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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.33 Canoas dez. 2010

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Escrever uma vida: biografia e acontecimento

 

To write a life: happening (événement) and biographeme

 

 

Sara Hartmann; Tania Mara Galli Fonseca

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional

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RESUMO

Este artigo discute a temática da escrita de vida, a partir de um campo de problematizações em que ela difere de uma ordenação dos signos que aparecem ao pesquisador. Integra a experiência de escrita com vidas de arquivo do projeto de pesquisa "Potência Clínica das Memórias da Loucura", cujo campo é o Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. A investigação teórica do conceito de acontecimento, com Gilles Deleuze, faz da escrita uma seta para o que mais pode um corpo, uma pesquisa, uma linguagem. A tarefa que se coloca é a de extrair de uma vida suas potencialidades, na aspiração de ser justo com o que dela insiste, e resiste em ser significado. É assim que se encontra o biografema, ferramenta de escrita de vida proposta por Roland Barthes, que sugere uma procura pelos pormenores injustificáveis de uma existência. É contar o que dela sobrevive à tentação de torná-la inteira, total, autoexplicativa. Procura traduzir-se, assim, a vida em estado de criação, enquanto índice de singularidades que ultrapassam a existência pessoal.

Palavras-chave: Escrita, Hospital psiquiátrico, Acontecimento, Biografema.


ABSTRACT

This article discusses the theme of life writing, in a field of problematization in which it differs from an ordering of signs that emerges to the researcher. It integrates the experience of writing lives of archive, in the research project "Clinical Potency of Memoirs of Madness", whose field is the Collection of the Creativity Workshop in São Pedro Psychiatric Hospital, in Porto Alegre. The theoretical investigation on the concept of happenning (événement), by Gilles Deleuze, makes of writing an arrow pointing to what else can a body, a research, a language. The task that arises is that of extracting of a life its potential, on the aspiration of being fair to what insists, and resists to be signified. It is in such a way that we find the biographems, Roland Barthes' life writing tool, that suggests a search for the unjustifiable details of an existence. To tell what survives to the temptation of making it fulfilled, total, self-explanatory. We seek to translate, therefore, life in creation state, such as an index of singularities that goes beyond personal existence.

Keywords: Writing, Psychiatric hospital, Happening (Événement), Biographeme.


 

 

Campo problemático

O que dizer de uma vida? Essa é a pergunta que movimenta a escrever, desde nosso encontro com certas vidas que, insistentemente, escrevem-se ou são escritas nos registros de um hospital psiquiátrico1. Trata-se de vidas que habitam papéis e algumas fotografias, em um conjunto de registros traçado a diversas mãos: aquelas dos próprios internos ao hospital, de médicos, de enfermeiros, de psicólogos, de estagiários. É no Acervo da Oficina de Criatividade, portanto, que esses documentos foram reunidos, a fim de preservar a produção ali realizada desde 1990 até hoje – a qual já soma aproximadamente dez mil trabalhos –, e de garantir a possibilidade de exploração de sua potência expressiva. Para tanto, o Acervo conta ainda com diários de registro, fotografias de atividades, trabalhos acadêmicos, notícias de jornal e convites de exposições. Foi a partir da afetação com as produções dos internos que passamos a nos interessar por suas histórias de vida, em busca de possíveis correspondências entre vidas e obras. Os prontuários de internação, assim, passaram a compor também a pesquisa, sem que com isso fosse possível assentar nosso inquietante trânsito entre esquecimento e memória. Já que, a princípio, toda vida escrita parece estar envolta por uma neblina densa, a partir da qual conclusões soam abusivas. Mas eis que descobrimos, aos poucos, questões pertinentes ao ambiente em que se vasculha, as quais ultrapassam as vidas pessoais. Estamos mergulhados em um arquivo que inclui, portanto, produções dessas vidas, sabendo que, dali em diante, será como doar calor a um corpo, na aspiração de dizer o que ele nos provocou. As vidas do arquivo já nos arrastaram, e cremos que podem arrastar os sentidos de quem delas se aproxima.

Pensamos as vidas, desde esse encontro, como compósitos de signos soltos, os quais invocam planos possíveis de serem compartilhados. Trata-se de um espaço entrevidas, portanto, o que produz rumor. É o que faz uma vida – esta ou aquela, qualquer e irredutível – deixar rastros atrás de si. Sabemos estar longe, e cada vez mais perto, de algo que não deixa de ser uma passagem, já que dessas existências tomamos o que pôde proliferar em nós. Elas, por sua vez, vão nos tomando a imaginação, prenhes de muitas outras. A certo ponto, perguntamo-nos se não se trata dos possíveis de uma qualquer vida, e não de muitas vidas diferentes.

Ainda, basta dizer que entre as altas paredes do hospital encontramos muitas sombras inexploradas. Investigá-las nos lança em espaços em branco, procurando povoar aquilo que habita os registros. Dedicamo-nos a efeitos de real: "é uma cena pintada que a linguagem assume" (Barthes, 2004, p.186). Quando tomar a realidade como aquilo que se apresenta, numa ideia de mundo concreto e dado, não passaria de resistência ao sentido. Acreditamos que o que vive pode significar e variar.

Toda vida que se quer escrever, assim, precisa ser inflada a partir de seus rastros. São traços com os quais se escolhe inscrever, organizar, justificar, ilustrar, irromper ou reviver. A maneira de proceder vem responder à pergunta: o que caberá aos idos? Questão mais espinhenta, quanto o que se vai fazer não contará com uma voz de retorno. Suas vidas servirão, assim espera-se, para abrir caminho entre aquelas de um jeito ou de outro escarnecidas, encerradas.

Para Foucault (2006), a escrita de vidas infames formava cristais de acesso a mundos. Algo lhe parecia insistir sob palavras lisas como pedra. Aqui, escolhemos fustigar uma tranquilidade tacitamente assumida, segundo a qual o que está dito fica sem pronunciação póstuma. São agitações demais em um encontro para que pudéssemos passar os olhos e seguir, sem parada. Dali não se pode sair incólume, já que não é de se esperar pés sem marcas após uma caminhada sobre pedregulhos. Ou escolhe-se fazer outra coisa.

Adentraremos, para tanto, algumas temáticas que foram construindo a presente reflexão. Trataremos de experimentar campos sem procurar explicitar, de antemão, todas as conexões entre eles. Ao final, será proposta a estratégia metodológica de escrita de vida chamada biografema, a partir da qual intentaremos reunir as contribuições desenvolvidas ao longo do artigo. Convidamos ao leitor para esse (des) caminho, que só tem como guia a pertinência ao tema da escrita, desde produções com a loucura e a desrazão2.

 

Acontecimento

O encontro com vidas de arquivo faz-nos alargar a ideia de tempo para além da cronologia. Surge um tempo irregular, povoado de intensidades, algo das quais passa a nos aparecer mesmo longe dos papéis do hospital. Isto, do qual não sabemos o nome, toca o pensamento e sugere quanto ao que pode ser pensado com tais vidas. Já não se é o mesmo: as existências envolvidas vão sendo recolocadas em relação a uma referência que se move. Deleuze (2007), em seu exercício retumbante em torno de uma lógica do sentido, deixa pistas que tomamos em nosso caminho.

Assim, deparamo-nos com a fórmula segundo a qual o que acontece não remete apenas a fatos e horas dizíveis. Tomamos alguns simples indícios: como situar o início e o fim de uma transformação que se dá em nossa vida? Como explicar o encontro com certo objeto que, nunca antes visto, faz retornar uma fraca memória? Alguns fatos parecem constituir uma bolsa paralela à organização temporal em etapas. Todo acontecimento, nesse sentido, é uma névoa, uma história embrulhada. Não se pega com as mãos, nunca, a ação do passar-se. Passa-se por ela, ou melhor, algo passa através nós, e imediatamente segue uma linha que nos ultrapassa.

Trata-se de "uma parte sombria e secreta, que não para de se subtrair ou de se acrescentar a sua atualização" (Deleuze, 1992, p.202), assim como a fugidia liberação de fumaça para cada fibra de madeira queimada. Assim, é como se para cada estado de corpos dado, algo tivesse se guardado, e seguisse em sobrevoo àquilo que se atualizou. Impossível de ser esgotada, em cada efetuação, toda a potência de certo estado. Por isso, essa parte do acontecimento adquire caráter imaterial e incorporal, no que é pura reserva em relação à efetuação; no que aponta para o que mais pode um corpo, um estado de corpos, uma situação qualquer.

Só é possível, então, falar de uma vida enquanto toque no transcendental. Vida impessoal, incapturável, que precisa ter seu tempo desenrolado. Havendo no acontecimento uma parte que sua própria realização não basta para realizar, instaura-se uma duração, em que passado e futuro acompanham o presente. Um tempo próprio, portanto, este do acontecimento: Aion3 infinitamente subdivisível, sempre já passado e eternamente por vir. Tempo que se estende em linha reta, ilimitada nos dois sentidos, percorrida constantemente por um instante aberto, de modo que não retorne senão o tornar-se.

O que não se pode capturar, esta espécie de núcleo duro do acontecimento, tomamos aqui como o que nos dá sinal e nos espera em direção ao que pode ser mais potente. Convergir ao que ultrapassa a efetuação, aparece-nos enquanto abertura, mas que só pode envolver destruição, no que concerne a formas já cimentadas de viver. Acontecimento sempre fundado em algo, e muito grande para qualquer um. Impossível desfazer-se dessa ambiguidade, desse crescimento em mão dupla, de maneira que remontar o acontecimento envolveria, primeiro, não restringi-lo. Vislumbramos, para a escrita a partir do acontecimento, a necessidade de uma linguagem hesitante e fragmentada.

Linguagem que operaria como verbo no infinitivo, destacada das conjugações. Que poderia dizer, simultaneamente, da efetuação em um corpo e do efeito incorporal do acontecimento. Tomamos o exemplo escrever: envolve e nele está envolvido o ato de escrita, os escreventes, os papéis rabiscados, ou seja, é o que se atualiza em cada um desses elementos, e o que guarda ainda uma reserva em relação a cada um. O sentido de um acontecimento é então o próprio acontecimento, ou seja, a expressão de algo que vem à tona. O seu poder de gênese não respeita as formas estabelecidas, nem remete o novo a alguma significação já dada. Mas coloca-se como algo que, a despeito de todas as formas que encarna, e das quais depende, resta ainda como potencia de mais efetuar e diferir.

Um acontecimento, assim, diz respeito mais ao devir do que aos estados. Ele invoca o povo em um corpo, o múltiplo em cada um. Para Rajchman (1991, p.60), "o acontecimento não chega nunca ao sujeito; é por isto que o sujeito se torna outro que aquele que ele é". Sabemos, assim, que quando vidas se esbarram, elas diferem em relação ao que vinham sendo. Acontecer aponta às intensidades de cada ponto de um corpo criado no contato. Nesse caso, contato entre as vidas escritas em arquivo e aquelas vidas leitoras/pesquisadoras, que reescrevem a partir do que leem, não sem serem impulsionadas por afetos provocados na leitura. Escrever uma vida, assim, não levará ao reconhecimento de traços ou rostos, mas a um retraçar constante, em que caberá aos leitores posteriores, ainda, um fechamento.

 

Toque indizível

Sempre o que passou, e ainda passará, a morte revela o impessoal da existência, escapando a si mesma e aos homens. Nunca é experimentada agora. Em um texto fino e forte, Deleuze (2002, p.12-13) assinala este momento em que "a vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, mas singular, que desprende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior".

Na extremidade da morte de algumas das vidas com as quais nos ocupamos, morte muitas vezes anunciada em diários de registro da oficina, há a abertura de uma região de sentido. Aparecem aos poucos alguns personagens comovidos, sejam trabalhadores, sejam internos do hospital, e retomam-se rituais cotidianos em figurações de ausência que trazem à tona, mais do que uma individualidade, uma certa força que parece persistir. É momento em que algo agarra as palavras, algo que fez, com tais pessoas, uma passagem. Tomando da morte sua finura e peso, o encontro com esses escritos aponta para a especificidade desse acontecimento que nos toca, o de vidas que desaparecem deixando atrás de si o silêncio ou o grito, mas nunca uma existência assentada e apaziguada.

Resta conosco um conjunto de traços, experimentações, derivações. Momento sobre o qual ninguém se apodera, na proximidade e cercados da morte, quem trava embate? O quê? É uma vida que toma ainda lugar, insistindo próxima ao desaparecimento. Leva-nos a um campo o qual não tem a forma de uma consciência sintética ou de uma identidade subjetiva. É porque há no que acontece algo mais que toma lugar, que podemos ainda escrever essas vidas.

O que não é nem individual, nem pessoal, lembra Deleuze (2007), são as emissões de singularidades. Os verdadeiros acontecimentos e as singularidades que neles circulam são um momento de ser; o primeiro momento pré-individual, suposto por todos os outros. Trata-se de alguma coisa que se destaca, com a propriedade de capturar do pré-individual um pedaço de ser que é expressivo sendo pedaço, e ainda não encerrado em um indivíduo. Os bebês são que provêm imagens dessas singularidades, através de um sorriso, uma careta, um pedido que compõem com o ar em que se colocam, sem estarem ligados a uma pessoa identificada.

Para a construção das individualidades, as singularidades serviriam de princípio: cada indivíduo envolve um certo número de singularidades e exprime as relações entre elas, fazendo-o em relação ao seu próprio corpo. Cria-se um corpo com o mundo na individuação, valendo-se do que nele preexiste, sempre através de uma atualização pela diferença.

Dramatização de forças a partir de uma espécie de ovo, reduto de instâncias dinâmicas. Dele retira-se a matéria pré-individual, a fim de que se arme uma individuação. Como condições da experiência, haveriam "intensidades puras envolvidas numa profundidade, num spatium intensivo que preexiste a toda qualidade assim como a todo extenso" (Deleuze, 2006, p.132). A individuação seria intensiva, e a intensidade, diferença, de maneira que as diferenças de intensidade entram em comunicação por um elemento precursor, indicador de caminho. Nessa compreensão, o sujeito só pode ser larvar, ou seja, ainda um esboço, dormente de possibilidades.

O núcleo duro do acontecimento é então uma porção irredutível de pré-individual, que passa pela operação de individuação, sem ser efetiva ou totalmente individuada. Desde o que toda vida é um processo de demolição, como já pontuamos, e escreveu Fitzgerald (citado por Deleuze, 2007): em direção ao impessoal, à abertura, ao irredutível. Tratá-la diferente disso envolveria, necessariamente, um cercamento; tratá-la desse modo desafia as formas de expressão da linguagem.

 

Experimentar com a linguagem

A escrita dessas vidas se situa no cruzamento entre linguagens de razão e desrazão. Por um lado, há a escrita que se vale de um saber sobre o desvio identificado na loucura, saber que procura afirmar sua posição através do exercício de determinadas práticas. É o caso dos registros em que aparecem juízos sobre o valor deste ou daquele comportamento, e que nos colocam frente ao desafio de não valorar, também nós, seja o que é descrito, seja a posição desde a qual esse saber escreve. Por outro lado, as produções dos internos fazem abalar os modos de enunciação de que fazem uso os profissionais da saúde e também a pesquisa, de maneira a fazer passar, na escrita, algo antes insuspeito, algo que toma lugar nas palavras a partir de um contato com a margem do que possibilita os regimes de significação.

Podemos dizer, a esse respeito, que se trata de uma linguagem fazendo passagem abaixo do sentido, quando signo, paixão e ação do corpo se confundem. As palavras parecem ser capazes de atos diretos, de invasões sem mediação em relação aos corpos. A vida, constantemente em risco. Toma lugar uma espécie de força subterrânea incontrolável, diante da qual a palavra não recolhe ou exprime um efeito incorporal do acontecimento, sendo que esse não se distingue de sua efetuação. Assim, são corpos mergulhados à profundidade dos afetos, sem poder emergir através de alguma linha que selecione esta ou aquela direção.

Procurando adentrar essa profundidade, vamos encontrar o reverso da organização almejada pelos saberes sobre a loucura. São forças que abalam aquilo que se reconhece como individualidade, provocando certa indistinção entre fazer uso da linguagem e tomar carne pela palavra. Para muitos autores (Pélbart, 1989; Deleuze, 2007; Foucault, 2009), trata-se do que margeia e permite mesmo toda organização, um campo onde só há as forças que tudo compõem. Dizendo de outra forma, em relação ao acontecimento: "O pensamento nasce de uma paixão, no bordo da fissura. Mas se a sua fenda se aprofunda e se agrava, se sua falha incorporal aí se vem encarnar, é então a superfície toda inteira, e a possibilidade mesma de pensar, que se afunda no sem-fundo" (Rogozinsky, 1991, p.76-77).

Quanto a essas produções, de todo modo, não se trata sempre de um espaço sem-fundo. Se por um lado são palavras e formas que invadem, e a impressão é de a vida tornar-se um fio tênue, equilibrando-se nas folhas de desenho; por outro, é a própria produção que parece lançar os corpos em algo que escapa à completa captura, ainda que escape também com fragilidade. Muito particularmente, é o que pode ser percebido em desenhos e escritas que colocam em questão práticas do próprio hospital, como aquela que serve de denúncia ao embaralhamento entre nomes próprios e remédios ingeridos4.

Passamos a nos perguntar, então, que corpo tem sua potência de pensar efetuada como um adoecer? Deleuze, sobre Nietzsche, diz que a doença lhe dá uma nova causalidade, "um estilo em uma obra no lugar de uma mistura no corpo" (Deleuze, 2007, p.111). Nova causalidade, portanto, que inspira toda a obra e coinspira a vida. Ao escrever com essas vidas, portanto, abre-se a nós o espaço de uma tomada de posição em relação ao que lhes cabe, ao que significa seus trabalhos, a de que são capazes. Espaço que se coloca em todo trabalho com vidas, e que não é exclusivo ao movimento da pesquisa. De todo modo, é o perigo e a potência que envolve todo registro de uma vida, na medida em que a escrita também se constitui como uma prática que tem efeitos sobre os corpos dos quais escreve.

Sob outra perspectiva, perguntamo-nos ainda como escrever a partir da vertigem em que se situam (e nos situam) as produções de internos de um hospital psiquiátrico. Vertigem que é fonte de estranhamento, com o qual procuramos habitar o espaço intervalar a que somos lançados. Espaço, em todo caso, topologicamente preenchido, sem vazios de um ponto a outro, onde razão e desrazão não são extremos opostos, mas condensações provisórias de forças. É assim que uma espécie de língua estrangeira toma lugar, um tênue desligamento de que nos servimos para dizer tais vidas. Pois se é possível habitar o rio do acontecimento, mergulhando em seu fluxo, é de onde se sai com pedaços de vivência, fragmentos de estória. Impossível sobrevir sem esquecer e transmutar.

Com Nietzsche (2005) e a inquietação pelas fissuras, invocamos ainda, em nosso socorro, a potência da força a-histórica, impura e infiel ao montante historicista. Da problematização do culto à história como possível engessamento do porvir, desponta um movimento de cegueira e infidelidade como condição para um futuro vigoroso. É o intempestivo: agir contra o tempo, e assim sobre o tempo, em favor de um tempo por vir. Seria trabalhar a partir de acontecimentos que na história se atualizam, e que, eles mesmos, fraturam também o tempo, em uma leitura que religa a história ao infinito.

Faz parte de nosso trabalho, ao escrever tais vidas, esquecer a afirmação pela qual elas estão encerradas na infâmia e/ou na genialidade. Esquecer nesse sentido nietzschiano, ou seja, o de deixar de afirmar algo que impera, de lançar-se em outra direção, a fim de potencializar o que pode vir a ser. Assim, pretendemos nos desviar do saber que se diz supra-histórico sobre a loucura, legitimado através de práticas no hospital. Toma-se um ar à frente, em um movimento rápido que levanta poeira. Anda-se em névoa, com a afirmação da vida através de algo singular; nem um abismo indiferenciado, nem identidade reconhecida. Considerando, com Deleuze (2007), cada vida como um lance de dados que faz parte de um mesmo lançar, fragmentado e reformado em cada lance. A vida, assim, é digna de mais do que uma história encerrada. Coloca-se, para nós, a necessidade de buscar novas formas para dizer novas vidas que, em seus próprios modos de se fazerem, questionam toda significação já dada, todo rebatimento em esquemas estabelecidos, todo modo de escrever e descrever pela identificação e linearidade. Justamente ao fazerem mal-uso da linguagem, seja valendo-se dela, seja através de atos que falam por si só, desafiando o que poderia, com facilidade, ser dito dela.

 

O biografema

A partir do corpus criado no contato com documentos como prontuários, diários de registro, fotografias, desenhos e escritos, a experiência com os arquivos e ritmos de vidas internas em uma espécie de interior faz suas trajetórias aparecerem fortes e intrincadas. Cada incidente, nessas vidas, é justamente indizível como totalidade, e escapa à possibilidade de integrar uma história encerrada de vida. Da mesma forma, o acontecimento não é dizível, nem buscado em seu incorporal, se não provoca uma linguagem a abalar-se em seu caráter explicativo.

Quando a pergunta é por ferramentas para contar uma vida, aparece Barthes, para quem "os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo (...) cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas" (Barthes, 2003, p.108-110). Ganha valor a opacidade e a beatitude presentes em elementos singulares, como um sorriso, uma flexão, o transcorrer de um dia, uma estação. O artigo indefinido – um, uma, uns – é então uma espécie de índice, no caminho de uma vida que está em toda parte, que é a potência completa.

Tratávamos de sublinhar a importância de uma linguagem inventada que avise sempre do inexato, saboreando a distância entre as coisas e as palavras (Amarante, 2006). Distância, justamente, encarnada e experimentada irredutivelmente na experiência da desrazão. Uma língua junto a essas vidas, então, nunca será completamente pronunciável, e sim, ruminada desde tal encontro irruptivo. Dá-se uma experiência do Fora5, estrangeiridade como borda em que vida, obra e pensamento aparecem indiscerníveis. Riscar, resmungar, chorar, correr essas vidas, são palavras-ações que emanam dos encontros, e para as quais a escrita com essas vidas aponta.

No lugar, portanto, de fazer uma biografia dessas vidas, no sentido de uma escrita que se pretende completa e explicativa, almejamos deixar fragmentos que sejam justos ao que delas insiste. Já que a vida completa é inacessível e mesmo perigosa, pelo espaço de uma interpretação que é dado a quem escreve. Além disso, o que seria mais árido ao porvir do que fazer de vidas tão hesitantes, tão potentes, a pequena história de uma perdição ou má-sorte, ou a monumental superação de uma dificuldade? Através de uma língua hesitante, arejada, que possua frestas para a formação de outros rostos com novas leituras, queremos que tais escritas possam ser mesmo infiéis a nós, justas apenas com a potencialização da vida.

O biografema é justamente delineado por Barthes como escrita de vida que não é redonda, interpretativa, fechada sobre si. Trata-se de fragmentos "cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicuristas, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão" (Barthes, 2005, p.172). Falar uma vida, portanto, que insiste como acontecimento. O sentido sendo o possível expresso dos encontros. Sentido incapturável, muitas vezes, para quem escreve.

Na ambiguidade do acontecimento está sua face íntima que é, ao mesmo tempo, impessoal. Experimentá-lo, portanto, envolve refazer para si um nascimento, a partir da "intuição volitiva ou transmutação" (Deleuze, 2007, p.152) que se engendra. Ser filho de seus próprios acontecimentos: que mais do que viver como quem busca o que está no que lhe acontece?

Vida, assim, não será um jogo em torno do que lhe falta. A desrazão, justamente, deve reaparecer por sobre a forma da loucura, que quer encerrar as potencialidades de existências submetidas aos mais duros regimes de significação. Essas vidas puderam se lançar em espaços insuspeitados, em territórios que passaram a ser existenciais, a despeito do empobrecimento em que consiste todo regime hospitalar. O esgotamento e o vazio do enclausuramento não podem ser tomados de outro modo que não como uma morte. Essa morte, todavia, deve ser encarada e povoada, na medida do possível, a fim de impossibilitar que mais vidas sejam a ela submetidas. Aquelas que são contadas, assim, apreendem-nos como os animais que povoam quem se ama. Tratamos de ligar às nossas, as multiplicidades que elas encerram, fazendo penetrarem-se. Não quaisquer, nem qualquer. Mas da vida aquilo uma, que insiste em singularidades. A fim de tornar seus percursos menos aqueles caracterizados por infelicidades pessoais, e mais como conjunto de potências singulares. Impossível, assim, escapar destas palavras, a respeito do ator e a efetuação do acontecimento:

Esta efetuação cósmica, física, ele a duplica com uma outra, à sua maneira, singularmente superficial, tanto mais nítida, cortante e pura por isso mesmo, que vem delimitar a primeira, dela, libera uma linha abstrata e não guarda do acontecimento senão o contorno e o esplendor (Deleuze 2007, p.153)

O viver, aqui, inseparável de uma força seletiva: no que acontece ele seleciona o acontecimento puro. Liberar para cada coisa, portanto, sua "porção imaculada", é encarnar, viver essas vidas atravessando as salas, as fotografias, as horas. Perseguir um rumor que se distende, e vir a cair no canto oposto. Em pedaços, levantar e tomar ar, procurar-se. A viagem torna-se vertigem, e (re)torna casa.

Um amigo insinuante, a dizer "vê comigo, lê comigo" essas vidas e seus povos, faz-se necessário (Bedin, 2008). O biografema pode se efetuar como uma companhia tangível, que puxa linhas de alguém para abaixo do nariz de quem lê. Seu critério é a paixão que abre o corpo, assim como um amigo ou amante ensina sem anunciar. As vidas, cujo vislumbre em arquivo são sempre parciais, são meiamadas.

Leem-se e escrevem-se, portanto, as existências que são deslocadas a cada encontro expressivo. Linhas de uma vida são lançadas desde o meio de um internamento, que ainda assim é exterior. Que existências senão as que se debatem, ressuscitadas desde as batalhas de expressão? Na esteira de um corpo em pedaços como as estrofes de uma poesia que sustenta as palavras pesadas. Já que "o biografema nada mais é do que uma anamnese factícia: aquela que eu atribuo ao autor que amo" (Barthes, 2003, p.126), mistura-se prazer e esforço pela justeza de uma força.

Que dizer de desejar a ferida que se nasce para encarnar? Querer o indizível da paixão que certa existência movimenta, até dizer o mínimo mais potente. A escrita biografemática faz parte de um rumor, se afirma a dupla causalidade dos acontecimentos, corporal e incorporal, como o que potencializa a vida, abala algo do entrave a uma contraefetuação. Em que a doença não é apenas ausência. No ponto móvel e preciso em que os acontecimentos se reúnem, em que se enseja operar transmutação. Transformar-se dentro da incompletude de uma vida. Fazer aparecer o que só fica com as costas voltadas. A ferida concernente às vidas, parte da fissura que cada um desenvolve ao longo de sua existência, e que a cada um antecede, é o que nunca se possui.

Escrever a partir dessas considerações passou a ser um desafio do grupo de pesquisa "Potência Clínica das Memórias da Loucura", e da equipe do Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. E ainda, uma espécie de compromisso com o que estamos ajudando a fazer dessas vidas. O grupo tem produzido diversos trabalhos, acadêmicos e não acadêmicos, a partir dessas vidas e suas produções6.

 

Referências

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Barthes, R. (2003). Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade.         [ Links ]

Barthes, R. (2004). O efeito de real. Em: R. Barthes. Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R. (2005). Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bedin, L. (2008). A vida em escrileitura: biografemas e o problema da biografia. Projeto de Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.         [ Links ]

Deleuze, G. (1992). O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34.         [ Links ]

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Foucault, M. (2006). A vida dos homens infames. Em: Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2009). História da Loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

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Rajchman, J. (1991). Lógica do sentido, ética do acontecimento. Em: C. H. Escobar (Org.), Dossier Deleuze (pp.56-61). Rio de Janeiro: Hólon Editorial.         [ Links ]

Rogozinsky, J. (1991). A fissura do pensamento. Em: C. H. Escobar (Org.), Dossier Deleuze (pp.73-77). Rio de Janeiro: Hólon Editorial.         [ Links ]

 

 

Endereço para contato
E-mail: sarabhartmann@gmail.com

Recebido em 17/09/2010
Aceito em 11/03/2011

 

 

Sara Hartmann: Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
Tania Mara Galli Fonseca: Psicóloga, professora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
1 O projeto de pesquisa "Potência Clínica das Memórias da Loucura", do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tem como eixo a temática de investigação de vidas, arte e loucura. Ele se desenvolve junto ao Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em torno de obras expressivas de moradores ou antigos moradores do hospital. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEP-PSICO), sob o Protocolo de Pesquisa número 2010021. Este artigo, ainda, deriva da dissertação de mestrado "Vida por um fio de escrita", defendida por Sara Hartmann em abril de 2011, sob orientação de Tania Mara Galli Fonseca.
2 Importante aqui distinguir esses dois termos, os quais reaparecerão ao longo do artigo. Para tal, valemo-nos do trabalho de Pélbart (1989). A desrazão se refere a uma modalidade de experiência exterior à razão, e por isso não contraditória a ela, mas com a qual uma comunicação não está excluída. A loucura, por sua vez, diz respeito ao que foi trazido à intimidade objetivante do asilo. Saber esvaziado de seu conteúdo e desarmado de seus poderes, que já não manifesta qualquer caráter inumano. Ele pode, assim, ser capturado. Nesse sentido, a desrazão foi capturada como loucura.
3 Aion e Cronos são duas leituras do tempo. Em Cronos, o presente preenche o tempo: passado e futuro são dimensões a ele relativas. No tempo Aion, passado e futuro insistem, o instante é instância que os percorre, subdividindo o presente (cf. Deleuze, 2007, p.167-173).
4 Aqui nos referimos aos trabalhos de Cenilda Ribeiro, interna falecida em 1999. Sua produção tematiza a vida cotidiana do hospital e as práticas que ali tomam lugar. Cf. Hartmann (2011).
5 "Fora" enquanto espaço disforme, de forças não efetuadas, margem que tenciona o mundo formado.
6 Destacamos o trabalho realizado para a Exposição Eu Sou Você, incluindo o site eusouvoce.com.br e o Catálogo Eu Sou Você, no prelo.