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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.32 Canoas ago. 2010

 

RESENHA

 

O normal e o patológico: contribuições para a discussão sobre o estudo da psicopatologia

 

 

Thiago Loreto Garcia da SilvaI; Alice Einloft BrunnetI; Daniele LindernI; Adolfo PizzinatoII

I Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Faculdade de Psicologia. Programa de Educação Tutorial
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Psicologia

 

 

Endereço para correspondência

 

 

Canguilhem, G. (2002). O normal e o patológico. 5.ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

A delimitação entre o que pode ser considerado normal e o que deve ser tido como "patológico" é uma questão que gera constantes discussões conceituais. No terreno da psicopatologia, essa discussão ainda é mais relevante, já que sua demarcação é muito mais flutuante e suas fronteiras pouco rígidas.

Com o intuito de pôr esta questão em debate, o livro "O Normal e o Patológico" de Georges Canguilhem, publicado pela primeira vez em 1943, ainda é referido como bastante atual por contribuir com uma forte argumentação explorando diferentes visões acerca do que pode ser concebido como saúde ou doença e as políticas terapêuticas implicadas nessas visões (SERPA, 2003).

Retomando historicamente a perspectiva positivista, Canguilhem critica a visão de que o patológico seria apenas uma variação quantitativa do normal. Considerando que há uma infinitude de possibilidades fisiológicas e contextuais no processo da vida, estabelecer uma norma para que se possa afirmar a existência de saúde ou doença apenas transforma estes conceitos em um tipo de ideal. Porém, a rigor, isso implica um ideal vago e que nunca é alcançado, principalmente quando o indivíduo é visto em relação ao seu contexto e às características únicas em sua totalidade. Assim, Canguilhem questiona a visão de que doença pode ser efetivamente uma realidade objetiva – alheia ao processo de vida do sujeito – acessível ao conhecimento científico quantitativo, e ainda afirma em oposição a esta visão de que a continuidade de estágios intermediários, não anula a diversidade dos extremos.

Indo ao encontro com as ideias de Claude Bernard, o autor ainda propõe que haja uma diferenciação qualitativa do estado patológico com relação ao estado normal de um organismo, já que em cada estado o organismo pode produzir comportamentos completamente diferentes. Nesta concepção, uma função do organismo pode ser considerada normal quando independe do resultado que ela produz. "O estômago normal digere sem se digerir". (p.59)

A partir da afirmação de Leriche, o livro ainda aponta para um aspecto que cabe destacar até mesmo por abrir espaço na discussão do campo da psicopatologia. Leriche argumenta que saúde é o silêncio dos órgãos, porém para Canguilhem isto implica dizer que a doença só existe, e só pode ser prevenida, pois antes existiu um doente. Isto ainda implica dizer que o primeiro a queixar-se é o doente e, portanto, a patologia do saber médico não pode estar dissociada da realidade do indivíduo. O autor ainda complementa afirmando que "não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência e que especialmente no caso que nos interessa, é o ponto de vista do doente que, no fundo, é verdadeiro" (Canguilhem, 1966, p.68).

Na visão do autor, este reducionismo positivista, advém da necessidade de uma visão organicista de se afirmar em oposição ao vitalismo, bem como um desejo terapêutico de intervenção sobre o patológico. Intervenção esta que em sua essência se baseia apenas em restaurar o organismo às normas previamente estabelecidas pela cultura, questionando a "cientificidade" de boa parte das teorizações sobre a psicopatologia.

Canguilhem propõe então que o estado patológico não é a ausência de uma norma, pois não existe vida sem normas de vida, e o estado patológico também é uma forma de se viver. O que é patológico então é uma "norma que não tolera nenhum desvio das condições na qual é válida, pois é incapaz de se tornar outra norma" (p.145). Assim o doente o é por ser incapaz de ser normativo. A saúde seria, portanto, mais do que ser normal, é ser capaz de estar adaptado às exigências do meio, e ser capaz de criar e seguir novas normas de vida, já que "o normal é viver num meio onde flutuações e novos acontecimentos são possíveis" (p.188). A saúde pode por fim ser concebida como um sentimento de segurança na vida, um sentimento de que o ser por si mesmo não se impõe nenhum limite.

Dentro desta perspectiva, é impossível julgar o normal e o patológico se este estiver limitado à vida fisiológica e vegetativa. Como exemplo é citado o astigmatismo, que poderia ser considerado normal em uma sociedade agrícola, mas patológico para alguém que estivesse na marinha ou na aviação. Desta forma, só se compreende bem que são "nos meios próprios do homem, que este seja, em momentos diferentes, normal ou anormal" (p.162). Portanto, o patológico não possui uma existência em si, podendo apenas ser concebido numa relação.

Nesta visão, pode-se abstrair que a norma, não sendo uma média estatística, é algo individual, ou seja, uma noção que define as capacidades máximas de uma pessoa. Assim, cada indivíduo teria sua concepção do que é normal para si, já que a média não tolera desvios individuais que não podem ser considerados como patológicos.

As discussões propostas no presente livro vão de encontro aos conceitos atuais de psicopatologia, trazendo um tema relevante para futuras discussões entre os profissionais da saúde com relação à forma de ver o "doente". Esta leitura é indicada para os mesmos, pois os argumentos do autor possibilitam uma construção de uma visão mais crítica do assunto.

 

Referência

Serpa, O. (2003). Indivíduo, organismo e doença: a atualidade de "o normal e o patológico" de Georges Canguilhem. Psicologia Clínica, 15(1),121-135.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: adolfo.pizzinato@pucrs.br

Recebido em abril de 2010
Aceito em junho 2010

 

 

Thiago Loreto Garcia da Silva: Aluno bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) – Faculdade de Psicologia –PUCRS.
Alice Einloft Brunnet: Aluna bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) – Faculdade de Psicologia –PUCRS.
Daniele Lindern: Aluna bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) – Faculdade de Psicologia –PUCRS.
Adolfo Pizzinato: Psicólogo; Doutor em Psicologia da Educação (UAB);Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PUCRS); Tutor do Programa de Educação Tutorial (PET).

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