Neste trabalho, como em anteriores, não vou me ater à constituição do psiquismo. A experiência psicanalítica, e de vida, tem me mostrado que o imprevisto, o acidental, a constitui. A cada momento algo se nos impõe. Desse ângulo, não priorizo o genético, a má hereditariedade, o fato ocorrido, a patologia, a linearidade associada à ideia de causa e efeito, o trauma sugerido à exterioridade do sujeito. Não desconsidero o peso dos acontecimentos, dos fatores congênitos na vida de uma pessoa, da origem, mas não o isolo. Tampouco priorizo, sem desconsiderar, as chamadas características imutáveis, o que quer que isso signifique, a nacionalidade, o acidente. Na análise, o que está disponível para o analista é a condição humana, do analisando e do analista, e como ela se singulariza na história do vínculo analítico, a cada momento: o amor infantil, o impensado, o não elaborado, o desconhecido de si.
Sustento o pressuposto de que a teia de experiências, na qual a vida da pessoa está enredada, reserva um lugar para as contingências improváveis, impensáveis, para as frustrações, para as decepções, para os conflitos e ambivalências altamente prováveis. A existência turbulenta, perturbada, à qual toda pessoa está sujeita, constitui e é constituída pelo evento e o significa. Dessa perspectiva, não creio em algo como o evento em si mesmo.
No exercício da psicanálise, procuro estar com o analisando de corpo e alma. Nessa condição, focalizo o presente da sessão. O que se passa entre nós, no nosso encontro. O que eu experimento na presença dele. O modo como se comunica comigo, as emoções presentes, como ele pensa, como se expressa. O que me parece que desconhece de si.
O psiquiatra Osvaldo Lopes do Amaral encontra nos livros clássicos de psiquiatria uma definição de humor que corresponde a uma disposição afetiva fundamental, uma síntese afetiva. Na proposta da psicanálise, não encontrei uma conceituação de humor, embora o tom espirituoso esteja nos escritos de Freud e de outros. Salvo exceções, raramente encontro nos textos psicanalíticos o estilo bem-humorado. Biógrafo de Freud, Peter Gay (1988/1989) definiu-o como bem-humorado, generoso, obstinado, contador de piadas, de histórias. Concordo com Freud: o humor é um assunto sério, liga-se aos processos inconscientes e suaviza o sofrimento. Mesmo nos tempos mais difíceis, o humor teve lugar em sua vida. Empregava-o para ilustrar um pensamento, para fortalecer um argumento. Nos seus textos, encontro o traço lúdico, o senso de humor. A meu ver, ele combinou a seriedade com o humor respeitoso, ele soube fazer do humor um instrumento de persuasão e transmissão de suas descobertas. Freud encarava a vida como uma tragicomédia (Gay, 1988/1989), muitas vezes com comentários sarcásticos e absurdos. Apontou a crueldade, a desigualdade, o sadismo, a pobreza, a feiura presente nas piadas. A veiculação da rebelião do poder, da autoridade, através das anedotas. Algumas suavizam as perdas, o desamparo no mundo, extraem graça do desespero. A irreverência da piada questiona o estabelecido. Freud observou o humor ingênuo das crianças.
Segundo Mezan (2002), os judeus riem de si mesmos porque se reconhecem nas piadas. Nelas há o plano dos ideais, do ego, das identificações. O humor repara as fissuras do amor-próprio.
A respeito da essencialidade do humor como forma de se respeitar e aprender de si mesmo, o neurocientista Oliver Sacks (1973/1997) observa que, em face de intensos sofrimentos, de reveses terríveis, há algo de curioso, de inspirador e de paradoxal nas pessoas: a dor intensa compele-as a descer às profundezas da amargura, da desesperança. Desses abismos podem retornar modificadas, manifestam senso de humor e mais perspicácia.
Consultei vários autores a respeito do humor: William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Isaac Bashevis Singer, Henri Bergson (1900/1983), Luigi Pirandello (1908/1996), Vilayanur Ramachandran e Sandra Blakeslee (1998/2002), Elias Saliba (2002), Leopold Nosek (2003), entre outros.
Da minha perspectiva, dispor do humor põe leveza na vida, permite uma existência menos sofrida, mais tolerante. Utilizo-me dessa qualidade de intervenção quando espontaneamente posso, quando se impõe a mim. Veiculada de modo informal, a intervenção desarranja, abre espaço para o novo.
A meu ver, o humor supõe uma postura perante a vida, carrega uma sabedoria que favorece o aprendizado das próprias experiências emocionais. Na análise, não emprego a intervenção bem-humorada enquanto estratégia programada; ela é espontânea e depende do vínculo e do momento presente, da evolução da sessão.
Apresento um diálogo que vivi com o meu saudoso analista, a quem sou muito grata. Eu disse: “Sabe, se um dia eu vier a conhecer outra pessoa, gostaria de não trocar seis por meia dúzia”. Na minha mente, nesse momento, lembro que eu estava falando com uma espécie de Esfinge, que iria me dar garantias de como não fazer más escolhas novamente. O meu analista respondeu: “Nem eu”.
Quando me dei conta do que havia dito e do que escutei, não acreditei. Impensável! Rimos sem parar. O desconcerto, a simplicidade, o óbvio, a surpresa.
Na sequência, apresento uma experiência clínica na qual penso que a intervenção com humor fez sentido para a analisanda, despertando a curiosidade e a responsabilidade por sua existência.
Naquela manhã, Tereza solicitou-me a troca de horário da sua sessão e pude atendê-la. Relatou alguns episódios frustradores, queixou-se das tarefas cotidianas e do seu desgosto de morar na casa recém-comprada. Lembrou-se da insatisfação com a falta de pontualidade dos empregados e com o apartamento anterior. Retomou a queixa em relação aos pedreiros contratados para uma obra. Subitamente, perguntou-me: “Onde você mora?”.
A pergunta surpreendeu-me, e recobrada da surpresa, com humor, respondi que eu morava num lugar maravilhoso e nunca me aborrecia com nada.
Ela gargalhou. Eu ri também. Ela se deu conta de que estava sendo atendida e conforme a conveniência dela. Frequenta o consultório há anos e nunca encontrou nenhum funcionário lá. Viu-me recolhendo o lixo do banheiro. Num tom bem-humorado e confessional, disse imaginar que eu tinha uma vida sem queixas e preocupações, que tirava a vida de letra. Na sequência, perguntou-se se ela era desafortunada ou mais insatisfeita do que gostaria de ser. Notou que o estado de insatisfação a acompanhava, dela para com ela e dela para com outros.
Em outra experiência psicanalítica, o analisando avisou-me que iria se ausentar a quatro sessões. Na sessão após o retorno, ele cumprimentou-me sem me dirigir o olhar e disse: “Acho que você vai me censurar por eu ter decidido faltar e ter preferido viajar com uma moça que eu mal conhecia.”
Respondi que me parecia que ele se sentia na presença de um perseguidor. Ele disse recear que eu o julgasse um inconsequente. Com humor, respondi que me parecia não estar nada agradável para ele acreditar que era isso que eu pensava dele, mas que eu pensava ser cômodo ele achar isso de mim, me tornar essa pessoa horrível, intolerante.
Surpreso, ele respondeu: “Eu? Fazendo isso?”. Num tom afetivo, bem-humorado, informal, disse-lhe: “Você resolve, faz o que deseja. E além de não arcar com a sua escolha, nem me olha na cara quando me encontra, porque conclui que estou pensando mal de você!”.
Ele riu. Rimos juntos. Disse que eu falei de um modo sincero, simples, engraçado, verdadeiro. E lembrou de muitas situações em sua vida em que se sente perseguido por nada: “Eu mesmo faço isso comigo!”.
O analista pode acompanhar o gesto, nomear as angústias, oferecer continência ao analisando através de intervenções com humor. Isso não é o mesmo que fazer rir, reassegurar, aliviar, aconselhar, consolar, seduzir. Chamo a atenção para a expansão do continente interno, do humor respeitoso protetor, que cria a possibilidade de flexibilização psíquica, de introjeção da alteridade, de alguma elaboração do amor infantil.