O mundo tem se tornado polarizado, pouco reflexivo, à custa de uma exploração maciça das imagens de conteúdo impressivo, deslocadas, associadas a pulsões cujo intento é imprimir uma força expressiva de desejos de controle e manipulação, visando a realização de desejos parciais, visto que a serviço de agentes que só pensam em seu narcísico bem próprio e realização imediata.
É curioso o fato de essa descrição exprimir uma constatação muito evidente a vários agentes que propõem interpretação aos fenômenos observáveis, mas que, ao mesmo tempo, apontam para algo com que os psicanalistas se acostumaram: a chamada descrição feita por Freud de como os sonhos são formados.
O deslizamento e o agrupamento de representações que se complementam interrogam se a humanidade está realizando seus sonhos.
Tais sonhos apresentam a realização de um prazer perverso, lá onde digamos um primeiro Freud dizia estar a libido sexual, e no lugar onde um segundo Freud (pós-guerra) também situava uma Todestrieb.
Assim, pode-se observar que a reflexão psicanalítica viva encontra lugar na contemporaneidade.
Esses sonhos realizam desejos mais relacionados a um prazer pela submissão de grande número de humanos à proposta de uma minoria que se apresenta como redentora e potente o suficiente de criar o paraíso na Terra.
Tais reflexões tiveram como estímulo o livro Morte e vida na política: filosofia e psicanálise, composto de artigos de colegas psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, e organizado pela colega e psicanalista Jassanan Amoroso Dias Pastore, a mesma que o apresenta após um prefácio de Marcio de Freitas Giovannetti, ambos articulando contribuições de Freud e Giorgio Agamben, filósofo italiano contemporâneo.
Trata-se de um grupo de colegas que se dedica há muitos anos a um estudo basicamente movido pela insatisfação e curiosidade. Colegas que se propõem uma tarefa a partir da constatação da necessidade de ampliar horizontes de reflexão e não se contentar com um circuito curto e limitado de explicações, ainda que referendado por um saber estabelecido, muitas vezes utilizado para soldar entre si pretensas verdades.
A constatação de que o que viemos a aprender necessita diálogos e articulações com as contribuições que vêm do campo da filosofia, pedindo efetiva ajuda de quem transita por esse campo do saber e se dispõe a trazer-nos luzes e desafios.
O livro se inicia e termina com artigos de Oswaldo Giacoia Junior. A força dos textos desse filósofo - com trânsito expandido pela obra freudiana e o universo da filosofia em língua alemã - entrelaça ideias de Freud e de Nietzsche, relacionando supereu, sentimento de culpa (Schuld) e violência no corpo social e no corpo dos indivíduos com a sombra da religião, as interdições e a violência própria da repressão em suas múltiplas vertentes.
Na orquestração das paixões e pulsões, tendente está o humano ao derramamento de sangue.
Os artigos de Luís Carlos Menezes tecem considerações sobre como o ideal do eu - que, em contexto civilizatório e integrativo, tem a função de referência na expansão do eu -, em caminho oposto à elaboração analítica, sobretudo nas sociedades cacofônicas de massa, conduz ao totalitarismo nas distintas formas que a história recente ilustrou e que Hannah Arendt desenvolveu em As origens do totalitarismo.
Jassanan Amoroso Dias Pastore parte da indagação sobre como a psicanálise em sua experiência de escuta de indivíduos pode se ocupar da política. Assinala, entre as obras de Freud que abordam a cultura, sobretudo Totem e tabu, na qual o autor apresenta a base dos grupamentos humanos, assentada sobre o pacto dos irmãos na destituição do domínio do pai primevo e seu assassinato, permanecendo a marca desse fato na sua substituição pelo animal totêmico, símbolo da horda, e na interdição do incesto.
Camila Salles Gonçalves vem em complementaridade apontar o lugar do fantasma como formulação no diálogo entre Agamben e Freud, demonstrando como o que na aparência é impalpável dá sentido a um amplo campo de determinações, ressaltando a potência das formulações psicanalíticas e - tal qual Marilsa Taffarel - discutindo a potência do ato ou as ocasiões em que este está destituído de sentido, tomando por base proposições do saudoso Fabio Herrmann.
Outros dois artigos, em seu propor aparentemente pouco pretensiosos, indicam teor imprescindível ao campo psicanalítico enquanto contribuição à cultura. Waldo Hoffmann ilustra, no que ele apresenta como artigo opinativo, uma crítica perspicaz ao descaminho de uma pretensa ciência dura e logaritmizada, por meio de um amplo repertório pessoal, armazenado por andanças e leituras significativas, repertório esse que funciona como uma densa fonte na qual o psicanalista colhe uma intuição que dá sentido ao momento e ao sofrer. Já a contribuição de Alan Victor Meyer é a superação de um rechaço através da capacidade de perdoar o imperdoável, recuperar Heidegger e dar-lhe uma vivacidade através do fluir poético.
Esta resenha se encerra apontando temas a potenciais leitores, entre muitos outros que só o acompanhar de suas contribuições poderão trazer. Os psicanalistas têm muito a ganhar fazendo-se de peripatéticos contemporâneos. A filosofia, por sua vez, pode ser fertilizada pela experiência clínica de se colocar diante do sofrer humano, em suas múltiplas facetas, vindas da experiência clínica dos psicanalistas, seja em seu gabinete, seja a partir das suas vivências nas inúmeras instituições onde atuam para além dos seus consultórios.