SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.58 número1A capacidade de estar só como prova de maturidade para o envelhecerSenescência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.1 São Paulo  2024  Epub 29-Nov-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n1.04 

Temáticos

Porque existo

Porque existo

Because I exist

Parce que j’existe

Sylvia Salles Godoy de Souza Soares1 

Psicanalista. Membro efetivo e professora docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp) até 2012. Doutora e mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

1Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo


Resumo

Neste artigo, a autora põe em cena a experiência clínica de mulheres em diferentes fases do envelhecimento. É relevante a distinção das angústias da envelhescência, que é um processo que se inicia ao redor dos 50 anos, marcado pela menopausa e pelo subsequente medo da perda da feminilidade, e que perdura ad infinitum na velhice, quando acontecem as perdas reais, das funções do corpo e das imagens ligadas a ele, além de perdas concretas dos objetos amorosos: pais, familiares, amigos… O tempo, a memória, as lembranças podem divergir, mas a solidão é a mesma em todos os casos expostos. Angústias, sonhos, pesadelos podem demudar ficção em realidade, ou vice-versa. Imperativa é a mudança de hábitos em função das mudanças do corpo. Entretanto, o eu do sujeito idoso mostra uma espantosa renovação de interesses. Freud assinala que a criança brinca no mesmo grau que o adulto sonha, devaneia. À medida que o tempo passa, ele descobre novas formas de viver, ou melhor, de saber viver.

Palavras-chave envelhescência/velhice; angústia; solidão; vida/morte; revivescências

Resumen

En este artículo, la autora destaca la experiencia clínica de mujeres en diferentes etapas del envejecimiento. Es importante distinguir las angustias propias del envejecimiento, que es un proceso que comienza alrededor de los 50 años, marcado por la menopausia y el subsiguiente miedo a la pérdida de la feminidad, y que dura ad infinitum hasta la vejez, cuando se producen pérdidas reales, de las funciones del cuerpo y de las imágenes vinculadas a él, además de pérdidas concretas de seres queridos: padres, familiares, amigos… El tiempo, la memoria, los recuerdos pueden diferir, pero la soledad es la misma en todos los casos expuestos. Las angustias, los sueños, las pesadillas pueden transformar la ficción en realidad, o viceversa. Es imperativo cambiar los hábitos debido a los cambios en el cuerpo. El yo del sujeto anciano muestra, sin embargo, una asombrosa renovación de intereses. Freud señala que los niños juegan en la misma medida en que los adultos sueñan y ensueñan. Con el paso del tiempo, descubren nuevas formas de vivir, o mejor dicho, de saber vivir.

Palabras clave envejecimiento/vejez; angustia; soledad; vida/muerte; reviviscencias

Abstract

In this article, the author discusses the clinical experience of women at different stages of aging. It is important to distinguish the anxieties of aging, which is a process that begins around the age of 50, marked by menopause and the subsequent fear of losing one’s femininity, and lasts ad infinitum into old age, when real losses occur, of the functions of the body and the images linked to it, as well as concrete losses of loving objects: parents, family, friends… Time, memory, reminiscences may differ, but loneliness is the same in all the cases portrayed. Anxieties, dreams, nightmares can change fiction into reality, or vice versa. It is imperative to change habits due to changes in the body. However, the elderly person’s self shows an astonishing renewal of interests. Freud points out that children play to the same degree that adults dream and daydream. As time goes by, they discover new ways of living, or rather, of knowing how to live.

Keywords aging/old age; anxiety; loneliness; life/death; reviviscences

Résumé

Dans cet article, l’autrice aborde l’expérience clinique des femmes à différents stades du vieillissement. Il est important de distinguer les angoisses du vieillissement, qui est un processus qui commence vers 50 ans, marqué par la ménopause et la peur subséquente de perdre sa féminité, et qui se prolonge à l’infini jusqu’à la vieillesse, où il y a des pertes réelles, des fonctions du corps et des images qui lui sont liées, ainsi que des pertes concrètes d’objets d’amour : parents, famille, amis… Le temps, la mémoire, les souvenirs peuvent différer, mais la solitude est la même dans tous les cas présentés. L’angoisse, les rêves, les cauchemars peuvent transformer la fiction en réalité, ou inversement. Il est impératif de changer les habitudes en raison des modifications du corps. Cependant, le moi de la personne âgée fait preuve d’un étonnant renouvellement d’intérêts. Freud souligne que les enfants jouent autant que les adultes rêvent et rêvassent. Au fil du temps, ils découvrent de nouvelles façons de vivre, ou plutôt de savoir vivre.

Mots-clés vieillissement/vieillesse; angoisse; solitude; vie/mort; reviviscence

Às vésperas de completar 90 anos, recebo um convite especial da colega Elsa Susemihl, coeditora da Revista Brasileira de Psicanálise, para contar histórias da minha experiência clínica.

Digo “contar” porque creio que a experiência clínica é inerente à história pessoal. Ao terminar a graduação, aos 40 anos, passei de aluna a professora e ganhei um crédito: o encaminhamento de pacientes, mães, irmãos e afins das estagiárias. Desde então, apurei uma escuta atenta para os males dessa camada da população (idosos), que muito se agigantava graças aos avanços da medicina e de outras inciativas.

Para iniciar, é preciso distinguir as angústias que medram a envelhescência – um processo que começa e segue seu curso ad infinitum, com perdas significativas, como a percepção de que é necessária uma distância do texto para conseguir ler, “crises” da menopausa, o medo de perder o encanto pessoal etc. – das amarguras da velhice propriamente dita, que é a constatação de perdas reais.

O tempo da envelhescência é ciclópico. A ânsia de realizações é vertiginosa. O que mais se ouve é: “Estou com pressa!”. A corrida louca em busca do tempo que se encurta é uma armadilha, à medida que se tenta interpor os desejos no inexequível.

O tempo da velhice, ao contrário, se desdobra: tempo do sono – sonhar; tempo da revivescência – devaneio; e tempo real.

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que não se misturam. Contar seguido alinhavado, somente sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. … Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. (Rosa, 1956/1984, p. 92)

Súbito, um susto, um estranhamento. Abro os olhos com 88 anos! O quê? O que aconteceu que não percebi e acordei em outras terras, apátrida? Saio na rua e as pessoas perguntam: “Precisa de ajuda?”. Atendem com consideração e solicitude a um só tempo. Sei que de fato querem ajudar, mas por vezes esbarram numa obsequiosidade irritante.

“Quem sou eu nessa hora?”, me pergunto. Não sou carente de compaixão, mas reconheço a minha vulnerabilidade crescente. A fragilidade se mostra nas manhãs em que desperto de uma noite maldormida e boa parte do dia me ocupo na manutenção do próprio corpo. E além disso uma necessidade de provar para o Outro, e para mim mesma, o que ainda sou capaz de fazer, executar tarefas as mais corriqueiras. Um inferno…

É viver para se manter vivo. Meu salvo-conduto: a memória?!

Experiências narrativas na clínica psicanalítica

Como uma forma viva de pensar, mencionei esse relato e sigo com outros, de pacientes em diferentes etapas da vida.

Sofia, no final dos seus 40 anos, tem fantasias de uma velhice que mal se anuncia e já a assombra. A lembrança de outros Natais a deixa nostálgica: é o prenúncio da depressão.

Ficar velhinha dá a impressão de despedida, e acho que se o caminho é esse, o jeito é ir, porque voltar para trás não dá. [Pausa.] A equivalência da idade é a depressão… Tem uma coisa meio melancólica em fim de ano, meio triste. Não entendo muito bem por que isso se passa. Desde pequena, o Natal era bom, mas triste. Na noite de Natal, estamos quase nos pegando. É um falso Natal, aquele que fazemos pensando nos mais velhos. Vai muita gente e eles acabam ficando de lado.

Maria Isabel, no avançado dos 50 anos, depois de relatar sua vida profissional, expõe sua vida pessoal:

Gosto de meu trabalho, porque lido com pessoas. Mas minha casa parece “desabitada”. Moro com meu marido, também cinquentão, uma empregada com mais de 60 anos (que está na família desde que eu era pequena), e minha terceira filha, que está prestes a se casar. Eu vivia cercada de pessoas e agora não encontro companhia.

Motivo da análise?

Já sei, fiquei avó! O bebê está agora com 3 meses. … Estou num impasse, mas sinto que não tem mais volta, estou cada vez mais distante. Por exemplo, outro dia, minha amiga me convidou para comer uma pizza. Eu recusei porque minha filha ficou me criticando de eu sair e deixar a família. Mas depois cada um foi fazer suas coisas, e eu fiquei em casa sozinha. Ontem convidei minha filha para ir ao cinema, e ela disse que não podia, o marido se recusou.

Mariana, aos 70 e poucos anos, desvenda seus pensamentos:

Preciso de mim! É urgente! … Em momentos de angústia, sempre pensei que a causa de tudo era o outro; seja porque me sentia ofendida, seja porque precisava do outro. Mas de que outro? Talvez um confidente que pudesse me ouvir sem ser atingido pelas coisas que no momento me afligiam. Função da análise? Mas de que análise, se ela não supre? Quem sabe estes escritos possam cumprir esse encargo? Aliás, preciso de quem ou do que de mim? Qual foi a parte do quebra-cabeça que perdi e não percebo onde nem quando, mas por vezes, ao ficar sozinha, noto que vou me reencontrando? Nem sempre! Não é que tenha que ficar reclusa, mas nesse vagar daqui para ali observo uns e outros, miro no espelho de minh’alma e percebo aos poucos que vou ao cerne de mim, no silêncio de outras vozes. Escrevo e me pergunto: para quem? Vem o eco: para todas essas de mim em que fui me desdobrando ao longo da vida e que enfim compõem meu eu.

Essa mulher, em sua busca de acompanhar as transformações do tempo, indaga-se sobre a questão: será que envelhecer é uma sucessão de perdas?

Hóspede em casa de uma filha que me acolhe nos dias em que a solidão bate à porta, acordei hoje com o diabo no corpo, como se dizia antigamente. Um banzo! Mesmo assim procurei fazer uma presença agradável com minha filha e meu genro no café da manhã. Em seguida, saí apenas com a intenção de tomar um banho de mar. Mas a pedalada naquela hora da manhã estava tão agradável que fui indo, indo… Sentei-me e, na contemplação do vai e vem das ondas, as ideias se atropelavam entre “sonhos” e “pesadelos”. A caminhada na praia me deixara nostálgica por lembrar-me de tempos mais ou menos recentes, quando estivéramos todos juntos: filhos, cônjuges, netos… Penso se eu deveria cultivar outras searas. Mas não!

Como diz Guimarães Rosa, “quanto mais ando à procura de gente, mais me encontro sozinho no vago”.

Vou em direção ao mar, e ao caminhar pelas ondas, um homem me dá um cordial bom-dia. Respondo com um sorriso. Atrás dele vinham outros dois, que o interpelam: “Franco, contenha-se”. Compreendo a gozação; talvez a mulher dele estivesse lá! Sorrio comigo mesma. Penso: enquanto se atrai o olhar de um homem, nem tudo está perdido! Rejuvenesço por uma fração de segundo! Mas ao sair do mar vejo uma moça com um corpo escultural, de mãos dadas com um homem exibindo um semblante que sinalizava: “Tem dono”. A memória me despacha para 35 anos atrás e reproduz a mesma cena: também de mãos dadas com um namorado, que comentara com orgulho: “Que máximo, estar na praia, um dia lindo, a mulher do lado!”. Saudades? Talvez… Porém ressurge a recordação da angústia sentida em uma cena de um sonho recente, no qual ele me abandonava (o que, aliás, de fato ocorreu há muitos anos). A memória é traiçoeira. Como assim, penso, se ele já morreu faz tempo?

Nesse percorrer, os meandros da imaginação, um ir e vir do tempo; é que a fantasia, entre devaneios, sonhos, pesadelos e despertares, constrói realidade em ficção, ou vice-versa.

Eva, com seus 80 e tantos anos, não apresentava queixas de caráter agudo, mas de natureza amargurada. Em fragmentos de seu discurso, esboça um quadro depreciativo da família: um dos filhos é bem-sucedido, mas covarde; a nora, ardilosa; o outro filho, leviano. Como esse quadro a desgosta! Ela contorna, inverte e põe em evidência o lado superficial de sua vida. A seguir, vêm à tona as lamentações:

Hoje tenho tudo que quero: no fim de semana, no sábado, fui almoçar com um grupo que estava muito bom; no domingo também. Depois eles me deixaram no clube, e eu fiquei lá, jogando conversa fora, mas em companhia, que é tudo que posso querer nesse momento. … Foi uma pena porque, na primeira quinzena, eu tinha passado nove dias magníficos na praia, porque “eles” não estavam lá. Eles nem ligam para saber como eu estou. É melhor assim: longe deles, eu não sofro. Além de gostar muito de praia, para mim acaba sendo um oásis. Quando vou, deixo as amolações, dificuldades e problemas para trás. Eu me sinto livre, leve e solta diante daquela imensidão. Mas… é inútil! Eu viajo, e os problemas me acompanham. O encontro com ela [a nora], as insinuações etc. Me defrontei com tudo aquilo que não devo nem quero mais olhar. Melhor não ver porque assim consigo estar equilibrada, que é tudo que preciso para poder manter a saúde. A pressão logo sobe. Não sei o que fazer. … Eles agora não vão mais para o meu apartamento na praia, porque eu gosto de chegar lá e encontrar tudo direito. Eu tenho que viver a minha vida e não posso abrir mão da minha renda, porque ele [o filho leviano] ainda é moço e pode trabalhar. Eu conheço pessoas que deram tudo para os filhos e hoje estão recolhidas em asilos. Eu trabalhei muito e tenho direito de usufruir. Não é luxo, mas na minha idade eu preciso ter minha fisioterapia, vir aqui… Se existe algo mais que eu possa fazer por mim, não sei, não vislumbro, não alcanço. Também para estar bem com eles sem me prejudicar. Se existe!?

Na sequência, relata ter comprado uma roupa que não lhe serviu e que trocou por uma coisinha para a neta, baratinha, mas boa para trabalhar, e que pretende levar. Se não a encontrar, deixará a coisa lá e dirá que lá esteve.

O tom de sua narrativa revela as oscilações de seu humor e de seus sentimentos, entre o desejo de aproximação afetiva e o pavor da recusa. Na análise, vai deixando entrever seu amargor pela carência afetiva. Ela anseia, e ao mesmo tempo teme, a proximidade das pessoas que a cercam, especialmente do filho rico. Ela tenta uma aproximação com a neta, mas arrisca pouco, porque se nada receber em troca, pouco terá perdido. Por vezes, quando chega às sessões, traz consigo recortes de jornal que de maneira indireta lhe dizem respeito. Por exemplo, uma crônica sobre a família real inglesa, descrevendo a vida erótica da duquesa de Windsor, que ela sarcasticamente coteja com as referências que faz à nora; e uma notícia fúnebre sobre a qual comenta: “Veja como essa pessoa que faleceu está sendo prestigiada!”, referindo-se ao tamanho e aos dizeres do anúncio fúnebre.

Quando perpassamos as diversas narrativas, observamos um distanciamento progressivo das intenções, pretensões e hábitos – enfim, do mundo. Mas também uma busca de saídas.

Sofia observa:

Eu me sinto moça, mas às vezes fico identificada com os meus sogros, pais, com meu marido. Nostalgia de algo que não entendo, de algum tempo… de tempo nenhum. É uma nostalgia que dá medo. Num texto sobre adolescência, li algo semelhante: perde-se a infância, depois a juventude. É assustadora a ideia, mas não tenho medo da morte, mas de viver eternamente. Fantasia de morte não me assombra, nem a antecâmara [velhice], porque parece que tem uma coisa de acolhimento, a pessoa vai se retraindo. Só mais velho que vai se retirando. Pensar sobre essas coisas é estar vivo. Mas como disse Clarice Lispector: “Quando tenho fome, sinto que estou viva”.

Maria Isabel, já vivendo sintomas da velhice na pele, reconhece o vazio que fica à iminência das despedidas. A emancipação dos filhos é percebida como uma deterioração do papel maternal: a vivência dessa ociosidade se converte em sentimento de inutilidade. O afastamento do objeto de amor acende uma tristeza insidiosa: como preencher o lugar do afeto? “Não encontrei companhia, mas não tive dúvidas: fui para casa, tomei um banho e fui ao cinema sozinha”. Ao buscar novas opções e saídas, iniciam-se novos trajetos, e consequentemente se dá o isolamento necessário à sobrevivência de ambos.

Eva, ao historiar suas memórias, fala das aflições e inquietações desde um passado mais distante até dias mais recentes. Seus lamentos flutuam entre o tom de acusação e a amargura por se ver sozinha. Sua vida foi boa, no casamento e na constituição da família e de um patrimônio. Hoje, ao olhar para si e ao redor, vê sua casa vazia: os filhos foram-se há tempos, e ela só notou isso quando chegaram ao fim suas funções de empresária e com o ultimato da viuvez. Diante desse quadro, ela tem uma atitude:

Hoje posso me proporcionar uma vida boa. Sou a mãe de mim mesma! Mas também hoje senti o peso dos anos: fui dançar com o grupo e pensei que terminaria às duas, mas a noite alongou-se. Fiquei muito cansada. Ouvi um homem dizer para uma mulher com quem dançava: “Olha essa velharia!”. Por que será que incomodamos tanto?

Chronos kai anagke2

Creio que é o pavor de vislumbrar o próprio destino – na melhor das hipóteses. “Revelávamos uma tendência inegável para pôr a morte de lado, para eliminá-la da vida. Tentávamos silenciá-la. … De fato, é impossível imaginar a própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores” (Freud, 1915/1974, p. 327).

O destino é inexorável! A memória vai e volta, num disparar do ir e vir do tempo. À medida que os anos passaram, tanto os valores se transformaram quanto as necessidades. Aos poucos, as pacientes mencionadas foram se dando conta dessa travessia, da proximidade de um fim. Hoje, sabem da cratera que se abriu pelas perdas sofridas, e também que precisam de outros, por uma dor contínua que mal e mal discerniam: solidão.

Solidão! Expressão que marca os relatórios das mulheres. Vale ressaltar, é a forma que as toca em cada etapa do envelhecer. Quando se abre o leque de aspirações, desejos, vontades e interesses que se transmudaram no amadurecer, observa-se a distância e o abismo entre as gerações. Quando dizem que os filhos têm sua vida e que elas precisam ter a delas, fica nítido o afinar do senso crítico que mostra a realidade, mas traz para perto o desamparo. Entretanto, esse caminho é uma via de mão única. Para que ambas as partes vivam, é preciso que respirem seu próprio ar.

Segundo Bobbio,

o que distingue a velhice da juventude, e também da maturidade, é a lentidão dos movimentos do corpo e da mente. Dizem que para um velho a sabedoria consiste em aceitar resignadamente os próprios limites. Mas para aceitá-los é preciso conhecê- los. Para conhecê-los é preciso encontrar um bom motivo. … Convivendo com colegas em geral muito mais jovens que eu, rejuvenesci, ou tenho essa ilusão, e encontrei uma atmosfera confortável de recíproca compreensão e substancial acordo sobre questões essenciais. … A convivência com eles é muito prazerosa, acima de tudo porque ajudam a não envelhecer mais do que seja fisiologicamente inevitável. (1997, pp. 50 e 81-82)

Quando penetramos no universo mental, o cerne da questão é discernir o objeto de amor no momento presente. Nesse momento, o historial clínico beira minha história pessoal, porquanto faço parte desse quadro, dessa manada.

O passado atravanca quando nos transportamos no tempo, lamentamos uma juventude desejada e para sempre deixada para trás. O reflexo da imagem no espelho produz o impacto de uma inquietante estranheza na revelação da imagem distorcida colada ao original. A instabilidade da consciência que temos de nós próprios na sequência temporal passado-presente nos impele a mergulhar num cenário fantasmagórico.

É imprescindível transpor as lentes: além de remover as membranas de catarata, adequar ao grau de distância e proximidade. Ver e aceitar os pais e os filhos transformados. Essa consciência é capital para que haja uma reaproximação de ambas as partes. É assim que as identidades vão se construindo, desconstruindo e reconstruindo ao longo da existência, conforme a constituição da pessoa e as possibilidades oferecidas pela cultura à qual pertence.

Chronos e Kairós3

Hábitos de uma existência têm que ser mudados por exigências do corpo. Há de se conversar com o corpo! Não é desqualificar a mente, mas inverter a ordem. O corpo tem seus direitos adquiridos. A mente, afoita, tem suas pretensões retrocedidas aos anos em que dispunha do corpo a seu bel-prazer: força e vigor à vontade, da destreza do trabalho ao corpo erótico. Bizarro é ter que se curvar aos novos hábitos. “Toda desabituação é uma violência para o espírito”, dizia o psicanalista Fabio Herrmann.

Mas mudar é peremptório. É imperativo o translado para um portal de sabedoria, paciência, resignação e respeito à natura. É criar uma segunda natureza. É embrenhar-se por suas estreitas trilhas e descobrir regras que regem os meios de sobrevivência. Perpassa a ilusão de fazer o que se fazia antes: estar presente nas situações. Querias… Tudo tem que obedecer a um novo cronograma. A cada segundo, é preciso inquerir ao corpo qual a ordem do dia: como vai estar, se pode sair, se tem que ficar em casa… O sono e a vigília antes tinham seu próprio estatuto. Havia uma organização: ao despertar, previa-se como seria o dia. Atualmente as ondas de frequência estão inoperantes: o sono se estica, esbanja seus direitos.

Uma paciente diz:

Quando havia uma constância, eu acordava às sete ou oito horas. O dia rendia. Agora mal e mal me levanto às dez. Mal o dia começa e já terminou! A quantidade de remédios que tomo também colabora. Tive que cancelar compromissos pela manhã. O tempo não dá mais pra nada; mas nada pra quê? A bem da verdade, não urge – nenhuma urgência me chama. Mas muitas das intenções soçobram no ar! Por mais que a vontade esteja desperta, o corpo dá pra trás.

Em 1921, aos 65 anos, em carta escrita a Ferenczi, Freud alude ao próprio envelhecimento:

No dia 13 de março deste ano entrei bruscamente na velhice verdadeira. Desde então o pensamento da morte não me abandonou, e por vezes tenho a impressão de que sete de meus órgãos internos disputam a honra de pôr fim à minha vida. Nenhum fato especial marcou essa ocasião, exceto que Oliver, a caminho da Romênia, naquele dia se despediu de mim. (citado por Messy, 1992/1993, p. 22)

A percepção de estar caminhando para o fim é dada pelo declínio sucessivo. A manutenção do corpo, além de dispendiosa, é um fardo, uma fadiga. O que ainda é mais desgastante é a lentidão, a lerdeza incontornável, que leva a uma irritação profunda. Médicos de todas as especialidades preenchem meu calendário. Nas voltas que o mundo dá, compreendo como vida e morte podem ser duas faces de uma mesma moeda.

Lidar com essa realidade não é tarefa fácil: envelhecer não é para covardes. Contudo, a cena de um filme sobre o degelo mostra o reverso da moeda: ao menor sinal da natureza, um pássaro escuta e avisa os outros, para se evadirem, antes da precipitação de blocos de gelo ao solo.

A mudança do gelo em água, fenômeno da natureza, anuncia a chegada de uma nova estação: a primavera ressurge. À sua semelhança, a transformação da família de origem sinaliza novas formas de existir.

“Envelhecer é como escalar uma grande montanha: enquanto se sobe, as forças diminuem, mas o olhar é mais livre, a vista é mais ampla e serena”, dizia Ingmar Bergman (s.d.).

Vozes da literatura

Para melhor concatenar, vou me valer das mãos de escritoras que versaram sobre o tema. Lygia Fagundes Telles, no conto “Senhor Diretor”, cria personagens idosas “imersas em um universo de secura e solidão” (1983, p. 14):

Flores brancas. Secaram. Senhor Diretor, também elas foram secando. Seca tudo, a velhice é seca, toda água evapora de mim, minha pele secou, as unhas secaram, o cabelo que estala e quebra no pente. O sexo sem secreções. Seco. Faz tempo que secou completamente, fonte selada. (1977/1984, pp. 30-31)

A autora retrata a velhice como a idade vazia de desejo, de sexo – a menopausa como fim da sexualidade. Tangencia preconceitos da sociedade moderna, que costuma discriminar o amor entre velhos.

Em outros textos, ela mostra que o anseio de rejuvenescer é recorrente e desgastante face às vicissitudes e contradições resultantes desse enfrentamento:

Não acho maravilhoso envelhecer. A gente envelhece na marra, porque não há mesmo outro jeito, já fui a tantas estações de água, já bebi de tantas fontes – onde está a Fonte da Juventude, onde? (1980, p. 109)

Eu tento me aprimorar, chegar a degraus mais altos…, mas ainda estou tão ligada a uma série de coisas, à vaidade. Bem, mas pretendo ser, pelo menos, uma velha o menos ridícula possível. (1983, p. 14)

Clarice Lispector, no conto “Feliz Aniversário”, descreve a patética amargura da velhice e denuncia a hipocrisia da família burguesa:

Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos – nada, nada que a dona de casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona de casa guardava os presentes, amarga, irônica. …

A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.

– Parta o bolo vovó! …

E de súbito … sem hesitação … deu a primeira talhada com punho de assassina. …

– Me dá um copo de vinho! …

– Vovozinha, não vai lhe fazer mal? …

– Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. – Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! …

– Será que ela [a filha] pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas. …

– No ano que vem nos veremos, mamãe!

– Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada. (1960/1965, p. 77)

Dona Anita, velha, mãe, avó, bisavó – origem de quatro gerações –, representa a imagem da matriarca ideal, reverenciada pelos filhos, netos e bisnetos, como a romântica avó dos livros infantis. A velhice da protagonista, entretanto, não corresponde à da avó idealizada; funciona na verdade como caricatura grotesca, reveladora do universo de solidão.

A poética de Clarice Lispector destaca a subordinação dos velhos à avalanche dos costumes e o sentimento de alheamento dos idosos quando despejados de um lugar especial de consideração. À cabeceira da grande mesa, Dona Anita, que fazia 89 anos, tinha os músculos do rosto hirtos de tal forma que ninguém podia saber se ela estava alegre. A velha não se manifestava. Sem poder decidir os próprios atos, exibe a máscara do silêncio, que é o contraponto à algazarra da festa realizada à sua revelia.

As duas autoras nos põem frente ao inelutável: as marcas deixadas pela passagem do tempo, o desapego doloroso daquilo que um dia nos foi caro e que aos poucos se vai. Mostram também o afastamento que a lacuna entre as gerações cria, seja pelo desinteresse de ambas as partes nas mesmas coisas, seja porque sequer intuímos o que se passa no interior de um idoso, pois no decorrer da vida acontecem visíveis alterações no plano da identidade.

Na concepção de Bobbio (1997), a identidade é um conjunto de predicados que responde à pergunta “Quem sou eu?”. No plano político, ela tem duas vertentes distintas, mas complementares: identidade coletiva e individual. A primeira se apresenta pela afirmação da semelhança, e a segunda, pela especificidade da diferença.

Quando percorremos o histórico de cada família, nos defrontamos com uma séria questão: podemos atribuir à nova geração a responsabilidade pelo vácuo criado entre eles e seus pais e avós? Em parte, sim, por se constituírem em uma geração que reza pelos cânones do individualismo, da autonomia, e por sofrerem os efeitos da tecnologia, que produziu mudanças significativas no convívio das pessoas.

Por outro lado, os idosos vão se distanciando por razões diversas: dificuldades físicas, até auditivas, e aos poucos, sem notar, eles se alheiam das conversas. Não falamos de casos extremos, quando uma moléstia prematura provoca rupturas no viver. Nesse caso, tudo ao que fazem jus é solidariedade, generosidade e misericórdia.

Ao fim e ao cabo, esse é o desenrolar natural do envelhecimento. Pensar que somos os mesmos é insólito. Estamos distantes da lareira que nos aquecia – diferentes! A luminosidade esvanecida denuncia as passagens.

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu ...

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

(Buarque, 1968)

No embalo da canção, se desembaraçar da fantasmagoria de um passado e das premonições de um futuro que embaçam a visão é poder viver no real, é aceitar esse velho/novo corpo, que ainda tem anseios e amor pela vida.

Para iluminar o fantasmático, tão somente Freud:

A criança leva muito a sério a sua brincadeira e despende na mesma muita emoção … e a distingue perfeitamente da realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética … Lustspiel e Trauerspiel [“comédia” e “tragédia”: literalmente, brincadeira prazerosa e brincadeira lutuosa]. Ao crescer as pessoas param de brincar. … Nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. … Em vez de brincar, a pessoa agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. (1908/1976, pp. 150-151)

Pode-se conservar a alegria do infante, a curiosidade do adolescente, a busca do ser maduro, mas é preciso a acomodação dos anos vencidos – ou vendidos, por vezes a troco de ilusões de pouca valia. Desilusões? Sim. Nem sempre se acerta no alvo, nem sempre se está no lugar certo, na hora certa. Impõe-se acertar os ponteiros, e é essencial levar com humor essa ironia do viver, rir dos episódios do dia a dia, brincar com aforismos.

Amor, a quanto obrigas: à renúncia de certos prazeres, que ao cair da tarde perderam seu arrebatamento, para amoldarem-se à vecchiaia, ou seja, inventar, contar histórias. A seu tempo, desfrutar os momentos de companhia, quando as tiver agradáveis.

“As manhãs em que desperto sem dor são uma aurora, um Deo Gratias!”, diz uma paciente.

O espírito a rodopiar, a buscar um lugar de pouso. A longa experiência de vida não é o bastante para iluminar uma encosta onde aportar. Navegar, navegar, semelhante à nau dos insensatos, à deriva. Mas é imprescindível não naufragar na maré baixa!

Todo dia um espanto, uma alegria ou um mal-estar que se apresenta. A cada dia, uma surpresa, um devaneio. Há de se esquecer tudo que se soube até agora, e inventar soluções para desvendar os mistérios de cada dia.

Pois bem, a velhice não é um “vale de lágrimas”: existe uma esperança, que é a última que morre!

Porque existo, é imperioso me familiarizar com altos e baixos, da amargura às delícias – a natureza, a visão do céu e do mar, o mergulho em suas ondas, o convívio das pessoas queridas…

Dos prazeres, o maior deles:

A CANTORIA

Abrem-se as cortinas: o ensaio.

Algumas pessoas vão chegando, o maestro portando o órgão para o ensaio.

Liga aqui, liga ali: não funciona. O maestro pega um cigarro e diz:

– Não vai ter ensaio.

O tempo passando, mais pessoas chegando, e fatalmente se insurgem:

– Como não vai ter ensaio?!

O maestro, com toda a habilidade que lhe é peculiar, improvisa no celular. Um arranjo e tanto!

A lembrar, a música escolhida: “Non, je ne regrette rien”.

Bem, de volta ao ensaio, os homens cantam de início. A um dado momento, começam a rir pela cacofonia: “Je me fous du passé”. Tradução: “Eu me fodi”. “Ça commence?” Ou Sacomã?

Eles riam, riam como meninos na escola frente à professora.

Algumas mulheres observavam, e outras “tricotavam”.

– Que pena! Liguei pra Maria dizendo que não ia ter ensaio; e rolou, comme d’habitude.

– Fiz uma promessa: não pintar minhas unhas de vermelho enquanto não terminar a guerra. C’est drôle!

Ao final, recolhidos os pratos, copos e restos dos quitutes, uma delas pediu uns docinhos que sobraram – deliciosos!

No caminho de volta pra casa, a conversa gira em torno do episódio:

– Como nós todos temos algumas infantilidades. Veja, pedi os docinhos como fazia em festinha de crianças: a gente levava lembrancinhas pra casa.

É algo infantil, mas também é guardar a lembrança da festa, tal qual as madeleines de Proust. A memória do sabor guardada no cofre das belas recordações.

Talvez, para aquela do esmalte, seja um ato de renúncia.

– Veja, nossa amiga que está em Miami nos manda mensagens: “Dancei com todos: o Mickey, o Pato Donald, o Pateta. Estou feliz!”.

Quase sufoquei de tanto rir. Há tempos não dava uma gargalhada dessas, de desopilar o fígado, afogar as mágoas e elevar a alma.

Compartilhei com ela sua alegria: estar revivendo…

Enfim, cada qual tem suas recaídas à infância.

Lembranças que nos trazem de volta as emoções sentidas, e com elas a oportunidade de reviver momentos inesquecíveis. Um brinde à vida!

In fine: “Não é verdade que as pessoas param de sonhar porque envelhecem; elas envelhecem porque param de sonhar” (García Márquez, s.d.).

2Tempo e destino.

3Tempo cronológico e tempo oportuno.

Referências

Bergman, I. (s.d.). Envejecer es como escalar una gran montaña: mientras se sube las fuerzas disminuyen, pero la mirada es más libre, la vista más amplia y serena. Proverbia. https://tinyurl.com/4zv5h8bjLinks ]

Bobbio, N. (1997). O tempo da memória: De senectude e outros escritos autobiográficos (D. Versiani, Trad.). Campus. [ Links ]

Buarque, C. (1968). Roda viva [música]. In Chico Buarque de Hollanda, volume 3. rge. [ Links ]

Freud, S. (1974). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 311-339). Imago. (Trabalho original publicado em 1915) [ Links ]

Freud, S. (1976). Escritores criativos e devaneio. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 9, pp. 149-156). Imago. (Trabalho original publicado em 1908) [ Links ]

García Márquez, G. (s.d.). No es verdad que la gente deja de perseguir sus sueños porque envejece, envejecen porque dejan de perseguir sus sueños. Goodreads. https://tinyurl.com/3e535427Links ]

Lispector, C. (1965). Laços de família. Ed. do Autor. (Trabalho original publicado em 1960) [ Links ]

Messy, J. (1993). A pessoa idosa não existe (J. S. M. Werneck, Trad.). Aleph. (Trabalho original publicado em 1992) [ Links ]

Rosa, G. (1984). Grande sertão: veredas. Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1956) [ Links ]

Telles, L. F. (1980). A disciplina do amor. Nova Fronteira. [ Links ]

Telles, L. F. (1983). Depoimento pessoal. Revista Psicologia Atual, 6(31), 14. [ Links ]

Telles, L. F. (1984). Seminário dos ratos. Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1977) [ Links ]

Recebido: 11 de Março de 2024; Aceito: 25 de Março de 2024

Sylvia Salles Godoy de Souza Soares sylviasallesgodoy@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.