Este livro, agora lançado entre nós pela editora Blucher, consiste numa rica coletânea de textos apresentados por ocasião de uma jornada em homenagem a Bion, realizada na Associação Francesa de Psiquiatria, a fim de comemorar o 10º aniversário de sua morte, evento que contou com a presença de Francesca Bion.
Simon-Daniel Kipman se refere a Bion como um farol marítimo e afirma que “foi com certo atraso que a França descobriu Bion” (p. 12), trazendo à luz possíveis aproximações e também distâncias entre ele e Lacan, que dominou a cena da psicanálise francesa por muito tempo, segundo suas palavras. O autor se pergunta: por que uma associação de psiquiatras em vez de uma associação de psicanalistas?
O livro apresenta uma linda e profunda carta de André Green a Bion, de 21 de outubro de 1989, em que Green fala de sua imensa obra e se coloca no lugar dos ladrões do cemitério de Ur:
A tumba real é aquela onde vós repousais com vossas obras. O ladrão, que sou eu, tem tantas riquezas sob o seu olhar que não sabe o que escolher para carregar, pois o que ele tem diante de si é muito mais que sua sacola pode conter. O conteúdo não cabe no continente, é preciso selecioná-lo de fato. (p. 21)
O texto de Francesca Bion, intitulado “A vida é cheia de surpresas”, refere-se a Bion como gênio, capaz de oferecer visões novas, mas também de produzir reações violentas. Fala de sua grande sensibilidade, com força e solidez moral imensas, e comenta a necessidade de Bion ter saído da Inglaterra, destacando:
Em toda a minha vida fui abafado, frustrado, perseguido pelo senso comum, a razão, as lembranças, os desejos, e, o que é uma praga, a exigência de compreender e ser compreendido. Esse epílogo [do livro 1 de Uma memória do futuro] é uma tentativa de exprimir minha rebelião, de dar as costas a isso tudo. Meu desejo, eu me dou conta agora, está fadado ao insucesso que é escrever um livro que não seja desperdiçado por nenhum traço de senso comum, de razão, de lembranças e desejos. (p. 34)
Bernard Barrau escreve sobre a autobiografia de Bion, enfatizando as suas vivências durante a guerra: “Voltou herói, mas em choque. Não somos messias ou gênios, como ele colocará em teoria mais tarde, sem deixar aí as plumas” (p. 39). Ressalta a multiplicidade de vértices possíveis ao leitor diante de The long weekend e All my sins remembered, apontando a capacidade de Bion de entrar em contato com suas mais profundas emoções, especialmente no episódio com a filha bebê, que causou uma verdadeira “subversão psíquica nesse pai, liberando sua capacidade de amar” (p. 48). Menciona a carta que Bion escreveu aos filhos em 1964, discorrendo sobre a depressão e o insucesso: “Mas o preço que se paga para escapar ao insucesso e à depressão é cem vezes pior” (p. 48). Termina considerando Uma memória do futuro, obra extravagante, uma mistura de ideias que aclara sua obra teórica, “pela explosão do autor em personagens, que são ele próprio sob diferentes aspectos ou em diferentes momentos. Surpreendente personagem que nos desculpamos por não termos conhecido” (p. 52).
H. P. Hildebrand escreve sobre Bion na Tavistock, abordando as hipóteses dele sobre o funcionamento grupal, os supostos básicos (aqui traduzidos por hipóteses de base), destacando as contribuições de Bion para o campo das instituições sociais, como o National Health Service, mas discriminando esse trabalho do trabalho clínico psicanalítico: “Por sua vez, Bion decidiu retirar-se a fim de continuar e aprofundar seus estudos psicanalíticos” (p. 59), dedicando-se à sua formação analítica e a suas análises pessoais.
Vários textos tratam do trabalho Experiências com grupos, como o de Ophélia Avron, que ressalta, além dos supostos básicos do funcionamento grupal, o postulado do protomental, que seria o substrato de onde eles se originam, segundo sua maneira de pensar. Levanta a hipótese de uma emotividade grupal rítmica, constituindo uma função emocional grupal. O contato com essa emotividade, expressa nos supostos básicos, permite que o grupo realize sua tarefa, constituindo-se como grupo de trabalho.
Antoine Appeau escreve sobre Bion e uma instituição de psicoterapia popular: La Chavannerie. Conta de um pedido de supervisão de grupos numerosos que fez a Bion em 1976. Relata os encontros muito ricos e comoventes que teve com ele, as trocas no campo da arte e da gastronomia, e especialmente sua sabedoria na área da psicanálise: “Ele me ensinou a amar, lançar-me em tais lugares benignos de escuta, e que temos que esquecer uma interpretação evidente, para escolher uma que procura esclarecer uma zona obscura” (p. 82). Reflete sobre os riscos de empobrecimento psíquico envolvidos numa hospitalização, e termina falando da esperança de, com um trabalho psicoterápico dessa natureza, aprendido com Bion, poder colaborar para a recuperação e evolução do paciente, preparando-o para uma análise pessoal profunda, “num setting rigoroso” (p. 89). O autor deixa clara a discriminação entre os dois tipos de trabalho analítico, o grupal e o individual.
Em “Bion e alguns ausentes”, Pierre Geissmann menciona primeiramente o trabalho de Wittgenstein, com o qual o autor acredita que o trabalho de Bion tenha algum parentesco, embora não explícito. Fala em seguida de Melanie Klein, citando o conceito de identificação projetiva, que na obra de Bion deu origem à capacidade de pensar, ressaltando também a importância da experiência de sua análise pessoal com Klein. Em seguida, menciona Donald Meltzer, cujo pensamento foi muito influenciado pela obra de Bion:
Nosso sentimento interno de ser diferente não podia ser comprovado a partir da observação de sentimentos ou comportamentos, entretanto sabíamos que não havia escolha, ou estávamos com eles, bionianos, ou contra eles, menos bionianos. Seu pensamento era qualquer coisa com o que contar. (p. 103)
O autor descreve três ciclos ilustrativos das resistências ao pensamento de Bion: a ironia, a técnica da borracha e o caçador de bruxas do establishment científico. “Então, tendo descartadas estas três partes de nós mesmos ... podemos nos meter a tentar compreender o que Bion quer dizer” (p. 106). Dedica-se a esclarecer o processo de pensar, dando ênfase ao encontro entre uma preconcepção (aqui traduzida como preconceito) e uma frustração, e apontando o papel da tolerância à frustração na gênese do pensar. Fala dessa preocupação com o pensar como a pulsão epistemofílica em Bion, citando a relevância dos mitos, ou melhor, do sonho-mito e da tolerância à dor mental como suporte do desenvolvimento do pensar. Por fim, tece considerações sobre a mente do analista e a importância de ele reconhecer suas emoções mais profundas, entrando em contato com a contratransferência: “Como reconhecer o que é inconsciente em nós mesmos?” (p. 112).
José Luis Goyena fala sobre novas ideias, novas teorias e mudança catastrófica. Faz uma leitura dos Seminários italianos de Bion, detendo-se na noção de mudança catastrófica, que expressa ao mesmo tempo “a deterioração psicótica e os primeiros sinais do pensamento” (p. 120). Mostra que ela propõe um “ajuste fino na interação entre continente e contido e suas transformações” (p. 122). Em seguida, discorre sobre a ideia nova trazida pelo místico, que irrompe em um contexto grupai. No vínculo comensal, produz-se um “autismo teórico”, em que todos convivem, mas “permanecem encapsulados em sua própria teoria”, neutralizando as controvérsias de forma dogmática (pp. 126-129). No vínculo simbiótico, a “ideia nova é contida e desenvolvida pelo establishment” (p. 130); esse tipo de vínculo proporciona mudanças nas teorias, nas ideias e nas personalidades. No vínculo parasitário, há uma destruição de ambos, indivíduo e grupo, numa desvitalização recíproca. Sendo instalado o terror gerado pelo místico, a mentira é requisitada. O autor lembra Luria: “Introduzindo um certo grau de falsificação, ela permite que a verdade se aloje na mente para aí desenvolver-se. Isso a diferencia da mentira que destrói a verdade, substituindo-a pela moralidade” (p. 133). Menciona a turbulência emocional produzida nas situações de crise, bem como a capacidade negativa necessária ao místico para tolerar “a dúvida, o mistério e a dor psíquica” (p. 135), e conclui:
Os descobridores, como Bion, não são apenas os que elaboraram uma ideia e construíram uma teoria nova. Eles são, sobretudo, os que puderam tolerar sua descoberta sem serem corroídos pela sua própria inveja, avidez, seu narcisismo destruidor, e os ataques psicotizantes do grupo e da sociedade. (p. 135)
Jean Bégoin escreve sobre liberdade e tirania. O autor se detém na questão da dor e do sofrimento psíquico, utilizando a noção de identificação projetiva como base para a gênese do pensamento, como propõe Bion. Esclarece que, quando essa comunicação não é possível, instalam-se as transformações em alucinose, prenhes de elementos beta, destinadas a evitar dor mental. Recorre a Athanassiou, Tustin e Bick para reafirmar a centralidade da questão da dor mental na gênese dos pensamentos. Em seguida, discute as ambiguidades do conceito de objeto narcísico, envolvido na evitação da dor mental, apontando a capacidade de reverie como possibilidade de transformar o terror em algo possível de ser introjetado. Se a mãe ou o analista estão privados de reverie, o terror se instala: “Não se trata mais de um perigo vivido no interior da vida psíquica, mas de um perigo que ameaça a existência da própria vida psíquica, ou, dito de outra forma, um perigo de morte psíquica” (p. 145). O autor discrimina o desespero e o sofrimento psíquico da angústia manifesta, lembrando que, em Elementos de psicanálise, Bion considera a dor um elemento de psicanálise. O desespero latente deve poder se exprimir articulado pela função continente da situação analítica, ligada à atitude de fé, evocando um estado de união, a relação designada como simbiótica por Bion, que permite transformações projetivas e desenvolvimento psíquico. Bégoin aborda ainda a questão da verdade incognoscível, destacando que a verdade na clínica psicanalítica é mais modesta, é a “verdade da realidade psíquica” (p. 148). Sua leitura de Bion volta-se para o núcleo secreto de desespero que nos habita, tal como ele denomina os núcleos psicóticos que Bion supõe existir em todo ser humano. Indiretamente, também faz menção à noção de mente primordial não nascida, temida por conter alta potencialidade destruidora, como os buracos negros. Denomina de tirania a violência desses núcleos de desespero, supondo, de maneira bastante original, que ela seja muito maior do que a ação da pulsão de morte inata.
César e Sára Botella escrevem sobre o místico, o conhecimento e o trauma, centrando-se na noção de místico, no ato de fé que nos leva além do que é visível ou do que é verbalizado pelo analisando, em direção ao que é desconhecido e incognoscível, o O formulado por Bion, que representa a verdade última, inacessível. Os autores retomam Freud, com sua visão crítica em relação ao termo místico, em função da necessidade de objetividade científica. No entanto, lembram Einstein e a teoria da relatividade, propondo um questionamento da objetividade. Observam também que o Freud tardio, depois da segunda tópica, apresentou uma nova concepção do psiquismo e uma nova maneira de ver a percepção, como algo que escapa à representação e permanece no âmbito do desconhecido. Discutem as relações entre percepção e alucinação, consideradas indiscerníveis por Freud. Em seguida, afirmam que, “para o analista, a percepção não faz sentido senão por referência e em contraste com a alucinação e a representação” (p. 161). Quando os sistemas de representação não podem dotar de sentido a percepção, acontece o trauma, caracterizado como uma brutal liberação de energia, angústia e desorganização mental diante da não representação. Os autores caminham minuciosamente entre esses termos, caracterizando a percepção como um elemento de cesura entre representação e alucinação, ligado ao trabalho de prova da realidade. Assim, o místico ofereceria a possibilidade de uma aproximação à zona de não representação, não na qualidade de evitação do conflito, mas de possibilidade de acesso à verdade última. Os autores questionam a ideia de união mística com o paciente, mencionando a noção de funcionamento regressivo (ou regrediente?) do analista, a regressão formal do pensamento, requerida a analistas que puderam ter uma experiência de análise pessoal muito profunda, atingindo com isso qualidades de percepção inacessíveis de qualquer outra forma. Eles se perguntam: “Quando Bion insiste no estado de união, o que é preciso entender por esta formulação?” (p. 166). Esclarecem que esse estado de união remete ao místico e ao gênio, o que para os autores se liga à regressão formal do pensamento. Também retomam Freud, ressaltando sua mudança na forma de ver a percepção a partir de 1938, quando ele compreende o fenômeno místico como autopercepção, ligada ao id, isto é, independente de tudo aquilo que é organizado e estruturado, “um estado no limite do psíquico, apto a conter o que atualmente condensamos sob o termo não representação” (p. 167). Sustentam que, com o afastamento da alteridade, do estado de união, em proveito da autopercepção, abre-se uma janela para o desconhecido, que permite o trabalho de figurabilidade, feito, segundo eles, pelo gênio, mas não pelo místico, propondo assim uma aproximação entre Bion e Freud, no âmbito da teoria, mas não da prática clínica: “A prática freudiana e a prática bioniana são realmente complementares, como pensa Bion? É apenas uma questão de profundidade ou de vértice?” (pp. 168-169).
Os autores dizem que o pensamento de Bion pode ser considerado uma consequência inevitável do descentramento do inconsciente operado por Freud com a segunda tópica, mas ao mesmo tempo afirmam que ele traz em si os fundamentos de uma crise na teoria psicanalítica, um outro paradigma, em que o trabalho com as rememorações é substituído, em 1937, pela convicção que pode ser alcançada por uma construção do analista. De qualquer forma, os autores acreditam que o trabalho de Bion pode ser pensado como uma “psicanálise em expansão” (pp. 170-171).
Simon-Daniel Kipman volta no capítulo 11, “Bion e a convicção científica”, onde ele discute, na primeira parte, a matematização da psicanálise como forma de alcançar um conhecimento científico, tal como propõe Bion com a grade em Elementos de psicanálise. A matematização, ao lidar com as emoções, permite alcançar a abstração, o conceito. Mas para isso o analista não pode usar “a razão, escrava das paixões” (p. 182). Para pensar, a dupla analítica vai buscar os invariantes, as relações entre os objetos psicanalíticos, afastando-se da causalidade linear e da moralidade. Na segunda parte do texto, o autor se debruça sobre a noção de místico, discriminando-a do sentido religioso e relacionando-a à intuição. Diz que o uso corrente do termo ciência não é adequado à psicanálise, a ciência da simbolização. Associa a intuição ao ato de fé, que supõe eliminar memória e desejo, o que “torna o ofício do psicanalista muito difícil”. Resumindo, o místico, o ato de fé e a intuição estão diretamente ligados ao que poderíamos denominar de pulsão psicanalítica (pp. 187-188).
Jacques Dufour escreve o capítulo “O legado de Bion: as sombras e o pensamento”. Parte de Uma memória do futuro, que segundo ele tenta uma aproximação entre emoção e racionalidade, intuição e conhecimento científico. Começa mencionando sua experiência emocional ao participar da jornada: saturação psíquica, inveja, ódio e admiração, que precisam ser postos na sombra para que surja a luz do pensamento. Aborda a comunicação privada entre o analista e o analisando, a comunicação pública entre o analista e seus colegas, e a relação do analista com a teoria, que pode ser comensal, em que é possível a criatividade, ou parasitária, em que o conhecimento teórico anula o desconhecido e toda possibilidade de significação. Associa a reverie materna à capacidade psíquica do analista, que deve submeter-se artificialmente à cegueira, permanecendo na incerteza e no desconhecido: “Duplo cenário da contratransferência, como transferência inconsciente do analista para com o paciente, mas também transferência inconsciente do analista para com a teoria” (p. 200). A sombra estaria assim ligada ao silêncio, ao terror, ao ato de fé, ao desconhecido: “Diminuir o contato sensorial, para que o foco ocorra na realidade psíquica” (p. 201). Conclui dizendo: “Fazer sombra quando a razão e a verdade iluminam, fazer a luz com as sombras do real: não é esse o trabalho do analista para com o terceiro teórico, a teoria?” (p. 202).
O livro contém vários artigos muito interessantes, que nos apresentam o impacto das ideias de Bion na França. Escolhi alguns trechos que me tocaram em especial, mas já adianto que vale a pena lê-lo por inteiro.