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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.3 São Paulo  2024  Epub 28-Mar-2025

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n3.11 

Temáticos

Brincar com Freud1: O fort-da de Derrida

Jugando con Freud: el fort-da de Derrida

Playing with Freud: Derrida’s fort-da

Jouer avec Freud : le fort-da de Derrida

Tânia Corghi Veríssimo2 

Psicanalista pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

2Mestra e doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Pesquisadora membro do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). São Paulo


Resumo

Através do diálogo entre as leituras de Freud e Derrida, a autora pretende focalizar a brincadeira historicamente mais abordada pelos psicanalistas e pela teoria psicanalítica: o jogo do carretel, o conhecido fort-da. Derrida será tomado como autor capaz de provocar a psicanálise e os psicanalistas em sua leitura clássica da teoria freudiana, fazendo ressoar novas traduções à prática de nosso ofício. Pensaremos suas provocações como brincadeiras lançadas ao recorte teórico clássico da cena do carretel apresentado em Além do princípio do prazer. Como Freud teorizou a respeito do carretel e como nós, psicanalistas, teorizamos atualmente? Qual é nossa leitura desse brincar e como a leitura de Freud embasaria nossa prática clínica? Como Derrida, leitor questionador de padrões homogêneos de compreensão de trabalhos freudianos, o leu afinal? Em que sua tradução do fort-da infletiria sobre nossa prática? O que extrair da leitura de ambos?

Palavras-chave: fort-da; Sigmund Freud; Jacques Derrida; brincar; além do princípio do prazer

Resumen

A través del diálogo entre las lecturas de Freud y Derrida, la autora pretende focalizar el juego más históricamente abordado por los psicoanalistas y la teoría psicoanalítica: el juego del carrete, el conocido fort-da. Derrida será tomado como autor capaz de provocar al psicoanálisis y a los psicoanalistas en su lectura clásica de la teoría freudiana, haciendo resonar nuevas traducciones a la práctica de nuestro oficio. Pensaremos sus provocaciones como juegos lanzados al recorte teórico clásico de la escena del carrete presentada en Más allá del principio de placer. ¿Cómo Freud teorizó acerca del carrete y cómo nosotros, psicoanalistas, teorizamos actualmente? ¿Cuál es nuestra lectura de este juego y cómo la lectura de Freud sustentaría nuestra práctica clínica? ¿Cómo Derrida, lector cuestionador de patrones homogéneos de comprensión de los trabajos freudianos, lo leyó, al fin y al cabo? ¿En qué su traducción del fort-da influiría en nuestra práctica? ¿Qué extraer de la lectura de ambos?

Palabras clave: fort-da; Sigmund Freud; Jacques Derrida; jugar; más allá; del principio de placer

Abstract

Through the dialogue between the readings of Freud and Derrida, the author aims to focus on the most historically discussed play by psychoanalysts and psychoanalytic theory: the game of the spool, the well-known fort-da. Derrida will be taken as an author capable of provoking psychoanalysis and psychoanalysts in their classic reading of Freudian theory, resonating new translations to the practice of our profession. We will think of his provocations as plays thrown at the classic theoretical cut of the spool scene presented in Beyond the pleasure principle. How did Freud theorize about the spool and how do we, psychoanalysts, theorize today? What is our reading of this play and how would Freud’s reading support our clinical practice? How did Derrida, a questioning reader of homogeneous patterns of understanding Freudian works, read it, after all? In what way would his translation of fort-da inflect on our practice? What to extract from the reading of both?

Keywords: fort-da; Sigmund Freud; Jacques Derrida; play; beyond the pleasure principle

Résumé

A travers un dialogue entre les lectures de Freud et de Derrida, l’objectif de l’autrice est de se concentrer sur le jeu historiquement le plus abordé par les psychanalystes et la théorie psychanalytique : le jeu de la bobine, connu sous le nom de fort-da. Derrida sera considéré comme un auteur capable de provoquer la psychanalyse et les psychanalystes dans leur lecture classique de la théorie freudienne, en rendant possible de nouvelles traductions de la pratique de notre métier. Nous considérerons ses provocations comme un exercice ludique lancé contre la lecture théorique classique de la scène de la bobine présentée dans Au-delà du principe de plaisir. Comment Freud a-t-il théorisé la bobine et comment nous, psychanalystes, théorisons-nous aujourd’hui ? Quelle est notre lecture de ce jeu et comment la lecture de Freud sous-tend notre pratique clinique ? Comment Derrida, un lecteur qui remet en question les schémas homogènes de compréhension des œuvres freudiennes, l’a-t-il lue ? Comment sa traduction du fort-da influence-t-elle notre pratique ? Que pouvons-nous retirer de leur lecture ?

Mots-clés: fort-da; Sigmund Freud; Jacques Derrida; jeu; au-delà; du principe de plaisir

Quebrar o brinquedo é mais divertido.

As peças são outros jogos:

construiremos outro segredo. Os cacos são outros reais antes ocultos pela forma e o jogo estraçalhado se multiplica ao infinito

e é mais real que a integridade: mais lúcido.

Mundos frágeis adquiridos no despedaçamento de um só.

E o saber do real múltiplo e o sabor dos reais possíveis e o livre jogo instituído contra a limitação das coisas contra a forma anterior do espelho …

Quebrar o brinquedo ainda é mais brincar.

ORIDES FONTELA, “Ludismo”

A brincadeira/jogo com palavras pode ser um importante ponto de partida quando se trata da relação do psicanalista com sua clínica. Em princípio, entendemos esse brincar/jogar como recurso à escuta da polissemia das palavras e à inventividade de caminhos associativos que abrem perspectivas como as dos versos na epígrafe, do despedaçamento de um só, do saber do real múltiplo e dos reais possíveis, da colheita de cacos que são outros reais antes ocultos por formas e formatações: quebrar o brinquedo é mais divertido.

No entanto, é sabido que a perspectiva anunciada não garante seu acontecimento, tampouco a diversão de quem se dispõe a falar(-se) e escutar(-se) no contexto de uma análise, que, admitamos, pode muito bem dar-se avesso à maleabilidade, resistente à movimentação, aferrado à limitação e a um espelho que só é capaz de devolver fixidez e mortificação: e se o jogo for aquele de cartas marcadas?

Recordemos que Freud, em “Construções em análise”, já havia exposto e rebatido a crítica de um cientista que incidira, justamente, sobre a flexibilidade e efetividade da técnica analítica:

Disse que, ao fornecermos interpretações a um paciente, tratamo-lo segundo o famoso princípio do “Heads I win, tails you lose”. Isto equivale a dizer que, se o paciente concorda conosco, então a interpretação está certa, mas, se nos contradiz, isso constitui apenas sinal de sua resistência, o que novamente demonstra que estamos certos. Desse modo, estamos sempre com a razão contra o pobre e desamparado infeliz que estamos analisando, não importando como ele reaja ao que lhe apresentamos. (1937/1996a, p. 275)

A despeito da contra-argumentação freudiana nesse trabalho, que não abordaremos agora, a crítica tecida pelo cientista não se isenta de valor, já que tem a potência de detectar o risco de um psicanalista fincar-se no dogmatismo na relação com a técnica, fechar-se na impermeabilidade e na resistência travestidas em jogo de poder no contexto analítico. Sobretudo, tal crítica atinge uma dimensão ética, pois denuncia o perigo de prender-se ao gozo na assimetria, ou seja, da captura por um desenho hierárquico impeditivo de movimentação, que restringe a multiplicidade transferencial a apenas dois possíveis e cristalizados lugares: ao analista, o do ganhador dono do saber, e ao analisando, o do pobre desamparado infeliz (e resistente). Em função dessa paralisia, ao final, está posta uma armadilha expressa pela própria inversão: pobre desamparado e infeliz do psicanalista, que se furta a brincar em sua clínica, apto a entrar no jogo apenas para repetir exercícios de poder, exímio jogador de cartas marcadas, pronto para não jogar e para não brincar, justamente.

Nesse diapasão, interessa ao nosso recorte valermo-nos da companhia de quem, entendemos, soube brincar com Freud por meio de leituras atentas de sua obra, propondo chacoalhar cânones teóricos e vícios de tradução demarcados em muitos de seus importantes trabalhos. Jacques Derrida (1930- -2004) foi um autor que pôde jogar quebrando o brinquedo, iluminando-o em outras possibilidades de operação: rompeu com padrões homogêneos de compreensão do texto freudiano; propôs, em suas traduções, o livre jogo instituído contra a limitação das coisas, contra a forma anterior do espelho, tal como disse o poema. Não à toa, é conhecido como o “filósofo da desconstrução”, ainda que tenha recusado o título, preferindo apresentar-se como “amigo da psicanálise”, expressão que disse gostar pelo fato de circunscrever “a liberdade de uma aliança, um compromisso sem status institucional”, caracterizando o amigo como aquele que “mantém a reserva ou o recuo necessários à crítica, à discussão, ao questionamento recíproco, às vezes o mais radical” (Derrida & Roudinesco, 2001/2004, p. 200).

Para Derrida, o “amigo da psicanálise” será aquele que

zela por sua vigilância e que a exerce a uma certa distância. Sempre a ajustar, sempre a deslocar. Não pertence à corporação mas reivindica o direito, se não o dever de dizer a verdade àqueles que trabalham ou sofrem no interior do corpo da corporação. … É aquele que aprova, aquiesce, afirma a necessidade insuprimível da psicanálise, isto é, antes de tudo de seu por-vir, mas que se interessa também por seu caráter problemático, às vezes artificial, artefatual, portanto desconstrutível e perfectível, das relações entre a psicanálise e seu direito, como entre a teoria e a prática, entre a necessidade do saber e sua inscrição institucional, entre o espaço público da psicanálise e a originalidade absoluta de seu espaço “secreto”, irredutível a toda “publicidade”, para além mesmo do que se reconhece e legitima correntemente sob o conceito de “sigilo profissional”. (p. 202)

Tomar certa distância dos muros institucionais, sempre a deslocar, pode ser uma boa medida de leitura e posicionamento. O interesse pelo que soa problemático, por vezes artificial, pode bem ser uma lufada de ar em potência de novos ventos. Teremos assim um bom amigo, nos moldes derridianos, este que não é psicanalista, não se insere diretamente na clínica, mas que, para nossa interlocução com a teoria psicanalítica, adquire estatuto de privilégio no exercício de tessituras críticas.

Como diz Paulo Endo,

para a psicanálise, foi, como sabemos, um privilégio ter um interlocutor como Jacques Derrida. As muitas e diferentes provocações à psicanálise e aos psicanalistas ressoam e ressoarão durante muito tempo entre os estudiosos, leitores e psicanalistas de ofício. Pois Derrida não apenas apontou faltas, problemas e indicou caminhos à psicanálise, mas também elevou o pensamento psicanalítico a outros patamares; aqueles nos quais a clínica e a metapsicologia não se sentem confortáveis e nem seguras e, justamente por isso, tendem a não tematizar, explicitar e aprofundar os impasses inerentes ao ofício dos psicanalistas e, ao mesmo tempo, ocultos ou pouco visíveis no seio dos grupos, instituições e associações de psicanálise - aí incluídas as próprias universidades nas quais a psicanálise tornou-se conteúdo de disciplinas, estágios e eixo formativo em diversas áreas e em vários países. (2020, p. 126)

Para o psicanalista,

quando se debruçou sobre a psicanálise, o trabalho de desconstrução proposto por Derrida tanto indicou as ambições, o alcance e a potência da psicanálise quanto revelou pontos de pusilanimidade, resquícios de hesitação e dúvidas que os pioneiros, pensadores, pesquisadores e psicanalistas haviam prometido superar. (p. 126)

Se, conforme sublinhamos, Derrida apresenta essa possibilidade de provocar a psicanálise e os psicanalistas, fazendo ressoar novas traduções à teoria e à prática de nosso ofício, se foi esse o autor que pôde brincar com Freud, quebrando (desconstruindo) brinquedos de outrora - dada a amplitude das obras de ambos, bem como o longo histórico dos jogos travados entre Derrida e a teoria freudiana, interessa-nos agora examinar uma determinada brincadeira entre os autores, contextualizando-a. Pretendemos com este artigo trazer ao cerne, quiçá, o jogo historicamente mais abordado pelos analistas e pela teoria psicanalítica: o jogo do carretel, o conhecido fort-da. Também buscaremos evocar a problematização de Derrida a Além do princípio do prazer, texto a partir do qual Freud atribuiu à repetição outra função: a de obter domínio das excitações via uma compulsão à repetição, “que sobrepujava o princípio do prazer” e lhe parecia “mais originária, mais elementar e mais pulsional do que o princípio do prazer por ela deixada de lado” (1920/2020, pp. 97 e 99).

Como Freud teorizou a respeito do carretel e como nós, psicanalistas, teorizamos atualmente? Como Derrida, aqui evocado como leitor capaz de romper com padrões homogêneos de compreensão de trabalhos freudianos, o leu afinal?

Para abordar essas questões, comecemos por nossa leitura do jogo de Freud.

O fort-da de Freud

Ao expor a leitura de Freud sobre o jogo do carretel em Além do princípio do prazer, pode-se guardar a sensação de que se está apresentando algo bastante repetido pelos círculos psicanalíticos, uma vez mais. Contamos, afinal, com certa compreensão de um texto e de uma brincadeira já bastante difundida.

Resgatemos as conhecidas palavras que acompanharam o autor quando do relato da experiência do fort-da:

A criança tinha um carretel de madeira, no qual estava enrolado um fio. Nunca lhe ocorria, por exemplo, de arrastá-lo pelo chão atrás de si para então brincar de carrinho com ele, mas, em vez disso, atirava com grande destreza o carretel amarrado na linha por sobre a beirada de seu berço acortinado, de modo a que ele desaparecesse lá dentro, pronunciava seu “o-o-o-o” significativo e depois puxava o carretel pelo cordão de novo para fora da cama, mas agora saudava seu aparecimento com um alegre “da” [eis aqui, achô, chegô]. Essa era, então, a brincadeira completa, da qual, na maior parte do tempo, só nos era dado ver o primeiro ato, e este era por si só incansavelmente repetido como brincadeira, embora o prazer estivesse sem dúvida atrelado ao segundo ato. (1920/2020, pp. 77-79)

Freud utilizou esse exemplo para pensar sobre o sentidos contidos nos movimentos da tal brincadeira, dividida em dois momentos: primeiro, o desaparecimento do objeto; depois, o seu retorno para perto do corpo da criança brincante. Em seu recorte, seria essa a brincadeira completa, essa de dois tempos, encenada a partir de um enredo de grande valor afetivo, matéria-prima do jogo entoado com especial insistência: com o primeiro ato (fort), a criança realizou culturalmente uma renúncia pulsional, consentindo, sem oposição, que sua mãe fosse embora, enquanto com o segundo ato (da), representou a retorno da mãe, objeto que, até então, havia desaparecido. “Ela estava se compensando, por assim dizer, quando ela própria colocava em cena o mesmo desaparecimento e retorno utilizando os objetos ao seu alcance” (p. 79).

Ao observar o jogo, Freud também enfatizou a mudança de posição operada pela criança que sai da passividade da vivência para a atividade da brincadeira:

Nesse caso ela estava passiva, foi afetada pela vivência, e colocou-se então em um papel ativo, repetindo-a como brincadeira, embora a tal vivência tenha sido desprazerosa. … Atirar para longe o objeto de modo que ele fique desaparecido poderia ser a satisfação de um impulso de vingança contra a mãe reprimido ao longo da vida, por ela ter desaparecido de perto da criança, e teria então o seguinte significado provocador: “Pois desapareça logo, eu não preciso de você, eu mesmo te mando embora”. (p. 81)

Sabemos que a curiosidade de Freud passava pela observação de uma “ação enigmática e repetida sem cessar” (p. 75), investigada em Além do princípio do prazer, associada a um “traço daimoníaco” (p. 95). Sua investigação nesse texto, recordemos, se deu em busca do que lhe sugeria um abalo do domínio do princípio do prazer nos termos da regulação psíquica, instando-o a teorizar sobre um suposto além desse princípio através de fenômenos - em sua ótica - questionadores de uma hegemônica lógica de repetição. Por isso, voltou a atenção para reações anímicas como a neurose traumática/sonhos traumáticos, a brincadeira de crianças (fort-da) e a neurose de destino, o que o levou a elaborar a noção de compulsão à repetição.

Em sua passagem investigativa, após tratar dos sonhos traumáticos como aqueles que tiveram sua função de realização de desejo “abalada e desviada de seus propósitos” (p. 75), foi explícito ao sugerir um novo campo de observação, algo que, em suas palavras, expressaria expectativas de maior elucidação: “Faço agora a sugestão de abandonar o tema obscuro e nebuloso da neurose traumática e estudar o modo de trabalho do aparelho anímico em uma de suas atividades normais mais precoces. Refiro-me à brincadeira de crianças” (p. 75).

Com a brincadeira de crianças, Freud teria agora uma nova e boa chance de elucidar o princípio do prazer sobrepujado por um “além”? Eis a promessa. Por isso seu trabalho em torno da suspeita de algo distinto no âmbito do brincar e do prazer. A brincadeira, então, fora tomada como experiência, talvez, capaz de demonstrar com muito mais fulgor um princípio do prazer ultrapassado, sendo analisada do ponto de vista econômico a partir de uma equação intrigante, diante da qual indagou: “É impossível que a partida da mãe tenha sido agradável ou mesmo apenas indiferente para a criança. Como, então, conciliar com o princípio do prazer o fato de ela repetir como brincadeira essa experiência dolorosa para ela?” (p. 79).

No caminho do autor, vemos sua tentativa de responder a essa aparente contradição, apresentando, de início, uma hipótese que ele mesmo tratou de refutar. Primeiro, considerou querer responder que o desaparecimento encenado pela criança seria uma precondição ao reaparecimento reconfortante, concluindo que o verdadeiro propósito da brincadeira residiria nesse último (prazer atrelado ao segundo ato). Depois, compreendeu que isso seria contestável pela observação de que o primeiro ato, a partida (da mãe), havia sido encenado como brincadeira em si e, na verdade, com frequência incomparavelmente maior do que a cena inteira, que levava até o final prazeroso. Isso o conduziu ao entendimento de que a criança brincava não apenas para recobrar e fruir do conforto oferecido pelo objeto que acabava de reaparecer, mas também (e justamente) para repetir a experiência dolorosa de ter outra e outra vez o desaparecimento de seu objeto ansiado.

Perguntamos se através da exposição dessa conclusão paradoxal estaria o autor finalmente atestando o chamado “além do princípio do prazer”, título de sua obra. A elaboração freudiana, afinal, não apenas nos lança à questão como instiga o pensamento de que uma brincadeira como a do carretel, insistente e observável na repetição do desprazer, seria uma via eficiente e comprobatória do chamado “além”. A expectativa de saída da obscuridade e nebulosidade fora alcançada com a chegada do evidente jogo do carretel?

Uma conduta apressada indicaria que sim. Ao menos se equipararmos a busca da repetição desprazerosa à brusca expulsão do jogador do fort-da do reinado do princípio do prazer. No entanto, Freud pareceu não ter pressa quando se debruçou sobre os meandros desse brincar, conservando um tom de imprecisão na perscrutação das experiências de prazer-desprazer que não devemos ignorar. Desse modo, disse que a criança brincava para dar expressão a moções hostis, punha-se ativa e agressiva também para se vingar do que lhe causou sofrimento, propondo ao observador a dúvida quanto a “se a pressão para elaborar psiquicamente com algo impressionante, para se apoderar disso plenamente, pode manifestar-se de maneira primária e independentemente do princípio do prazer” (p. 83). Em seguida, formulou que, “no caso aqui discutido, uma impressão desagradável só poderia afinal ser repetida na brincadeira, porque a essa repetição estava vinculado um ganho de prazer de outra ordem, porém direto” (p. 83), sublinhando que a ab-reação a uma forte impressão, numa brincadeira, bem pode ser regida pelo desejo (de ser grande, por exemplo), mas contar com a participação do desprazer, isto é, de “um ganho de prazer de outra fonte [que] não pode deixar de ser percebido” (p. 83).

Podemos pensar que, por um lado, sustentou a dúvida sobre o domínio do princípio do prazer no psiquismo, implicando a possibilidade de uma elaboração psíquica primária e independente desse princípio, e por outro lado, expressou um apego à lógica do prazer ainda não subvertida - apego expresso pelas palavras do autor, o qual, mesmo quando supõe algo independente do princípio do prazer, dá à experiência o nome de “prazer de outra ordem” e “prazer de outra fonte”, e que mais revela uma trilha freudiana em aberto na discussão sobre o que poderia estar além de um conhecido princípio, mais convidaria a brincar com um momento metapsicológico revelador da mescla entre prazer e desprazer, a partir da qual o caráter desprazeroso reiteraria um prazer de outra ordem ou fonte, trazendo outro prazer, independente do prazer.

Todavia, também podemos dizer que Freud, mesmo em seu apego à lógica do prazer, não deixou de pressupor um(a) “outro(a)”, evocar a heterogeneidade que não se encerraria na regulação psíquica pelo prazer, invocar, portanto, a marca da diferença na economia psíquica, instalando a ideia da mescla entre um conhecido e seu outro, um hegemônico e um diferente de outra ordem e fonte, um dominante e um desconhecido, ainda assim, chamado de uma “espécie de prazer”. Nesse sentido, a posição do autor acaba por contrariar sua antiga compreensão: a de que a brincadeira do carretel, em seus dois tempos - sumir e retornar -, estaria completa, já que a ideia da mescla-imprecisão prazer-desprazer (prazer de outra ordem e fonte) não combina com uma concepção de jogo feita por etapas em horizonte de completude, tampouco confirma sua expectativa de obtenção de clareza pela observação da brincadeira de crianças.

Pensar o fort-da, portanto, faz configurar uma brincadeira que, diferente do esperado, não oferece a clareza prometida, nem definições de fronteira entre Eros e Tânatos, no escopo freudiano dualista e dicotômico das pulsões. Acompanhá-lo resulta na abertura e precipitação de questões: onde começaria/terminaria o prazer/desprazer afinal? Qual o limiar entre a repetição e o erotismo? Como localizar a linha divisória entre o sexual e a compulsão à repetição?

É interessante evocar esse olhar para a dinâmica do fort-da, uma leitura do jogo que mais culmina no terreno da dúvida, da imprecisão e da hipótese sobre a transcendência a um princípio que antes reinava em suposta universalidade no psiquismo - algo que, em certa medida, recusa a tentadora tendência de tomar a brincadeira como evidência ou via material de comprovação do “além” ou presença autoexplicativa do exercício da pulsão de morte no psiquismo via compulsão à repetição.

Compreende-se ao final que, em sua leitura da brincadeira do carretel, Freud sim margeia sobre a existência de um “prazer distinto”, ainda difícil de precisar, que seria força motriz em um jogo de insistente repetição do desprazer, mas aqui não postula algo efetivamente distinto do princípio do prazer. As palavras de Freud, por sua vez, sustentam a suspeita em torno de outra espécie de prazer, oriunda de outra fonte - que não localiza -, mas por fim reafirmam e recolocam a experiência do brincar no domínio do princípio do prazer:

Assim, ficamos convencidos de que mesmo sob o domínio do princípio de prazer existem meios e caminhos suficientes para fazer daquilo que em si é desprazeroso objeto de recordação e de elaboração anímica. Deixemos que os casos e as situações que desembocam em um ganho final de prazer sejam abordados por uma estética de orientação econômica; para os nossos propósitos, eles não servem de nada, pois pressupõem a existência e o domínio do princípio de prazer e não dão testemunhos da eficácia de tendências que estão além do princípio de prazer, isto é, de tendências que seriam mais primevas que ele e independentes dele. (p. 85)

Nesse sentido, pode-se dizer que, através do fort-da, a marcha freudiana se apresenta mais como hipótese de transcendência ao princípio do prazer, vislumbre da possibilidade de independência desse princípio, do que como comprovação de uma tese teórica ou efetivação da segunda dualidade pulsional, coroada pela noção de pulsão de morte. Mesmo adiante, recapitulemos, Freud tratou de incluir em sua trilha investigativa fenômenos clínicos como a transferência negativa e a neurose de destino, situações que fortaleceram sua hipótese de uma compulsão à repetição, tida como indício de que o princípio do prazer, quiçá, seria sobrepujado por algo ainda a especular. Assim, declarou:

Em vista dessas observações extraídas da conduta na transferência e do destino dos seres humanos, encontraremos a coragem para supor que realmente exista na vida anímica uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer. Estaremos agora inclinados a relacionar a essa compulsão os sonhos dos neuróticos acidentários e o impulso da criança para a brincadeira. … No caso da brincadeira de criança já destacamos quais outras interpretações seu surgimento admite. (p. 97)

Quais outras interpretações a brincadeira de criança admite? Talvez o mais interessante, neste momento, seja valorizar as dimensões da dúvida e da imprecisão já destacadas nesta discussão, para então fruir de outras interpretações dadas à(s) brincadeira(s) e não cair na armadilha de jogar cartas marcadas. Propomos agora ampliar o espaço da leitura, dialogando tanto com as que pudemos acessar pelas palavras de Freud - e com as quais pudemos até aqui brincar - quanto com as novas possibilidades interpretativas, indiciosas da incompletude, do inacabamento e de uma brincadeira com a teoria psicanalítica aberta a novos movimentos.

Faremos isso na companhia de Derrida.

O fort-da de Derrida

Conforme já dissemos, a leitura de Derrida se deu “contra a forma anterior do espelho”, pela escolha de “quebrar o brinquedo”, ou seja, como denúncia de uma leitura crivada de Freud a respeito do fort-da. Uma quebra necessária, pois, segundo o autor, em vez do tal jogo ter apresentado o chamado “além”, enunciado desde o título da obra, ao final, soube, até então, apenas ratificar a soberania do princípio do prazer.

Consideremos que, para embasar sua leitura, Derrida incluiu elementos na cena que relativizaram a centralidade dada ao carretel, pensando-o como objeto com lugar suplementar na dinâmica do fort-da, partindo da crítica à longa dedicação de Freud ao brinquedo, algo que entendeu produzir um relato “fragmentário, sem conclusão, seletivo no que isso dá a ler”, ativamente delimitado quando “não quis abarcar a totalidade dos fenômenos. E só reteve os traços pertinentes do ponto de vista econômico” (Derrida, 1980/2007, pp. 333-334). Isso resultou em

um papel mais ou menos secreto na fascinação exercida no leitor por essa historinha do carretel, por esse relato que poderíamos considerar como banal, pobre, truncado, contado de passagem e sem o mínimo alcance, se acreditássemos em seu narrador, para o debate em curso. (p. 338)

Se pensarmos na historieta montada por Freud em torno da brincadeira da criança com o carretel, encontraremos, de fato, o que há de mais pregnante nas leituras psicanalíticas clássicas e que, de tão repetido, pode levar a uma leitura menos complexa do que estaria em jogo, a uma ideia de brincadeira completa. Um menino de 3 anos que arremessa um carretel e se regozija com a repetição, tanto quando afasta como quando aproxima o objeto de si. Algo que precipita perguntas sobre a natureza da repetição do gesto de afastamento do objeto - associada ao desprazer - e que, conforme dito, poderia ser facilmente tomado como cena demonstrativa do “além” do princípio do prazer, ou seja, da compulsão à repetição e da pulsão de morte em ação.

Derrida assinala que o capítulo 2, de fato, seria “um dos mais famosos do Além…, … notadamente por causa da história do carretel e do fort-da, … momento no qual se acredita poder relacionar essa história à exibição, e mesmo à demonstração, da dita pulsão de morte” (p. 328), e suspeita dessa imediata demonstração. Por isso, alargou a moldura e introduziu um novo recorte no relato freudiano, ocupando-se de uma parte da história precedente ao carretel propriamente dito:

Esse bom menininho manifestava agora o hábito algumas vezes perturbador de jogar para longe dele, para um canto, sob a cama etc., todos os objetozinhos que ele pegava, de maneira que o Zusammensuchen [procurar para apanhá-los, juntá-los] de seu arsenal de brincar (Spielzeuges) nunca era um trabalho fácil. (Freud, 1920, citado por Derrida, 1980/2007, p. 344)

Em seguida, recortou:

O trabalho era de seus pais, mas também da criança que espera o trabalho dos pais. E ele consiste em reunir, em buscar para juntar, a juntar para devolver. É isso que o avô chama trabalho, um trabalho quase sempre difícil. Em compensação, ele chamará de brincadeira a dispersão que manda passear bem longe, a operação de afastamento - o arsenal de brincar, a soma de objetos manipulados. O conjunto do processo é ele mesmo dividido, existe uma divisão que não é a divisão do trabalho, mas a divisão entre a brincadeira e o trabalho: a criança brinca de afastar seus “brinquedos”, os pais trabalham para juntá-los, e isso nem sempre é fácil. Como se nessa fase os pais não brincassem e a criança não trabalhasse. Ela tem uma boa desculpa para isso. Quem sonharia em acusá-la por isso? Mas o trabalho nem sempre é fácil, e nós suspiramos um pouco. Por que ela dispersa, por que ela afasta tudo o que ela pega, e quem e o quê? (p. 344)

De início, o recorte em questão nos lança em um cenário que não é abordado com frequência pela literatura psicanalítica. Temos uma interpretação que designa a brincadeira a um coletivo, a um conjunto de brinquedos, à unidade de uma multiplicidade dispersável que o trabalho dos pais deve justamente reunir. Uma unidade coletiva seria o aparelho de um jogo que pode se deslocar, mudar de lugar e se despedaçar ou dispersar, estando nesses movimentos de reunir-dispersar, ligar-desligar, juntar-separar, ir-retornar, aparecer-desaparecer, quebrar-reparar, viver-morrer, adormecer-despertar, esconder-achar etc. o foco do autor.

Sua leitura, à primeira vista, produz efeitos de ampliação à observação psicanalítica convencional, cujo enfoque do brincar infantil reduz-se, frequentemente, à experiência da criança com seu carretel. Nota-se que, não à toa, em seu recorte o objeto carretel ainda não comparece, dando vez a um cenário mais complexo e interpessoal, formado por outros objetos, outros personagens, crianças e adultos, outros gestos como o brincar e o trabalhar, e outras ações/injunções - para além do desaparecer e retornar do dual fort-da -, como “reunir”, “buscar para juntar”, “juntar para devolver”, “trabalhar para juntá-los”, “juntar para dispersá-los”.

Ao focalizar essa cena, Derrida enriquece o debate, provocando o pensamento sobre a cena analítica a partir de outros vetores, de um embaralho de cartas profícuo ao trabalho e à escuta da coexistência da dimensão adulta e infantil em análise, da atemporalidade infantil desde a qual se pode trabalhar e brincar, das palavras e representações desde as quais se pode juntar e dispersar em transferência. Dos objetozinhos pegados que se movimentam livremente no conjunto desse processo, cabe uma nova gama de gestos em espaço de liberdade, que talvez só o analista autorizado a brincar será capaz de alcançar.

Através do fort-da de Derrida, isto é, de seu recorte heterodoxo da cena da brincadeira, retrata-se que “o trabalho era de seus pais, mas também da criança que espera o trabalho dos pais”, de modo que um interjogo aconteceria potencialmente. Permite-se, assim, vislumbrar um cenário a partir do qual, diferente do que assinalamos com frequência em Freud, caberia ao analista posicionar-se não como mero observador - tal como Freud, em sua distância, ao ver o neto jogar o carretel - mas como objeto móvel e mobilizado a serviço da encenação fantasmática do analisando, como presença participante, corpo presente e implicação, condição para o estabelecimento da transferência, do trabalho-brincadeira que dali pode advir.

Temos, nesse desenho, a presença de adultos e crianças em um processo que compreende o brincar-trabalhar, conjuntamente. E ainda que, na ótica do autor, o brincar consista no conjunto do processo dividido entre brincadeira e trabalho - a criança brinca de afastar seus “brinquedos”, e os pais “trabalham” para juntá-los -, importa destacar sua pontuação de que “isso nem sempre é fácil”.

Não parece fácil (e teria que ser?) dividir esses campos, estabelecendo uma dicotomia que precisa ser questionada em seus efeitos. Questões acerca do porquê de certos gestos da criança, agora traduzidos por outros verbos (reunir-dispersar) e por um arsenal composto pela soma e diversidade de objetos manipulados (e não por um só carretel), instalam outras compreensões a respeito da infinidade de possibilidades de relações objetais estabelecidas e suas repetições encenadas transferencialmente. A partir de então, a cena do brincar em análise torna-se outra, sendo a pergunta de Derrida - “Por que ela dispersa, por que ela afasta tudo o que ela pega, e quem e o quê?”- algo que teria, por si, valor de questionamento à dicotomia adulto-criança, trabalhar-brincar. Concebem-se adultos que brincam, crianças que trabalham, analistas que trabalham e brincam, analisandos que brincam e trabalham. Concebese também que o que se dispersa pode bem se perder, talvez não retornar, transformar-se em outro objeto, ressignificar-se em processo de elaboração.

Lembremos da conhecida equiparação do escritor criativo que devaneia e da criança que brinca. Segundo Freud, “a ênfase colocada nas lembranças infantis da vida do escritor - ênfase talvez desconcertante - deriva-se basicamente da suposição de que a obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou o substituto, do que foi o brincar infantil” (1908/1996b, p. 141). Pensemos na figura do psicanalista que escreve, mas não cria e não brinca em sua clínica, aliada à compreensão de que a autorização a brincar passa por estabelecer novos vínculos com a teoria freudiana.

Ao oferecer outra tradução para o brincar, Derrida recupera na leitura de Freud a asseveração de que está no re-torno, ou seja, na segunda fase da brincadeira, a experiência de maior quantidade de prazer, para afirmar que está no re-vir o lugar que orienta tudo, e sem o qual nada viria. Utiliza esse dado para confirmar que, com o cenário do fort-da, o princípio do prazer segue dominante:

O que o avô (-pai) especulador chama de brincadeira completa seria, portanto, a brincadeira em suas duas fases: desaparecimento/retorno, ausência/re-presentação. O que liga o jogo a ele mesmo é o re- do retorno, a volta a mais da repetição e do re-aparecimento. … O revir ordena toda a tautologia. Isso permite antecipar que essa operação, em seu conjunto, chamado completo, passará inteiramente sobre a autoridade do pp [princípio do prazer]. Longe de ser desmascarado pela repetição do parecer, da presença, da representação, de uma repetição dominada, como veremos, verificando e confirmando a dominação na qual ela consiste. … A dominação do pp não seria outra senão a dominação em geral: não existe Herrchaft do pp, existe a Herrchaft que só se distancia dela mesma para se reapropriar. (1980/2007, p. 352)

A brincadeira não trata mais daquele objeto - do carretel ou de qualquer outro e do que ele supriria -, mas do re- (revir, retorno, reaparecimento), que articula a dinâmica de uma brincadeira completa para “que o re-revir revenha, que ele não seja somente de um objeto, mas de si mesmo, ou que ele seja seu próprio objeto e que o que faz revir revenha-se a si mesmo” (p. 353). Na fluência entre o ir-vir-revir proposto, os objetos podem se substituir até desnudar a própria estrutura substitutiva, em que “não se trata mais de distanciamento do distante e da proximidade do próximo, da ausência do ausente ou da presença do presente” (p. 357).

Nessa toada performativa, brincar seria ver no “além” um caminho não elucidado, pensar o revir e a presença-ausência do prazer-desprazer numa mesma cena, a mescla e imprecisão - outrora evocada por Freud - a partir de um cenário mais amplo e mais enigmático, composto por objetos erráticos que dispersam e que precisam de um outro para que dali algo se rearranje e alguma coesão seja, então, possível.

É isso o que Derrida tenta demonstrar que Freud, embora capturado pela necessidade de fazer oposições entre princípios e pulsões, aventando um “além” não sexual e isolando a morte em oposição à vida, em seu dogma dualista, também diz. Repara que ele procura fazer valer uma lógica da diferenciação e até reconhecer o desprazer e o desagradável associados ao afastamento do objeto como uma brincadeira independente, parte de outra lógica, mas de novo não renuncia facilmente ao primado do princípio do prazer. Freud termina por argumentar que haveria algo na assunção ativa da criança de uma situação de passividade (não posso nada contra o afastamento de minha mãe), o que se ligaria a uma satisfação/prazer de uma “pulsão de dominação”. Também postula haver um prazer na criança quando tenta fazer desaparecer o objeto, ou seja, trata do princípio do prazer como algo que funcionaria negativamente, transformando o reenvio que afasta o objeto em satisfatório em função de um interesse secundário em seu desaparecimento.

E se a compulsão à repetição mais expuser à não clareza vivida no tráfego entre os confins da experiência de prazer-desprazer? E se a brincadeira for algo que não se completa, um revir aberto ao porvir em um processo de análise terminável-interminável? E se a compulsão à repetição e o erotismo forem domínios mais íntimos do que se costuma supor?

Derrida não é psicanalista, mas como “amigo da psicanálise” nos provoca a considerar a obra Além do princípio do prazer de uma perspectiva outra: para ele, há um princípio do prazer que nunca abandona de fato a cena psíquica, mesmo quando Freud concebe a compulsão à repetição; há um “além” que não se apresenta indubitável, demarcado, ainda que haja uma repetição compulsiva na direção do desprazer. Sua interpretação ousa duvidar de formulações certeiras, como a de que tal compulsão observada sobrepujaria o princípio do prazer, propondo pensar o paradoxo do fort-da de um lugar não resolutivo quanto a um princípio do prazer fora de combate.

Por isso, comparamos a relação do autor com a teoria freudiana ao movimento de desconstrução de um brinquedo há tempos jogado de uma mesma maneira. Igualmente compreendemos suas contribuições no destaque dado a outra cena do fort-da: propõe novas cartas no jogo, quebra o espelho, a tal fascinação pelo mesmo, o mesmo carretel. Nos convida assim a trabalhar-brincar com a complexidade da teoria freudiana, nos devolve a uma obscuridade rejeitada por Freud, mas não superada e bem-vinda, sem deixar de comungar com as palavras já oferecidas pelo pai da psicanálise: “Reunir seus brinquedos com frequência não era nenhuma tarefa fácil” (1920/2020, p. 77); “O trabalho nem sempre é fácil, e nós suspiramos um pouco” (Derrida, 1980/2007, p. 334).

1Artigo baseado em tese de doutorado em desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo, realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

Referências

Derrida, J. (2007). Especular sobre Freud. In J. Derrida, Cartão-postal: de Sócrates a Freud e além (A. V. Lessa & S. Perelson, Trads., pp. 283-456). Civilização Brasileira. (Trabalho original publicado em 1980) [ Links ]

Derrida, J. & Roudinesco, E. (2004). Elogio da psicanálise. In J. Derrida & E. Roudinesco, De que amanhã: diálogo (A. Telles, Trad., pp. 199-234). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 2001) [ Links ]

Endo, P. (2020). Jacques Derrida e a psicanálise: provocar, convocar, evocar e (r)existir. Alea: Estudos Neolatinos, 3(22), 125-135. https://tinyurl.com/232fpkrzLinks ]

Freud, S. (1996a). Construções em análise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 275-287). Imago. (Trabalho original publicado em 1937) [ Links ]

Freud, S. (1996b). Escritores criativos e devaneios. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 9, pp. 135-143). Imago. (Trabalho original publicado em 1908) [ Links ]

Freud, S. (2020). Além do princípio de prazer (M. R. S. Moraes & P. H. Tavares, Trads). Autêntica. (Trabalho original publicado em 1920) [ Links ]

Recebido: 20 de Setembro de 2024; Aceito: 22 de Outubro de 2024

Tânia Corghi Veríssimo tan.verissimo@gmail.com

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