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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.33 Canoas dez. 2010

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Vivências de um serviço de psicologia junto a um núcleo de assistência judiciária

 

Experiences of a department of psychology at a legal aid practice

 

 

Sabrina Daiana CúnicoI; Caroline de Oliveira MozzaquatroI; Dorian Mônica ArpiniII; Milena Leite SilvaII

I Universidade Federal de Santa Maria. Curso de Psicologia
II Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Psicologia

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RESUMO

O estudo apresenta o resultado da experiência em mediação familiar desenvolvida em um Núcleo de Práticas Judiciárias numa instituição pública de ensino, através de projeto de extensão. O objetivo deste trabalho é compartilhar as vivências do serviço de psicologia inserido em um espaço eminentemente jurídico. A compreensão dos aspectos subjetivos envolvidos nos conflitos familiares, a saber, separação/divórcio, guarda, visitação e pensão alimentícia foi o foco de atenção das mediações familiares realizadas, as quais visaram minimizar o sofrimento e buscar o entendimento entre as partes envolvidas. Os resultados obtidos apontam a importância da inserção da psicologia junto aos conflitos de família, assim como a discussão sobre as diferentes modalidades de guarda. Destaca-se a preocupação com relação ao exercício da parentalidade quando termina a conjugalidade. Por fim, salienta-se o empoderamento das partesS na resolução de seus conflitos, um dos propósitos da mediação familiar.

Palavras-chave: Família, Relações familiares, Psicologia.


ABSTRACT

This study presents the results of the practice of family mediation developed in a Center for Judicial Practice of a public university, through an extension project. The objective is to share the experience of a psychological service implemented into an eminently legal space. The understanding of the subjective aspects involved in family disputes, namely, separation / divorce, custody, visitation and alimony were the focus of mediations conducted, which aimed to minimize the suffering and seek the understanding between the parties involved. The results indicate the importance of integrating psychology with the conflicts of family, as well as discussion about the different forms of custody. We highlight the concerns related to the exercise of parenting when the marital relationship ends. Finally, we stress the empowerment of the parties in resolving their conflicts, one of the purposes of family mediation.

Keywords: Family, Family relations, Psychology.


 

 

Introdução

A prática da Psicologia Jurídica somente foi reconhecida como uma especialidade em Psicologia no ano de 2001, embora sua atuação seja anterior a este período, tendo iniciado com o trabalho pericial na chamada Psicologia do Testemunho. Atualmente, várias frentes de atuação vêm sendo abertas, e a psicologia está em franca expansão, sendo importante, para a formação dos profissionais, a inserção da disciplina Psicologia Jurídica nos currículos dos cursos de Psicologia e também do Direito (Müller, Beiras & Cruz, 2007).

Neste atual cenário, novas possibilidades de articulação entre a Psicologia e o Direito estão sendo construídas, dentre elas o resgate de uma prática milenar de resolução de conflitos, chamada mediação. Tal resgate, especificamente na mediação familiar, vem para auxiliar nas frequentes dissoluções matrimoniais que chegam ao judiciário, e que trazem como consequência diferentes organizações familiares, quais sejam: famílias monoparentais, reconstituídas ou recompostas, entre tantas agregações de laços hoje consolidadas (Brandão, 2005).

Os litígios, em geral, se relacionam a questões de separação de patrimônio, portanto, objetivas e passíveis de divisão, o que, quando resolvido, acarretaria a satisfação entre as partes do ponto de vista do Direito (Müller, Beiras & Cruz, 2007). Todavia, questões subjetivas estão envolvidas no processo e o caráter objetivo apenas dissimula as situações dolorosas envolvidas no processo de rompimento emocional. Müller e colegas (2007) pontuam que os operadores do Direito não desenvolveram competências ao longo de sua formação para lidar com os aspectos psicológicos envolvidos no processo, deixando os atores do processo em segundo plano – com seus medos e angústias – frente à lógica binária do judiciário de culpado/inocente.

Nesse sentindo, tais autores afirmam que a mediação familiar surge no judiciário como um instrumento de trabalho que tende ao holismo, visto que além de perceber e considerar os aspectos objetivos presentes no conflito, também atenta para os aspectos afetivos e inconscientes. Dessa forma, a mediação procura chegar numa resolução aditiva, que soma e agrega, evitando a judicialização das relações afetivas (Navarro, 2007).

Sousa e Samis (2008) afirmam que a mediação familiar "colabora no sentido de um melhor encaminhamento dos processos judiciais por meio dos acordos estabelecidos, evitando, com isso, o litígio e, consequentemente, um maior desgaste emocional para as partes envolvidas" (p.133).

A Mediação Familiar pode ainda ser definida como um acompanhamento das partes envolvidas no conflito por um terceiro, neutro, imparcial e devidamente treinado (Barbosa, 2003; Navarro, 2007), o qual proporciona espaço para o componente emocional do litígio. Taylor (1997), no entanto, afirma que a neutralidade do mediador dependerá do contexto da mediação e do conflito mediado por ele. Desta forma, é fundamental que os mediadores tenham conhecimento de seus preconceitos e reações pessoais a fim de saberem lidar com suas questões no momento da mediação, preservando a sua imparcialidade no processo.

Os mediadores familiares buscam compreender as configurações vinculares existentes entre os sujeitos, ou seja, as relações que estabeleceram ao longo do tempo e foram se somando até culminar no processo judicial, sem ter com isso, o objetivo de achar quem é o culpado ou quem é o inocente (Silva, 2009). Assim, o mediador é o profissional que ajuda os pares a desfazerem o clima de antagonismo e desmistificar a ideia de que sempre haverá na disputa um vencedor e um perdedor (Chaves & Maciel, 2005).

Em busca dessas premissas que caracterizam a atuação do mediador, muitas vezes será necessário ao profissional que se abstenha de práticas que muitas vezes são definidoras de sua formação profissional. Por exemplo, o psicólogo não deve interpretar o discurso das partes envolvidas assim como ao advogado, que está exercendo a função de mediador, é vedada a defesa de um dos pares (Vicente & Biasoto, 2003).

Sabe-se que a maioria dos casos familiares conflituosos que chega à justiça traz, além do aspecto jurídico, questões emocionais sérias que envolvem rejeições, abandono, ausência de projeto de vida, entre outras (Brito, 1993), as quais justificam a presença da Psicologia no contexto judicial. Assim, legislar sobre essas novas organizações familiares é importante, mas não suficiente.

A experiência que dá origem a este artigo resulta desta articulação entre a Psicologia e o Direito, e da compreensão das questões levantadas. A prática objetivou auxiliar famílias no enfrentamento das situações que envolvessem conflitos, como: separação/divórcio, guarda de filhos, pensão alimentícia, bem como situações de violência intrafamiliar.

Buscou-se também, através da prática da mediação familiar, abrir espaço para a comunicação, muitas vezes já obstruída em função do conflito. Além disso, objetivou-se que as partes assumissem sua responsabilização com relação ao problema e visualizassem as possibilidades de resolvê-lo por meio de acordo – possibilitado através de espaços de diálogo – que sofrimento familiar fosse atenuado, permitindo aos pais melhores condições ao exercício da parentalidade.

Caracterização do local

O projeto foi realizado em um Núcleo de Práticas Judiciárias, Órgão Suplementar do Centro de Ciências Sociais e Humanas, de uma instituição federal de ensino superior. Tal órgão concentra prioritariamente suas atividades de prática jurídica nas seguintes áreas do Direito: Direito Processual Civil; Direito de Família; Direito do Trabalho; atendendo a população com renda mensal de até três salários mínimos.

Histórico do projeto

O projeto de extensão teve início no ano de 2005, organizado em dois plantões semanais nos quais os acadêmicos do curso de Psicologia ficavam à disposição do serviço para auxiliar nas situações que tivessem envolvidos conflitos de família. Nessas situações muitas vezes houve a participação conjunta na sala de atendimento dos acadêmicos do curso de Direito com os da Psicologia, quando evidenciada a necessidade. Posteriormente eram agendadas entrevistas individuais com o Serviço de Psicologia e as partes envolvidas, que poderia incluir o casal e filhos, ou apenas uma das partes, dependendo da problemática com o objetivo de melhor compreender a demanda emocional presente.

Somente no ano de 2007 o projeto ampliou suas atividades, trabalhando além do plantão semanal com a proposta da mediação familiar. Esta proposta se mantém até o ano vigente, devido aos bons resultados alcançados com a prática. O relato dessa experiência consiste no foco deste trabalho.

A prática da psicologia no núcleo de práticas judiciárias

A metodologia do trabalho se dá através de uma triagem permanente, realizada por um profissional do Serviço Social, o qual é responsável pelo encaminhamento de todos os casos referentes ao Direito de Família para o serviço de Psicologia. Em seguida, faz-se o agendamento de uma entrevista inicial pelo serviço de Psicologia com as partes envolvidas, separadamente, onde uma primeira escuta é reservada às partes que comparecem ao atendimento.

Após ouvir ambas as partes, cada qual com sua versão, um encontro é agendado e dá-se início à busca pelo diálogo, dentro das intenções buscadas pela via da mediação familiar. Conta-se aqui, no momento da mediação familiar, com a presença de um dos estagiários do curso de Psicologia, uma assistente social e um acadêmico estagiário do curso de Direito, sob a orientação de professores da Psicologia e do Direito.1

Ressalta-se que sempre que se faz necessário, possibilita-se um novo encontro somente com as estagiárias do Serviço de Psicologia, de maneira que se possa atuar em busca do esclarecimento de cada um dos envolvidos, bem como, dentro do possível, minimizar a angústia e o desgaste psíquico envolvidos num processo de tal ordem. O modo de acompanhamento dos casos é delimitado conforme a necessidade específica, podendo-se realizar tantos encontros quantos se mostrarem necessários, tendo em vista o auxílio à problemática trazida ao Serviço.

Todos os casos atendidos são registrados em um prontuário do Serviço de Psicologia, para fins de acompanhamento e de constituição de um arquivo-fonte para posterior consulta. Destaca-se que para uma melhor compreensão das situações atendidas, são realizadas reuniões da equipe envolvida visando a complementaridade de informações e a tomada de decisões.

É importante que se ressalte que esta pesquisa está respaldada nas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos (Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde) e na Resolução n° 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia.

 

Resultados e Discussão

Com vistas a compartilhar a experiência vivenciada pelo serviço de psicologia optou-se em descrever três situações trabalhadas, a saber: situação 1: o resgate da parentalidade, situação 2: a guarda compartilhada e a situação 3: a guarda exclusiva.

Situação 1: o resgate da parentalidade2

No decorrer do ano de 2010, os pedidos mais frequentes foram relacionados à pensão alimentícia, tanto no que se refere à estipulação de um valor legal quanto à revisão do valor já pago pelo outro genitor. Em algumas situações, no entanto, observou-se que a demanda inicial, no caso o valor da pensão, servia apenas como um pretexto para outras demandas subjacentes, como por exemplo, o desejo de um maior contato entre pai e filho, a intenção de atingir o ex-cônjuge em função de novas relações conjugais ou da chegada de um novo filho desse ex-companheiro, entre outras, mas que não poderia ser feito pela via do diálogo fora do âmbito judiciário.

Um relato que ilustra a situação acima descrita é o caso de Maria3. Maria procurou o Núcleo a fim de solicitar a revisão do valor pago por João ao único filho do casal. Ao longo dos 02 atendimentos com o serviço de Psicologia, Maria revelou que seu maior desejo – em função dos pedidos constantes do filho – era de que João se aproximasse da criança e exercesse de fato a função de pai. Ao melhor compreender a demanda apresentada por Maria, o serviço de Psicologia trabalhou individualmente com João questões pertinentes ao exercício da parentalidade, valendo-se do espaço proposto pela mediação familiar.

Inicialmente, João mostrou-se muito resistente ao participar de uma mediação com a ex-companheira, mas por fim, compareceu na data marcada. Neste encontro, Maria, com o auxílio do estagiário da Psicologia, conseguiu expressar que a revisão do valor da pensão alimentícia era o que menos a preocupava, sua real intenção era despertar neste pai o desejo de exercer um papel mais participativo em relação ao filho. João por fim, vencendo resistências, se propõe a procurar o filho e aproximar- se dele.

Na mediação feita com Maria e João estava claro que com o fim da relação conjugal, João afastou-se do filho na tentativa de afastar-se também de Maria. Estudo realizado por Corso & Corso (2011) evidenciou que muitos casais após a separação anulam a experiência familiar anterior, agindo como se pudessem fundar a primeira família novamente. Como consequência, se excluem da vida dos filhos, frutos da antiga relação, desligando-se afetivamente também destes, que se tornam a lembrança de um passado que prefeririam esquecer. Neste caso específico, os dois genitores fundaram uma nova família, tornando evidente o fato de que o passado conjugal de ambos continuaria anulado se não fosse o pedido do filho pela presença do pai.

Uma dissolução familiar não ocorre por acaso e não pode ser considerada como resultado de um único acontecimento, pelo contrário, ela resulta de um somatório de conflitos já existentes (Lima, 2008). No entanto, é importante que os pais compreendam que, após o rompimento da relação, o que se reconfigura é o estado referente à conjugalidade e não à parentalidade (Brito, 2005), fato que foi amplamente discutido com João ao longo dos atendimentos.

Paralelo a isso, aquele genitor que não detém a guarda da criança pode se sentir destituído da sua função e entender que ocupa um papel inferior na educação e desenvolvimento dos filhos, tendo dificuldades de interagir com eles (Brandão, 2005). Este sentimento de inferioridade também pode ter colaborado para o afastamento de João em relação a seu filho. Em estudo realizado com mães e pais separados no Rio de Janeiro, Pereira, Silva e Gomes (2008) referem à insatisfação de ambos, guardião e não guardião no exercício dos papéis. Além disso, o privilégio concedido à maternidade na guarda dos filhos pode ter gerado dificuldades no exercício da paternidade, afastando o pai do convívio e da influência sobre os filhos após a separação (Brito, 2005).

Durante um dos atendimentos com a Psicologia, Maria afirmou que sua vontade de procurar João partiu de um desejo intenso do filho do casal de aproximar-se do pai. Entende–se que o divórcio visa romper o vínculo matrimonial, mas não se propõe a cortar os laços familiares (Chaves & Maciel, 2005), fato que muitas vezes não é reconhecido pelos pais e precisa ser lembrado pelas crianças. Ao casal, cabe a autonomia para decidir o tempo de duração da relação que estabeleceram, porém com relação à filiação, não deveria existir a dissolução dessa relação (Brito, 2008).

Ainda assim, entende-se que, neste caso, a mediação familiar deixou de ser um instrumento apenas jurídico, e cumpriu seu papel como facilitadora do diálogo entre as partes. Sem essa possibilidade de resolução, esses pais, afastados completamente um do outro, não teriam a oportunidade de falar sobre seu filho e buscar o resgate da função parental, já que para eles a dissolução da união conjugal, até o momento, significou também o fim dos laços parentais do pai em relação ao filho.

Nesse sentido Palma (2001) aponta para as importantes transformações no Direito de Família decorrentes das novas configurações familiares. Estas mudanças tem propiciado espaços onde as relações familiares podem ser repensadas, superando os lugares historicamente atribuídos no contexto familiar. Ao se colocar no centro das decisões o filho, abre-se espaço para a participação comum de ambos os pais e com isso percebe-se uma revalorização da paternidade e da parentalidade (Filho, 2003).

Situação 2: a guarda compartilhada4

O segundo caso diz respeito à um pai, Fábio, que procurou o Núcleo de Assistência Judiciária, pois, requeria a guarda de seu filho de 04 anos. Através da triagem inicial feita pela assistente social, o caso foi encaminhado ao serviço de Psicologia. Foram feitas 03 entrevistas individuais, as quais identificaram dificuldades de Fábio na relação com a ex-mulher, mas um vínculo muito forte com a criança. Ao longo dos atendimentos, Fábio relatou que a mãe da criança, por sua vez, havia procurado auxílio em outra instituição de assistência judiciária a fim de legitimar a guarda que já vinha exercendo. Ao ter conhecimento desta informação, o serviço de Psicologia entrou em contato com a equipe desta outra instituição a fim de propor uma mediação conjunta. Apenas uma sessão de mediação familiar foi realizada neste caso, e nela estiveram presentes uma estagiária da Psicologia, a assistente social do serviço e estagiários do Direito de ambas as instituições.

Neste contexto, onde os pais demonstravam real interesse no bem estar da criança, iniciou-se o diálogo em prol da guarda compartilhada. A primeira reação de ambos os pais foi de recusa, pois nenhum deles achava saudável que a criança tivesse dois lares e se locomovesse com seus pertences de uma casa para a outra periodicamente. Identificou-se, então, que estes pais desconheciam os pressupostos da guarda compartilhada e confundiam-na com a chamada guarda alternada.

Cabe ressaltar que a guarda compartilhada em nada se parece com a guarda alternada. Enquanto esta pressupõe uma igualdade estrita de horas que cada genitor passa com a criança, a outra estabelece uma igualdade de direito sob as decisões determinantes para a vida dos filhos (Brito, 2003).

De acordo com Lima (2008), há uma ausência de sincronia no que se refere à abordagem de papéis dos cônjuges no casamento e depois, na separação. Enquanto que no casamento a lei garante a igualdade de direitos a ambos, com a separação, a guarda passa a ser exercida apenas por um dos parceiros, enquanto ao outro cabe a função de fiscalizador. É neste contexto que a guarda compartilhada ou conjunta se apresenta como uma forma adequada para a manutenção da filiação, mesmo quando se dá o término da união matrimonial. A guarda compartilhada reafirma o princípio da coparentalidade, ou seja, rompe com a ideia de um genitor principal – guardião, que detém todos os direitos sob a criança – e um genitor secundário – o visitante que, como o próprio nome já diz, visita seus filhos estando excluído do processo de educação destes (Brito, 2003).

Destaca-se ainda que esta modalidade de guarda pode ser uma medida facilitadora ao levar-se em conta o desenvolvimento dos papéis parentais, uma vez que ela pressupõe a presença ativa de ambos os genitores, pai e mãe, e assegura à criança a manutenção de vínculos estáveis com eles (Brito, 2005). Nos raros casos em que a guarda compartilhada não é recomendável, concorda-se com Perdriolle e Hocquet, citados por Brito (2005), quando estes afirmam que dar a guarda para o genitor que se mostra mais aberto às visitas do outro genitor é uma tentativa de manter o lugar dos dois genitores na educação de seus filhos.

É importante mencionar que, embora tenha acontecido um desfecho favorável do caso, no sentido da concretização da guarda compartilhada, durante boa parte da mediação, principalmente nos momentos iniciais, ambas as partes tinham total desconhecimento da possibilidade de uma guarda conjunta. A pré-concepção de guarda unilateral para a mãe, que já vinha sendo exercida de forma informal – possivelmente originada de uma justiça que por longa data atribuiu a guarda dos filhos somente à mãe – precisou ser desconstruída para que as partes entendessem e aceitassem os preceitos norteadores da guarda compartilhada.

Além disso, observou-se, neste caso, que o casal apresentou-se à mediação com uma postura passiva em relação ao impasse da guarda, mostrando claramente que esperava que a definição do conflito fosse atribuição do mediador, da mesma forma que se espera uma resolução pelo juiz num processo judicial. Contribuindo com o tema, Müller e cols. (2007) diferenciam a mediação da arbitragem, pois quem soluciona e decide sobre a situação de conflito, na primeira, são as partes envolvidas de forma autônoma. Ao mediador cabe facilitar o discurso, para que se estabeleça uma comunicação funcional entre as partes, e estas se responsabilizem pessoalmente pelas suas decisões.

Diante do que foi exposto, conclui-se que o ponto mais significativo desta mediação foi a apropriação de ambos na resolução de seu conflito, visto que estes resolveram de forma autônoma o impasse inicial sobre a guarda do filho, concluindo que o melhor para o bem estar da criança seria a modalidade de guarda compartilhada.

Situação 3: a guarda unilateral para o pai

Viviane buscou o Núcleo de Assistência Judiciária com o objetivo de trocar o registro de nascimento de dois dos seus três filhos, visto que estavam registrados no nome de Jorge, seu ex-marido, e não no do pai biológico, seu atual companheiro. Além do exame de DNA, ela requeria a guarda da primogênita, filha biológica de Jorge.

Devido a complexidade do caso, duas mediações foram realizadas, uma para resolver a demanda da troca de registro e a outra para tratar da guarda da menina. Na primeira, estiveram presentes Viviane, seu atual marido e Jorge, ficando acordado que após o teste de DNA, se fosse comprovado que Jorge não era o pai dos filhos menores, ele não se oporia a troca do registro de nascimento das crianças.

A outra mediação envolveu apenas o ex-casal, Viviane e Jorge, em função da demanda apresentada ser referente à guarda da filha de ambos. Durante essa mediação, Jorge expôs o desejo de ter a guarda unilateral de sua filha, visto que ambos moravam juntos desde a separação há 04 anos e ainda pelo fato de ser esse também o desejo da menina.

No início, Viviane tentou valer-se da ideia de que os filhos sempre estão mais cuidados quando ficam com a mãe, mito que povoa o imaginário popular (Badinter, 1985). Porém, após os argumentos de Jorge de que a menina, com 12 anos, já teria idade para escolher com qual dos pais gostaria de morar, Viviane acabou cedendo. Ela então aceitou, não sem certo estranhamento, que o pai da menina ficasse com a função de cuidador, sendo detentor unilateral da guarda. Tal decisão só foi possível após um pensamento em conjunto dos pais em proporcionar um maior bem-estar para a filha, além do forte laço afetivo que esta e Jorge tinham.

O pedido feito por Jorge de estabelecer a guarda da filha para si parece exemplificar a ideia de Lago e Bandeira (2009) que postulam que a sociedade está buscando, por meio dos pedidos de guarda compartilhada ou de guarda unilateral para o pai, romper com uma visão já tradicional de que só a mãe é capacitada para cuidar dos filhos, mostrando que o pai também pode exercer as funções de cuidado que os filhos exigem.

As atividades e cuidados que eram normalmente atribuídos à mãe, depois da separação conjugal se tornam responsabilidade do pai também hoje em dia. Eles passam a resolver questões de alimentação, higiene, vestimentas, questões do cotidiano das quais acreditavam não estarem aptos para administrar – delegando anteriormente as funções à mãe – e se imbuindo delas. Além disso, os filhos podem perder com a separação dos pais a possibilidade de compartilhar com ambos as tarefas do dia a dia, entretanto podem ganhar em qualidade de comunicação com cada um de seus pais, possibilitando assim uma intimidade diferente da que possuíam quando eram uma família nuclear (Corso & Corso, 2011).

Porém nota-se, pela experiência no Núcleo de Assistência Judiciária, que existem poucos pedidos de guarda exclusiva do pai, dado corroborado pela pesquisa de Bottoli (2010), a qual refere que por mais que a relação dos pais esteja vivenciando importantes mudanças na contemporaneidade, a questão da guarda ainda está muito ligada à mãe. Segundo a autora, é necessário pensar a guarda como uma questão social, compreendendo a forma como a legislação tratou dessa problemática, uma vez que a guarda dos filhos foi por muito tempo entendida como um direito natural das mulheres.

Dessa forma, na busca por estudos atuais sobre a modalidade de guarda exclusiva para o pai, observou-se que, além da escassez de material, há uma visão estigmatizada de que a guarda exclusiva é "naturalmente" da mãe. Diante desse fato, pode-se pensar que a possibilidade de ingresso do pai na vida dos filhos só se tornaria possível através da modalidade da guarda compartilhada. Todavia, mesmo que a modalidade de guarda predominante no Brasil ainda seja a guarda exclusiva materna (Brito, 2003), pode-se encontrar casos como o de Jorge, que decidiu solicitar a guarda unilateral da filha, entendendo estar em condições de assumir o papel de cuidador, sendo o responsável legal da filha. Este caso abre espaço para repensarmos concepções estigmatizadas na qual a guarda somente seria dada ao pai quando a mãe teria perdido as condições de tê-la e não como uma possibilidade a ser dialogada e mediada por ambos os pais.

 

Considerações finais

A mediação familiar foi o instrumento utilizado nos atendimentos dos casos, por ser um método onde a responsabilização pela ação está nas mãos das partes envolvidas, proporcionando a autonomia destas. Dessa forma, a prática da mediação familiar se distancia da lógica binária fortemente enraizada no Direito, na qual se tem um culpado e um inocente em um processo judicial. Na mediação familiar esta lógica não está presente, já que ambos decidem através do diálogo a resolução do seu conflito, de maneira que, dentro do possível, os participantes fiquem atendidos em suas demandas.

A experiência tem evidenciado que a figura do mediador é essencial, visto que as partes procuram o serviço com a lógica adversarial calcadas em seu entendimento, sendo necessária a superação desta perspectiva de resolução de conflitos e, nesse sentido, o mediador vai buscar a desconstrução dessa concepção, tirando o sentido de que numa ação judicial o confronto será sempre necessário. Assim, abre-se a oportunidade para o diálogo, onde as questões objetivas do processo podem ser resolvidas, e, além disso, as questões emocionais também ganham um espaço, já que o mediador deve estar atento para todos os aspectos envolvidos no conflito.

Pode-se perceber que a mediação familiar foi um método eficaz na resolução dos 03 casos apresentados, uma vez que se esgotaram as possibilidades de diálogo até que as conflitivas fossem resolvidas e, mais importante, que fossem compreendidas pelas partes envolvidas. Como os sujeitos chegam com compreensões muitas vezes distorcidas, impregnadas pelo imaginário social, na mediação se abre a possibilidade de problematizar tais construções, permitindo que as partes encontrem a solução que melhor respondam as suas demandas, ampliando as possibilidades de pensar e avaliar a situação.

Por fim, entende-se que o presente trabalho contribuiu para os estudos acerca da prática da mediação familiar, e de como esta pode auxiliar na resolução de conflitos familiares, sobretudo naquelas temáticas que envolvem a família contemporânea, como a guarda de filhos e a parentalidade. Entende-se, contudo, que este artigo não tem a intenção de abarcar a complexidade da temática proposta e que outros estudos e relatos de experiência são necessários para que se possa melhor compreender a prática da Psicologia nesse contexto jurídico.

Destaca-se ainda a importância da prática interdisciplinar construída nesta experiência, evidenciando que diferentes olhares, com especificidades distintas e convergentes ampliam a compreensão dos fenômenos vivenciados, superando as visões unidisciplinares historicamente construídas.

 

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Endereço para contato
E-mail: sabrinacunico@yahoo.com.br

Recebido em 14/04/2011
Aceito em 04/08/2011

 

 

Sabrina Daiana Cúnico: Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria, Bolsista FIEX/UFSM.
Caroline de Oliveira Mozzaquatro: Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria, Bolsista IC. FAPERGS.
Dorian Mônica Arpini: Psicóloga, Prof.ª Dr.ª do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
Milena Leite Silva: Psicóloga, Professora do Curso de Psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
1 No momento da mediação familiar se encontram presentes na sala um acadêmico do curso de Direito, um acadêmico do curso de Psicologia e a Assistente Social, funcionária da instituição. Os professores orientadores não estão presentes, sendo a discussão do caso realizada em outro momento.
2 A parentalidade é entendida conforme aponta Solis-Ponton (2004) como o estudo dos vínculos de parentesco e dos processos psicológicos envolvidos nestas relações.
3 O nome de todos os participantes é fictício, tendo em vista a não identificação dos mesmos.
4 Sobre a guarda compartilhada e unilateral/exclusiva ver Lei n.11.698 de 13 de junho de 2008.