróficos.
Compreendendo os sintomas do trauma infantil
Assim como acontece com o pesadelo, em seguida à aguda/imediata desregulação traumática das funções executivas do ego, dos sistemas fisiológicos de excitação, da experiência somática e cognitiva, a criança traumatizada procura proteger-se de forma a desfazer a experiência original de desamparo, assumindo uma postura alerta em relação ao mundo externo, “localizando” externamente a fonte de perigo, em uma tentativa de desenvolver estratégias para evitar sua repetição. A fim de reverter a experiência traumática, a criança busca obter controle através do restabelecimento da angústia-sinal, atribuindo a ameaça a uma fonte identificável. Se o perigo pode ser localizado externamente e antecipado, ações podem ser tomadas para evitar uma nova rendição à passividade, à falta de controle e ao desamparo. Como sabemos, entretanto, os sintomas de evitação e as tentativas de controle cobram seu preço no momento em que as crianças procuram evadir-se da excitação provocada pelos medos humanos mais básicos. O desafio de reconquistar a sensação de controle pessoal é exacerbado quando experiências originais (relacionadas ao evento) da perda traumática de controle são revisitadas, mediante mudanças fisiológicas (particularmente, a desregulação do sistema noradrenérgico) que fazem com que o corpo se torne mais vulnerável à experiência de susto – mudanças súbitas na frequência cardíaca, na respiração e na tensão muscular. Esses sintomas somáticos poderão ser especialmente perturbadores se os indivíduos forem incapazes de localizar conscientemente as lembranças traumáticas ou os gatilhos que os disparam.
Múltiplos fatores, como proximidade física e emocional a perigos intensos, vulnerabilidades de desenvolvimento preexistentes, histórico traumático significativo, nível de sofrimento dos cuidadores e disrupções continuadas da rotina diária, contribuem para determinar a extensão do impacto traumático dos eventos. Os dois indicadores mais poderosos de uma evolução pós-traumática desfavorável são 1) a falha em reconhecer o sofrimento pós-traumático da criança e 2) a falta de apoio familiar e social.
Embora possamos nos sentir sobrecarregados com o grande número de crianças em risco de não se recuperar de um trauma, quando aplicamos o que sabemos sobre o fenômeno do trauma e sobre os fatores protetivos da identificação precoce e do apoio social, também há razão para ter esperança e agir. Entretanto, a fim de identificar e melhor endereçar as necessidades de crianças traumatizadas, como psicanalistas clínicos, nós do YCTSR precisamos sair de nossos consultórios e trabalhar com parceiros que regularmente recebem e identificam as crianças que estão em maior risco por conta de sua exposição à violência e à catástrofe. Em New Haven, direcionamo-nos a uma nova parceria com profissionais que atendem os chamados das pessoas 24 horas por dia, sete dias por semana – os policiais.
Desenvolvimento da Criança – Policiamento Comunitário
A coordenação do policiamento com atividades de saúde mental iniciada em New Haven, Connecticut no começo dos anos 1990 nasceu da preocupação compartilhada em relação às necessidades não atendidas de crianças e famílias traumatizadas. No atendimento a chamados residenciais, oficiais da polícia ficavam particularmente perturbados pelo grande número de crianças com que se deparavam e que nunca recebiam nenhum tipo de intervenção ou cuidado adequado a situações traumáticas. O aprendizado mútuo através de nossas distintas perspectivas e atividades profissionais, ao longo do tempo, culminou no programa Desenvolvimento da Criança – Policiamento Comunitário (Child Development – Community Policing, CD-CP), que inclui os seguintes elementos:
Treinamento para agentes policiais sobre princípios psicanalíticos do desenvolvimento infantil e do comportamento humano; policiamento trauma-informado para o atendimento de situações violentas e catastróficas.
Treinamento para todos os clínicos do CD-CP sobre princípios das operações policiais, responsabilidades, estruturas e atendimentos, incluindo patrulhas, preservação de cenas de crime, investigação, causa provável e uso da força.
Serviço telefônico 24 horas por dia, sete dias por semana, oferecendo consultas telefônicas bem orientadas, atendimento presencial in loco (em situações de emergência) e visitas colaborativas de policiais, ativistas e clínicos às vítimas e sua família após o atendimento policial inicial.
Reunião semanal para avaliar os casos com policiais, parceiros da saúde mental e serviços de proteção à criança a fim de planejar o acompanhamento com base nas necessidades identificadas pelo grupo multidisciplinar.
Em funcionamento há 30 anos, essa parceria nos fez perceber que, com o treinamento cruzado apropriado, policiais e profissionais da saúde mental podem de fato identificar crianças em situação de risco em decorrência da exposição a eventos traumáticos, em geral atendidos pela polícia. Com o trabalho conjunto, os parceiros do cd-cp estão bem preparados para intervir imediata e precocemente a fim de reduzir o sofrimento agudo promovido pela desregulação traumática e diminuir a chance de efeitos de longo prazo associados à impossibilidade de recuperação. Desde sua criação em 1991, a parceria entre o YCTSR e o Departamento de Polícia de New Haven atendeu conjuntamente mais de 15 mil crianças e famílias locais. O programa CD-CP foi replicado e adaptado em inúmeras comunidades dos Estados Unidos e de outros países, e continua a oferecer treinamento e assistência técnica solicitada por comunidades que buscam reproduzir esse modelo.
Com resposta precisa e in loco, a equipe policial-clínica trabalha junto para restabelecer a ordem e o equilíbrio psicológico; avaliar e atender as necessidades básicas das vítimas, incluindo sua segurança imediata; verificar a saúde comportamental dos membros da família e oferecer a eles informação a respeito de potenciais reações pós-traumáticas, estratégias básicas de redução de sintomas específicos ao estágio de desenvolvimento da criança, assim como indicações de profissionais para tratamento clínico.
Consideremos a vinheta clínica a seguir.
Mike R
O garoto Mike, de 9 anos, testemunhou a morte por arma de fogo de um vizinho adolescente, John, a quem idolatrava. O menino mais velho tinha honestamente vencido seu oponente em um jogo de basquete, sendo acusado por esse último de haver trapaceado. Os dois adolescentes iniciaram uma luta corporal, até que o oponente de John puxou uma arma e atirou duas vezes em seu peito. John morreu quase que de imediato. Por sua própria solicitação, Mike e a mãe foram inicialmente atendidos por nosso clínico de plantão, logo após a entrevista com a polícia. Na fase aguda da intervenção, o terapeuta convidou o garoto a desenhar. Sem qualquer sugestão de tema por parte do terapeuta, o menino fez vários desenhos em sequência, nos quais o atirador e a arma iam progressivamente tornando-se maiores, enquanto ele próprio e seu amigo adolescente se encolhiam até virar meros pontos no papel. Nas semanas seguintes, Mike tinha pesadelos frequentes, mostrava-se irritadiço em casa e na escola, e entrava em brigas cada vez mais físicas com o irmão mais novo e com colegas. Antes do incidente, Mike saía-se bastante bem na escola, e apesar de seu pai haver abandonado a família quando o menino tinha 3 anos, sua mãe descrevia um histórico de desenvolvimento normal. Sua única preocupação era o fato de o filho passar muito tempo fora de casa, ficando sozinho por horas ou vendo os meninos mais velhos jogarem basquete nas quadras onde o crime ocorreu.
Durante o curso de sua psicoterapia, com frequência de duas vezes por semana e que se manteve por oito meses após o tiroteio, os desenhos de Mike e as narrativas que os acompanhavam tornaram-se mais elaborados. Neles, o menino revelava o papel central que John havia desempenhado em seu mundo interno, como uma representação mais próxima de um pai pouco lembrado e altamente idealizado – forte, competente e interessado nele. Mike era cada vez mais capaz de descrever de que modo a atenção de John, deixando-o ficar na quadra de basquete e às vezes ensinando-o a encestar, havia sido um contraste importante às cobranças e preocupações da mãe com sua segurança, que o faziam sentir-se como um bebê. Nesse contexto, enquanto Mike repetidas vezes retornava ao momento em que John foi alvejado, seu sentimento de incredulidade e confusão foi se transformando em pesar, raiva e depois culpa. Com a contínua descrição da imagem persistente de John caindo no chão com uma expressão de surpresa no rosto, Mike conseguiu pôr em palavras a essência desse momento traumático: a figura/representação de força e competência com que ele tão desesperadamente se identificava poderia cair como um bebê indefeso e abandoná-lo. Com o reconhecimento do elo entre passado e presente, associado ao anseio do garoto por um pai e amigo que “o abandonou”, Mike e o terapeuta começaram a dar sentido à irritabilidade e às brigas que serviam para restabelecer o poder, expressar a raiva e defendê-lo de sentimentos indesejáveis de “ser um bebê”, vinculados justamente ao anseio por um pai e amigo que o abandonou. Mais importante talvez tenha sido a capacidade de Mike de perceber que seu comportamento “durão” refletia o desejo de reverter a experiência traumática original – para ele, a convergência dos perigos internos e externos de perda, vulnerabilidade e dano corporal, comportamento insano e completo desamparo. Sua traumática perda de controle confirmou não só seu sentimento de “ser um bebê”, mas destruiu, de novo, sua necessária idealização de uma poderosa figura masculina/paternal com que ele podia se identificar. Gradualmente, Mike ficou atento às situações que vivia como um ataque a seu senso de competência – tanto as piadas dos amigos e as provocações do irmão mais novo, quanto as preocupações e expectativas da mãe – e que disparavam contra-ataques raivosos. A irritabilidade e as brigas diminuíram, e por fim desapareceram, assim como os pesadelos que encerravam seu terror e lhe roubavam a segurança do sono. Além das sessões individuais, o terapeuta encontrava-se com Mike e a mãe juntos. À medida que identificavam comportamentos problemáticos como “sintomas” e fontes de dificuldades, Mike experimentava um tipo muito diferente de apoio da mãe. Em sua oscilação entre frustração, conflitos com a raiva e preocupação, a sra. R podia agora dizer a Mike quando achava que ele estava passando por dificuldades, bem como ajudá-lo a lembrar que brigar com os outros não faria com que a tristeza em relação ao amigo desaparecesse ou com que se sentisse melhor consigo mesmo. Por sua vez, Mike sentia-se menos infantilizado pela mãe, ao passo que se mostrava mais capaz de tolerar sua genuína necessidade de atenção e apoio em um momento em que se sentia tão triste e desamparado. Se não podia controlar o que acontecera com o amigo, podia agora sentir-se um pouco orgulhoso de sua maior capacidade de controlar os sintomas que decorreram disso.
Pais/cuidadores como mediadores
Entre os conceitos psicanalíticos, é central a noção de que, em cada fase do desenvolvimento, um papel fundamental dos cuidadores adultos é ajudar a criança até que ela seja capaz de mediar e controlar as experiências internas e externas. Como a história de Mike ilustra, quando o nível de estímulo/demanda supera as capacidades mediadoras da criança, o risco de superestimulação e desconforto é maior, assim como a necessidade de apoio e contenção do adulto. Esse papel é especialmente importante quando as crianças são forçadas a lidar com eventos devastadores e superestimulação com proporções traumáticas, uma vez que elas não têm a necessária maturidade psicológica e cognitiva para processar isso.
A parceria do CD-CP atendeu a necessidade de estabilização e identificação precoce de crianças que precisam de cuidados clínicos, além de nos proporcionar oportunidades regulares de observar diretamente crianças e pais em todas as fases da reação traumática. Tais observações nos permitiram desenvolver um tratamento peritraumático inicial, Intervenção em Estresse Traumático para Crianças e Famílias (Child and Family Traumatic Stress Intervention – CFTSI), que focaliza o papel central dos pais enquanto mediadores da capacidade de auto-observação da criança – capacidade crítica para alcançar organização e domínio diante de uma desregulação traumática.
CFTSI
CFTSI é um modelo de tratamento psicanalítico/desenvolvimental, com duração de cinco a oito sessões, que demonstrou eficácia na redução de sintomas de estresse traumático e na redução ou interrupção do transtorno de estresse pós-traumático e de transtornos similares. Foi desenvolvido especificamente para o trabalho com crianças, adolescentes e cuidadores durante o período inicial ou peritraumático da resposta traumática, logo após a ocorrência de um evento traumático ou uma denúncia formal de abuso físico ou sexual (como em uma entrevista forense). O cftsi centra-se nos seguintes aspectos: 1) estabelecimento de um referencial comum para a criança e seus pais quanto ao fenômeno do trauma e aos sintomas pós-traumáticos; 2) ampliação do conhecimento dos pais sobre esses sintomas no contexto das fases do desenvolvimento e no histórico de desenvolvimento da criança em questão; 3) maximização da capacidade de auto-observação tanto na criança quanto nos pais; 4) refinamento da comunicação entre a criança e seus cuidadores em relação aos sintomas traumáticos dela; 5) oferecimento de estratégias para auxiliar crianças e famílias no domínio das reações traumáticas. Adicionalmente, o CFTSI melhora a triagem e o contato inicial com crianças impactadas por estresse traumático, oferecendo uma oportunidade de acesso às necessidades da criança, e introduzindo tratamento de longo prazo quando necessário. Também foram desenvolvidas aplicações do tratamento oferecido pelo CFTSI para crianças de 3 a 6 anos, assim como para aquelas recentemente admitidas em orfanatos.
O CFTSI é uma intervenção padronizada, acompanhada por um protocolo de treinamento, e é o único tratamento baseado em evidências para o estágio inicial de reações pós-traumáticas. Um primeiro estudo randomizado controlado demonstrou que crianças que receberam a intervenção CFTSI, em comparação com aquelas tratadas com abordagens mais tradicionais, tinham 65% menos chance de atender o critério completo do DSM-4 para transtorno de estresse pós-traumático e 73% menos chance de atender parcial ou completamente o critério após três meses do término do tratamento. Numerosos estudos posteriores replicaram esses achados e também demonstraram com consistência um aumento significativo na percepção e comunicação dos pais/cuidadores em relação aos sintomas traumáticos das crianças. Com frequência, crianças envolvidas nesses estudos tinham extenso histórico traumático antes de seu encaminhamento para o cftsi. Cabe notar ainda que pais/cuidadores que participaram do cftsi também experimentaram significativa diminuição dos sintomas de estresse pós-traumático.
Crianças são mais frequentemente encaminhadas ao cftsi pela polícia, por equipes de emergência pediátrica, por serviços de proteção à criança, por avaliadores forenses de abuso infantil e por profissionais da área da saúde – aqueles que têm maior contato inicial com crianças cuja exposição a violência e a eventos catastróficos as coloca no grupo de maior risco para o sofrimento pós-traumático.
Mais de 1.500 clínicos da área da saúde mental nos Estados Unidos e na Europa receberam o treinamento cftsi, muitos dos quais contribuem agora para uma pesquisa sobre o modelo, ainda em andamento, envolvendo mais de 3.500 casos.
Considerações finais
No centro da ação terapêutica do trabalho psicanalítico está a tarefa de observar cuidadosamente os fenômenos, encontrar palavras adequadas e em seguida explorar e descobrir significado naquilo que se apresenta. Nas parcerias que desenvolvemos com profissionais de fora de mundo clínico psicanalítico tradicional, aplicamos esses mesmos princípios. Primeiro, estabelecemos contato com as perspectivas de nossos parceiros em relação às crianças que normalmente atendem; depois, encontramos uma linguagem comum, capaz de articular observações compartilhadas; por fim, traduzimos nossos achados em novas abordagens, que poderiam endereçar com mais precisão a gama de desafios com a qual se confrontam crianças traumatizadas e suas famílias.
A oportunidade de observar mais de perto o fenômeno da experiência traumática aguda e peritraumática oferecida pela parceria CD-CP conduziu ao desenvolvimento de uma nova forma de intervenção precoce, que pode endereçar o sofrimento imediato de crianças traumatizadas, ajudar a atenuar o impacto de longo prazo no desenvolvimento infantil e identificar de forma mais clara quais crianças devem ser encaminhadas a um tratamento de longo prazo. O CFTSI reflete a integração do crescente corpo de conhecimentos sobre a fenomenologia do trauma infantil oferecido pela neurobiologia e pela psicologia cognitiva, enriquecido pela teoria/conhecimento psicanalítico sobre a complexa interação entre mundo interno e mundo externo e a trajetória de desenvolvimento de mentes em formação.
Como psicanalistas clínicos, oferecemos nosso melhor quando aderimos às nossas tradições mais fundamentais de observação atenta – procurando ver o mundo através dos olhos/experiências dos outros. Ao longo de nossa trajetória psicanalítica, quando mudamos o foco para além do consultório, não só expandimos nossas teorias sobre o desenvolvimento e o funcionamento humano, mas também estendemos o alcance e impacto de sua aplicação para além do pequeno número de pessoas que entrarão em nossos consultórios. O trabalho direto nos ambientes em que vivem crianças em risco proporcionou aos psicanalistas clínicos a oportunidade de se aproximar de fenômenos observáveis enquanto estes se desenrolam, e que não poderiam ser observados de outra forma. Essa oportunidade permitiu elaborar novas opções de endereçamento de alguns dos arranjos psíquicos e adaptativos resultantes de enormes desafios, em direção a um desenvolvimento progressivo e ótimo das crianças impactadas pela adversidade e por questões sociais e de saúde pública. Na situação de exposição a violência e trauma, a aplicação de princípios psicanalíticos também ofereceu – às instituições e aos profissionais normalmente requisitados e desafiados em sua tentativa de atender crianças afetadas – possibilidades diferentes das usuais, de evasão e evitação, que tão naturalmente ocorrem diante de situações carregadas de medo e desamparo. Quando obtemos sucesso na aplicação daquilo que aprendemos juntos, as crianças que são alvo de nossa preocupação compartilhada não precisam mais enfrentar sozinhas o sofrimento e o desespero que tão frequentemente acompanham a perda traumática de controle. Isso pode ser substituído por apoio, domínio, recuperação e esperança.