O elefante na sala
No livro Dispatches from the Freud wars: psychoanalysis and its passions (1997), John Forrester propõe que imaginemos um verbete fictício para definir Freud em um suposto dicionário. Como ele autor seria apresentado? Como representar alguém que impactou tão profundamente a nossa cultura no último século? Provavelmente, faríamos questões típicas, frequentes em qualquer compilação com esse propósito. No entanto, não é bem esse tipo de dicionário “tradicional” que Forrester tem em mente. Lembrando-nos tanto das interpretações chapas-brancas e acríticas, que apoiam Freud de forma inquestionável, quanto das difamatórias sobre ele e seu trabalho, Forrester sugere que seria interessante adotarmos o estilo de outro dicionário: o satírico Dicionário das ideias prontas (1910/2018), escrito por Gustave Flaubert durante a sua última década de vida.
Flaubert não chegou a publicá-lo, mas nos manuscritos, postumamente encontrados e então publicados em livro, ele pretendia destacar a superficialidade e a falta de originalidade do pensamento comum de sua sociedade. O resultado foi um glossário que continha uma crítica mordaz a essa forma de pensar. Numa sacada espirituosa e se recordando disso tudo, Forrester sugere que, se o mesmo exercício flaubertiano fosse feito para Freud, poderíamos nos deparar com algo do seguinte tipo:
FREUD. Não é necessário ter qualquer ideia sobre sua filosofia, nem mesmo conhecer o título de suas obras, porque todo mundo já sabe disso tudo. Faça uma referência discreta ou ao fato de que ele dormiu com a cunhada (afinal, o homem que inventou a sexualidade moderna deve ter tido algum tipo de paixão sexual ilícita, de preferência do tipo inaceitável) ou ao fato de que ele inventou tudo (afinal, pessoas como você e eu não passam o tempo todo pensando em sexo, certo?). Mas, de preferência, não mencione ambos ao mesmo tempo. Em companhia incerta, é sempre bom dizer que ele está um tanto ultrapassado, embora ele tenha tido algo útil a dizer para a geração de nossos pais (veja PSEÜDOCIÊNCIA). Mas esteja preparado para recuar e defender o poder de suas percepções eternas sobre a natureza humana. Se estiver se sentindo com energia e obrigado a estar atualizado, declare o quão vergonhoso é que só recentemente tenhamos aprendido sobre todos esses escândalos. E há mais por vir... (Forrester, 1997, p. 11)
Feita há mais de duas décadas, a piada de Forrester não envelheceu. Manteve sua profecia de que ainda “há mais por vir..Freud continua sendo excessivamente atacado e adorado, como também a sua psicanálise continua sendo alvo de inúmeras críticas sobre a sua validade científica. Verdade seja dita: esses excessos de admiração e ataques raramente trazem algo de novo e é muito provável que continuem como parte inseparável da psicanálise. Eles aparecem e reaparecem ao longo do tempo. Esporadicamente, alguém elabora algo para, mais uma vez, “desmascarar” a psicanálise, seja acusando-a de faltar com as evidências empíricas, seja ressuscitando critérios ultrapassados de demarcação científica. É intrigante como, quando uma crítica desse tipo ressurge, ela parece ressoar algo que sempre esteve presente, provocando desconforto em relação a uma questão para a qual não há solução. Essas críticas apontam para um problema óbvio, que ao mesmo tempo é deliberadamente ignorado, embora não devesse ser – como no sentido da expressão em inglês “We can’t keep ignoring the elephant in the room”.
De fato, a lembrança da expressão em inglês não é gratuita. Nosso idioma tem uma expressão equivalente: “É preciso retirar o bode da sala”. Contudo, nesse caso, a preferência pelo anglicismo se justifica por duas razões ao menos. A primeira delas, de natureza histórica. Foi num simpósio no Instituto de Filosofia de Nova York, em 1958, que o tema da cientificidade da psicanálise foi discutido com pompa pela primeira vez. No ano seguinte, Sidney Hook (1959) coligiu algumas intervenções num livro que se tornou influente. Apenas duas delas provinham de analistas, ao passo que 18, de filósofos. Entre os analistas estava Heinz Hartmann, um dos próceres da ego psychology; entre os filósofos, Ernest Nagel, um dos principais representantes do positivismo lógico. Embora os vieses do debate fossem claros, como testemunham as expressões empregadas – “mitologia”, “religião”, “irremediavelmente contaminada” (Teichmann, 1962, pp. 64-65) –, eles nunca deixaram de orientar muitas das discussões atuais sobre o tema. Quanto à outra razão, talvez pudéssemos chamá-la de estratégica. Nossa familiaridade com a expressão “retirar o bode da sala” corre o risco de naturalizar um debate que precisa ser mantido vivo e sempre colocado. Já “elephant in the room” evoca, em justa medida, o Unheimliche necessário à exigência de meditarmos sobre o problema – que, além disso, tem mais o tamanho de um elefante que o de um bode a esta altura.
Reconhecer esse elefante da cientificidade é, portanto, admitir um problema imenso, mas, se pararmos para pensar, ele também oferece uma contribuição colossal para a psicanálise. Com sua legitimidade epistemológica sempre em xeque, ela não encontra trégua, e isso possibilita examinar continuamente suas próprias questões de cientificidade. Por outro lado, de tempos em tempos, surgem razões muito convincentes para manter o grande mamífero escondido nos cantos mais recônditos da sala. A mais relevante atualmente pode ser atribuída ao fato de que a visão de ciência predominante se tornou excessivamente dogmática, marcada por expressões repetidas até a exaustão, como a ênfase na fundamentação “baseada em evidências”. O dilema da psicanálise diante desse dogmatismo tem sido claro: ceder às pressões de grandes agências de fomento e periódicos científicos para garantir o suporte financeiro necessário às pesquisas, ou permanecer à margem e enfrentar os desafios e custos da exclusão e do isolamento. Os efeitos desse dilema são igualmente perceptíveis e nada animadores – vide o relato na carta-convite deste número.
Além de chamar a atenção para essas tentativas de manutenção furtiva, nossa contribuição para este número temático se concentra em tentar organizar, de modo bastante esquemático, as posturas de Freud e da psicanálise feita após ele ante o problema da cientificidade. Defendemos que a concepção freudiana de ciência deu origem ao que nos parecem ser três atitudes distintas: a primeira, chamamos de continuidade, por juntar certos modos de pensamento alinhados às diretrizes centrais do modelo argumentativo freudiano; a segunda, denominamos complementaridade, na medida em que busca integrar ou fundir esse modelo a outros campos do conhecimento; e a terceira, batizamos de superação, por buscar em outros campos uma refundação do solo epistemológico da psicanálise, o que acabou por marcar uma ruptura relativamente ao naturalismo freudiano.3
A escolha de organizar o debate em torno dessas atitudes não é acidental, fundamentando-se nos textos reunidos em nosso livro recém-lançado e intitulado A cientificidade da psicanálise: novos velhos horizontes (Carvalho & Ferretti, 2024). Nele recuperamos discussões epistemológicas e reunimos perspectivas diversas sobre a cientificidade da psicanálise. Assim, atendo-nos ao alcance do nosso livro, mas sem nenhuma pretensão de esgotar a questão, propomos o que se segue à guisa de mapeamento para o que denominamos exercício de cientificidade em psicanálise – questão com a qual iniciaremos a discussão.
O exercício de cientificidade
O que entendemos por tal exercício é, grosso modo, o imperativo da fidelidade ao objeto. No caso da psicanálise, significa avaliar as formas mais adequadas de intervir sobre e investigar a dinâmica do inconsciente. Evidentemente, esse objeto tomado por Freud no final do século 19 não podia ser estudado à moda do cânone experimental das ciências da época – embora a criação da psicanálise não tenha ocorrido de forma alguma sem a interlocução com porções desse cânone, como a física newtoniana, a termodinâmica, a embriologia e a fisiologia. De todo modo, o então neurologista inventou uma maneira de investigar um novo objeto, com a qual aquelas e aqueles que o sucedem têm que se debater caso busquem, como o fundador, a fidelidade àquilo que investigam e sobre o que intervêm.
Felizmente, não representa mais um escândalo – exceto para quem, por ignorância ou má-fé, mantém-se prisioneiro da visão monista que marcou a primeira metade do século 20 – o fato de que podemos encontrar uma variedade de métodos e objetos científicos. O pluralismo deu lugar ao sonho neopositivista de cariz cartesiano: o de “uma uniforme estruturação lógico-matemática do conhecimento científico e [da] possibilidade de exprimir numa linguagem única seus conteúdos empíricos, em qualquer área” (Granger, 1994, p. 41). Sobrevieram então as chamadas science wars. O centro gravitacional da filosofia da ciência mudou, sob os auspícios das críticas de Paul Feyerabend e seu “anarquismo metodológico”, das noções de “paradigma” e “revoluções científicas” de seu colega Thomas Kuhn, de conceitos como “visão científica”, de Gilles-Gaston Granger, “estilos de pensamento”, de Alistair Crombie, ou de “estilos de raciocínio”, de Ian Hacking, enfim, de produções como a da escola de Edimburgo, chefiada por Barry Barnes e David Bloor.
Atinou-se então com o fato de que a aposta na existência de um método científico único – fosse a lógica indutiva de Rudolf Carnap, o falsificacionismo dedutivo de Karl Popper ou o raciocínio hipotético-dedutivo de Carl Hempel – “foi erguida muito mais sobre uma ideia a respeito de como a ciência deveria funcionar em princípio do que sobre como a ciência é efetivamente ou sobre a multiplicidade de práticas que a constituem” (Vangelli et al., 2021, p. 88). O fato é que os positivistas lógicos relegaram por completo o modo real de funcionamento das ciências e o modo pelo qual elas se desenvolveram historicamente. A partir dos anos 1970 sobretudo, quando se observou a difusão da chamada “virada pluralista” em várias áreas do conhecimento, surgiram investigações que enfatizavam os determinantes culturais e sociais das teorias e a importância da história da ciência para a construção de uma visão mais acurada do que vinha a ser ciência. Assim, houve apuros inestimáveis e incontornáveis nesse sentido.
Nossa tarefa a seguir não é a de demonstrar em que medida a psicanálise se enquadra nessas concepções renovadas e depuradas de ciência,4 e sim apresentar, numa primeira aproximação e de modo bastante esquemático, como o exercício de cientificidade orientou Freud e o pensamento daquelas e daqueles que se seguiram a ele.
O exercício de cientificidade em Freud
De fato, Freud enfrentou os problemas demarcatórios da ciência muito antes do próprio surgimento da psicanálise. Desde sua formação médica, ele sempre esteve a par da vanguarda em matéria de conflitos científicos, seja procurando os testículos das enguias enquanto estudante, investigando a cocaína nos primeiros anos de sua carreira ou desafiando o localizacionismo cerebral sustentado por professores renomados. Por não se ajustar à linguagem científica predominante, a psicanálise enfrentou críticas desde o início, as quais persistiram à medida que ela se desenvolvia, levando-a a se defender continuamente de acusações e censuras – muitas vezes, extracientíficas, vale dizer, como as de teor moral ou antissemita.
Sulloway (1992) propõe que toda essa trajetória levou Freud a desenvolver, por um lado, um “espírito defensivo”, no qual ele teria reconhecido seus próprios limites teóricos, como no episódio da cocaína, e, por outro, a percepção sobre o que outros de sua época consideravam cientificamente legítimo, como no embate com o localizacionismo. Em outro lugar, defendemos que a disposição para forjar conceitos e hipóteses que desafiavam as expectativas convencionais, quase sempre operando nas fronteiras das demarcações, é o aspecto mais intrigante desse espírito (Carvalho & Coelho Jr., 2024). Chamamos de fenômeno-orientado o método que Freud utilizava para tomar decisões em situações de dilemas teóricos complexos, como suas primeiras abordagens sobre a sexualidade, o desenvolvimento de suas concepções do aparelho psíquico, a introdução do conceito de Trieb e, por fim, a introdução do conceito de Todestrieb. Ele não recuou diante de nenhum desses dilemas. Fatores como a falta de evidências mais diretamente observáveis ou argumentos baseados em autoridade não o paralisaram. Apesar de ciente desses fatores, ele priorizou uma forma específica de determinação dos fenômenos em vez de se submeter à forma do cânone científico então em voga. A razão por trás dessa atitude estava, justamente, na concepção de ciência nutrida por Freud.
É bem conhecido que ele via a psicanálise exclusivamente como uma ciência da natureza (Naturwissenschaft), rejeitando repetidas vezes a ideia de que ela pudesse fazer parte das ciências do espírito (Geisteswissenschaften). O que talvez ainda não esteja completamente claro é o significado exato que ele quis transmitir com essa expressão, considerando que certamente não se tratava de uma simples adesão à visão predominante. Acontece que, ao contrário do que certos comentadores costumam argumentar, suas reflexões não correspondem a uma abordagem reducionista da ciência da natureza. Sob termos como positivismo, materialismo e mecanicismo – e talvez fazendo isso para estrategicamente classificá-lo entre figuras ultrapassadas da psicologia –, grande parte da historiografia atribuiu a Freud uma visão reducionista de ciência. Porém, mesmo quando ele mais se aproximou de uma perspectiva como essa, como aconteceu quando assumiu a teoria de identidade no “Projeto de uma psicologia”, sabemos que ele optou por não a publicar, deixando-a arquivada. No lugar dos neurônios e da materialidade do cérebro, vieram à luz, ao menos desde A interpretação dos sonhos, as bases da metapsicologia, um modelo teórico inteiramente designado para conceber cientificamente os mesmos processos que ele havia identificado antes naquela famosa carta engavetada.
Do capítulo 7 de sua obra magna até os últimos textos da obra freudiana, os fenômenos identificados passam a orientar uma abordagem capaz de criar modelos teóricos para descrever processos, especialmente os inconscientes, utilizando a linguagem metapsicológica. Foi de uma interpretação restrita daquele momento de virada, entre 1895 e 1900, que surgiram muitas críticas à cientificidade da psicanálise. Foram (e ainda são) flagrantes as tentativas de enquadrá-la em filosofias da ciência que empregavam formas dogmáticas de avaliação demarcatória. Tanto então como hoje, o erro reside na adoção de uma abordagem específica para demarcar a ciência, que traz consigo uma ontologia e a tentativa de aplicar esse conjunto de conceitos a outras visões não necessariamente condizentes. Na verdade, o problema maior não é tanto a tentativa de aplicar um critério de demarcação, e sim a ausência de preocupação em investigar o naturalismo de Freud e a relação concebida por ele entre psiquismo e natureza a partir de A interpretação dos sonhos.
Por exemplo, tomemos a porta de entrada mais comum para o caminho de negação da cientificidade da psicanálise: o falsificacionismo popperiano. Conforme indicamos, mediante esse modelo, Popper acreditava ter estabelecido o funcionamento de toda a ciência. Contudo, trouxe-lhe grandes problemas o fato de que tal modelo dependia da adoção de uma visão totalizante do mundo dos fenômenos – como a do fisicalismo – para funcionar adequadamente. Embora não tenha estudado a psicanálise nem o marxismo em detalhe, o filósofo prontamente considerou essas teorias pseudociências (Popper, 1963/2008). Porém, ele não fez o mesmo com a outra grande teoria que escapava à camisa de força da ontologia fisicalista: a de Darwin. Em vez de considerá-la uma pseudociência, e mesmo reconhecendo explicitamente que ela não seria capaz de produzir leis empíricas – portanto, não se ajustando ao fisicalismo e ao critério de falseabilidade –, ele optou por julgar a teoria darwiniana um “programa metafísico de pesquisa”, com características de uma “tautologia” (Popper, 1974, p. 120). Posteriormente, depois de uma grande batalha em que foi taxado de inimigo pela ortodoxia darwinista, ele voltou atrás e fez uma “retratação” ao afirmar que, embora continuasse pensando que se tratava de um programa metafísico, a teoria da evolução seria indispensável e a melhor disponível (Popper, 1978).
Assim, sem investigar a concepção freudiana da natureza, e, ao que tudo indica, sem qualquer interesse em avaliar a função da metapsicologia na teoria psicanalítica, Popper apressou-se em rotulá-la de pseudociência. O curioso é que, se tivessem existido tais interesses, a psicanálise deveria ter por parte do autor uma apreciação da mesma ordem daquela feita a respeito da teoria darwiniana – isto é, deveria, de direito, ter sido considerada também um programa metafísico de pesquisa, conforme mostrou Marinho (2012). A mão de ferro do método nomológico-dedutivo, incapaz de encampar a investigação da causalidade histórica com a qual trabalham ambas as teorias, pesou, todavia, muito mais sobre a psicanálise do que sobre a teoria da evolução.
Aqueles que, como Popper, não promovem uma investigação do naturalismo freudiano não conseguem enxergar o exercício de cientificidade que o move. Pois é nesse naturalismo que, parece-nos, esse exercício pode ser visto com mais clareza. Eis a razão de, em nosso livro, termos buscado mostrar, num dos capítulos, que, mais do que se referir a Darwin muitas vezes em sua obra, Freud procurou no evolucionista inglês uma forma de teorizar, tomando a doutrina darwiniana como um modelo e um programa naturalista de investigação (Ferretti & Loffredo, 2024). De fato, conforme indicamos em outro trabalho, se é possível afirmar que Freud praticou uma hermenêutica, ele parece tê-la recuperado, antes, do naturalismo darwiniano (Ferretti, 2022).
Assim, uma qualificação mais justa a respeito da epistemologia de Freud envolveria buscar uma “concepção renovada do naturalismo científico” (Simanke, 2009, p. 233). Tal qualificação permitiria descobrir formas mais adequadas de posicionar a psicanálise dentro do clássico dualismo metodológico que resultou na divisão entre ciências humanas e naturais. Simanke (2009) nos lembra que, além do modelo de Darwin, há outros, como os de Merleau-Ponty e Collingwood, que oferecem uma superação das limitações ontológicas encontradas em abordagens marcadas por tal divisão. Tanto nesses modelos quanto no de Freud, há um programa de pesquisa que pode progredir teoricamente sem ser minado por visões totalizantes e suas restrições:
Note-se que Freud atribui à natureza características usualmente atribuídas à história: conflito, finalidade, significação. Embora ele tenha sido inevitavelmente herdeiro da filosofia da natureza pressuposta pela ciência do seu tempo, com o fisicalismo e o mecanicismo que despontam de quando em quando em seus textos, é possível duvidar-se de que ele a tenha assumido apenas passivamente. A virtude epistemológica de Freud, ao contrário, parece ter sido sua disposição de permitir que a sua concepção de ciência se fosse modificando à medida que sua investigação avançava, sem prejuízo para sua convicção de que permanecia dentro das fronteiras das ciências da natureza. (Simanke, 2009, p. 233)
Freud certamente compartilhou preconceitos e ideias ultrapassadas de seu tempo ao abordar as ciências naturais, mas é justo reconhecer que esses preconceitos não o impediram de se dedicar a uma categoria específica de fenômenos frequentemente negligenciados, a partir de um certo modo de teorizar e de uma ontologia qualificada. Ele adota e mantém uma atitude científica que afere a psicanálise com base na sua capacidade de formular a metapsicologia, considerada a teoria mais adequada para abarcar tais fenômenos. Tudo indica que ele media a força dessa atitude pelo progresso teórico que a metapsicologia proporcionava, pois, embora nunca tenha rejeitado a possibilidade de ser complementada ou até substituída por outra,5 foi ela que o acompanhou até o fim.
O exercício de cientificidade após Freud: continuidade, complementaridade e superação
A rigor, é difícil argumentar que a psicanálise produzida após Freud tenha revelado uma adesão estrita ao modo como o fundador empreendeu seu exercício de cientificidade. Não devemos nos esquecer de que a ciência passou por uma transformação rápida e drástica nas primeiras décadas do século 20. Desse modo, a psicanálise surgiu em um período marcado por uma revolução paradigmática. Psicanalistas que começaram a desenvolver suas teorias a partir da década de 1920 já estavam imersos num contexto em que a mecânica quântica balançava os fundamentos da física clássica e as ciências da natureza não eram as mesmas da virada do século. Do outro lado da cerca, as ciências humanas começaram a ganhar um estatuto próprio com base na querela dos métodos encabeçada por autores como Wilhelm Dilthey.
Pode-se argumentar, contudo, que parte da psicanálise pós-freudiana se guiou por uma atitude de continuidade relativamente ao empreendimento científico do fundador, na medida em que buscou promover uma síntese reconciliatória entre as contradições, avançando além do conhecimento da teoria existente e explorando novos fenômenos clínicos emergentes, mas sem perder o solo epistemológico assentado por Freud. Evidentemente, este não poderia prever para que lados o território de sua criação iria se expandir, e há uma grande diferença entre criar e construir depois que os alicerces foram lançados.
Alguns psicanalistas se dedicaram a preservar a autonomia da metapsicologia e a manter o rigor científico em diálogo contínuo com as propostas de Freud. Por exemplo, Tarelho (2024) mostra como Jean Laplanche buscou separar o sol da névoa ao tratar a psicanálise como um conhecimento sobre a “estraneidade do outro”. O psicanalista francês concebeu a psicanálise como uma ciência que distingue a metapsicologia – considerada indispensável para explicar o psiquismo e, ao mesmo tempo, falseável – da busca pelo sentido mito-simbólico. O objetivo não foi reformá-la, mas identificar precisamente o que era ciência genuína em psicanálise e o que pertencia à interpretação cultural.
Porém, talvez aquele que sirva como o exemplo mais paradigmático de uma atitude de continuidade seja Sándor Ferenczi. Honda (2024) mostra que o psicanalista húngaro reconheceu a metapsicologia como uma ciência própria, interpretando-a como uma metodologia revolucionária cuja originalidade residiria em estar verdadeiramente alinhada aos fenômenos psíquicos. De fato, mais do que isso, Ferenczi propôs que a psicanálise permitia “preencher o vazio” criado pelo dualismo metodológico antes mencionado:
A psicanálise está fundada, por uma parte, num melhor conhecimento das pulsões, ou seja, uma base estritamente biológica, por outra, permite penetrar no laboratório do psiquismo humano, o que a coloca em condições, melhor do que todas as outras disciplinas, de preencher o vazio que separa desde longa data as ciências naturais exatas das chamadas humanidades. (Ferenczi, 1936/2011, p. 187)
Observe-se que Ferenczi também tinha a percepção da psicanálise como a melhor teoria disponível e, conforme explica Honda (2024), a sua cientificidade seria afirmada pelo método que denominou utraquista. Essa palavra vem da expressão em latim “sub utraque specie” – que significa “sob ambas as espécies” – e teria batizado um importante movimento religioso do século 15. O uso ferencziano, por sua vez, referia-se aos dois campos científicos, o das ciências da natureza e o psicanalítico, para defender não apenas “a conjugação de dois pontos de vista envolvidos, mas a articulação do conhecimento assim produzido sob um discurso e estatuto novos” (p. 289). O método utraquista permitia pensar que a psicanálise não apenas se integraria ao campo das ciências naturais como também poderia preencher lacunas ao oferecer sínteses conceituais ausentes nos modelos excessivamente voltados para a descrição, como era o caso da psiquiatria da época.
Cada vez mais evidente, o bastão que Ferenczi legou para a posteridade permitiu, entre outras coisas, avanços na técnica, na consideração adequada da criança no contexto teórico e, como se vê, nos modos de enfrentamento da psicanálise em relação à sua cientificidade para se manter como disciplina autônoma. Por outro lado, houve quem defendesse essa autonomia, mas considerasse que o progresso da psicanálise seria alcançado através de uma seleção cuidadosa das ideias do fundador e da integração da metapsicologia com outros modelos teóricos. Eis a atitude que chamamos de complementaridade.
Um primeiro exemplo representativo dessa atitude a ser evocado seria o da integração do materialismo freudiano ao materialismo histórico-dialético. Autores como Wilhelm Reich e Otto Fenichel inauguraram esse esforço. Em seu trabalho sobre o assunto, Reich recupera os elementos materialistas da teoria de Freud, explora a dialética do psiquismo e o lugar social da psicanálise, a fim de demonstrar a via mediante a qual se daria essa integração:
Marx nunca fala em negar a realidade material da atividade mental. Mas se reconhecermos como materiais os fenômenos do psiquismo humano, seremos igualmente obrigados a reconhecer a possibilidade teórica de uma psicologia materialista, mesmo que não explique esta atividade mental por processos orgânicos. (Reich, 1929/1977, pp. 32-33)
Reich, não obstante, visava a uma nova ciência, e logo começaria a se distanciar da psicanálise. Fenichel, em contrapartida, divergia dessa posição. Ele procedeu a um intenso diálogo com as posições de Reich, conforme mostrou Palumbo (2019), mas manteve-se profundamente fiel ao exercício freudiano. Desse modo, não seria necessário construir, como queria Reich, uma “psicanálise marxista” ou uma “economia sexual”. Na medida em que Freud havia mostrado como o funcionamento psíquico fazia parte da ordem natural do mundo e analisado suas formas concretas de manifestação, poderíamos encontrar na própria psicanálise, e não fora dela, os elementos materiais e empíricos para a promoção de uma integração ao materialismo histórico-dialético. Nesse sentido, efetivamente, Fenichel mereceria uma posição de destaque entre os representantes da atitude de complementaridade.
Um segundo exemplo iria numa direção oposta: a da integração do materialismo freudiano ao biológico e, mais precisamente, neurológico. O mote central da justificativa desse intento seria o seguinte: Freud atuara como neurocientista e neurologista durante os primeiros 20 anos de sua trajetória profissional, tendo efetuado a transição para o campo da psicologia apenas porque não dispunha das ferramentas técnicas e conceituais para continuar explorando as relações entre as estruturas e as funções da mente humana. Ele o fizera, portanto, por razões meramente pragmáticas, confiando que, no futuro, aquela transição poderia ser desfeita, e a ponte entre psicanálise e neurociência, restabelecida. Visto que esse futuro chegou, com o aparecimento de tais ferramentas, nada representaria maior fidelidade à atitude freudiana do que o emprego delas (Solms & Turnbull, 2015).
É isso o que defende a neuropsicanálise. Inicialmente, título de uma revista criada em 1999 – de cujo corpo editorial faziam parte tanto neurocientistas, como António Damásio, Eric Kandel e Oliver Sacks, quanto psicanalistas de renome, como André Green, Otto Kernberg e Daniel Widlöcher – e, depois, objeto de congressos e uma agremiação – a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, fundada por Mark Solms e Karen Kaplan-Solms –, a neuropsicanálise vem se constituindo, desde o início do século 21, como um campo resultante do que se pode chamar de hibridação entre as duas disciplinas (Davidovich & Winograd, 2010). O pressuposto da complementação fica ainda mais claro nesta caracterização, feita por um editor de ciências do semanário Newsweek, que o próprio Solms escolhe destacar para sumarizar a meta do campo: “Não se trata de provar que Freud estava certo ou errado, mas de terminar seu trabalho” (2015, p. 39, grifo nosso).
Notemos como essa atitude difere de outra: por um lado, também recorre a campos distintos do saber que não o psicanalítico, mas, por outro, promove uma ruptura relativamente ao naturalismo de Freud. Trata-se da atitude que denominamos de superação. Na verdade, parece-nos que essa atitude deveria ser compreendida, ao menos em alguma medida, à moda da Aufhebung hegeliana, pois se trata de um movimento simultâneo de negação, ultrapassagem e conservação.
Um dos grandes representantes dela seria Jacques Lacan. Em outro trabalho, procuramos mostrar com mais detalhes aquilo que designamos como a “fidelidade infiel” de Lacan em relação a Freud (Ferretti, 2023). De fato, quem investiga com mais cuidado o que há por trás do verniz do grandiloquente “retorno a Freud”, conclui que este representa um artifício retórico de fato. Porque, desde o momento em que tomou Freud, Lacan introduziu mudanças que não passaram despercebidas mesmo a seus contemporâneos estudiosos da obra freudiana, como Paul Ricoeur. De início, informado pelo antipsicologismo politzeriano e pela fenomenologia psiquiátrica francesa, Lacan começou elaborando uma conceituação do inconsciente inteiramente diferente da de Freud, contrapondo sua inusitada concepção categorial e combinatória à concepção pulsional e representacional freudiana. Assim que deu início a seu “ensino” (como ele mesmo gostava de chamá-lo), apresentou como alicerces teóricos os três registros (simbólico, imaginário e real), francamente distintos dos alicerces freudianos. Enfim, é preciso deixar claro, antes de mais nada, que a continuidade entre Freud e Lacan é, fundamentalmente, uma ilusão – e no sentido freudiano do termo, alimentada pelo desejo do chamado freudo-lacanismo. Ainda que o próprio Lacan tenha contribuído para essa ilusão, ela não resiste a um exame efetivo da obra do psicanalista francês.
Mais especificamente em relação à postura de Lacan ante a questão da cientificidade da psicanálise, o texto central para verificá-la é “A ciência e a verdade” (Lacan, 1966/1998). De modo sumário, pode-se afirmar que, nele, Lacan reúne seu amplo arsenal teórico – entre outros, os estudos em filosofia da ciência de Alexandre Koyré, as críticas à psicologia de Georges Politzer, a filosofia hegeliana de Alexandre Kojève, a antropologia estrutural de Lévi-Strauss, as descobertas da cibernética e da teoria dos jogos –, buscando introduzir modificações na posição da psicanálise entre as ciências. Porém, ele a localiza entre elas, debruçando-se sobre a “vocação de ciência da psicanálise” (p. 870). Contrariamente ao que se poderia pensar, ele não inclui a psicanálise entre as ciências humanas, pois ciência corresponde àquela invenção moderna, galileana e matematizada, surgida no século 17. Ora, argumenta Lacan, se o humano é aquilo que transcende os limites da matematização e, por conseguinte, da ciência, a própria noção de ciências humanas deve ser desprezada, pois, além de tudo, é falsa. Por isso Lacan se volta, antes de tudo, para a matemática e os limites da formalização, o que, por sua vez, o leva à ética. Dessa forma, como mostra Glynos (2002) com vagar, a psicanálise estaria entre esses dois campos na visão do psicanalista francês.
Outro grande representante, por fim, da atitude de superação seria Donald Winnicott. A partir de um trabalho como o de Loparic (2018), poderíamos divisar que Freud e Winnicott correspondem a dois paradigmas – no sentido kuhniano – distintos. Assim, compondo as peças do primeiro paradigma, estariam: um modelo de resolução de problemas centrado sobre o complexo de Édipo, sustentado por uma teoria da sexualidade, um modelo ontológico da mente à moda do arco reflexo e uma forma de intervenção clínica calcada na cura pela fala. Em contrapartida, compondo os elementos do último paradigma, teríamos: um modelo de resolução de problemas centrado sobre a questão do existir, sustentado por uma teoria dos processos de maturação, um modelo ontológico desenvolvimental da mente e um modo de intervenção clínica assentado na cura pelo cuidado. Dessa forma, da comparação entre os dois paradigmas, concluiríamos que Winnicott apresentaria “um novo conceito de doença psíquica, uma nova orientação generalizante, uma nova ontologia, novas formas de tratamento, novos valores, novas formas de treinamento, novas aplicações” (Loparic, 2018, p. 138).
Diferentemente de Lacan, Winnicott não dedicou um longo texto ao problema da cientificidade, mas promoveu uma reflexão no artigo “Psicanálise e ciência: amigas ou parentes?” (1961/2021). Nele podemos atestar que o psicanalista inglês considerava a psicanálise uma ciência de fato, criada por Freud, “uma extensão da fisiologia, uma ciência que se preocupa com a personalidade humana, com o caráter, a emoção e o esforço” (p. 12). O que distinguiria a ciência de outras formas de saber seria uma atitude de acolhida da dúvida: “A religião substitui a dúvida pela certeza. A ciência suporta uma infinidade de dúvidas e implica fé” (p. 12) – atitude que se fundamentaria sobre um exercício que deveria dispensar a afoiteza: “Uma das principais contribuições da ciência é a parada súbita que provoca na pressa e no incômodo” (p. 13). Enfim, o que Winnicott enfatiza como científico na psicanálise é um certo tipo de postura diante dos fenômenos. O contato do autor com eles em sua extensa prática clínica levou-o a desenvolver uma perspectiva próxima à da fenomenologia e do existencialismo, que o distanciaram da perspectiva naturalista de Freud.
Conclusão
Procuramos mostrar que encarar o nosso elefante é a medida da produção não apenas de conhecimentos válidos em nosso campo como ainda de uma relação condizente com o que é a ciência. Mais ainda, encará-lo significa não permitir que o pleno exercício de cientificidade, aquele que a psicanálise nunca deixou de lado em sua vigilância constante, seja enfraquecido. Como esperamos ter deixado claro, esse exercício nunca deve ser visto como a busca por uma conclusão definitiva sobre a relação entre psicanálise e ciência. A ciência está em constante transformação, e o mesmo se aplica à psicanálise. O que se pode afirmar é que ela é efetivamente uma ciência, e assim se manterá enquanto continuar a dar fôlego para suas atitudes científicas, demonstrando que as palavras de Forrester ainda têm impacto, quando ele indica que “há mais por vir...”.
Como qualquer esboço, o nosso teria se beneficiado de uma maior clareza e precisão se tivéssemos tido a chance de aprofundar certos aspectos, como em que medida o contato de cada analista com determinado tipo de fenômeno clínico – por exemplo, as neuroses narcísicas, no caso de Ferenczi, as psicoses, no caso de Lacan, os quadros borderline e dissociativos, no caso de Winnicott – ou com o estado da arte do debate sobre ciência na época, local e ambiente intelectual em que se encontravam contribuiu para a constituição das atitudes em questão. De todo modo, esperamos que o panorama aqui esboçado possa ao menos tornar claro como o debate em questão acompanhou a psicanálise desde seu momento de fundação.