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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.24 Canoas dez. 2006
ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO
Depressão numa contextualização contemporânea
Depression in the contemporary context
Fernanda Cavalcante Esteves1 ; Alda Luiza Galvan2
ULBRA – Manaus
RESUMO
O presente trabalho propõe um estudo das alterações afetivas levando em consideração diferentes concepções e conceitos a fim de analisar as manifestações sintomatológicas atuais, bem como descrever sua psicodinâmica, e desenvolver um estudo tendo como referencial o que foi dito no passado sobre Depressão e suas manifestações atuais. O trabalho é do tipo bibliográfico e a metodologia utilizada é análise de conteúdo. Entende-se que as manifestações sintomáticas da depressão contemporânea são mais uma expressão de um narcisismo ferido do que expressão de uma estrutura propriamente depressiva.
Palavras-chave: Depressão, Contemporaneidade, Narcisismo.
ABSTRACT
This work propose a study of the affective alterations based on different conceptions and concepts to analyze the current symptoms manifestations, describing its psycodinamics and developing a study having as support all the historic and current concepts of the Depression. This work has a bibliographical type and its methodology is based on analysis of contents. We argue that the contemporary symptomatic manifestations of the depression are more an expression of a wounded narcissism than an expression of a depressive structure.
Keywords: Depression, Contemporary, Narcissism.
Introdução
A depressão é a alteração afetiva mais estudada e falada na atualidade. Classificada como um transtorno de humor, ela vem reger as atitudes dos sujeitos modificando a percepção de si mesmos, passando a enxergar suas problemáticas como grandes catástrofes. A percepção da realidade hoje tem por base as primeiras relações objetais, as quais funcionam como protótipo, ou modelo para todas as relações posteriores. Tratada como a doença da sociedade moderna, a depressão tem características que podem traduzir uma patologia grave ou ser apenas mais um sintoma do sujeito diante de uma situação real de vida, ou seja, suas características podem determinar uma melancolia em si ou ser apenas um sintoma constituinte de uma outra patologia.
A depressão é conhecida pelos sintomas descritos como apatia, irritabilidade, perda de interesse, tristeza, atraso motor ou agitação, idéias agressivas, desolação e múltiplas queixas somáticas (insônia, fadiga, anorexia). Seu diagnóstico é facilitado pela presença dos sintomas e por um bom conhecimento teórico. Porém, sua dinâmica, suas origens, suas relações objetais e suas concepções ainda podem levantar questionamentos e levar a interpretações equivocadas prejudicando um possível tratamento.
Este trabalho desenvolveu-se na tentativa de responder ao seguinte questionamento: as manifestações sintomáticas da depressão hoje são expressões de narcisismo ferido ou de estruturas propriamente depressivas? Esta problemática se justifica na medida em que se busca saber mais sobre as seguintes questões: de que fatores decorrem a depressão? Como podem ser significadas as manifestações depressivas contemporâneas? A que estruturas correspondem? Que relação se estabelece entre o sintoma e a dinâmica da personalidade?
Tanto na antiguidade quanto no mundo moderno apresentam-se grandes dificuldades sociais e econômicas que atingem os sujeitos de bom poder aquisitivo, bem como os que se situam em ambiente menos privilegiado. A população em geral se vê frente a perdas de limites no que se refere à obtenção de objetos com a finalidade de satisfazer necessidades que promovem o bem estar, que inclui aspectos físicos e emocionais. Neste ensejo estabelecem-se relações que levam em conta, acima de tudo, fatores relacionados à auto-estima e ao narcisismo, que nem sempre são conquistados. Diante da impossibilidade de gratificação destas demandas desencadeiam-se frustrações uma vez que os objetos tão almejados e procurados não satisfazem. Conseqüentemente, surge sofrimento que se manifesta nas diversas condutas do cotidiano, e no afã sempre renovado de novos suprimentos.
Alterações afetivas: conceituação e panorama histórico
A afetividade é o estado de ânimo ou humor que traduz os sentimentos e as emoções determinando as atitudes gerais de uma pessoa diante de qualquer experiência vivencial, modificando a maneira de pensar e agir. Assim, o humor será regido pelas percepções modificadas decorrentes do afeto alterado (Ballone, 2003).
A euforia (ou hipertimia), a elação, a exaltação, o êxtase, a depressão (ou hipotimia), a angústia são estados afetivos que Kolb (1977) e Ballone (2003) descrevem como alterados. Na moderna classificação das psicopatologias pode-se encontrar a descrição destes afetos no campo dos transtornos de humor tanto no CID-10 (Código Internacional de Doenças Volume 10) e no DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 2002). A descrição feita nestas duas obras revela que existem dois pólos das alterações afetivas cujas variantes são também classificadas. Esses pólos são os estados depressivos e os estados maníacos, que na linguagem de Ballone (2003), os encontramos com a denominação de hipotimia e hipertimia. Estas mesmas categorias são também citadas por Freud (1917) em seu artigo "Luto e Melancolia", porém, a alteração afetiva mais comum encontrada na literatura a respeito dos transtornos de humor é a depressão.
Até aqui temos nos referido às alterações afetivas de forma mais ampla. A partir de agora enfocaremos a depressão enquanto manifestação sintomática, e sua crescente diferenciação da melancolia. É possível encontrar registros da depressão desde a antiguidade, por exemplo: no século IX a. C, o I Livro de Samuel no Antigo Testamento faz referências ao rei Saul; os escritos de Homero (século VIII) referem-se à história do Suicídio de Ájax na obra Ilíada (Finazzi, 2003; Kaplan, 2002). Estas histórias apresentam personagens atormentados por alguns períodos, demonstrando fortes sentimentos de fraqueza e culpa e que se conduzem para desfechos fatais.
No século VI a. C surge a primeira classificação dos distúrbios mentais. Fala-se pela primeira vez em melancolia e mania (Kolb, 1977). Nesta mesma época, Hipócrates, segundo Holmes (2001), descreve que o comportamento seria governado por quatro níveis relativos de humores (líquidos): bile negra, bile amarela, fleuma e sangue, e que a melancolia seria uma intoxicação do cérebro pela bile negra (mela – negro e cholis – bile). Na Idade Média a melancolia passa a ser vista como castigo de Deus e conseqüência do sentimento de culpa (Finazzi, 2003). No final do século XVIII a melancolia é traduzida como “o grande sintoma do tédio destilado pela velha sociedade” (Roudinesco, 1997, p. 506). A partir do século XIX a melancolia é instaurada como verdadeira doença mental.
Freud, em 1917, publica “Luto e Melancolia” conceituando a melancolia como forma patológica do luto. No mesmo século XX, a depressão é classificada como transtorno afetivo levando em conta seus aspectos neuroquímicos, psicossociais e genéticos (Stone, 1999). Karl Abraham foi um dos estudiosos que publicou diversos artigos sobre a então chamada psicose maníaco-depressiva, seus primeiros trabalhos marcaram o início da escola kleiniana acentuando “a problemática da perda do objeto e da posição depressiva inscrita no âmago da realidade psíquica” (Roudinesco, 1997, p. 507). No final do século XX, a depressão passa a ser considerada como forma atenuada da melancolia a qual domina a subjetividade contemporânea (Roudinesco, 2000).
Psicodinâmica da depressão
A depressão está ligada à estrutura melancólica, a qual é baseada nas regressões e fixações da segunda subfase oral (Bergeret, 1998). A fixação é pré-genital e se manifesta na tendência a reagir às frustrações com violência de um lado, e do outro, pela dependência oral-receptiva levando os sujeitos a obter o que buscam por apropriação ou submissão (Fenichel, 2000).
O modo de relação objetal do depressivo caracteriza-se por fortes aspectos narcísicos (Fenichel, 2000). Desta forma, a relação que estabelece com o objeto é traduzida pela forma precoce de amor, onde não há uma diferenciação entre o sujeito e o objeto, dado que mecanismo utilizado é a identificação (Garma, 1984). No ego existem objetos bons internalizados, mas incapazes de protegê-los do id e dos objetos persecutórios também internalizados (Klein, 1935). A ambivalência está presente, e esta determina a agressividade para com o objeto através da introjeção do mesmo, de forma sádica com o intuito de conservá-lo e destruí-lo (Fenichel, 2000).
Falar de relações objetais é falar sobre as primeiras internalizações do sujeito, os primeiros vínculos formados, as primeiras frustrações e gratificações que acontecem na fase oral – ponto de fixação da estrutura psicodinâmica da depressão. Segundo M. Klein, a oralidade é uma fase voltada para o alimento, e é através dele que o bebê projeta e introjeta conteúdos bons ou ruins. Baseado nas gratificações ou frustrações, e no modo das relações estabelecidas com o seio externo, provedor do alimento é que se constrói a representação das demais relações objetais, ou seja, das possibilidades de sentir-se feliz e gratificado (saciado) ou infeliz e frustrado (com fome).
Os mecanismos de defesa mais significativos são: a regressão – própria da oralidade da depressão, com manifestações do tipo narcísico, uma vez que regride a atividades erótico-orais da infância (Fenichel, 2000); a introjeção – através da qual o objeto é internalizado, com a finalidade de atormentar a si mesmo e ao objeto, simultaneamente, com o objetivo de puni-lo (Garma, 1984). A magia da introjeção possibilita a anulação da perda do objeto, ao tornar-se companheiro daquele que se perdeu (Fenichel, 2000).
As defesas maníacas tais como a onipotência, negação e idealização, estão intimamente ligadas à ambivalência, onde as ansiedades depressivas, embora escamoteadas, fazem com que o ego crie fantasias onipotentes e violentas com o propósito de controlar os objetos “maus” e perigosos internalizados (Klein, 1940).
O ego do depressivo é desprovido de valor, repreende-se esperando ser expulso e punido (Gabbard, 1998). Seu superego é sádico, atacando o ego e promovendo o sentimento de culpa, já que o trata da mesma maneira que gostaria que tratasse o objeto perdido (Garma, 1984). Este modo de relação objetal do depressivo, narcísico, com superego severo revela as demandas deste sujeito. Um sujeito que quer, que necessita, que exige gratificações pelas constantes frustrações que sofre. As experiências recorrentes de frustração, segundo M. Klein (1952), são estímulos poderosos para impulsos destrutivos. Por isso os depressivos têm pensamentos de morte, pensamentos pessimistas têm baixa auto-estima, autodepreciação, auto-acusação, irritabilidade e intolerância. A frustração é que dá origem a esses maus sentimentos, onde se perde o sentido da existência. Com a internalização do objeto que frustra, o mesmo passa a ser um objeto persecutório, não podendo livrar-se dele. Desta forma, o sujeito tenta aniquilá-lo, controlando-o de forma onipotente através da autodestruição como se punisse o objeto persecutório internalizado (Garma, 1984).
Depressão na contemporaneidade
O sofrimento psíquico manifesta-se sob forma de depressão, tristeza e apatia que atingem o corpo e a alma Roudinesco (2000). Ele é decorrente de qualquer estado que desorganize o pensamento, inclusive a perda, segundo Bowlby (1993).
Porém, não somente as experiências internas são responsáveis pelo sofrimento e pela dor do depressivo. Outros fatores agregam sofrimento psíquico alterando a afetividade e a percepção da realidade traduzida pela depressão ou euforia ocasionando os chamados Transtornos de Humor. Várias justificativas foram levantadas para explicar a ocorrência dos mesmos, tais como: fatores relacionados à magia, através da qual as alterações de humor são atribuídas à ação maléfica de espíritos; à religiosidade, onde Deus, independente da forma de manifestação ou instituição religiosa, seria o responsável pelo que acontece com o sujeito; explicações orgânicas, as quais datam desde Hipócrates, conforme já referido neste trabalho, e que também se deve considerar a tendência para buscar soluções através do médico e da medicação; e ao tédio, ou seja, ao que poderíamos hoje denominar como falta de sentido, angústia, vazio, insegurança e uma série de outras manifestações que revelam a sensação de insuficiência vividas, às quais o sujeito sucumbe, tal como nas explicações anteriores, onde revela-se a impotência, a passividade e a dependência do outro para enfrentar ou superar tais estados.
Os psicanalistas tendem a entender o fenômeno depressivo chamando-o de psicose maníaco-depressiva, trazendo à tona a chamada melancolia, nomenclatura usada por Freud em seu artigo “Luto e Melancolia” de 1917. Neste, ele descreve que:
Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. (Freud, 1917, p. 276)
Tais traços alternam-se em alguns casos com a mania cuja caracterização do quadro é a fuga desse sofrimento. M. Klein (1940), em “O luto e suas relações com os estados Maníaco-depressivos”, propõe que as defesas maníacas vêm controlar ou manter em animação suspensa os objetos causadores de sofrimento.
Atualmente a classificação do DSM-IV e o CID-10 apóiam o estabelecimento de um diagnóstico a partir de critérios que levam em consideração as manifestações sintomáticas dos quadros. Porém, a proposta destes Manuais Diagnósticos impõe ao profissional duas dificuldades. Primeiro: a psicologia e a psicanálise não restringem o diagnóstico à classificação das manifestações sintomáticas. Da utilização da proposta dos manuais decorrem lacunas para se fechar diagnósticos. Segundo: não há como avaliar o sujeito sem se levar em conta a subjetividade. Kristeva (1996) apud Maciel (2002) alerta para a impossibilidade de se estabelecer diagnósticos totalizantes quando se levam em consideração os processos de subjetivação, e neste caso as subjetividades contemporâneas.
Segundo Camon (2003), o sujeito em si é constituído pela subjetividade, ou seja, cada um possui seu próprio campo subjetivo que é concebido a partir das experiências, das vivências, e dos determinantes sociais e biológicos. Assim, os sintomas das alterações afetivas variam de acordo com as vivências de felicidade e/ ou tristeza e dependem da subjetividade de cada um, a qual é constituída a partir da realidade existencial desse sujeito, das vivências psíquicas, das internalizações e das relações objetais, sendo que estas determinam a percepção da realidade e que fazem ou não os sujeitos tristes, melancólicos, felizes ou maníacos.
A dinâmica imposta e/ou auto-imposta por estes sujeitos conduz a uma singular percepção da imagem, onde o vazio, sintoma insuportável da depressão, faz o depressivo ter inúmeras ações na busca de preenchê-lo. Estas ações podem ser notadas no uso das drogas (álcool, cigarro, narcóticos), na ingestão de alimentos em excesso, na busca insaciável e promiscua do sexo, nas relações afetivas superficiais e efêmeras que se multiplicam, e em uma série de buscas incansáveis por gratificação, acabando por destruir-se com a finalidade de punir o objeto, ou com fantasias de preencher o vazio deixado pelo “objeto perdido”. Vale ressaltar que, se estivéssemos falando de um quadro de Depressão Severa – Melancolia, falaríamos de um objeto imaginário, não real, supostamente perdido. Ao se falar de sintomas depressivos contemporâneos, estamos falando de qualquer objeto externo que é buscado com a finalidade de preencher o vazio insuportável. Isto nos remete à percepção da própria identidade e às suas primeiras relações objetais que a tem constituído. Tal como a criança que buscava desesperadamente seio materno para suprir as sensações de mal-estar insuportável que assaltavam seu corpo ao ser atacada pela fome, da qual ainda não possuía uma representação que tornasse suportável a dor e a frustração da espera, ou da negociação do objeto.
A extrema dependência do objeto e/ ou a sua perda implica em uma alteração da percepção, não apenas da percepção da imagem, mas também da percepção da identidade. Maciel (2002) aponta que a depressão na contemporaneidade pode traduzir uma dificuldade no processo de identificação. Camon (2003) segue o mesmo raciocínio dizendo que a depressão seria uma maneira do sujeito buscar sua identidade. Esta identidade nada mais é que o conjunto de identificações que o sujeito estabelece no decorrer de seu desenvolvimento, ou seja, a identificação com os objetos bons e maus internalizados. Há hoje, segundo Fedida (2002), uma subjetividade empobrecida, a qual é lapidada pelas identificações que, como corrobora Fenichel (2000), são misturadas à relação objetal apenas como traços de identificação, não havendo assim identificações satisfatórias, fazendo com que haja a busca do objeto que dê não apenas a satisfação necessária, mas a própria sustentação à identidade.
O agravante, conforme coloca Camon (2003), da existência de diversas possibilidades que o mundo fornece ao sujeito, é que este se submete às inúmeras opções de escolha, onde a cada escolha feita, outras várias perdas são contabilizadas. E se não há uma identificação bem estruturada, ou seja, com a prevalência de internalização de bons objetos, haverá uma busca constante de gratificações que jamais poderão ser alcançadas. Kristeva (2002) assinala que o sujeito contemporâneo é pressionado pelo estresse, é impaciente por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, e que os homens e mulheres acabam por economizar a representação de sua experiência, constituinte fundamental da vida psíquica, economizando com isto internalizações satisfatórias.
É daí que se levanta a hipótese de que a depressão não seria apenas a perda de um objeto amado ou perda da libido, como colocara Freud (1917) em “Luto e Melancolia”, mas sim a perda do objeto do qual o sujeito supunha ter posse e que lhe fornecia gratificações. Chega-se então ao pensamento dos neopsicanalistas como coloca Fairbain (1941) citado por Greenberg (1994), cuja concepção não valida a Teoria das Pulsões de Freud, onde a libido não busca o prazer, mas é o objeto que possibilita a gratificação.
Para Freud o objetivo de todos os impulsos é uma redução na tensão corporal que gerará um sentimento de prazer. Estes impulsos são dirigidos a objetos externos quando estes se apresentam provando ser úteis para reduzir tal tensão. Fairbain discorda dizendo que a libido não busca o prazer, mas sim o objeto, sendo o impulso e o objeto, ambos constituintes da estrutura endopsíquica. Para Freud o objetivo do impulso é o prazer, e o objeto seria apenas um meio para adquirir este prazer. Porém, Fairbain reverte esta relação argumentando que o objeto não está apenas embutido desde o começo, mas que a característica principal libidinal seria a qualidade de busca deste objeto. “O prazer não é o objeto final do impulso, mas sim um meio para seu final real” (Greenberg, 1994, p. 113).
Percebe-se, então, a partir das colocações descritas, que as discussões em torno da dinâmica das relações objetais deparam-se com um ponto em comum: a busca da gratificação, modificando apenas a forma como o objeto instrumentaliza esta busca. Desta forma, as manifestações depressivas seriam nuances do modo de relação objetal narcísico que o sujeito depressivo desenvolve em seu intuito de buscar gratificações. Isto nos permite retomamos o problema do presente trabalho: não seriam as manifestações sintomáticas da depressão hoje expressões de um narcisismo ferido (sujeito não gratificado) mais do que estruturas propriamente depressivas?
Segundo Merquior (2004), o mundo contemporâneo, por seus aspectos econômico-político e sócio-cultural, vive momentos de constantes transformações que desnorteiam os sujeitos numa explosão de referenciais. Referenciais estes, que dificultam o processo de identificação que nem sempre possibilitam “a construção de sujeitos capazes de criar sentido para a vida” (Maciel, 2002, p. 112).
Alain Ehrenberg (1998) citado por Maciel (2000) denomina a depressão como a “patologia da liberdade” expressando uma falta de tensão entre as forças internas que respondem às diversas demandas com que os sujeitos se confrontam. Roudinesco (2000), afirma que o sujeito sofre com as liberdades conquistadas por não saber como utilizá-las. O aumento da liberdade e a possibilidade de novos objetos de gratificação aumentam também os referenciais dos sujeitos que se vêm desamparados buscando no narcisismo a defesa do caos (Bento, 2004). Esta dinâmica organiza as pulsões parciais provocadas por esta variedade de referências dirigindo-as ao “eu” do sujeito, resultando numa identidade fragmentada para obter equilíbrio e satisfação através de um objeto ideal.
Trata-se então de uma cultura marcada pela “soberania do eu”, como cita Freire (2003), onde há um controle manipulador de tudo que cerca e pertence ao sujeito, fazendo com que tudo seja voltado para si. Esta cultura é voltada para o imaginário do narcisismo egóico que faz os sujeitos se sentirem desamparados diante da frustração.
Kohut (1977) citado por Bleichmar (1992) propõe que a falta de afeição materna tem como conseqüência no sujeito a não capacitação de manter relação com o outro. O sujeito estrutura um “eu grandioso” através de uma imago parental idealizada, transformando o sujeito num ser narcisista pela ausência de referenciais, pelo desamparo da uma mãe que não gratifica. Esta falta básica determinará que o sujeito busque emprego, relacionamentos, auto-imagem, casa, situação financeira satisfatória – todas elas como expressões simbólicas de objetos que visam superar a vivência do desamparo. O desamparo, segundo Martins (1998), seria o contraponto da onipotência ou o desejo de onipotência, onde o que seria buscado e desejado pelo sujeito é a sua totalidade, esperando encontrá-la através dos objetos que o gratificam, para não se deparar com sua fragilidade, alimentando desta forma seu desejo de onipotência.
Freud concebe o narcisismo como a sensação de completude e de não aceitação de desamparo. Tal desejo de completude seria inicialmente desempenhado pelos pais, e seria necessariamente frustrado, projetando-se então sobre o bebê a imagem de um ego ideal, fazendo com que o sujeito busque sempre o objeto ideal para sua completude (Martins, 1998).
Na concepção de Kristeva (2002, p. 14), o “homem moderno é um narcisista”. Este narcisismo se dá como um mecanismo de superação da não gratificação, das constantes frustrações geradas no decorrer de sua existência, desempenhando o papel de suporte para viver no mundo contemporâneo onde se acredita que tudo está ao alcance. Trata-se da era da individualidade, como afirma Roudinesco (2000). Uma era que dá suporte à subjetividade empobrecida proposta por Fedida (2002).
Por outro lado, o afeto depressivo seria um suporte narcísico (negativo) que oferece alguma integridade a este sujeito que se encontra fragmentado diante do mundo contemporâneo, com dificuldades de definir na sua totalidade, e seu sentido de existência (Kristeva, 2002).
A busca dessa definição é a mesma busca pela gratificação. Roudinesco (2000) afirma que os sujeitos de hoje se entregam à medicina científica (os psicofármacos) ao mesmo tempo em que aspiram uma “terapia” que julgam mais apropriada para constituir seu sentido de existência, para conhecer sua identidade. Esta busca de gratificação se dá na tentativa de eliminar o desamparo, procurando meios diversos para obter a satisfação imediata, buscando na droga, na religiosidade, no higienismo ou na aquisição de um corpo perfeito, o ideal de felicidade impossível. Estes recursos estão sempre ao alcance desse sujeito que, quando não está deprimido, acaba por valorizar objetos menores – compulsões, vícios – como formas ilusórias de possibilidades de gratificação propostas pela sociedade moderna, formas estas descritas como “prazer perverso que não conhece gratificação” (Kristeva, 2002, p. 14).
Maciel (2002) propõe que a depressão esteja relacionada a um bloqueio do potencial criativo do sujeito para dar conta da atual pluralização dos sentidos e das novas possibilidades existenciais. A criatividade poderia ser estruturada a partir da relação com uma “mãe suficientemente boa”, que por sua vez é capaz de se colocar no ponto em que convergem a realidade e a ilusão permitindo que ao colocar o seio, no tempo certo, possibilite à criança a “ilusão” de haver criado o objeto. Nisto consiste a criatividade. Mas esta mesma mãe, capaz de gratificações, deve na concepção de Winnicott (1997), ser capaz de retirar a ilusão de forma que a criança possa ir percebendo que não criou o objeto visualizando a relação vincular. Sendo que tanto a primeira quanto a segunda vivência se prolongarão pela vida afora reproduzida nos modos relacionais estabelecidos com seus objetos.
Ainda na concepção de Winnicott (1997), o potencial criativo desenvolvido na infância ajudaria o sujeito a encarar as inúmeras possibilidades que o mundo atual apresenta. O sujeito depressivo, que tem seu narcisismo ferido pelas constantes frustrações, estaria repleto de sentimentos de medo: medo de se submeter ao novo, de encarar responsabilidades, de novos desafios preferindo se retrair desistindo da vida para não ser novamente frustrado. Disto resulta a percepção de um o sujeito contemporâneo narcísico, necessitando constantemente de gratificações que são buscadas nas possibilidades que o mundo moderno coloca. A depressão seria uma defesa contra a dor pelo não suprimento dessas gratificações.
Este sujeito se vê frente a inúmeras possibilidades que provocam este vazio depressivo nas quais se inclui a falta do sentimento de existência autêntico, resultante das constantes frustrações. Desta forma, o sentimento de existência buscado dependeria de uma presença constante de um outro (objeto gratificante), e esta presença do outro acaba por se constituir o problema da sociedade atual, que, pela excessiva permissividade e gratificações, paradoxalmente, as tornam insuficientes, em função de que o desejo permanece insaciável.
Conclusões
A alteração afetiva e suas concepções estão relacionadas ao contexto e aos preceitos em que se vive. Com o avanço da cientificidade surgiram novos estudos, levantaram-se novas hipóteses acerca de todo o processo de conhecimento das doenças orgânicas e alterações afetivas do sujeito, antes tidas como formas de loucura. A subjetividade do sujeito pode ser mais bem explicada, dado os avanços dos estudos filosóficos que sustentaram e deram suporte às descobertas da Psicologia e Psicanálise. De posse de novos reverenciais viabilizam-se novos questionamentos sobre o que se pensa e se define e se entende hoje sobre depressão.
Na atualidade as queixas referentes aos sintomas depressivos como desinteresse, apatia, tristeza, nem sempre estão ligadas a uma perda propriamente dita. Estes fatores são ditos pela literatura clássica como os desencadeadores da depressão e melancolia. Percebe-se, porém, que existem outros fatores que podem causar sintomas depressivos, os quais decorrem das relações e situações, cotidianamente, vividas na sociedade contemporânea.
Comparando a sociedade atual com a sociedade mais antiga percebe-se que nesta última o sujeito vivia uma angústia maior em relação às regras a serem obedecidas. Naquela época, a repressão era mais significativa, não dando espaço para a autonomia nem para a liberdade de expressão. A repressão podia ser originada por imposições políticas, ou por imposições religiosas. O que se observa na sociedade contemporânea é que os sujeitos se deparam com inúmeras possibilidades. E, por mais paradoxal que pareça, o vazio depressivo impera frente à autonomia e às liberdades conquistadas: tudo é permitido fazer, e não se sabe que rumo tomar com tanta liberdade. Os sujeitos permanecem desamparados, imersos nesse “mar de possibilidades”.
A impossibilidade do ego de fazer frente à rigidez do superego o deixa num estado apático fazendo com que nada o satisfaça. Por isso se diz que as inúmeras possibilidades de gratificação jamais darão satisfação plena, uma vez que a exigência do superego severo e a concomitante impossibilidade negociação do ego inviabilizam possibilidades autênticas e/ou suficientes de gratificação. Para fazer frente a tais demandas, surgem os estados maníacos como defesas, no intuito de fugir da autopunição, desprendendo grandes quantidades de energia na busca de atividades ilusoriamente gratificantes, atividades estas, aliás, fornecidas de forma infindável pela sociedade moderna.
O estudo das relações objetais proposto pelos neopsicanalistas propõe que a depressão é uma expressão do ferimento narcísico, da não gratificação suficiente deste mundo moderno, em função da passividade e oralidade receptiva lapidada pela sociedade atual. Revela ainda que as inúmeras possibilidades de objetos se encontram em harmonia com a eterna busca. As questões ligadas às liberdades sexuais, também são aspectos do comportamento que podem ser observados nesta visão contemporânea de mundo, uma vez que estas estão estreitamente ligadas ao modo de relação objetal. Esta dinâmica revela o perfil proposto de sujeitos contemporâneos, os quais buscam incansavelmente a gratificação através de objetos que se tornam cada vez mais fugazes.
Entretanto, não se pode deixar de lado, nem tão pouco confundir a perda narcísica, com os lutos reais, que também são provedores dos sintomas depressivos. Quando se perde um objeto, é natural que o sujeito passe pelo luto, ele é, sem dúvida, um meio saudável de elaborar a perda. Seria uma depressão normal ligada ao fato vivido, seja a perda material ou afetiva, e que com o passar do tempo viabiliza o estabelecidos novos vínculos, e com eles introjetando novos objetos, possibilitando assim a elaboração desta forma de luto.
O que se observa hoje é uma nova concepção do luto e da depressão, adaptadas ao novo sujeito deste século. Um sujeito com inúmeras possibilidades, mas perdido, desamparado e que não sabe do que é preciso para ser suprido. Um sujeito que necessita ter um narcisismo mantido e nutrido para que haja equilíbrio e estabilização das ansiedades e dos desejos.
A depressão deste século foi equipara da à histeria do século XIX, cada qual a seu tempo consideradas como o “mal do século”, sendo a histeria ocasionada pelo excesso de repressão e o conseqüente recalque dos desejos a depressão hoje pelo excesso de liberdade e/ou de permissividade.
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Endereço para correspondência
E-mail: aldagalvan@vivax.com.br
Recebido em dezembro de 2005
Aceito em abril de 2006
Autores
1 Fernanda Cavalcante Esteves Psicóloga do Serviço de Psicologia Aplicada – SPA – ULBRA/ Manaus
2 Alda Luiza Galvan Mestre em Psicologia da Saúde e Intervenção Comunitária. Coordenadora do Curso de Psicologia ULBRA – Manaus