Ruídos e borrões sob as lentes da mente primordial
Tive a oportunidade de conhecer Péricles Pinheiro Machado Junior, autor de A linguagem perdida das gruas e outros ensaios de rasuras e revelações, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em mútua colaboração no desenvolvimento e realização de nossas pesquisas no grupo de Marina Ribeiro.
Neste momento, obra pronta e relida em sua inteireza, pensei ingenuamente em pegar um elemento do livro, eleger uma linha de pensamento para apresentar minha experiência com a obra. Logo vi que pegar e eleger eram verbos impossíveis de conjugar com este belo e profundo trabalho, que versa sobre a linguagem e suas restrições no ato de dar expressão verbal àquilo que acontece no íntimo das emoções. “Verbos são correnteza” (p. 32), conta-nos o autor. Uma vez necessária alguma ação em forma de verbo para navegar 0 livro, escolhi desformar, conforme ensina Manoel de Barros (1997, p. 75), poeta também citado por Péricles na abertura do livro:
Arte não tem perna:
O olho vê, a lembrança revê,
E a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma.
Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio
Que saio por aí a desformar.
Opto por desformar o livro, visto que sua conjuntura me atinge como unidade viva. Percebo que a única forma de romper com o silêncio estupefato de apreciação que a leitura incita leva-me a abandonar as gruas por um momento e a carregar comigo fragmentos que venham a compor outro texto, ainda que em muitos momentos eu tenha me indagado: “Será que consigo falar do livro fora dele?”.
Péricles nos oferece uma experiência peculiar de leitura desde o “Prelúdio”. Enquanto Bion libera o leitor da obrigatoriedade de entendê-lo logo na primeira linha, Péricles nos conduz lentamente aos obstáculos que a necessidade de entender nos impõe. Entro no livro distraído. Parece que estou na narrativa de um caso clínico. Eis que, quando me dou conta, fui transportado a uma nova realidade! Péricles pode provocar perturbações à primeira vista, ao conduzir o leitor por um fluxo de sismos protoemocionais vividos com uma pessoa que se apresenta para as primeiras sessões de análise. Estamos diante da captação de movimentos sensíveis: alguém que o chama de doutor; a imagem de grandes prédios vistos de baixo, tendo ao fundo um céu azul com pequenas manchas de nuvem; uma agilidade hesitante; um titubear; palavras imprecisas e balbucios pronunciados a esmo. Vemo-nos junto com o analista-autor diante do desconhecido pleno de ruídos do analisante.
Até então sinto estar em um texto só com pontuações, sem palavras. Não vejo substância, mas sinto movimentos que me levam para dimensões sensíveis da experiência clínica. Há vírgulas, parênteses, aspas flutuantes sobre páginas brancas. Ou, em outros termos, um fundo branco com marcas de tinta, a estamparia monocromática de um “céu azul com pequenas manchas de nuvem” (p. 19). É assim, aliás, que os bebês enxergam nos primeiros dias de vida. O autor demonstra destreza em não aderir aos conteúdos, valendo-se de palavras que carregam uma carga de imprecisão hipnotizante: quanto mais tentamos focalizar o pêndulo movente, mais próximos ficamos do estado dos sonhos.
Eis que, subitamente, no meio das associações oferecidas a respeito da tal pessoa-analisante, Péricles relata que ela usa uma “lógica de sequências sem causas nem consequências: atribuições de valor, adjetivos sem substância, predicados sem sujeitos” (p. 20). Eu, então, me pergunto: “Ué! Quem está fazendo isso, afinal? A pessoa-analisante em questão? Ou seria o analista-autor? Ou seria eu mesmo a pessoa em questão, e perdi uns tantos algos de vista?”.
O livro é composto por prelúdio, cinco ensaios – crônicas clínicas, no dizer do autor – e epílogo. É notória sua forma peculiar de perscrutar a vivência clínica com seus analisantes, tendo Bion como companheiro de navegação em águas tortuosas. O livro nos convida a conjugar a clareza com a ausência de nitidez, como costumam ser as apreensões turvas e naturalmente dispersas da realidade psíquica. Um vértice possível de observação clínica proposto por Péricles é a busca por um estado de mente primitiva ou embrionária, que aqui opto por chamar de primordial no intuito de incluir ambas como estados originários que precedem o advento da forma do verbo para dar contorno às experiências emocionais.
Esse estado de mente remete-nos a algo que as crianças fazem com espontaneidade instigante: cerram os olhos para ver embaçado, tapam os ouvidos para que as vozes ao redor se convertam em borbulhos. Mais avizinhadas pelo curto tempo corrido, as crianças parecem emular, naturalmente, os estados embrionários e puerperais, em que nossa morada é não verbal, feita de indícios sensoriais sem a contrapartida da palavra. A imprecisão, os borrões, as imagens turvas e os ruídos inomináveis são aquilo que nos leva à indiscriminação com um estímulo: já não sabemos, com a vista embaçada e os olhos tampados, se o que ouvimos é criação própria ou é oriundo de uma suposta nitidez externa. Trata-se de um estado de ouvir ouvindo-se, na fronteira estética entre eu e não eu, uma cesura da percepção que nos arrasta para tempos estranhos e, ao mesmo tempo, familiares.
Somos conduzidos a um espaço entre olhos, ouvidos e vibrações corporais. Péricles acessa “palavras mal formadas, murmúrios interrompidos” (p. 63), busca “as inflexões, as modulações, a respiração, ... os sons emitidos pelo corpo do analista” (p. 70), dá valor aos “embargos e engasgos” de nossos encontros clínicos. Tais expressões primitivas podem ser caracterizadas na obra de Bion (1962/2021a) como elementos-beta, hipotéticos em sua epistemologia, para que possamos identificar aquilo que se apresenta sensorialmente, sem correspondência mental. São destroços de vivências que não puderam ser assimiladas, vestígios atravessados que não encontraram lugar psíquico.
Quando me deparo com a atenção de Péricles a esses elementos, vejo-o dirigindo-se diretamente ao passado que se reapresenta, com seus olhos de James Webb, o famoso telescópio que hoje busca os aglomerados de formações luminíferas oriundas da origem do universo. Noto que a atenção do autor em sua clínica, bem como a de Bion, caracteriza-se, em parte, pelo que defino como betatropismo: a busca pelo crescimento da mente a partir da captação de vestígios pré-verbais e não verbais. É a ousadia premente de se permitir criar e ser criado pelo extraverbal da sessão. Revisitando Manoel de Barros, estamos no campo da linguagem desformada em ruídos e borrões, no alarme do silêncio, transvista pela imaginação do analista.
Observar os fenômenos a partir do vértice da mente primordial, em que ruídos e borrões ganham relevo em nossa escuta e visão, permite-nos rastrear os ecos inauditos das palavras não ditas. Estamos próximos do momento em que o bebê abre sua boca para falar, com a intenção ingênua de entrar numa conversa, mas o que sai são sílabas erráticas e bolhas de saliva. A atenção uniformemente flutuante, que em Freud (1912/2010) implica a elevação das associações livres a um relevo comum, na obra de Péricles torna-se esse novo frame de captura da vida mental, que o autor nomeia como “uma tradução igualmente borrada” (p. 87), no relato sobre o homem que falava coisas que ninguém entendia, um tipo de caso de Oliver Sacks para psicanalistas betatropistas, apresentado no segundo ensaio.
O autor propõe dois conceitos a partir de suas experiências clínicas: linguagem de sobrevivência e linguagem de reconhecimento. A primeira se inscreve no campo do betatropismo, como formas achatadas de linguagem com cargas semânticas desprovidas de sentido subjetivo. Encontra-se no domínio do pré-verbal, das experiências psíquicas sem representações que encontram nos símbolos da cultura substitutos estereotipados, incapazes de dar expressão “às dores não sentidas, pensamentos não formados... sentimentos vagos de aridez existencial” (p. 180). Em simetria, a linguagem de reconhecimento expressa a experiência de encontrar na linguagem viva um lugar de coabitação para o par analítico, uma linguagem provisória capaz de carrear o tônus emocional do encontro e liberar o pensamento para transformações genuínas em que o analisante se reconheça.
Em Transformações (1965/2021b) e depois em Atenção e interpretação (1970/2014a), Bion propõe um neologismo: at-one-ment, uma forma substantivada de estar em uníssono. Com o acréscimo das palavras de Péricles, ao terceiro ensaio: uníssono “consigo mesmo, com o outro e com a realidade do encontro” (p. 144). A ideia de tornar-se uno com a coisa em si implica, justamente, evitar o apoio do conhecimento (feito de muitas palavras) para entrar em contato com a realidade emocional. Quanto mais procuro em mim argumentos para explicar o que se dá com um analisante, refugiando-me em memórias que os justifiquem e desejos que os reafirmem, mais me afasto da experiência emocional que me habita (ou que habito) na sessão. É daí que Bion propõe que memória, desejo e compreensão prévia consistem em lugares para os quais nos evadimos a fim de evitar o contato com a realidade do encontro.
Mais que isso, memória, desejo e compreensão figuram-se como continentes aos quais o self recorre para expulsar elementos de experiências intoleráveis para si. São, para Bion, de uma primeira perspectiva, continentes para a evasão da experiência emocional, refúgios para que nós, analistas, possamos nos esconder a fim de evitar o aqui e agora da sessão. Invertendo a perspectiva, penso que sua proposta é de que memória, desejo e compreensão devolvam para o aqui e agora aquilo que lhe compete. A mente, capaz de se espatifar em pedaços estilhaçados que se esparramam por futuro, passado e linguagem de sobrevivência, deve se esforçar por recobrar um senso de unidade no tempo e no espaço, em uma linguagem de reconhecimento, conforme propõe Péricles.
A tríade de Bion sempre me levou, em tom de brincadeira, a pensar na santíssima trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Percebo nesse jogo dois elementos. Primeiro, que em momentos da história da psicanálise bioniana, a proposição desse estado de mente tornou-se dogmática, inclusive pela maneira como se apresentou no próprio texto de Bion (1967/2014b). O segundo elemento talvez tenha vindo à tona somente na leitura do livro de Péricles: a trindade consiste no mistério de um só Deus que se manifesta em três pessoas.2 A unidade se transpõe em uma forma tripartite, conservando-se no gesto uma simetria entre as partes: são todos um. A trindade é a expressão em três de algo concebido em uníssono.
Podemos rastrear, na história do movimento psicanalítico, diversas tríades que buscam organizar, de forma esquemática, algo que é vivido como uno de uma perspectiva emocional. Freud aponta a noção de tríade como o clímax do desenvolvimento da libido, o complexo de Édipo. O uno, que se conhece melhor em três no Édipo freudiano, retomará um senso de unidade em sua dissolução via recalque. A tríade hipotética kleiniana, bebê-seio-mãe, transpõe a tripartição para terrenos protomentais. Haveria nessas subdivisões esquemáticas uma inevitável fragmentação da experiência do analista?
Em minha leitura, penso que sim. Nas palavras do autor: “O ato da escrita consiste em uma passagem, um trânsito de intuições, uma coagulação imagética de acontecimentos imateriais que demandam uma língua receptível a seus verbos, condição para seu reconhecimento e apropriação”. Em sua apreensão clínica, Péricles busca nos levar ao “ponto mais próximo de onde brotam os pensamentos” (p. 51).
Em seu estilo de escrita – sobretudo no quarto ensaio, “A linguagem das tormentas” –, o autor nos propõe o encontro com um senso de unidade que antecede o dual, a tríade, os grupos. Daí a dúvida, desde o princípio, sobre quem é o sujeito de suas frases. Se a mente primordial pudesse escrever, não haveria sujeito, não haveria discriminações. Péricles emaranha as subdivisões triádicas com as quais nos habituamos a nos dividir para tolerar o angustiante senso de unidade do fazer psicanalítico. Se na experiência analítica a busca ontológica proposta por Bion é de tornar-se uno à realidade psíquica, àquilo que não se alcança pela via do conhecer (K), Péricles nos ensina um estilo correspondente de escrita: a experiência de “tornar as coisas unas”, “tornar as experiências unas” no correr das linhas. Desse modo, experiências bi, tri ou pluripartites expressam-se condensadas em momentos poéticos, por vezes apresentadas como cenas oníricas de seu cotidiano da clínica. O analista-autor empresta seus sonhos para que os leitores complementem a leitura com sua própria voz.
Neste livro, as formas psicanalíticas com as quais estamos habituados se desformam e alcançam um ponto mais primitivo de contato com a realidade. Quanto mais próximos estamos da mente primordial, de ruídos e borrões, pior a nitidez e discriminação dos fenômenos que nos atravessam. O uníssono, por vezes, é uma grande sinfonia de ruídos. Nas palavras de Péricles, em “A linguagem do indizível”: “Hospedo os ruídos, torno-me a própria virose disseminada pela pessoa diante de mim, deixo-me infectar pelo indizível e participo estarrecido dessa inflamação silenciosa, invisível e devastadora, infinitesimal” (p. 139).
O senso de unidade primordial não nos leva ao sentido de um contorno, algo como um espaço com delimitações, mas à unidade enquanto lugar, sede onde todos os eventos acontecem simultaneamente. A origem não é uni, mas pluridimensional. Cólica e toque, sono e tormenta, fome e aflição, múltiplas e simultâneas experiências nos atravessam.
Obedecendo à lógica do emaranhado pluridimensional da escrita, Péricles embala fragmentos autobiográficos, que me levam à sensação de que podem ser tanto vagos e enigmáticos quanto gigantescos. Sinto-os estranhos e familiares. Algumas são coisas que nunca provei, mas sinto-as próximas de mim. O lugar de onde escreve, a cozinha de seu consultório, é justamente onde se pode ver a sala de análise e outras tantas salas, entre o divã e as gruas, um olho no humano, um olho no gato. De lá, com goles de café quente, entre teoria, método, técnica, análise e supervisão, surgem goles também de cerveja, joelhos ralados, omeletes de amora saboreadas em um momento de dor, conversas sobre Bauhaus, a pequena vitrola, o bastão seco do varal do sítio, abobrinha e chicória, Persio Nogueira e o papel de parede cor-de-rosa. Fragmentos que contêm infinitudes.