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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.34 Canoas abr. 2011

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O uso de maconha como estratégia de redução de danos em dependentes de crack

 

The use of marijuana as strategy for reducing damages for crack in attached

 

 

Amanda Schreiner PereiraI; Rudiane Ferrari Wurfel

I Universidade Luterana do Brasil - Santa Maria

Endereço para contato

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou conhecer o pensamento de toxicômanos sobre o uso de maconha durante o tratamento para abuso do crack. Participaram 10 sujeitos do sexo masculino, entre 15 e 36 anos, em tratamento nos CAPSi e CAPSad na cidade de Santa Maria/RS. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e submetidas à Análise de Conteúdo. Pode-se inferir duas percepções: a de que o uso de maconha propicia diminuição da “fissura" pelo crack, o que auxiliaria na abstinência do mesmo (referência dos usuários que utilizam a maconha durante tratamento) e a de que a maconha seria uma via de retorno ao uso do crack (percepção dos sujeitos que não fazem uso de nenhum tipo de droga ilícita). Concluiu-se que o uso de maconha pode se enquadrar como estratégia de redução de danos aos usuários de crack, sendo uma possibilidade no tratamento.

Palavras-chave: Toxicomania, Cocaína crack, Redução de danos


ABSTRACT

This study aimed to know the thoughts of the addicted people about the marijuana use under their treatment of crack abusive use. Ten male crack users, between fifteen and thirty-five years old participated in this research. They were in treatment in CAPS and CAPSad in Santa Maria/RS. Semi structured researches were performed and submitted to the content analyze. We can infer two perceptions: the use of marijuana propitiate decrease the crack fissure, what would help in the abstinence of the user ( reference taken from the addicted that use marijuana during the treatment) and that marijuana would be a way of return to the crack addiction (perception from the users that don't use any kind of unlawfully drug). We conclude that the marijuana use can fit like a strategy of crack users damage decrease, being a possibility in the treatment.

Keywords: Addiction, Cocaine crack, Decrease of damages.


 

 

Introdução

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a dependência química é considerada um problema de saúde pública, mostrando-se a necessidade em tratar essa doença desde sua manifestação no indivíduo, assim como ao longo de sua vida. O crack tem sido um tema amplamente debatido, sendo chamado por muitos como a droga da atualidade, pelo seu alto grau de fissura e por ser uma droga de custo baixo, entre outras características. A prática de redução de danos em CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) também é outro tema frequentemente debatido, gerando grande discussão entre especialistas, pois alguns acreditam que o Ministério da Saúde, através da Política de Redução de Danos, orienta como consumir entorpecentes (Lemos, 2009), considerando que, diante da impossibilidade de cessar o uso de entorpecentes, o adicto pode, dessa forma, diminuir o uso ou migrar para padrões menos danosos (Brasil, 2008).

A partir da experiência das autoras como trabalhadoras do Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência (CAPSi) e do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad), no município de Santa Maria-RS, atentou-se ao fenômeno da substituição da droga nestes usuários.

Outro fator que nos motivou inicialmente ao trabalho foi o grande fluxo da demanda de toxicômanos crianças, adolescentes e adultos que visam recuperação através de atendimento especializado, o que acaba excedendo a capacidade dos serviços. Observou-se ainda, uma necessidade em abordar os impactos da estratégia de redução de danos nos usuários de crack em tratamento, visto que pode haver uma distorção deste mecanismo, mostrando-se significativa a substituição do crack pelo uso excessivo de maconha.

É relevante ressaltar a devastação que o uso do crack vem fazendo na vida dos usuários, na vida dos familiares e na sociedade em geral, embora, Segundo Domanico (2006), em alguns estados o crack tenha demorado mais tempo para se expandir, pois os traficantes tentaram barrar a distribuição e uso da droga, acreditando que ela levaria a uma desorganização nas vidas das pessoas, tanto de quem vende quanto de quem é usuário, o que não geraria lucros em longo prazo. Em uma publicação, Trezzi (2009) confirma esta ideia relatando que até mesmo traficantes afirmam que não irão mais vender crack e admitem represálias severas a quem comercializar a droga em seus bairros de atuação.

Em contrapartida, algumas das razões para explicar como o crack se alastrou em grandes cidades são: o baixo custo, o efeito rápido e intenso e o fato de ser uma droga de fácil utilização (consumo de forma fumada), dispensando seringas como na cocaína injetável, apresentando assim uma maior aceitação social (Andrade & Espinheira, 2008). Comparando-se a outros tipos de drogas, o crack apresenta maior risco de dependência pelo alto grau de fissura, formando um círculo vicioso, onde os usuários passam a fazer uso contínuo da substância (Brasil, 2008).

O efeito prazeroso da referida droga chega imediatamente ao sistema nervoso provocando uma estimulação emocional instantânea, sendo que a duração desse efeito também é rápida.

Este fenômeno pode ser explicado pelo fato das toxicomanias serem o resultado de uma tentativa de fuga e alívio das angústias, causadas pela vida em sociedade (Freud, 1930/1980), onde essa sociedade cria as suas leis, delimitando o que é certo ou errado, impelindo seguir a exigência de que para sermos precisamos “ter"; diante disto, a droga constitui-se como uma possibilidade de vinculação a pares e formação de identidade perante seus iguais (Pereira, 2008). Apesar do conhecimento de que as drogas são maléficas à saúde, elas sempre existiram em nossa cultura, tanto as ilícitas quanto as lícitas, e o prazer causado por elas aos seus usuários os ajudam a enfrentar o mal-estar causado pela contemporaneidade (Conte & cols., 2004).

Conte (2003) cita que “do sujeito toxicômano muito se fala, mas pouco se escuta", pois a sociedade, geralmente, já possui uma opinião formada sobre o toxicômano, sem questionar tais consensos “resultando no ensurdecimento e no engessamento das possibilidades de escuta e de acolhimento digno". Nota-se que os toxicômanos se referem ao seu próprio mal-estar e sofrimento em último plano, pois a droga confere poder perante os outros, confrontando a sociedade através de atos de delinquência. A mesma autora ainda cita que “o mais difícil frente a este poderio das drogas é seguir apostando nos sujeitos com os quais trabalhamos".

A verdade é que familiares, amigos e a sociedade em geral acabam desacreditando no toxicômano pelos inúmeros furtos, roubos e brigas. Porém, é necessário que estes sujeitos sejam escutados e que sejam oferecidos tratamentos que estejam de acordo com as especificidades da relação com a droga.

Nesta linha de pensamento, surge a Redução de Danos (RD) como um dispositivo da Reforma Psiquiátrica (Medeiros & Petruco, 2008), tendo o CAPSad como serviço substitutivo aos leitos psiquiátricos. Visando o tratamento das toxicomanias, a estratégia de Redução de Danos (RD) foi utilizada a fim de oferecer aos alcoolistas e usuários de outras drogas, condições menos danosas à saúde. Essa estratégia defende a ideia de que o melhor é não usar nenhuma droga, porém se o adicto não consegue alcançar a abstinência, que pelo menos o faça da maneira menos prejudicial possível (Brasil, 2008; Dias e cols., 2003). A estratégia de redução de danos valoriza a tríade “droga/sujeito/contexto": a droga usada, o modelo biopsicossocial individual, e o contexto onde está inserido. Desta forma cria ações mais próximas de cada sujeito (Campos & Siqueira, 2003).

Para que uma mudança possa emergir, é importante que o usuário pense sobre o uso que faz das drogas, contemplando o tipo de relação que estabelece com a mesma, e que perceba os danos causados na sua vida em função disto (Lancetti, 2007). As Estratégias de Redução de Danos vão além destes modelos preventivos, eles se caracterizam por formar um vínculo com o usuário, rompendo a relação dual entre o usuário e a droga. Dentre as estratégias de RD, está a substituição do uso de crack pelo uso de maconha. Muitos usuários de crack relatam que, diante desta alternativa, sentem um efeito benéfico em relação à fissura e a paranóia (Campos & Siqueira, 2003; Sanchez & Nappo, 2002).

Portanto, através desse artigo,busca-se conhecer o pensamento de toxicômanos sobre o uso de maconha durante o tratamento para abuso de crack em CAPS, assim como analisar em que medida esse uso pode ser considerado uma possibilidade de tratamento como estratégia de redução de danos.

 

Método

Foi realizada uma pesquisa exploratória de abordagem qualitativa, a qual objetiva lançar hipóteses acerca das questões levantadas, proporcionando familiaridade tanto ao pesquisador quanto ao leitor em relação ao tema abordado (Lakatos & Marconi, 1991). Conforme Denzin e Lincoln (1994) os que optam pela pesquisa qualitativa estudam os fenômenos em seu setting natural e tentam dar sentido ou interpretar fenômenos nos termos das significações que as pessoas trazem para estes.

Participaram do estudo usuários de crack em tratamento em CAPS ad e CAPS i, no município de Santa Maria/RS. A amostra da pesquisa foi constituída por 10 sujeitos do sexo masculino com idades entre 15 e 36 anos, que estavam em tratamento nos CAPS há pelo menos 2 meses, tempo de tratamento mínimo utilizado como critério de inclusão para a participação na pesquisa. A amostra pautou-se na disponibilidade dos usuários, uma vez que o critério de escolha inicial dos sujeitos foi o de voluntariedade. Os serviços acessados no estudo não tinham número definido de sujeitos em tratamento, pois o grau de evasão dos usuários é elevado. Assim, foram inclusos todos os que se voluntariaram para a pesquisa durante o tempo definido para as entrevistas (um mês).

Inicialmente, o projeto foi enviado ao Núcleo de Educação e Pesquisa (NEPES) da Secretaria de Saúde do Município de Santa Maria para que fosse concedida a permissão para a realização da pesquisa. Após, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da ULBRA sob identificação CEP-2009-363H. Logo, realizou-se contato com os CAPS para a escolha dos participantes. A escolha iniciou com o acesso aos prontuários dos usuários do serviço, verificando se os mesmos estavam em tratamento para uso de crack e se preenchiam o critério de 2 meses mínimos em atendimento. Dos prontuários também foram verificados dados complementares, como: aspectos sócio demográficos e registros da equipe acerca de cada participante. Os usuários do serviço que se adequavam no perfil da pesquisa foram convidados para a mesma. Aceito o convite, os participantes acordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assim como seus responsáveis, quando eram de menor idade.

Foi utilizado como instrumento de coleta de dados uma entrevista semiestruturada, tipo de instrumento comumente utilizado em pesquisas qualitativas. Sua escolha está relacionada com o nível de diretividade e segue um roteiro de tópicos ou perguntas gerais (Bartholomew, Henderson & Márcia, 2000). Neste estudo, a entrevista continha questões como: a idade em que começou a usar drogas ilícitas; o tipo de drogas já usado; o uso atual de maconha e sua frequência; os benefícios e danos do uso e maconha e de crack; assim como dados relacionados ao tratamento: o tipo de tratamento em CAPS; histórico de internação para desintoxicação; a droga que motivou a procurar e forma de busca (espontânea/encaminhamento) para tratamento.

Os dados obtidos foram verificados através da Análise de Conteúdo. Conforme Bardin (2006), a Análise de Conteúdo caracteriza-se como um conjunto de técnicas de observação das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. Nela, o pesquisador infere conhecimentos sobre o emissor da mensagem. Esta técnica de investigação tem como finalidade chegar, através da descrição, a uma interpretação da comunicação produzida. Além disso, busca conhecer o que está por trás das palavras às quais se está investigando. Para tanto foram utilizados 3 (três) procedimentos: descrição (exploração do material), inferência e interpretação (tratamento dos resultados).

O tratamento descritivo deu-se através do registro do discurso dos entrevistados (dados brutos transcritos). Estes dados foram editados (formalmente preparados) para a manipulação da análise através da confecção de um livro de registro de entrevistas, organizado conforme a sequência de transcrição, enumerando os elementos do corpus. Uma vez organizados os dados brutos, estes passaram pelo procedimento de recorte: escolhas das unidades de registro, que são os segmentos do conteúdo a serem considerados como unidade base (visando categorização) e podem ser retiradas do texto de forma semântica, a partir de uma análise temática, ou seja, um recorte do conteúdo em tema. Por ter uma abordagem qualitativa, nesta pesquisa optou-se por este tipo de recorte, onde uma unidade de significação se liberta de um texto a partir da teoria que serve de guia à leitura. (Bardin, 2006).

Para a definição das categorias temáticas seguiu-se o modelo aberto (Laville & Dionne, 1999), pois não foram fixadas as categorias no início da análise, mas obtidas conforme seu curso. Dentro desta abordagem, agruparam-se as unidades de significação aproximada, obtendo-se um primeiro conjunto de categorias rudimentares. Comparando-se semelhanças e diferenças destas, foram realizadas novas nomeações e remanejo de categorias, visando às categorias finais. Quanto às variáveis consideradas para o processo de inferência, considerou-se: exposição seletiva das mensagens (a quem a mensagem se dirige, considerando profissão do receptor-entrevistador e o contexto em que os sujeitos se encontravam) e evolução do fluxo de comunicação (o quanto o entrevistado conseguiu se vincular à entrevistadora e expor a sua realidade). Após o exame das unidades e categorias, foram feitas reflexões articuladas à fundamentação teórica do estudo, permitindo a interpretação.

 

Resultados e discussão

A amostra foi constituída por usuários em tratamento no Centro de Atençao Psicossocial Alcool e outras drogas (CAPSad) e Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi), sendo 5 entrevistados em cada CAPS. A idade informada pelos indivíduos entrevistados como sendo o inicio do uso de drogas variou entre os 9 aos 16 anos, sendo que a maioria (total de 5) relatou começo aos 13 anos de idade. Dos 10 individuos estudados, 6 não fazem uso de maconha e 4 afirmam fazer uso diário. Considerou-se a ordem de experimentação da droga, 8 usuarios mencionaram a maconha como a primeira droga ilícita a ser experimentada, dentre estes oito usuários, dois colocaram o álcool como a droga inicial. Dos restantes, um usuário, iniciou com cocaína e outro, com cola de sapateiro. (Tabela 1).

 

 

Para a análise das respostas obtidas, foram consideradas as relações entre semelhanças e diferenças nas falas dos usuários. A análise de conteúdo permitiu a divisão em 2 (duas) categorias temáticas: “Percepção dos adictos acerca do uso de crack e maconha" e “Possibilidade de tratamento ou uso/abuso impensado?"

Percepção dos adictos acerca do uso de crack e maconha

Os danos causados pelo abuso de crack são inúmeros, de ordem física, psicológica e social, pois a droga age com efeito estimulante no organismo do usuário (Domanico, 2006; Lacerda, Cruz & Nappo, 2008). Todos estes aspectos são observados nas falas dos participantes. Na ordem física, destacam-se os problemas respiratórios, causados pela inspiração de partículas sólidas no ato de fumar a droga, a agitação motora, a perda de apetite e a falta de sono (causada pelo fato do crack ser um estimulante), rachaduras nos lábios, queimaduras nos dedos e nariz. “Na cabeça, no pensamento, a pessoa fica magra, o pulmão perde a força de respira e a cabeça que não pensa direito" (sic B17UM); “Euforia, perda dos bens" (sic J18NUM), “Minha saúde agora que ta melhorando, tinha dor no peito, emagreci" (sic A18UM);

Quanto aos aspectos psicológicos e sociais, destacam-se a perda dos vínculos familiares e sociais, os frequentes roubos, a venda dos objetos pessoais para a obtenção da droga, o descuido em relação à aparência e ao asseio pessoal. Conforme Chaves, Sanchez, Ribeiro e Nappo (2011) é frequente os dependentes colocarem-se em situações de risco para a obtenção da droga. A sequência de apontamento a seguir denota os danos:

“Perde a vontade de viver, perde a autoestima, perde os amigos, perde tudo que tem de bom" (sic D28NUM); “Eu gastava demais, vendi meu carro e fumei tudo (...) O que eu tinha de bom dentro do meu apartamento eu vendi, entende? Pra compra crack" (sic C36UM); “Tudo que eu tinha conquistado em 5 anos de casado, tinha comprado casa, carro, botei tudo fora" (sic D28NUM).

“Dinheiro no bolso a gente não tinha, se a gente conseguia 5,00 reais a gente já ia trocar pela droga" (sic F15NUM); “Bei o crack? O crack destroi, depois que tu usa 1 ou 2 vezes já ta viciado, ai tu começa a roubar de casa, começa a rouba de amigos, vizinhos, tem gente que até mata pra consegui 5, 10 reais pra fuma 1 pedra só de crack" (sic A18UM). “Só quer a droga não interessa o que tu tem de bom, se tu tem roupa boa tu vende pra compra, se tu tem tênis bom ou não, tu vende pra compra pedra (...) Roubava demais, roubava, roubava muito (...) Se eu fosse ter o que eu roubava, bãe! agora eu tava bem de vida" (sic E19UM);

Estas foram as principais queixas feitas pelos sujeitos e são características muito presentes em usuários de crack (Domanico, 2006). Essa forma derivada da cocaína é uma das drogas do nosso meio, a que causa maior fissura, fazendo com que seus usuários se tornem dependentes da droga muito rápido, utilizando de forma contínua e somando-se seus prejuízos (Brasil, 2008).

Além de aliviar a fissura pelo uso do crack, o uso de maconha foi considerado por alguns sujeitos da pesquisa (A18UM, B17UM, C36UM, D28NUM, E19UM, F15NUM e G16NUM) como uma substância que não representa prejuízos para quem usa a droga. “Eu não vejo nada de errado comigo. Eu fumo (maconha) e me sinto bem depois, não tem nada que eu possa dizer que me prejudique" (sic C36UM). “Eu tinha 13 anos quando comecei a usar maconha e agora eu to com 18, faz cinco anos já, até agora de prejudicial, prejudicial não aconteceu nada comigo e ainda só me ajuda" (sic A18UM).

Na substituição do crack pelo uso de maconha os sujeitos da pesquisa percebem uma diminuição na prática de atos ilícitos tais como roubos, assaltos, venda de objetos pessoais por drogas; menores gastos financeiros com a droga, podendo ajudar a sustentar a família; além de não afetar no cumprimento de suas tarefas. Efetivamente percebe-se que todos os benefícios explanados relacionam-se ao não uso de crack, o que é negado por aqueles que idealizam a maconha (neste caso, poderia se afirmar que estes permanecem em uma relação dual com a droga, é a droga que justifica suas conquistas).

“O benefício pra mim é que eu não fumo o crack, entendeu? Eu não saio rouba, não saio assalta" (sic A18UM). “O que eu tinha de bom dentro do meu apartamento eu vendi, entende? Pra compra o crack, e a maconha não faz isso, eu fumo uma maconha e isso não me faz gasta dinheiro" (sic C36UM). Ainda, reconhecem que a maconha permite uma mediação entre o sujeito e a droga, de modo que consegue manter as funções sociais “Na minha vida ficou tudo normal, cumpro com meus compromissos (...) mantenho a minha família" (sic C36UM). Para estes, poder-se-ia caracterizar o uso de maconha como RD.

Além da disposição em interpor um terceiro na relação dual (seja ele um tratamento, ou um compromisso), cabe sinalizar a distinção entre os níveis de dependências da maconha e do crack. A rapidez e a intensidade dos efeitos causados pelo uso de crack devem-se pela grande absorção da fumaça pelo pulmão, são fatores que favorecem a dependência pelo crack (Andrade & Espinheira, 2008). Assim, o dependente precisa encontrar formas de aliviar esta fissura, o que muitas vezes é refletido em roubos ou vendas de seus objetos pessoais, como meios para suprir sua intensa necessidade (Brasil, 2008).

Tratando-se da dependência e fissura da maconha, os estudos mostram que o número de usuários que se tornam dependentes é muito baixo, sendo que seu uso prolongado não apresenta deletérios permanentes nem prejuízos sociais, moral ou físico (Macrae, 2004). “Não há dúvidas de que cinco dias de detenção em qualquer estabelecimento policial são mais noviços à saúde física e mental que cinco anos de uso continuado de maconha" (Carlini, 2007, p.317). Mesmo assim, os estudos a respeito dos efeitos causados pelo uso de maconha em longo prazo ainda são poucos (Cruz & Felicissimo, 2008).

Alguns sujeitos da pesquisa mencionaram o uso da maconha referente ao seu efeito medicinal. Na segunda metade do século XIX, a maconha passou a ser administrada como uso medicinal para algumas doenças, hoje em dia, porém, o seu uso é proibido (Carlini, 2007; Labigalini, Rodrigues & Silveira, 1999). Entretanto a amostra apresentou relatos onde a maconha era usada em substituição da medicação. “Eu parei de tomar os remédios, daí o jeito foi começa a fuma maconha" (sic F15NUM). “Eu vi que essa solução ia ser a melhor e eu não ia precisa do medicamento (...) ao invés de usa os remédios eu uso a maconha" (sic E19UM).

Nestes casos e nos casos citados anteriormente nesta categoria, é importante manter os princípios da redução de danos, oferecendo uma relação de escuta e troca de informações (Campos & Siqueira, 2003) para que o uso da maconha não se torne compulsivo e nem que o usuário deixe de exercer suas habilidades sociais e se engajar com outras formas de controlar a fissura sem ser pelo uso da cannabis.

Possibilidade de tratamento ou uso/abuso impensado?

Em resposta às questões da entrevista, alguns entrevistados que fazem uso diário de maconha (A18UM, B17UM, C36UM e E19UM) relataram que o uso de maconha auxilia no alívio da fissura, visto que ela serve como fonte de abstinência do crack. Outros (D28NUM, F15NUM, G16NUM, H16NUM e I15NUM) que responderam não fazer uso da cannabis, afirmaram que em alguns momentos a droga também os ajudou a não usar o crack. “Eu faço o uso da maconha pra supri a necessidade de usar crack, se eu não usar maconha eu acabo recaindo no crack" (sic A18UM). “Quando eu fumo a maconha eu não fumo crack, a maconha me tira a vontade de usar crack" (sic C36UM).

A partir desta fala podemos exemplificar uma característica bastante relevante nesta pesquisa, onde a grande maioria dos entrevistados (A18UM, B17UM, C36UM, D28NUM, E19UM, F15NUM, G16NUM, H16NUM e I15NUM) respondeu que sentiam um significativo alívio da fissura em usar crack quando fumavam maconha, confirmando o que muitos estudos mostram: dependentes de crack frequentemente sentem um efeito benéfico em relação à fissura causada pelo crack quando usam maconha (Brasil, 2008; Lancetti, 2007).

A fissura pode causar alterações físicas, de comportamento e alterações do humor do dependente, é um fenômeno de desejo urgente e quase incontrolável que invade os pensamentos do usuário de drogas (Kessler & Pechansky, 2008). Após fumar um “baseado", o usuário se apresenta menos agitado e ansioso, sendo usado “pra relaxa, se desliga um pouco, esquece" (sic D28NUM), “porque a maconha te deixa morgado, dá sono, como um remédio" (sic I15NUM). Essa forma de uso, fumar maconha aliviando a fissura para não usar crack, pode se caracterizar como uma estratégia de RD, pois estaria substituindo uma droga mais pesada e prejudicial à saúde por outra que não apresenta danos permanentes quando usado em longo prazo (Brasil, 2008).

Entra em questão, neste momento, identificar o que de fato é uma perspectiva dos Programas de Redução de Danos: o consumo com consciência e responsabilidade, ou seja, colocar o usuário a relativizar, a pensar o uso/abuso das drogas (Conte e cols., 2004; Dias & cols., 2003; Lancetti, 2007), trazendo um novo olhar para o fenômeno das drogas e sua relação com as mesmas (Souza, 2007). Neste ponto pode-se fazer a distinção entre os Programas de Redução de Danos (PRD) e os “Programas de guerra contra as drogas" (proibicionistas). Os PRD auxiliam os usuários informando modos de uso de drogas mais seguros, oferecendo acolhimento e escuta às dificuldades e ajudando a conviver de forma mais respeitosa, favorecendo o bem-estar individual e coletivo (Campos & Siqueira, 2003). Desta forma, o toxicômano poderia ter um juízo mais apurado em relação ao seu uso de drogas e fazer suas próprias escolhas. Já para as políticas proibicionistas, a abstinência é a única alternativa.

As estratégias de redução de danos encontram oposições às suas práticas, por uma confusão nos conceitos, o que acaba por minimizar o real objetivo da Redução de Danos. Porém, estas estratégias constituem ações práticas e humanistas, trabalhando para diminuir os danos relacionados ao uso prejudicial de drogas (Cruz & Barbeito, 2008). “O certo não é né? O certo é não usar nenhuma droga, mas diminui a vontade de usar crack" (sic B17UM). Segundo Labigalini e cols, (1999) estudos nessa área não se tratam de ser contra ou a favor do uso de maconha, e sim de ampliarmos os conhecimentos na área de dependência química.

Quanto aos danos à saúde, também houve uma preocupação pelo modo de uso da maconha, “depende do modo de usar, tem que saber usar, tudo que tu usa moderadamente não vai te fazer mal" (sic E19UM). Portanto, o uso de maconha é usado pelos sujeitos da pesquisa em momentos em que se apresenta a fissura pelo crack. Porém, pode-se questionar se esse uso realmente se caracteriza como uma estratégia de Redução de Danos ou se faz referência a uma simples substituição de drogas, mantendo-se a relação dual de dependência.

A maioria da amostra desta pesquisa começou o uso de drogas ilícitas através da maconha (A18UM, B17UM, C36UM, D28NUM, F15NUM, G16NUM, H16NUM e J18NUM). “Eu fumava maconha na frente de casa, daí minha mãe chegava e eu tava chapado, daí ela falou que ia me internar, quando ela disse isso eu fugi de casa, daí fui pra cocaína e da cocaína fui pro crack" (sic F15NUM).

Sanchez e Nappo (2002) afirmam que a maconha como marco sequencial do uso de drogas tem uma representatividade muito elevada. Muitos usam por curiosidade e acabam migrando para drogas mais pesadas para conseguirem atingir o mesmo efeito inicial. Esta evolução sequencial incitada pelos participantes parece ser alvo de um temor ao retorno ao uso de crack, para os participantes que afirmaram não fazer mais uso de nenhuma droga, a maconha representa uma possibilidade de voltar ao uso de drogas mais pesadas, como o crack. “Eu acho que agora que eu parei faz tempo, se eu fumar maconha de novo eu acho que eu recaio de novo, porque depois que a gente para de usar droga e a gente inicia de novo, daí volta com tudo" (sic F15NUM). “Quem ta em tratamento e já parou com o crack eu não aconselho a fuma maconha, porque tu perde o foco do que tu quer (...) esquece aquilo que é teu tratamento e a maconha te deixa desleixado. Vai, vai que acaba recaindo" (sic D28NUM). “Pra quem já ta abstêmico, quem já ta há um tempo sem usar (...), todos que voltaram a fuma maconha recaíram" (sic D28NUM).

Contudo, alguns usuários não registram tal temor e negam que a maconha possa ter efeitos prejudiciais, afirmando que ela “só ajuda". Observa-se, nestes casos, que há uma negação em relação aos prejuízos que o uso abusivo poderá causar. Estas negações podem estar ligadas ao desejo incessante em ser alguém no meio qual estão inseridos, como forma de aceitação perante seus iguais, uma vez que, permanecem num contexto com os mesmos grupos sociais. Em programas de abstinência, como os tratamentos para desintoxicação, o dependente cria uma vida onde as drogas não existem e que o sujeito é fraco pelo fato de estar dependente, porém quando volta para casa, sua comunidade, seus amigos, ele se depara novamente com a vida real, onde a droga está presente. Frente a esta realidade o dependente muitas vezes acaba recaindo e assim vivendo em um eminente fracasso (Lancetti, 2007).

Segundo Lancetti (2007) um dos princípios da Redução de Danos é fazer com que os usuários de drogas pensem sobre o uso, com suas vidas com ou sem as drogas, pois somente quando conseguirem perceber o lugar que a droga ocupa em suas vidas é que será possível fazer mudanças. Considerando estas dificuldades é necessário continuar apostando na recuperação destes sujeitos (Conte, 2003). Cabe ao trabalhador de saúde mental reconhecer conquistas no momento em que elas aparecem, apontar vitórias frente ao poderio das drogas e apresentar informações e apoio (Lancetti, 2007). Cabe ainda, reconhecer quando a relação com a maconha refere-se a uma substituição nociva, ou seja, quando entre usuário-droga não há um pensante.

 

Considerações finais

Alerta-se aos limites em termos de generalizações, devido a particularidades desta pesquisa quanto a metodologia utilizada, assim como ao referencial teórico escolhido. Este estudo esgota as possibilidades de analise acerca do tema, ao contrário instiga outras questões pertinentes a pesquisa cientifica, como investigar se o uso de maconha a longo prazo tambem foi diminuído ou cessado, caracterizando assim a redução de danos. Outro fator que poderia ser analisado seria o papel da família e do emprego na continuidade da abstinência, ou seja, perceber outros fatores biopsicossocial do sujeito em questão, não somente a substituição do crack pela maconha.

 

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E-mail: psico_amanda@hotmail.com

Recebido em 13/09/2010
Aceito em 01/12/2011

 

 

Amanda Schreiner Pereira: Psicóloga (ULBRA). Especialista em Atendimento Clínico: Ênfase Psicanálise (UFRGS). Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana (UFSM). Professora dos cursos de Graduação em Psicologia, Pós-Graduação em Clínica Psicanalítica e Pós-Graduação em Saúde Pública e Atenção Psicossocial (ULBRA/Santa Maria). Psicóloga (UFSM). psico_amanda@hotmail.com
Rudiane Ferrari Wurfel: Psicóloga (ULBRA).