Introdução
Embora todos queiram ser felizes e a felicidade seja até considerada um direito do cidadão (Ismail Filho, 2017), nem todos têm a aptidão psíquica necessária para isso. Muitas pessoas não conhecem, e talvez não sejam capazes de experimentar, esses momentos de plenitude e de satisfação a que chamamos de felicidade. Podem conhecer, é claro, alívio do sofrimento, mas isso não é o mesmo que felicidade. Isso não deveria ser uma surpresa, já que todos conhecemos pessoas que não são capazes de experimentar gratidão por aquilo que recebem, ou de sentir preocupação e empatia pelo sofrimento do outro, ou ainda culpa por serem responsáveis por sua dor. Assim como a felicidade, esses são afetos sofisticados – “evoluídos” – do ponto de vista psíquico.
Nessa linha, Bourdin (2000, 2012) diferencia a felicidade progressiva da felicidade regressiva. Ela é regressiva quando o sujeito busca, a qualquer preço, recuperar a plenitude do “paraíso perdido”. Relações fusionais e o uso de substâncias psicoativas podem proporcionar uma felicidade do tipo regressivo, pois são maneiras de resgatar o sujeito de um núcleo melancólico. Estamos no campo do sofrimento narcísico-identitário. O ambiente não ofereceu as condições para que o sujeito realizasse o trabalho psíquico a que denominamos luto primário.
A felicidade é progressiva quando o sujeito é capaz de aceitar emocionalmente que o paraíso foi perdido para sempre e, ainda assim, sentir que a vida vale a pena. O luto primário foi realizado de modo suficiente, criando as condições psíquicas para que o sujeito tenha a experiência emocional da felicidade. É ele que torna o sujeito apto a estar plenamente no mundo com outros seres humanos e a desfrutar a vida. Ressalto que aptidão para a felicidade não significa garantia de felicidade. Significa apenas que essa experiência é possível e está ao alcance; significa que o “equipamento psíquico” para essa experiência emocional está disponível e pode ser usado. Nesse sentido, este estudo se diferencia tanto da filosofia quanto da autoajuda.
O foco do psicanalista costuma ser o (alívio do) sofrimento psíquico. Mas, como foi dito, felicidade é mais do que ausência de sofrimento. Ela tem uma positividade, isto é, características que podem ser descritas em si mesmas. Tanto que, se perguntarmos para as pessoas, cada uma terá uma resposta sobre o que a faz feliz: para uma é viajar; para outra, estar com os filhos; para uma terceira, trabalhar; e para outra, ainda, ouvir música.
Em todas essas ocorrências da felicidade, o sujeito experimenta o “estado de uma consciência plenamente satisfeita” (Instituto Antônio Houaiss, s.d.). Mas são experiências emocionais extremamente heterogêneas entre si. O setor do psiquismo engajado na experiência “viajar me faz feliz” não pode ser o mesmo que leva outra pessoa a sentir que “estar com os filhos me faz feliz”. Nesse sentido, a felicidade é uma experiência complexa, que pode ser decomposta em seus vários elementos psíquicos, e todos eles participam da aptidão à felicidade.
Posto isso, não pretendo fazer um estudo sobre a categoria abstrata “felicidade”. A proposta é tomar como ponto de partida algumas ocorrências da felicidade no cotidiano (“tal coisa me faz feliz”) para reconhecer e evidenciar as condições psíquicas que as tornam possíveis. Recorrerei a vinhetas que começam com uma caminhada numa praia na Costa Rica, metáfora da nossa caminhada pela vida.
Uma releitura do princípio do prazer
Estou na Costa Rica há alguns meses. Acabo de trabalhar e vou fazer minha caminhada diária pela praia. Faz duas horas que passeio e aprecio a paisagem. O sol está forte, estou com sede. Adoraria tomar uma cerveja bem gelada. E não é que encontro um barzinho? Poder descansar e saborear essa cerveja me faz feliz.
Essa primeira vinheta servirá para propor uma releitura do princípio do prazer. Tenho sede, desejo uma cerveja gelada, tomo a cerveja, experimento um momento de felicidade. Poderia parecer que a felicidade é a possibilidade de realizar todos os desejos. Mas a vida psíquica não é tão simples. Por um lado, se fosse possível eliminar a tensão no aparelho psíquico, não ficaríamos felizes, mas entediados (Comte-Sponville, 2000). Mataríamos o desejo, que é o motor da vida psíquica. Por outro lado, é impossível satisfazer todos os desejos. Enquanto há vida, há pulsão. Sempre falta alguma coisa. De certa forma, estamos eternamente insatisfeitos.
Se o desejo é constitutivo do humano, então a felicidade é impossível? Por sorte, todos já tivemos a experiência de realizar um desejo e ficar plenamente satisfeitos. Na vinheta, tenho sede, tomo a cerveja e fico genuinamente feliz! Nem sempre desejamos apenas o que falta. É perfeitamente possível desejar aquilo que existe, aquilo que tenho (Comte-Sponville, 2000). O desejo tem uma dimensão afirmativa. Desejar é afirmar o prazer de viver. Aqui, desejo não é falta, mas potência: potência de existir, de agir e de usufruir a vida. É a mesma diferença que existe entre fome e apetite: fome é falta; apetite é a potência para desfrutar uma refeição (Spinoza, citado por Bourdin, 2012).
Voltemos à caminhada pela praia. Pensando bem, a vinheta não descreve só a realização de um desejo. Não é apenas o nível sensorial do prazer que está envolvido nessa experiência. Se fico plenamente satisfeita ao tomar a cerveja, é porque a experiência envolve o meu ser como um todo. Ela inclui o contexto em que desfruto essa bebida. De fato, não é qualquer cerveja, em qualquer lugar, que me faz feliz. É essa cerveja, tomada depois de trabalhar e de uma longa caminhada. E isso porque, naquele contexto, aquela cerveja faz sentido para mim: ela acrescenta mais um prazer ao meu prazer de estar viva. É uma maneira de afirmar meu amor e apetite pela vida.
Recapitulando: partimos do prazer sensorial (realizar o desejo de cerveja), incluímos o contexto (que dá um sentido a essa cerveja) e desembocamos no amor (pela caminhada); juntando tudo, o desejo que está sendo realizado não é só o de fazer uma caminhada pela praia, nem só o de tomar uma cerveja: tudo isso se articula a um desejo mais amplo, que é o de viver.
Nessa releitura do princípio do prazer, a realização do desejo proporciona um prazer sensorial, mas também um “prazer da alma”, quando se desfruta aquilo que se ama. Desejar é o primeiro elemento, talvez o mais básico, que compõe a aptidão à felicidade.
Luto primário e descoberta da alteridade
Encerro meu dia de trabalho e, como sempre, saio para minha caminhada pela praia. Hoje o sol está forte, enfrento subidas íngremes, e tudo isso me exige esforço. Ainda não encontrei um barzinho para descansar e tomar uma cerveja. É possível sofrer e ser feliz?
Como sabemos, todos nós interpretamos a realidade e damos sentido ao vivido a partir de nosso inconsciente. É por isso que a aptidão à felicidade (progressiva) depende de um funcionamento psíquico “evoluído”. Usarei essa vinheta para mostrar duas interpretações opostas em relação à mesma realidade.
1ª interpretação. Não é justo que um mero passeio me exija tanto esforço. Vim aqui para ter prazer, não para sofrer. Essas subidas íngremes não deveriam existir. Deveriam ter colocado um teleférico; deveriam ter colocado quiosques com cerveja; deveriam ter me avisado que as trilhas eram difíceis. É uma falta de respeito com os turistas (comigo). Eu deveria ter ido a um resort. Lá tem cerveja no bar da piscina, não preciso fazer todo esse esforço só para me sentar num barzinho e tomar uma cerveja.
Tamanho ódio à realidade (Bion, 1962/1966) indica que o sujeito ainda está na posição subjetiva do narcisismo primário (Roussillon et al., 2018) e que o luto originário (Racamier, 1993) não foi realizado. Ele continua esperando que a Mãe Absoluta, aqui representada pela Costa Rica, o gratifique totalmente. Nessa posição, sente que a Mãe Absoluta poderia, mas se recusa a facilitar a sua vida. E isso só pode ser por um motivo: porque não se importa com ele.
Percebe-se que a experiência de infelicidade ligada ao ódio à realidade não tem a ver com o esforço que a caminhada exige, mas sim com como cada um interpreta o esforço. Se a dificuldade estraga o passeio, é porque o sujeito interpreta/sente que a Costa Rica não se importa com ele. É uma ofensa narcísica. A dor da ferida narcísica se transforma em ódio à realidade.
2ª interpretação. Que geografia privilegiada tem a Costa Rica! O esforço de subir esta montanha é amplamente compensado pela vista do oceano Pacífico. A natureza está totalmente preservada! Que bom que não poluíram este lugar com teleférico, nem com quiosques de cerveja.
Nessa segunda interpretação, como o sujeito não está fechado no narcisismo primário, não confunde (transferencialmente) a realidade da Costa Rica com a Mãe Absoluta. A Costa Rica não está “contra ele”: ela é o que é, há coisas boas e ruins. Isso significa que o eu faz contato com a alteridade, isto é, descobriu o outro enquanto outro. Ele pode escolher ficar ou ir embora. Mas não sente que a Costa Rica não respeita os turistas, nem interpreta o esforço da caminhada como uma ofensa pessoal. Como o objeto não lhe deve nada, também não há ressentimento (Kehl, 2020).
Quando o luto primário foi realizado, nós nos abrimos para desfrutar aquilo que a Costa Rica (o mundo), em sua alteridade, nos oferece. Descobrir a Costa Rica é uma alegria. Apesar do esforço, o passeio é um prazer. Alegria e prazer se articulam e potencializam, o que indica aptidão à felicidade.
Criação da matriz simbólica do luto
Saio para uma caminhada pela praia. O lugar é bonito, as rochas e pirambeiras exigem esforço, o sol está quente. Não tem cerveja no bar, mas o garçom me oferece uma Coca-Cola. Poder descansar e matar a sede é suficiente. Experimento um momento de felicidade.
É possível aceitar o refrigerante no lugar da cerveja se o sujeito conseguir fazer o luto da cerveja. Mas ele só consegue fazer esse luto se a Coca-Cola puder valer como símbolo da cerveja. O refrigerante pode servir como símbolo porque os dois são borbulhantes, gelados, refrescantes, matam a sede e permitem que se desfrute de um descanso à sombra do bar. Contar com o símbolo do objeto é a condição para que o sujeito consiga fazer o luto pela “cerveja perdida”.
O luto primário torna possíveis os vários lutos secundários que precisaremos fazer pela vida afora. É o processo pelo qual conseguimos integrar emocionalmente uma perda dupla, duas faces da mesma moeda (Klein, 1946/2006). De um lado, integramos a perda da posição subjetiva na qual nos vemos como melhores e mais importantes do que os outros – versões adultas de Sua Majestade o Bebê. De outro lado, e de forma complementar, integramos a perda do objeto da gratificação absoluta (o objeto idealizado e onipotente). Renunciamos à expectativa de que algo, ou alguém, vai nos preencher totalmente – versões substitutas da Mãe Absoluta da primeira infância (sucesso profissional, um filho, um cônjuge).
Proponho definir luto primário como o trabalho psíquico que cria/instala a matriz simbólica que habilitará o sujeito a interpretar a perda do objeto como “mera perda” e não como “catástrofe irreparável”. Cada luto secundário será, ao mesmo tempo, uma repetição do luto primário, e um luto original. A dor é sempre uma dor nova, não há uma dessensibilização progressiva.
Dito de outra forma, graças à matriz simbólica do luto, a perda será interpretada como falta dolorosa, e não como mutilação intolerável. A enorme diferença entre as duas é que a dor da falta pode ser integrada, enquanto a da mutilação é da ordem do traumático.
A travessia do luto tem duas compensações: 1) a aptidão ao amor objetal; 2) a aptidão a uma lógica não binária (que não seja em Tudo ou Nada). Ambas são fundamentais do ponto de vista da aptidão à felicidade.
O amor objetal depende da descoberta do outro enquanto outro-sujeito (a alteridade). Ser capaz de amar o outro por aquilo que ele é, e não só por aquilo que nos proporciona (amor narcísico), é uma aptidão à felicidade, porque muitos dos prazeres e das alegrias da vida são vividos na relação com o outro. É difícil ter prazer com a vida se estamos voltados (defensivamente) para o próprio umbigo.
A lógica binária – esquizoparanoide, segundo Klein (1946/2006) – é formulada em termos de ou/ou: branco ou preto, oito ou oitenta. Essa lógica é desesperadora porque tinge com as cores do Absoluto todos os setores da nossa vida mental: se não sou Tudo, então sou Nada; se este passeio não é perfeito, então é uma porcaria; se meu/minha parceiro/a não me dá tudo, então não me dá nada. Essa maneira de olhar para o mundo e para nós mesmos – esse sistema binário de crenças – nos lança constantemente nos abismos da angústia de morte.
A travessia do luto torna as experiências emocionais mais nuançadas e atenua as angústias primitivas. É o que Klein (1946/2006) chama de posição depressiva. A vinheta ilustra essa ideia. Não tem cerveja no bar, o garçom não pode me gratificar totalmente. Mas me oferece uma Coca-Cola. Não é tudo, mas já é alguma coisa. Naturalmente, preciso estar em posição de aceitar o refrigerante no lugar da cerveja. Por exemplo, não posso ser alcoolista.
Quando mudamos de posição subjetiva, abandonando a lógica esquizoparanoide, conseguimos sair do próprio umbigo e olhar em volta. Podemos descobrir fontes de prazer e de gratificação que não víamos antes. Antes do luto, sem cerveja, o passeio é uma porcaria. Depois do luto, se não tem cerveja, aceito outra bebida, e o passeio vale a pena mesmo não sendo perfeito. Na posição depressiva, é possível conviver com a imperfeição e com a incompletude – do mundo, dos outros e minha.
Como se vê, o luto propicia a saída da posição subjetiva do narcisismo primário, o que é uma condição absolutamente necessária para a aptidão à felicidade. Quando o processo é bem-sucedido, estruturam-se as bases de um psiquismo mais robusto, mais resiliente às perdas e às frustrações que a vida impõe. Se esse luto não tiver sido realizado, nenhum luto secundário será possível. Por exemplo, o luto pela cerveja perdida.
A criatividade como fundamento do psíquico
Tudo começou com uma conversa meio à toa sobre felicidade. Um ou dois meses depois, estou caminhando pela praia e, do nada, sou assaltada pela vontade de escrever sobre esse tema. Já não vejo a paisagem, não percebo mais o sol escaldante, não sinto sede. Estou inteiramente mergulhada na atividade de pensar, imaginar e criar. Entre subidas e descidas, entre o céu e o mar, o texto começa a nascer. A perspectiva de criar, de escrever este texto, me faz feliz.
No plano freudiano, criar é fonte de prazer porque a pulsão sexual se satisfaz na e pela representação: é a sublimação. Mas em outro plano criar é uma necessidade psíquica (Roussillon, 2020). O encontrado-criado vai ser retomado aqui como primeira atividade criativa da mente do bebê. Graças à criatividade primária, o bebê constrói uma ponte entre a realidade interna e a realidade externa, entre o seio que ele alucinou (em sua realidade psíquica) e o seio que ele encontrou (na realidade material). Só então o seio encontrado se tornará o “seu seio”, o seio “para si”. Esse já é um seio simbolizado, “digerido”, “domesticado”, que pode ser apropriado e integrado.
A integração tem o dom de pacificar o eu, cuja coesão foi perturbada pelo confronto com a alteridade (do seio). É um dos motivos pelos quais criar pode produzir prazer e alegria. Partindo dessas ideias, Roussillon (2020) vê a criatividade como o próprio fundamento do funcionamento psíquico. É ela que torna possível a criação de símbolos e as diversas formas da linguagem de que dispomos para metabolizar as experiências emocionais com as quais a vida nos confronta. É graças a essa capacidade que o bebê consegue “tornar seu” o seio que ele encontra.
Voltando à vinheta, ela descreve como fui confrontada abruptamente com a alteridade do tema felicidade. Para “digeri-la”, fui assaltada pela necessidade de escrever sobre ele. Tomada pelo trabalho psíquico, já não via a paisagem nem sentia sede. Escrever sobre o tema é uma forma de transformar o traumático desse encontro em algo passível de integração. É uma modalidade de fort-da (Freud, 1920/1996a). Ao escrever, eu me torno ativa onde inicialmente fui passiva; aos poucos vou descobrindo o prazer de “brincar” com as palavras – o prazer de simbolizar a experiência com que fui confrontada.
O projeto de escrever um livro sobre a felicidade atende a uma dupla necessidade. Permite a articulação entre o desejo de criar (sublimação da sexualidade) e a exigência de criar (para elaborar o traumático do encontro com a alteridade do tema totalmente novo para mim).
O caminho da integração passa pelo processo do encontrado-criado. Como já mencionei, assim como o bebê cria o “seio para si”, domesticando o seio encontrado na realidade, precisei criar a “felicidade para mim”. Fui ler alguns autores para, a partir deles, propor meu próprio recorte sobre o tema.
A integração de experiências emocionais traumáticas pela via do trabalho psíquico nos permite passar de um estado menos integrado a outro mais integrado psiquicamente. Essa capacidade indica aptidão à felicidade.
Ser sujeito, fazer escolhas
Ontem imaginei um livro sobre felicidade e hoje comecei a escrevê-lo. O dia de trabalho foi produtivo. Saio para minha caminhada pela praia. A paisagem é bonita, tomo uma cerveja admirando o pôr do sol. O passeio é agradável, mas o que me faz feliz é estar num lugar que escolhi, com pessoas que escolhi, fazendo o que escolhi e que me dá prazer.
Essa vinheta apresenta mais um elemento da aptidão à felicidade: poder fazer escolhas, e escolher o que se deseja.
Vejo uma diferença entre escolher algo enquanto sujeito e “escolher” algo assujeitado ao sintoma. Uso aspas porque, se estou sendo determinada pelo sintoma – se estou sendo agida por forças inconscientes –, então não é realmente uma escolha. Não tenho liberdade interna para fazer de outro modo. Não podemos dizer a um deprimido que ele está fazendo a escolha de ficar na cama, em vez de ir ao parque.
Volto à ideia de poder fazer escolhas e escolher o que se deseja. Num recorte freudiano, o desejo está relacionado à busca do prazer e à descarga pulsional. Num recorte winnicottiano, vejo uma relação entre desejo e “gesto espontâneo” (Winnicott, 1971/1975). Nesse outro plano metapsicológico, felicidade é uma experiência que envolve o ser como um todo, tanto que dizemos “sou/estou feliz”. Sinto-me feliz quando posso escolher coisas que me representam, que são expressão do meu eu, da minha identidade, do meu ser. Escrever este livro me representa.
Minha história emocional e os fios de sentido de que será tecida minha vida nascem no campo intersubjetivo constituído pelo que vem de mim, e pela resposta do ambiente ao que vem de mim. É isso que vai determinar como meu gesto espontâneo foi acolhido, ignorado ou recusado; como foi reconhecido, ou como foi distorcido; como foi legitimado, ou como foi desqualificado; enfim, como meus movimentos foram traduzidos e interpretados pelo ambiente, e como isso determinou a resposta que este pôde dar ao que veio de mim.
Enfatizo mil vezes esse “como” porque não basta dizer que o ambiente acolheu ou não acolheu o gesto espontâneo. Cada ser humano é único justamente por conta desse “como”. É com esse “como” que cada um vai constituir suas identificações. É esse “como” que vai determinar tanto o desejo quanto a maneira pela qual cada um vai se relacionar com seu desejo.
E aqui volto ao tema da vinheta: a possibilidade de afirmar meu desejo, de fazer minhas escolhas e de construir uma vida que me representa. Ou, ao contrário, o medo de afirmar quem eu sou – ou pior, a falta de contato com o que desejo e o que me representa. Nem é preciso dizer que a primeira alternativa indica uma aptidão à felicidade, enquanto a segunda a torna mais distante e difícil.
A liberdade de poder realizar o gesto espontâneo, sem que alguma amarra interna ou externa impeça esse movimento, é preciosa. A liberdade para criar a própria vida, de acordo com quem se é, é preciosa. Poder ser sujeito da própria vida é precioso. Mas, para que isso seja possível, é necessário ter conquistado liberdade em relação ao objeto interno. A separação sujeito-objeto é a condição para se ter autonomia em relação a seus suportes transferenciais externos. Sem isso, é difícil sentir-se suficientemente empoderado/a para ir atrás do que se deseja, ou sentir-se no direito de fazer isso.
Quando descobrimos o outro como outro-sujeito, ele se humaniza, perde as características do Absoluto. Já não estamos submetidos a ele. Podemos confrontar o objeto sem ficarmos aterrorizados com sua reação, nem apavorados pela possibilidade de perder seu amor. E podemos confrontar o objeto sem a culpa de estarmos causando a ele um mal terrível.
Quando há liberdade interna, o pavor de ser abandonado pelo objeto se transforma em simples medo. O terror nos paralisa; já o medo faz parte da vida. Mesmo com medo, é possível lutar pelo direito de viver a própria vida de acordo com o próprio desejo.
Sintetizando: escolher o que desejo é escolher o que faz sentido para mim. A vida, afinal, nada mais é do que a sucessão das escolhas que fazemos todos os dias. Com cerveja ou sem cerveja, o simples fato de poder escolher o que me representa me faz feliz. Poder ser quem se é, sentir que o mundo tem um lugar para a própria singularidade, ser fiel a si mesmo, é um elemento que participa da aptidão à felicidade.
A expansão do eu
Caminho pela praia tomada pelo tema. Comecei a escrever e parece que a ideia “para em pé”. Gosto do esforço de pensar e de esculpir as frases, assim como outros gostam do esforço de fazer musculação. Aventuro-me pelas pirambeiras metafóricas da escrita, e hoje dispenso as pirambeiras da estrada. Levo uma cadernetinha para anotar as ideias que aparecem e desaparecem como cometas. Penso nas vias tão inesperadas que este texto está tomando. É curioso ver nascer a autora deste livro, que eu não conhecia. Ser apresentada a ela me faz feliz.
Essa vinheta ilustra mais uma dimensão da felicidade: o nascimento de um novo aspecto de si mesmo. Este texto vai nascendo junto com a parte de mim que está pensando e escrevendo. A condição para isso é tolerar não ser idêntica a mim mesma. Abrigo em mim aspectos que me são estranhos, estrangeiros. É assustador pensar que, dependendo da situação, podemos sentir, pensar e até fazer coisas que não imaginávamos, para o bem e para o mal. Criar implica permitir que esses aspectos do eu, até então desconhecidos, venham à luz na e pela obra que está sendo gestada. Paradoxalmente, sou e ao mesmo tempo não sou sujeito daquilo que estou criando.
Uma das condições psíquicas para acolher o novo, em vez de recusá-lo defensivamente, é aceitar se abrir para o imprevisto de si mesmo. A associação livre em sessão é um experimento desse tipo. Se renuncio a me agarrar ao eu conhecido, se consigo me soltar e me deixar regredir para o “modo” informe, vou me surpreender com o que vier. Nesse sentido, o processo criativo pode ser comparado à gestação propriamente dita. A mãe tem que tolerar ser habitada concretamente por algo que não é ela mesma e, quando as condições psíquicas são suficientemente boas, ser capaz de acolher o que vem.
Para Roussillon (2020), a criação é necessária para o advento do sujeito a si mesmo. O objeto criado realiza algo da função espelho da mãe: “Veja, isto é você”. Como foi dito, há o sujeito da criação, aquele que cria, mas há o sujeito que nasce graças àquela criação – aquele que é criado na e pela criação: o sujeito é tanto efeito de sua produção quanto o autor dela. A exigência de criação indica haver aspectos do sujeito ainda em estado potencial, e a produção de si pela criação é a realização desse potencial. Criar é transformar o mundo que o sujeito encontra, mas é, simultaneamente, transformar e produzir a si mesmo.
Criar me permite integrar novos aspectos da minha própria alteridade. Cito uma frase de Ogden que ilumina a dimensão da felicidade ligada à produção de si mesmo:
No próprio ato de escrever, o analista que escreve não está simplesmente criando uma obra de arte de um tipo particular de um gênero literário; ele ou ela está implicado num processo de ser, e de tornar-se ele mesmo ou ela mesma mais completamente. (2021, p. 163)
O mesmo vale para qualquer forma de criação.
A travessia do luto primário na clínica3
Amanda me procura por sentir que não consegue desenvolver plenamente seu potencial. Não lhe falta nada, mas não consegue ser feliz. Vê-se tomada por situações familiares que a angustiam muito – com os sobrinhos, por exemplo, que a seu ver têm dificuldades emocionais graves; com um irmão que, apesar de muito bem-sucedido, lhe parece excessivamente submetido à esposa e faz operações financeiras muito arriscadas para proporcionar conforto a ela.
A verdade é que ela mesma se sente emocional e financeiramente dependente desse irmão. Claro que ela o ama e deseja o seu bem, mas o que será dela se ele quebrar? E como contar com alguém que, por sua vez, parece tão infantilizado, tão dependente de seu próprio objeto (a esposa)?
Ela se separou do marido há muitos anos. Um imóvel que lhe coube ainda não está em seu nome e, por isso, não pode vendê-lo e usar o dinheiro como bem entender. Não se sente dona da própria vida. Esse material indica que, na dimensão psíquica, a separação sujeito-objeto não se completou, o que a impede de ter autonomia em relação ao objeto.
O irmão encarna transferencialmente a Entidade (o objeto absoluto, a mãe arcaica). A relação é claramente assimétrica. Quando saem para almoçar, não tem dúvida de que é ele quem vai pagar sua parte. De uma forma que ela mesma não entende, sente que ele lhe deve. Quando ele lhe dá um presente de aniversário, ela se decepciona e se ofende, porque foi uma escolha burocrática.
O material mostra que ela está na posição de Sua Majestade o Bebê. O luto primário, que é uma condição absolutamente necessária para a experiência da felicidade, não foi realizado de forma suficiente. Ela continua se sentindo esmagada e dependente dos representantes atuais dessa figura todo-poderosa.
A desconstrução da Entidade precisa acontecer na transferência. E aqui a maior parte do trabalho aconteceu de forma subterrânea. Explico.
Essa moça havia me procurado cheia de dedos e com muito medo de mim. Imaginava que eu seria uma espécie de Entidade que não teria nem tempo nem interesse pela “pessoa insignificante” que ela é. Além disso, pensava que eu cobraria honorários impossíveis. Atreveu-se a perguntar se poderia começar me pagando um pouco menos do que eu propusera. Aceitei, pois entendi que era um sintoma de seu desempoderamento generalizado.
As sessões se passam em torno da relação com o irmão e com uma chefe que ela tem muita vontade de confrontar, mas não consegue. Subterraneamente, ela me idealiza de forma esmagadora. Nada é dito, mas percebo seu pavor de que eu descubra que ela não vale a pena, que estou perdendo meu precioso tempo com ela, e que eu não sou para o seu bico.
Não sei dizer exatamente o que foi que fiz. Não lembro de nenhuma grande interpretação. Quando notei, o material clínico tinha mudado. Surgiram as primeiras possibilidades de confronto com a Entidade, o que indicava que ela estava sendo desconstruída.
Amanda tentava concluir uma transação comercial importante para ela. Depois de já ter cedido tudo o que podia, a outra parte solicitou que cedesse ainda mais. Contrariamente ao que costumava fazer, dessa vez decidiu não ceder. Por mais que a transação fosse importante, preferia abrir mão dela a se submeter de uma maneira que, a seu ver, seria abjeta. Seu sentimento era que, se aquela transação não se completasse, não seria o fim do mundo, porque surgiriam outras. E, para sua surpresa, a outra parte aceitou sua posição e concluíram a transação. O pavor de morrer esmagada pela Entidade já não estava lá.
Tudo isso se deu em meio a outras situações que apontavam o avanço do processo de separação sujeito-objeto. Primeiro, o divórcio foi concluído. Em seguida, o imóvel que lhe cabia na divisão de bens foi transferido para o seu nome. As fronteiras que separam sujeito e objeto estão mais firmes, há um movimento de integração de partes do eu (o imóvel), ela se apropria de seus recursos.
Entra em cena um outro irmão. Ele a convida para morar num apartamento perto do seu, num bairro melhor. Esse irmão gosta muito dela e, ao contrário do primeiro, não está submetido à própria esposa. É um objeto claramente mais consistente. Quando fala dele, já não vemos nenhuma das características da Entidade: é uma boa relação, simétrica, genuinamente fraterna, de amor e de gratidão.
Em paralelo, ela mesma se espanta ao perceber o quanto a relação com o primeiro irmão melhorou. Já não se angustia com a possibilidade de quebra financeira, nem se ressente por não receber exatamente o que esperava. Agora olha para ele com admiração e respeito por suas conquistas.
O fato é que, de repente, vejo Amanda feliz, investindo num novo projeto de vida. Já faz algum tempo que decidiu pagar meus honorários, sinal de que está se sentindo mais empoderada. O desejo ressurge: vai comprar uma obra de arte cara, com a qual sempre sonhou, e que achava que não era para o seu bico. O futuro se abre, há esperança de uma vida mais prazerosa: viver perto desses outros sobrinhos a enche de alegria.
Em paralelo, o clima na transferência mudou completamente. Já não tem medo de mim, já não sente que não sou para o seu bico. Percebo que já não estou sendo vivida como Entidade. Ela não me vê mais como alguém que não teria tempo ou interesse por ela. Passou a ocupar seu lugar na análise de maneira legítima e confortável.
A Entidade foi desconstruída: fui transformada num “mero ser humano”. A vida deixou de ser um peso, está mais leve. Concretamente, nada mudou, e ao mesmo tempo tudo mudou.
Amanda está indo para o trabalho de carro e tem de atravessar uma ponte. O trânsito pesado a obriga a dirigir devagar. Normalmente ficaria aborrecida. Mas dessa vez o cotidiano banal está revestido de uma beleza nova, resultado, provavelmente, da projeção da sensação interna de maior liberdade e leveza.
Despedimo-nos com alegria pelo trabalho realizado. Ela grata, e eu manifestando meu respeito por sua coragem em me procurar, em lutar por sua análise e por uma vida (psíquica) de melhor qualidade. Ser capaz de ajudar alguém me faz realmente feliz.
Finalizando
Espero ter deixado claro que a condição psíquica absolutamente necessária para a aptidão à felicidade é o luto primário. Ele pode ser definido como o processo que cria, ou “instala”, a matriz simbólica que permite processar psiquicamente a perda do objeto como “mera perda”, e não como “catástrofe irreparável”. Ele pode ser considerado um divisor de águas na qualidade de vida mental (e da psicopatologia psicanalítica, entendida como formas de ser e de sofrer) porque, graças a essa matriz, os lutos secundários da vida serão possíveis.
Antes do luto, temos um funcionamento mental dito mais “primitivo” e, depois dele, um funcionamento mais “evoluído”. Não se trata de um juízo de valor, mas da constatação de que a descoberta do outro enquanto outro-sujeito é necessária, não só para ter uma relação mais ética e respeitosa com a alteridade, mas também para enriquecer nossa caminhada pela vida.
Embora o luto primário seja absolutamente necessário, ele não é suficiente para a aptidão à felicidade. Alegrias e prazeres precisam estar inseridos numa vida com sentido (André, 2010): uma vida que seja uma expressão genuína do self. Não é nada grandioso: estou me referindo aos sentidos que as pessoas comuns dão à sua vida – daqueles que nos levam, todos os dias, a fazer escolhas propriamente ditas, fora da repetição sintomática, isto é, os sentidos que nos levam a investir naquilo que amamos, e a ir atrás do que é importante e valioso.
Para cada um de nós, o sentido da vida é construído a partir da criatividade psíquica, isto é, por uma vida psíquica que não esteja limitada por defesas custosas, nem exclusivamente a serviço da sobrevivência do eu. É ela que nos torna aptos a transcender a concretude sensorial para aceder ao plano mental da existência. A aptidão à felicidade depende, então, de duas condições muito simples e, ao mesmo tempo, bastante sofisticadas do ponto de vista psíquico: o luto primário, que nos torna aptos para o amor objetal; e a criatividade psíquica, que nos torna aptos a cultivar o sentido da vida na própria matéria de que ela é feita.