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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.29 Canoas jun. 2009

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A experiência da maternidade em mães adotivas*

 

Motherhood experience in adoptive mothers

 

 

Joice Cadore Sonego; Rita de Cássia Sobreira LopesI

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Programa de Pós-Graduação – Psicologia do Desenvolvimento

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo investigou as manifestações verbais dos sentimentos de mães em relação à maternidade adotiva. Participaram da pesquisa nove mães, cujos filhos haviam sido adotados ainda bebês e tinham em torno de dois anos no período da coleta de dados. Foi realizada uma entrevista semiestruturada com as participantes, abordando questões referentes ao desenvolvimento do filho e à experiência da maternidade. Os dados foram analisados através da análise de conteúdo qualitativa. As mães demonstraram um discurso idealizado tanto em relação à criança quanto à experiência da maternidade adotiva. Chamou a atenção que praticamente todas disseram sentir um amor imediato por seus filhos, logo no primeiro encontro. Além disso, verificaram-se sentimentos ambivalentes por parte das mães no que se refere a esta forma de filiação. Ao mesmo tempo em que o filho adotivo foi visto como sem nenhuma diferença em relação ao filho biológico, foi também retratado “como se” fosse um filho, “especial”, “diferente”. As implicações clínicas desses achados são discutidas.

Palavras-chave: Maternidade, Adoção, Idealização.


ABSTRACT

The present study investigated maternal feelings regarding adoptive motherhood. Nine adoptive mothers who adopted their children when they were infants took part in the study. The children were around two years old when data were collected. A semistructured interview was used, focusing on themes such as their children’s development and the motherhood experience. The data were analyzed through qualitative content analysis. The mothers demonstrated a strong idealization both regarding their children and their motherhood experience. Almost all mothers said they felt an immediate love for their children, when they first met them. Besides the idealization, maternal ambivalent feelings were also observed. At the same time the adoptive child was seen as not being different from a biological child, he/she was also portrayed by mothers “as if” he/she was their child, as well as “special”, “different”. The clinical implications of these findings are discussed.

Keywords: Motherhood; Adoption; Idealization.


 

 

Introdução

Quando se pensa em maternidade, geralmente se faz uma conexão com as questões que envolvem a gravidez e o nascimento de um bebê. Porém, esta não é a única forma de uma mulher exercer a maternidade; há também a possibilidade de se adotar uma criança. Um dos principais motivos que levam à busca pela adoção é a infertilidade (tanto de um dos parceiros quanto de ambos), visto que esta impede que se possa ter filhos biológicos. Esta interdição da gravidez pode ser vista, para a mulher, como uma ferida narcísica que poderia vir a abalar seus referenciais identificatórios, já que a maternidade parece ser um importante elo na construção da identidade feminina (Ribeiro, 2004).

Apesar do grande número de estudos envolvendo a adoção, percebe-se que há bem menos estudos nesta área que enfoquem os sentimentos dos pais, se comparados com aqueles que se ocupam basicamente de questões relacionadas à criança e ao seu ajustamento à família. Acredita-se que seja relevante dar uma maior atenção aos sentimentos paternos e maternos envolvidos nesta forma de filiação, pois, apesar de a parentalidade adotiva não ser, necessariamente, geradora de conflitos nem algo que predisponha os filhos adotivos a dificuldades específicas, ela apresenta certas peculiaridades que podem e devem ser discutidas (Paiva, 2004).

Segundo Freud (1914/1996), o desejo de ter filhos engloba um desejo maior, que é o desejo de imortalidade do ego. Para este autor, os filhos possibilitariam aos pais um retorno de seu próprio narcisismo, o que pode ser percebido, por exemplo, no fato de os pais geralmente atribuírem somente perfeições ao filho, assim como aqueles se achavam perfeitos, no período da infância, aos olhos de seus próprios pais. A possibilidade de ter um filho aproxima, psiquicamente, homens e mulheres da imortalidade, através da transmissão da herança genética aos descendentes.

No caso da adoção, pode-se questionar em que medida este desejo narcísico seria realizado. Lebovici e Soulé (1980) apontam que “é muito mais difícil ser um pai adotivo do que uma criança adotada” (p. 553). Para os autores, o filho adotivo tende a se comportar como um filho de sangue, enquanto que, para os pais, a experiência da adoção influencia no exercício da parentalidade, tendo diferenças em relação aos pais de sangue. No que diz respeito à identificação com o filho adotivo, bem como à questão do narcisismo dos pais, os autores colocam que pode haver uma maior angústia daqueles por não ser tão fácil reencontrar a si mesmo ou ao objeto amado na criança. Ribeiro (2004) sugere que é necessário que os pais consigam elaborar a impossibilidade do filho biológico (nos casos de infertilidade), para que o filho adotivo possa encontrar nesta nova família um lugar de pertencimento, e não de estranheza.

Há diversas questões jurídicas e sociais presentes no universo da adoção. O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), por exemplo, no artigo 43, prevê que “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos” (p. 13). Percebe-se que parece haver uma preocupação em relação ao bem-estar da criança e, mais recentemente, da família, pois, além do ECA, a Lei Federal nº. 10.421, de 15/04/2002, prevê que as mães adotivas tenham os mesmos direitos de licença-maternidade que as mães biológicas. Nota-se, portanto, que está ocorrendo uma preocupação maior com este tipo de configuração familiar, levando-se em conta que o período inicial da relação entre pais e filhos adotivos é tão importante quanto o dos pais e filhos biológicos.

Os diversos pontos de vista em relação à adoção têm gerado bastante polêmica e discussão entre pesquisadores voltados para o tema, inclusive no que se refere aos pais adotivos (Chaves, 2002; Costa & Campos, 2003; DiGiulio, 1987; Ebrahim, 2001; Ferreira, Pires & Salvaterra, 2004; Levy-Shiff, Goldshmidt & Har-Even, 1991; Miall & March, 2003; Reppold & Hutz, 2003; Santos, 1988). Parece ainda haver um maior interesse dos pesquisadores na criança adotada, principalmente nas questões relativas ao ajustamento e, mais recentemente, ao apego (Berthoud, 1997).

De modo geral, estes estudos sugerem que há peculiaridades na parentalidade adotiva, mas que isto não seria, a priori, algo que poderia causar dificuldades futuras, desde que os pais consigam compreender que estas peculiaridades existem. Algumas destas peculiaridades seriam: o tempo de espera pelo filho, que é diferente do tempo gestacional, podendo ser maior ou menor; as expectativas pela chegada da criança, principalmente no caso de casais inférteis; o período de “lua-de-mel” mais intenso que em famílias biológicas. Ainda assim, os estudos parecem carecer de maior análise das manifestações verbais sobre os sentimentos de pais e mães adotivos, pois, muitas vezes, detém-se mais nas questões “práticas” ou “sociais” da adoção, ou seja, na visão que pais adotivos e pessoas em geral têm sobre este modo de filiação. Além disso, a maioria dos estudos aborda casais inférteis, embora se saiba que, apesar de ser a causa mais comum na busca pela adoção de um filho, não é a única.

Partindo-se destas reflexões, o objetivo desta pesquisa foi investigar a experiência da maternidade em mães adotivas. Pretendeu-se examinar como as mães percebiam e vivenciavam este período inicial (até dois anos após a adoção) de relacionamento com seu filho. Buscou-se verificar possíveis dificuldades percebidas por elas, e que tipo de dificuldades seriam estas, o que poderia proporcionar que se pensasse em modos de acompanhamento das famílias após a adoção, e não apenas no período anterior a ela, como grupos de apoio, por exemplo. Pretendeu-se, assim, contribuir para uma reflexão sobre a adoção, a partir da visão das mães adotivas sobre este modo de filiação.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo nove mães adotivas, com pelo menos um(a) filho(a) adotivo(a), cuja adoção havia se realizado até dois anos antes da presente pesquisa, por diferentes motivos que não apenas a infertilidade. As participantes são de diferentes faixas etárias, escolaridade e nível socioeconômico, residindo na região metropolitana de Porto Alegre.

A amostra foi selecionada, com base nos critérios descritos acima, dentre os participantes do “Projeto Longitudinal de Porto Alegre: Da Gravidez à Escola” (Piccinini, Tudge, Lopes & Sperb, 1998). Este estudo iniciou acompanhando 81 gestantes, que não apresentavam intercorrências clínicas, seja com elas mesmas ou com o bebê, que era seu primeiro filho. Os maridos ou companheiros também foram convidados a participar do estudo caso residissem juntos em situação matrimonial. Os participantes representavam várias configurações familiares (nucleares, monoparentais ou re-casados), de diferentes idades (adultos e adolescentes) e com escolaridade e níveis socioeconômicos variados. No decorrer do estudo, foram incluídas amostras de casos de adoção, doença crônica e Síndrome de Down. No caso destas nove participantes, o recrutamento foi realizado através do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Equipe de Adoção, por contato telefônico. Todas as participantes haviam realizado o processo de habilitação para a adoção de seus filhos no local acima citado.

Delineamento e procedimento

Foi utilizado um delineamento de estudo de caso coletivo (Stake, 1994), buscando-se examinar os sentimentos das mães adotivas, principalmente em relação à maternidade e ao desenvolvimento do bebê. Além de se examinar cada caso, foram examinadas também as particularidades e semelhanças entre os casos.

Considerações éticas

Os princípios éticos da pesquisa concernem à proteção dos direitos, bem-estar e dignidade dos participantes. O Conselho Federal de Psicologia, por meio da resolução nº. 016/2000, afirma a importância de se considerar estes aspectos, bem como de se submeter os projetos de pesquisa em Psicologia com seres humanos. O “Estudo Longitudinal de Porto Alegre: Da Gestação à Escola”, que foi utilizado para selecionar a amostra do presente estudo, foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o protocolo nº. 98293.

Partindo-se destes princípios, o Consentimento Livre e Esclarecido, foi utilizado para que se pudesse informar aos participantes da pesquisa sobre os principais objetivos e procedimentos da mesma. Este termo também informa ao participante sobre o respeito à privacidade e à confidencialidade dos dados por ele fornecidos, o que possibilita uma decisão livre e informada sobre sua participação na pesquisa.

Instrumentos e materiais

Entrevista de Dados Demográficos: foi utilizada para investigar alguns dados demográficos, como idade, escolaridade e profissão da mãe, bem como do seu companheiro/marido, data em que foi realizada a adoção, idade da criança, se há outros filhos, moradores da casa. O endereço e telefone dos participantes também foram solicitados.

Entrevista com as famílias adotivas (Chaves & Sperb, 2001): entrevista adaptada da Entrevista sobre a experiência da maternidade utilizada pelo Grupo de Interação Social, Desenvolvimento e Psicopatologia – GIDEP (2001). Fez-se uso da versão atual a fim de se examinar questões referentes à experiência da maternidade em mães adotivas. Foram abordados tópicos relacionados ao projeto da adoção, aos sentimentos em relação à maternidade, ao desenvolvimento da criança, ao dia a dia com o filho(a), ao marido como pai e às expectativas em relação ao futuro, os quais proporcionaram a criação de duas categorias temáticas, a serem discutidas a seguir.

 

Resultados e discussão

A análise dos dados visou examinar as particularidades e semelhanças nas falas das participantes, obtidas com a Entrevista sobre a experiência da maternidade no contexto da adoção. As respostas das participantes a esta entrevista foram examinadas com base na Análise de Conteúdo Qualitativa (Bardin, 1977; Laville & Dionne, 1999). As falas foram organizadas em duas categorias temáticas: idealização da criança e da maternidade e o lugar da criança na família.

As mães demonstraram uma forte idealização em relação a seus filhos, inclusive no momento em que os viram pela primeira vez: “Foi amor à primeira vista”; “Eu olhei e já me apaixonei, né?”; “É essa!”; “Parecia que tinha caído do céu”. Apenas uma das mães disse que achou o filho feio ao conhecê-lo: “Achei ele muito feio! Achei ele horroroso! Coisa horrível! Achei ele muito feio!” (...) “Claro que isso era medo, né? O fato de ser feio é que eu estava com medo, né?”.

Soulé (1988) salienta que mães biológicas sentem, durante a gestação, o filho como estranho, como causador do sentimento de estranheza. O fato de as mães atribuírem um “temperamento” a este feto seria uma tentativa de torná-lo familiar (Brazelton & Cramer, 1992). As mães adotivas parecem passar pelo mesmo processo, embora este esteja envolto pela peculiaridade da adoção: “Ela era a nossa cara” (...) “Logo de cara a gente viu que ela já fazia parte da nossa família”; “Nós já sabíamos que era ele mesmo sem ter visto ele”. A revisão feita por Levy e Féres-Carneiro (2001) aponta que os pais adotivos, assim como os biológicos, criam uma criança imaginária, uma criança ideal, e gradualmente devem se afastar desta imagem, para poder perceber a realidade da criança que vão encontrar.

Mães que já tinham filhos biológicos quando adotaram enfatizaram que o amor pelos filhos é o mesmo, que não há diferença entre eles: “Eu acho que não tem diferença nenhuma, nenhuma, nenhuma”. Mesmo as mães que não tinham filhos biológicos afirmaram que esta diferença não existe: “É igual, igual, igual, igual”. De acordo com Dolto (1998), “nunca se pode amar de modo semelhante seres diferentes” (p. 243). Para Schettini Filho (2005), amor tem a ver com convivência, e não com a ligação biológica. Porém, para estas mães, parece haver uma necessidade de amar o filho adotivo como se fosse biológico, mais como uma obrigação de amar do que um amor que surge de forma natural, por meio da convivência entre pais e filhos.

Por outro lado, uma das mães disse que o amor pelo filho adotivo é diferente do amor pelos filhos biológicos: “É um amor diferente dos filhos biológicos, parece que é mais intenso”. Neste caso, os filhos biológicos já eram adultos na época da adoção, o que talvez tenha contribuído para que Marta tivesse esse sentimento “diferente” em relação ao filho adotivo, já que um bebê exige cuidados e atenções diferentes dos de um adulto.

O desenvolvimento dos filhos também aparece envolto em idealização. Algumas mães apontaram certas “precocidades” dos filhos, como o fato de tomarem banho sozinhos ou de começarem a caminhar antes do esperado. Houve também uma certa minimização de possíveis dificuldades encontradas na maternidade: “Tudo com ela é prazeroso”.

Levy-Shiff, Goldshmidt e Har-Even (1991) apontam que os pais adotivos costumam passar por um período de “lua de mel” com seus filhos, provavelmente devido ao fato de que estes pais passaram por diversas frustrações e decepções até conseguirem adotar seus filhos. Ainda sobre este ponto, Bowlby (1981) afirma que “é comum observar-se, nas atitudes da mãe adotiva, uma excitação, uma premência e uma emoção profundas” (p. 121).

A visão das participantes de seus maridos como pais também chama a atenção. As mães disseram que eles são excelentes pais, que ajudam nos cuidados com o filho, que até surpreenderam algumas delas, pois não imaginavam que os maridos seriam tão bons pais. Enfim, praticamente não houve referências a pontos negativos destes pais: “Não tenho nada de ruim pra falar dele”; “Superpai”. Uma possível explicação nos é dada por Schettini Filho (2005), o qual sugere que a ausência da gestação e do parto diminuiria as barreiras para que o pai participe mais ativamente no processo de criação do filho. Como não haveria aquela simbiose inicial entre mãe e bebê, seria um pouco mais fácil para o pai participar desde muito cedo desta relação. Entretanto, esta idealização dos maridos como pais também pode fazer parte do mesmo processo que faz com que estas participantes idealizem a maternidade.

A questão da filiação aparece, na fala das participantes, permeada por ambivalências, das mais sutis às mais visíveis. Um exemplo bastante interessante é o de uma das mães, que disse: “Eu acho que é a mesma coisa que a minha filha. Não tem diferença”. “É tudo como se ela fosse minha”, inclusive devido ao fato de a filha não ter tido muito contato com a mãe biológica. Percebe-se, deste modo, o quanto a maternidade, nos casos de adoção, pode ser conflituosa, pois, muitas vezes, os pais (no caso, a mãe), questionam até que ponto são realmente “pais” e “mães” daquela criança que adotaram. Outro exemplo é o da mãe que disse não fazer segredo sobre a adoção do filho, mas também não fala abertamente sobre o assunto: “Quem não sabe age como se fosse filho e a gente deixa que isso aconteça”. Há também a fala da mãe que contou ter recebido o filho adotivo “como um membro realmente da família”.

O modo como a relação entre pais e filhos irá se estabelecer, tanto na adoção quanto na filiação biológica, será marcado também pela subjetividade da mãe e do pai e pelas questões inconscientes de ambos (Paiva, 2004). Deste modo, as ambivalências presentes nas falas das mães podem demonstrar que a adoção não está bem resolvida para elas, talvez pela dificuldade em reconhecer que o que as une a um filho “da barriga” ou a um filho adotivo é, antes de mais nada, o desejo de ser mãe.

As questões narcísicas das participantes parecem sofrer alguns abalos em certos momentos, principalmente quando algo não acontece conforme o esperado. Nesses momentos, parece ser mais fácil buscar a origem do problema na família biológica, como se assim pudessem se isentar dos pontos negativos dos seus filhos. Esta situação também corrobora a importância da hereditariedade e da consanguinidade no imaginário social sobre a adoção (Levy & Jonathan, 2004): “Quem sabe a Marcia tinha alguém tão braba na família”.

Em determinados momentos, as mães referem sentir limitações por seu filho não ser biológico, como a questão da amamentação: “O que me angustiava era eu não poder amamentar”. A frustração pela infertilidade também aparece na fala de algumas mães: “É muito difícil tu admitir que não pode ter filho da tua barriga. É um negócio muito difícil”; “É uma mutilação (a tentativa do bebê de proveta)”. Pode-se questionar até que ponto é necessário haver esta “mutilação” para poder se tornar mãe.

Paiva (2004) aponta que a parentalidade adotiva apresenta peculiaridades, mas não é, necessariamente, causadora de conflitos, e nem predispõe o filho adotivo a sintomas ou dificuldades específicas. De acordo com Schettini Filho (2005), a inexistência de laços genéticos não invalida as ligações parentais. Ou seja, como afirma DiGiulio (1987), é importante que os pais aceitem o fato de o filho não ser biológico, de o filho ter uma história e uma origem que talvez não fosse a que eles gostariam que tivesse. Essa aceitação é importante para que se estabeleçam os laços de filiação e o filho seja realmente “adotado” por estes pais. Segundo Hamad (2002), todas as crianças passam por uma adoção, pois somente o peso da carne, do biológico, não é suficiente para fundar a sua existência.

Muitas participantes comentaram que a chegada do filho adotivo trouxe “vida” à família, integrou os membros da casa etc.: “É uma vida dentro de casa”; “Preencheu muito mais lacunas do que eu esperava”; “A família cresceu”. De acordo com Winnicott (1957/1993), as crianças exercem um efeito integrativo na família. Algumas mães apontaram que se sentiram “renascidas” com a chegada do filho e que, ao acompanharem o crescimento e as conquistas deste, sentiram-se crescendo também. Uma mãe que já tinha três filhos biológicos comentou que “o Junior pra mim foi um recomeço”.

Os filhos adotivos parecem, muitas vezes, ter um “tratamento especial” de suas mães, o que aparece, por exemplo, na fala de algumas mães que optaram por parar de trabalhar por algum tempo após a adoção. Uma disse que tinha que tratar a filha de modo diferente, por ela ser adotada, que tinha que dar mais amor a ela. Outra, que ficou dois anos sem trabalhar após a adoção do filho, disse que achava que precisava passar mais tempo próxima a ele, por esta ser uma “situação diferente”.

Levinzon (2004) comenta que na adoção, assim como em qualquer outra forma de filiação, os filhos representam uma espécie de tela para as identificações projetivas de seus pais. Deste modo, supervalorizar a criança, vendo-a como “especial” pode ter um efeito tão nocivo quanto o da desvalorização deste filho, pois os pais não deixariam espaço para aceitar a criança como ela é, um ser humano com defeitos e qualidades.

O lugar da criança na família, no caso da adoção, mais cedo ou mais tarde esbarra na questão da revelação. Este é outro ponto repleto de ambivalências para boa parte das participantes, sendo que algumas chegaram a pensar em não contar ao filho sobre a sua origem: “Comecei a pensar que eu deveria esquecer e não contar mais nada”. Para Levinzon (2004), falar ao filho sobre a sua origem faz com que pais e mães voltem a se confrontar com questões que talvez não estejam bem elaboradas, como a sua infertilidade, a existência dos pais biológicos, o sentimento de abandono que o filho pode ter, o medo de que o vínculo entre eles não seja forte o suficiente etc. Segundo a autora, “o temor exacerbado dos pais pode estar ligado à projeção no filho de sua não-aceitação inconsciente da sua própria condição de pais adotivos” (p. 49). Pode-se pensar também que confrontar-se com a questão da revelação pode ser difícil para as mães justamente porque há uma forte idealização, por parte destas, do filho e dos sentimentos em relação à maternidade.

A maioria dos autores concorda que a criança deve e tem o direito de saber sobre as suas origens, inclusive para poder construir a sua história (Schettini Filho, 2005). A verdade, para este autor, além de ser um direito do filho adotivo, é também fundamental para que este tenha saúde mental e psicológica. Para Paiva (2004), a revelação vem a fortalecer o vínculo entre pais e filhos quando esta é iniciada nos primeiros anos de vida da criança e ocorre de um modo contínuo, e não em uma única conversa. Quando os pais conseguem permitir que o filho questione sobre a sua origem, quando percebem que isto é indispensável para que a criança construa a sua identidade, as coisas costumam acontecer de forma mais tranquila. Cinco das participantes comentaram que o assunto da adoção já circula dentro de casa.

Durante as entrevistas, uma mãe disse achar que será necessário um acompanhamento psicológico em relação à revelação da adoção ao filho, pois ela e o marido talvez não saibam como responder aos questionamentos do filho. Embora tenha sido a única mãe a levantar a questão do acompanhamento psicológico, é importante discuti-la, já que ela pode estar representando muitas outras mães adotivas. Paiva (2004) aponta para a relevância de se realizar uma espécie de estágio de convivência após a adoção, a fim de auxiliar os pais neste primeiro momento e esclarecer possíveis dúvidas que eles venham a ter. Talvez este fosse também um dos momentos propícios para que os pais falassem abertamente sobre seus medos e receios em relação à revelação da adoção.

 

Considerações finais

A partir do estudo realizado, acredita-se que é pertinente que haja um olhar cada vez mais cuidadoso em relação às mães adotivas, visto que o modo como elas vivenciam a maternidade parece ter influência no desenvolvimento de seus filhos, sejam eles adotivos ou biológicos.

Como o presente estudo foi realizado apenas em um momento, quando os filhos adotivos tinham por volta de dois anos de idade, sugere-se que se realizem estudos longitudinais, para que se possa examinar como a manifestação verbal dos sentimentos das mães em relação à maternidade adotiva se constitui ao longo do tempo, com a entrada da criança na escola, a adolescência e a revelação da adoção, por exemplo. Nos casos aqui discutidos, embora o assunto da adoção circulasse em diversas famílias, muitas mães trouxeram a sua preocupação em relação a como revelar ao filho a sua origem, em que momento dizer isto e em como a criança iria reagir.

O que se pode concluir, após a análise das entrevistas e a revisão da literatura, é que a filiação adotiva apresenta algumas peculiaridades. No que se refere à criança, esta possui pais biológicos, passou por uma situação de abandono ou de rejeição, viveu em um abrigo por um tempo ou em uma casa de passagem. No caso dos pais adotivos, estes vivenciaram a situação da descoberta da infertilidade, a realização de tratamentos fracassados, ou então já tinham filhos e optaram pela adoção por algum outro motivo. Entretanto, esta situação inicial não significa necessariamente que no futuro haverá problemas ou dificuldades nesta família. O que realmente parece importar é o modo como os pais vão vivenciar sua parentalidade adotiva.

Pode-se pensar também em algumas implicações clínicas, a partir dos resultados do presente estudo. Por exemplo, o fato de as mães não expressarem – ou expressarem com maior dificuldade – seus possíveis desapontamentos e frustrações, sentimentos normais em qualquer relacionamento, talvez merecesse uma maior atenção. Além disso, algumas mães comentam sobre o quanto seus filhos são “especiais”, “diferentes”. Porém, se seus filhos adotivos têm essa característica, não serão elas também mães “especiais”? E, sendo mães “especiais”, como deverão elas agir com seus filhos? Será que devem agir de forma diferente de uma mãe biológica? Assim, parece ser importante que as mães adotivas possam ter um espaço de escuta, não só para poderem discutir sobre como contar ao filho sobre a sua adoção, mas também como um momento em que elas possam se perceber e se assumir como mães tão “normais” como todas as outras. Já que este espaço costuma ser oferecido antes da adoção, nos casos de grupos de pais que estão aguardando por seu filho, seria importante oferece-lo também após a concretização da mesma, talvez até mesmo seguindo a modalidade de grupo.

A construção da maternidade também aponta para uma outra importante questão, presente ao longo de todo o presente trabalho. Refere-se ao fato de muitas das participantes verem os seus filhos adotivos “como se” fossem filhos, e não como realmente filhos seus. Isto parece refletir muita ambivalência, tanto na fala das mães como nos seus sentimentos em relação aos filhos e à maternidade. Fica o questionamento de quando este “como se” passa a realmente “ser”. Mais uma vez, acredita-se que um estudo longitudinal conseguiria abarcar e discutir estas questões.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: joicesonego@yahoo.com.br

Recebido em julho de 2008
Aprovado em dezembro de 2008

 

 

Joice Cadore Sonego: psicóloga, mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS).
Rita de Cássia Sobreira Lopes: psicóloga, doutora em Psicologia (Universidade de Londres), professora do PPG – Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS).
* Trabalho baseado na Dissertação de Mestrado da primeira autora sob supervisão da segunda autora.

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