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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.28 Canoas dez. 2008

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A experiência emocional do estudante de psicologia frente à primeira entrevista clínica

 

The psychology student’s emotional experience in face of his/her first clinical interview

 

 

Diana Pancini de Sá Antunes Ribeiro*; Miriam TachibanaI,**; Tânia Maria José Aiello-VaisbergI,II,***

I Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC– Campinas
II Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Focalizando o momento em que os alunos de Psicologia vivenciam suas primeiras entrevistas clínicas, foi concebida uma estratégia investigativa-interventiva, baseada no uso do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (PDE com Tema), através do qual os estudantes realizaram, individualmente, desenhos e histórias sobre “um aluno em sua primeira experiência psicanalítica com criança”. O conjunto das produções foi psicanaliticamente analisado em busca da captação de campos psicológicos não conscientes, segundo os quais se organiza o imaginário coletivo. Encontramos os campos “o paciente ideal”, “o terapeuta expert”, “a possibilidade de rejeição” e “o encontro com o outro”, que acabam sustentando um imaginário coletivo, a respeito das primeiras entrevistas clínicas, marcado pelas sensações de despreparo e de mal-estar emocional, o que nos leva a conceber a supervisão como espaço que deve integrar conhecimento teórico e função de holding.

Palavras-chave: Formação do psicólogo clínico, Imaginário coletivo, Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema.


ABSTRACT

By focusing the moment in which Psychology students grasp experience of holding their first clinical interviews, one devised an investigative-interventive strategy, based on the use of the Thematic Story-Drawing Procedure, by means of which such students individually made drawings and told stories about “a student in his first psychoanalytical experience with a child”. The set of work done was psychoanalytically analyzed aiming at grasping the unconscious psychological fields, according to which the collective imaginary is organized. We found the fields of “the ideal patient”, “the expert therapist”, the possibility of rejection”, and “the meeting of one with the other“ which ended by supporting a collective imaginary about their first clinical interviews, characterized by feelings of unpreparedness and emotional uneasiness, what makes us think of supervision as a space which should integrate theoretical knowledge with the function of holding.

Keywords: Development of the clinical psychologist’s background, Collective imaginary, Thematic Story-Drawing Procedure.


 

 

Introdução

O estudante de psicologia e a primeira entrevista clínica

Há algum tempo uma de nós vem supervisionando um estágio curricular de um curso de Psicologia em universidade do interior do estado de São Paulo, através do qual os estudantes realizam psicodiagnósticos interventivos, junto a crianças e seus familiares, em Unidades Básicas de Saúde (Ribeiro & Aiello-Vaisberg, 2007). Através deste estágio, os estudantes vivenciam as suas primeiras entrevistas clínicas, com crianças e seus respectivos pais, os quais poderão, futuramente, vir a ser seus pacientes para além do enquadre do psicodiagnóstico.

Por meio do contato com os alunos nos momentos de supervisão clínica, chamou-nos a atenção o fato das primeiras experiências clínicas serem marcadas por certa sensação de despreparo, a despeito dos estudantes terem sido apresentados cuidadosamente à realidade da rede de saúde pública, bem como de terem tido espaço para trazerem seus sentimentos acerca deste momento tão importante da graduação, em que se dá a passagem entre o aprendizado puramente teórico à atuação prática. Uma vez que diversos autores – entre os quais podemos destacar Franco (2001) e Meira e Nunes (2005) – também observaram o quão difícil parece ser, ao aluno iniciante, o entrar em contato com os pacientes, interessamo-nos em compreender melhor esta sensação de mal-estar dos estagiários, que talvez exista apenas nas primeiras entrevistas clínicas, ou que talvez consista num estado permanentemente presente toda vez que o que está em jogo é o encontro inter-humano, como observamos em outro estudo junto a psicólogos já formados (Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2006).

Nossa preocupação em investigar a vivência do estudante de Psicologia em relação às primeiras entrevistas clínicas repousa na compreensão de que a experiência emocional do aluno pode tanto desencadear reações defensivas de tipo dissociativa quanto, num outro extremo, imobilizá-lo emocionalmente. Ambas as formas defensivas podem impedir que um encontro inter-humano possa vir a ocorrer, causando um prejuízo emocional tanto ao estudante quanto ao paciente que de sua ajuda seria beneficiado. Não estamos afirmando, contudo, que a simples inexistência da ansiedade perante a primeira entrevista clínica seria o ideal a ser atingido pelos psicólogos em sua prática clínica. Compreendemos que estar emocionalmente preparado para receber um paciente pode abranger diversos sentimentos como o da ansiedade, que, se manejada adequadamente, pode ser inclusive usada em prol de uma comunicação mais significativa entre a dupla analítica.

Mediante estas reflexões, interessamo-nos em realizar uma pesquisa, junto a estudantes de Psicologia que haviam acabado de vivenciar a primeira entrevista clínica na Unidade Básica de Saúde, a fim de captar os determinantes lógico-emocionais que estariam vinculados a este momento crucial da formação do psicólogo. Temos denominado este substrato afetivo-emocional que sustenta a conduta humana como imaginário coletivo, compreendendo que os fenômenos humanos encontram-se fortemente ancorados em regras lógico emocionais, dignas de serem investigadas, uma vez que seriam elas as responsáveis pela produção dos sentidos das condutas. Desde esta perspectiva, realizamos estudos voltados ao imaginário coletivo de grupos sociais diversos, a fim de captar estas regras lógico-emocionais das condutas, dentre os quais destacamos o de Aiello-Vaisberg (1999) sobre o imaginário coletivo do estudante de Psicologia frente ao paciente psiquiátrico; o de Russo (2008) sobre o imaginário de estudantes de Educação Física acerca do indivíduo com deficiência; o de Tachibana e Aiello-Vaisberg (2006) voltado ao imaginário coletivo de psicólogos em relação à mulher que sofre violência doméstica, dentre outros.

Desse modo, nosso objetivo de pesquisa foi a investigação do imaginário coletivo do aluno em formação clínica, a respeito de sua primeira entrevista psicodiagnóstica, para que este conhecimento pudesse vir a embasar práticas psicológicas individuais e/ou coletivas em situações semelhantes de primeiras entrevistas clínicas, numa perspectiva psicoprofilática.

O encontro com os estudantes de psicologia

Em nossos estudos voltados ao imaginário coletivo de diversos grupos sociais, temos usado um enquadre que denominamos entrevista grupal para abordagem da pessoalidade coletiva1 , enquadre este que usamos também para a captação do imaginário coletivo dos estudantes de Psicologia acerca da primeira entrevista clínica.

Trata-se de um enquadre inspirado nas consultas terapêuticas propostas por Winnicott (1970/1984), nas quais Winnicott fazia uso de um brincar, o Jogo do Rabisco, visando facilitar a comunicação emocional profunda com seus pacientes, além de criar um espaço lúdico que favorecesse a criatividade e a espontaneidade destes, questões estas relativas à teoria de saúde mental winnicottiana.

Desse modo, tal como o paradigma presente na consulta terapêutica winnicottiana, a entrevista grupal para abordagem da pessoalidade coletiva caracteriza-se pelo uso de um recurso mediador dialógico, que, tal como o Jogo do Rabisco de Winnicott, visa favorecer a expressão emocional dos participantes, além de facilitar que entrem em contato com questões, acerca deles mesmos, em relação às quais não tinham clareza, assumindo uma postura mais integrada. Desde esta perspectiva, entendemos que, apesar de nosso objetivo, neste trabalho, ter sido o de investigar o imaginário coletivo do estudante de Psicologia acerca da primeira entrevista clínica, entendemos que este enquadre viabilizou também que os próprios estudantes entrassem em contato, de maneira mais significativa, com o substrato afetivo emocional vinculado ao início da prática clínica, o que faz deste estudo uma pesquisa-intervenção, no sentido de não haver dissociação entre o momento da produção de conhecimento e a aplicação deste conhecimento na população que dele se beneficiaria.

Assim, participaram da entrevista grupal dezenove estudantes de Psicologia, supervisionandos da pesquisadora responsável pelo estágio de psicodiagnóstico interventivo em Unidades Básicas de Saúde. Tais alunos, que tinham entre vinte e um e vinte e três anos de idade, eram em sua maioria do sexo feminino (treze), sendo que, na ocasião da realização da entrevista grupal para abordagem da pessoalidade coletiva, já haviam vivenciado sua primeira entrevista clínica com crianças em Unidades Básicas de Saúde2.

No que diz respeito ao procedimento apresentativo-expressivo que usamos como recurso mediador dialógico na entrevista grupal, optamos por fazer uso do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999), desenvolvido a partir do Procedimento de Desenhos-Estórias de Trinca (1972), visando justamente a investigação de imaginários coletivos de diversos grupos sociais, de maneira a captar os determinantes lógico-emocionais que produzem os sentidos que sustentam as condutas.

O Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999) consiste na solicitação de um desenho especificado em termo temático – escolhido conforme o interesse de pesquisa –, além do convite para que a pessoa escreva uma história sobre o desenho que realizou. Assim, os estudantes foram convidados a realizarem, individualmente, um desenho dentro do tema ‘Um aluno de Psicologia em sua primeira entrevista, na clínica psicanalítica com crianças’ e, em seguida, a inventarem uma história sobre a figura desenhada. Após finalizarem suas produções gráficas, cada um mostrou, ao restante do grupo, aquilo o que havia criado, fazendo suas apresentações conforme desejassem.

Cabe enfatizarmos aqui que, desde a perspectiva epistemológica que adotamos, o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, assim como qualquer outro recurso mediador dialógico do qual dispuséssemos, não foi usado como se se tratasse de um teste projetivo, como se tivéssemos a intenção de captar conteúdos psíquicos que o indivíduo estaria projetando no outro como estratégia de defesa (Aiello-Vaisberg, 2004). Por partirmos de uma concepção de ser humano concreto, que se contrapõe à Psicanálise metapsicológica que descreve o ser humano de forma maquínica, concebemos o procedimento escolhido como apresentativo-expressivo, no sentido de que sua apresentação poderia favorecer a expressão emocional do indivíduo, em uma perspectiva transicional.

Após o encontro com os estagiários de Psicologia, fazia-se necessário que a pesquisadora, que realizara a entrevista grupal propriamente dita, comunicasse o acontecer clínico de maneira tal que pudessem ser elaboradas reflexões clínico-teóricas. Optamos por fazer uso de uma estratégia metodológica, que vem demonstrado potencialidade heurística em diversos estudos, denominada “narrativa psicanalítica”. Assim, a pesquisadora em questão redigiu uma narrativa psicanalítica, comunicando a experiência vivida com os estudantes de maneira extremamente pessoal, vale dizer, incluindo as suas associações livres, bem como seus sentimentos contratransferenciais, privilegiando uma comunicação que ultrapassasse o relato objetivo dos fatos ocorridos, tal como prevêem os relatórios técnicos científicos. Tratou-se de uma estratégia metodológica coerente com o paradigma epistemológico intersubjetivo do qual partimos, que valoriza a pessoalidade do pesquisador na produção de conhecimento, em prol de sua neutralidade e objetividade (Granato & Aiello-Vaisberg, 2004).

A narrativa da pesquisadora e os desenhos-estórias dos participantes foram apresentadas ao grupo de pesquisadores dentro do qual este estudo foi desenvolvido, de maneira tal que pudéssemos nos beneficiar das associações livres despertadas no grupo, enriquecendo nossas considerações acerca do material clínico. Assim, em âmbito coletivo, tentamos captar aquilo o que temos denominado de ‘campos psicológicos não conscientes’, numa articulação entre a Teoria dos Campos de Herrmann (2001) e o conceito de campo de Bleger (1963/1984). Entendemos os campos psicológicos como as regras lógico emocionais das condutas humanas, ou seja, como o produtor de sentido dos fenômenos humanos. Para a captação dos campos psicológicos não conscientes, relativos ao imaginário coletivo dos estudantes de Psicologia frente à primeira entrevista clínica, assumimos uma postura fenomenológica frente ao material clínico, privilegiando as técnicas psicanalíticas de associação livre e de atenção equiflutuante (Aiello-Vaisberg e Machado, 2005), de maneira que não adotamos critérios pré-definidos na consideração do acontecer clínico. A partir destas estratégias metodológicas, foi possível que organizássemos o material que apresentamos a seguir.

 

Os campos psicológicos não conscientes captados

O paciente ideal

Dos dezenove alunos que participaram deste estudo, constatamos que seis deles trouxeram, em suas histórias, queixas a respeito de seus pacientes não terem sido tão ‘participativos’, durante o atendimento, da maneira como imaginaram. O seguinte trecho de uma das histórias exemplifica esta questão:

Naquele dia eu imaginava que sairia tudo perfeitamente (...). Pensava que haveria muita conversa, uma mãe muito receptiva, com uma criança um pouco alegre, que se mostrasse interessada, curiosa (...). Na realidade (...), não houve muita conversa, mas perguntas e respostas curtas... A mãe ficou apática e olhou muito pouco para mim... e seu filho ficou com a cabeça baixa, escondido nos braços sobre a mesa (...) Tive que perceber um pouco da grande angústia.

Tantos relatos frustrantes a respeito do paciente real, em contraponto com o que seria um paciente ideal, levou-nos a resgatar a tese winnicottiana de que, de maneira geral, os pacientes sonham previamente com o terapeuta, colocando-o esperançosamente na posição de alguém que irá compreendê-los e ajudá-los. De acordo com Winnicott (1970/1984), o fato de seus pacientes colocarem-no na posição de objeto subjetivo3 poderia beneficiar em muito o processo psicoterápico, uma vez que, dotados de tanta esperança de virem a ser comprendidos, era possível o estabelecimento de uma comunicação mais significativa entre ele e seus pacientes.

De maneira análoga, notamos que os estagiários de Psicologia parecem ‘sonhar’ com seus primeiros pacientes, antes mesmo de encontrá-los efetivamente, depositando neles a fantasia de que serão extremamente participativos e receptivos, configurando casos clínicos similares aos apresentados nos livros de Psicologia clínica, que tanto despertam interesse e discussões. Tratar-se-iam de pacientes “ideais”, muito diferentes daqueles com os quais se depararam em suas entrevistas clínicas.

Podemos pensar que, talvez, os participantes tenham se queixado tanto da postura passiva de seus pacientes porque, de certa forma, se o adulto não fala mais que o estagiário, ou a criança não brinca a sessão inteira com o estudante de Psicologia, ocupando todo o espaço terapêutico, isto acaba implicando que o estudante tenha que fazer mais colocações ao adulto ou mais convites para a criança brincar, assumindo uma postura mais presente e real no atendimento, o que pode vir a ser sentido como mais mobilizador.

O terapeuta expert

Além dos estudantes expressarem, em seus desenhos-estórias, o imaginário de que existiria um paciente ideal, tão diferente daquele com o qual se encontraram, também trouxeram produções imaginárias de que haveria um terapeuta ideal, motivo pelo qual denominamos este campo ‘o terapeuta expert’. Para ilustrar, elegemos o trecho de uma das histórias:

Era o primeiro dia que a estagiária estava atendendo. Entrou a mãe angustiada, com sua filha quieta ao seu lado (...). Estava apreensiva. Mal sabia ela que a estagiária também4 ... A criança estava quieta, observando, com seus pensamentos a mil, pois era a primeira vez que estava ali. Mal sabia ela que a estagiária também... A mãe começa a falar (...) preocupada com o que será que aquilo ali vai dar... Mal sabia ela que a estagiária também (...)

Nesta história, a estagiária relata, repetidas vezes, a sensação de estar enganando seus pacientes, que ‘mal sabem’ que esta é a primeira vez que está realizando um atendimento clínico, não sendo a terapeuta expert que gostaria de ser e que, em seu imaginário, seria por quem os pacientes gostariam de ser acolhidos.

Podemos pensar no quanto este imaginário de não ser um terapeuta experiente pode estar relacionado intimamente com o fato de muitos dos participantes terem trazido, espontaneamente, em seus desenhos-estórias, o papel da teoria. Houve inclusive um deles que usou o termo ‘segurança teórica’, fazendo uma alusão ao movimento de recorrer à teoria como forma de não se sentir tão despreparado emocionalmente para iniciar a atividade clínica.

Seria possível fazermos um paralelo entre este movimento de recorrer à teoria ao conceito winnicottiano de falso self. Winnicott (1960/1983) apontava que, mediante situações angustiantes, era possível que o indivíduo, para evitar entrar em contato com aquilo que não tem sobre seu controle, recorresse a um movimento defensivo, a partir do qual o falso self passava a encobrir o verdadeiro self. Fazendo uso deste conceito, este movimento dos estagiários talvez esteja relacionado a uma estratégia defensiva de tipo falso self, a partir do qual estariam assumindo condutas intelectualizadas e pautadas prioritariamente na teoria, como forma de fazer frente ao imaginário de não serem terapeutas suficientemente bons.

Cabe esclarecermos que, apesar de estarmos apontando este movimento defensivo nos estagiários de Psicologia, não consideramos que esta conduta seria algo exclusivamente relativo aos alunos iniciantes na prática clínica. De acordo com Safra (2001), os psicólogos, de maneira geral, têm dificuldade em romper os laços transferenciais estabelecidos com os autores que os acompanharam durante sua formação, em detrimento da adoção de uma relação criativa com a teoria com a qual se identificam, privilegiando o encontro inter-humano, que é o que realmente sustenta o trabalho desenvolvido pela Psicologia clínica.

A possibilidade de rejeição

Da mesma forma que os estagiários trouxeram campos relacionados a terapeutas e pacientes idealizados, produções imaginárias tão valorizadas e carregadas de aspectos tidos como positivos, também comunicaram a possibilidade do terapeuta ser rejeitado pelo paciente. Isto fica claro no seguinte trecho, extraído da história de uma estudante:

No meu primeiro dia de atendimento acordei muito ansiosa (...), imaginando como seria o meu primeiro paciente (...) Não era nada do que eu imaginava. Pensei que encontraria uma criança que conversaria e que quisesse brincar (...), mas não foi isso o que aconteceu. Ele não conversou comigo, nem me olhou. Fiquei um tanto frustrada. Com o passar das sessões, o nosso vínculo aumentou (...) e ao final do psicodiagnóstico ele quis que eu o atendesse em psicoterapia.
Fiquei muito feliz (...)

Ao lermos a história, num primeiro momento, temos a impressão de que a estudante está apenas se queixando do fato de seu paciente não corresponder ao seu imaginário de paciente ideal, campo este que já discutimos previamente. Entretanto, notamos, ao final de sua história, que seu mal-estar emocional em relação ao seu paciente pôde ser minimizado a partir do momento em que houve a solicitação para que ela fosse a sua terapeuta, após o término do psicodiagnóstico. Desde esta perspectiva, entendemos que a experiência emocional angustiante, em relação à postura do paciente, não se devia exclusivamente ao fato dele ser diferente do ideal, mas, sim, ao imaginário de que tais comportamentos – não olhar no olho, não brincar, não conversar... – seriam indícios de rejeição dele em relação à estudante.

Desse modo, neste campo, a preocupação dos estagiários não seria a de que seus pacientes não correspondem aos casos clínicos que estudaram, mas, sim, a de que estariam sendo reprovados em suas primeiras entrevistas clínicas, preocupação esta que faz muito sentido se confrontarmos com o campo apresentado anteriormente de existir um tipo de terapeuta expert, ao qual eles certamente não corresponderiam.

De fato, a pesquisadora responsável pelo estágio, através do qual os alunos iniciam sua prática clínica na UBS, pôde acompanhar, através da supervisão clínica, casos em que alguns de seus estagiários precisaram iniciar um novo processo psicodiagnóstico, devido ao fato dos pacientes eventualmente abandonarem o espaço ofertado, notando o quanto se sentem extremamente angustiados perante o imaginário de que tal abandono dever-se-ia às falhas deles enquanto psicoterapeutas.

Alguns estudos, dentre os quais podemos destacar o de Faleiros (2004), trazem reflexões importantes acerca do temor do estagiário de Psicologia em não ser aceito por seu paciente. De acordo com este estudo, o sofrimento emocional do estudante em ser rejeitado pelo paciente ocorreria não apenas pela sensação de rejeição por si só, mas, principalmente, porque isto acaba abalando o imaginário do ‘terapeuta-herói’, que teria respostas a todas às inquietações dos pacientes, imaginário este que parece seduzir muitos estagiários no que tange à clínica.

 

O encontro com o outro

Por fim, foi possível captar um campo relacionado ao encontro com o outro, no caso, o paciente. Aqui, o que vigora não é o imaginário de que haveria um terapeuta ou um paciente ideais, ou, ainda, que existiria a possibilidade de rejeição, mas, sim, produções imaginárias relativas ao encontrar-se de maneira significativa e profunda com o outro. Para ilustrar, selecionamos a seguinte história:

(...) Entrei na sala. Hoje sou eu que vou sentar na mesa e alguém vai vir à mim com um pedido de socorro. Estou acostumada a ser eu a pessoa ouvida. Mas chegou a hora de exercer aquilo que pretendo para a minha vida toda (...). Apesar de toda a ansiedade (...), a sensação de você estar ali pronta para ouvir aquilo que angustia o outro é muito gratificante.

Como vemos, a estudante relata a ansiedade em viver esta passagem de um lugar em que estava voltado prioritariamente para si mesma, em prol de um lugar em que é o outro que figura em primeiro plano. Aqui cabe lembrarmo-nos do conceito winnicottiano ‘capacidade de preocupação’. Winnicott (1954/1993) afirmava que a capacidade de preocupar-se com o outro não se tratava de uma característica inerente a todo e qualquer ser humano, consistindo em algo a ser conquistado pelo indivíduo, apoiado na existência de um ambiente suficientemente bom, e que denotaria uma maturidade emocional. Entendemos, desse modo, que, neste campo, os estagiários de Psicologia encontrar-se-iam num momento do desenvolvimento emocional em que estariam sendo capazes de preocupar-se com o outro, uma vez que, de fato, o encontro inter-humano que configura a clínica consiste em enquadre que lhes exige esta aquisição emocional.

Poderíamos fazer uma comparação entre a capacidade de preocupar-se com o paciente, na clínica, com a capacidade de cuidar de um bebê, na esfera da maternidade, analogia esta que o próprio Winnicott (1956/1993) realizou em diversos momentos de sua obra, tanto que comumente usava o termo ‘analista suficientemente bom’ em alusão ao seu conceito de “mãe suficientemente boa”. Da mesma maneira que a mãe deve ser capaz de entregar-se aos cuidados de seu bebê, suspendendo temporariamente seus investimentos pessoais em outras esferas de sua vida, o psicólogo deve ser capaz de devotar-se aos cuidados de seu paciente, devoção esta que nem sempre é simples de acontecer, seja no caso das mães ou no dos psicólogos, uma vez que implica uma certa maturidade emocional.

 

Considerações finais: a supervisão clínica enquanto holding

A partir da realização desta pesquisa, pudemos observar que o imaginário coletivo do estudante de Psicologia, acerca da primeira entrevista clínica, é organizado segundo os campos que denominamos ‘o paciente ideal’, ‘o terapeuta expert’, ‘a possibilidade de rejeição’ e ‘o encontro com o outro’.

Ao vislumbrarmos estes campos, constatamos que alguns revelam um imaginário mais amadurecido emocionalmente, enquanto outros já se relacionariam a aspectos mais narcísicos. Para fazer esta discussão, faz-se necessário que resgatemos a teoria do desenvolvimento emocional presente em toda a obra de Winnicott, através da qual Winnicott (1971/1975) afirmava que o indivíduo maduro seria aquele que consegue alcançar uma posição existencial em que estivessem integradas a sua própria instintualidade com a capacidade de preocupar-se com o outro.

Desde esta perspectiva, observamos que os três primeiros campos apresentados estariam vinculados a um imaginário emocionalmente imaturo, uma vez que as regras lógico-emocionais que vigoram são essencialmente voltadas para si mesmo, isto é, com o fato de não ser um terapeuta experiente, ou de não ter diante de si um paciente “perfeito” ou, ainda, o de poder vir a sofrer uma rejeição por parte do paciente. O outro, nestes campos, não é visto enquanto um indivíduo com quem se está preocupado. Por outro lado, no último campo apresentado, acerca do encontro com o outro, já observamos um imaginário emocionalmente maduro, em que o outro é visto como um ser humano em sofrimento que figura em primeiro plano, o que revela a capacidade sofisticada de preocupar-se com o outro, capacidade esta que se faz essencial no que tange ao psicólogo clínico.

Novamente recorrendo à teoria winnicottiana, Winnicott (1971/1975) afirmava que, para que o ser humano pudesse desenvolver-se emocionalmente, conquistando posições existenciais mais maduras, era necessário a existência de um ambiente suficientemente bom, cumprindo-lhe a função de holding. De maneira análoga, compreendemos que para que o estagiário de Psicologia possa desenvolver-se emocionalmente, abandonando um imaginário mais narcísico e alcançando a capacidade emocional de voltar-se ao outro, fazer-se-ia imprescindível que a supervisão clínica consistisse num espaço integrador de conhecimento teórico e holding.

Orientadas por esta compreensão é que temos desenvolvido, há alguns anos, investigações clínicas acerca de práticas pedagógicas, junto a estudantes de Psicologia, que ultrapassem a mera transmissão de conhecimento, incluindo também a possibilidade de ofertar-lhes holding, numa tentativa de afrouxar aspectos dissociativos e favorecer a capacidade de olhar o outro de maneira menos estereotipada (Aiello-Vaisberg & Machado, 1996). Tratam-se de abordagens pedagógicas que fazem uso de enquadres transicionais, visando aproximar o estudante de Psicologia à realidade clínica em pequenas doses (Aiello-Vaisberg, 1999; Ribeiro, 2008).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: diana@assis.unesp.br

Recebido em março de 2008
Aceito em setembro de 2008

 

 

* Diana Pancini de Sá Antunes Ribeiro: doutora em Psicologia – Ciência e Profissão (PUCP – Campinas), mestre em Psicologia Clínica (USP)
** Miriam Tachibana: doutoranda em Psicologia – Ciência e Profissão (PUCP – Campinas), com bolsa CNPq, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa CAPES 1.
*** Tânia Maria José Aiello-Vaisberg: professora livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, docente dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
1 Chamamos a atenção para o fato de que, em trabalhos anteriores, voltados ao imaginário coletivo de grupos sociais diversos, denominávamos este enquadre como “consulta terapêutica coletiva”. Decidimos adotar a terminologia “entrevista individual/grupal para abordagem da pessoalidade coletiva” porque, enquanto a consulta consiste num enquadre em que as pessoas trazem uma demanda explícita para serem ouvidas, em nosso enquadre, fomos nós que tomamos a iniciativa de propor o encontro a pessoas, que não haviam apontado nenhuma queixa ou demanda clínica.
2 Somente uma das participantes do grupo não havia vivenciado ainda a primeira entrevista clínica.
3 O conceito “objeto subjetivo” foi desenvolvido por Winnicott (1971/1975) para tratar da maneira especial através da qual o bebê se relaciona inicialmente com o mundo: a priori, o bebê alucina que os objetos do mundo foram onipotentemente criados por ele, como objetos subjetivos, para, após algum tempo, conseguir discernir entre me e not-me.
4 Grifos nossos.

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