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versão impressa ISSN 1413-2907
Interações v.8 n.16 São Paulo dez. 2003
ARTIGOS
O declínio do erotismo no cinema nacional
Decline of erotism in brazilian cinema
Christian Ingo Lenz Dunker1
Universidade São Marcos. Programa de Pós-graduação em Psicologia
RESUMO
O artigo parte de autores da psicanálise interessados na análise da ideologia, tais como Souza (1994) e Kehl (2002), para ilustrar e interpretar o declínio temático do erotismo no cinema brasileiro da virada do século. Há uma espécie de giro trágico no Novo Cinema Brasileiro, que pode ser compreendido, segundo nossa hipótese, por meio da noção freudiana de declínio (Erniedrigung). Examina-se principalmente as oscilações da representação da feminilidade e a dominância de figurações da aceleração do gozo na sociedade brasileira. Discute-se criticamente a hipótese do declínio da imago paterna. Conclui-se pela idéia de que parece estar em formação uma nova política do erotismo, na qual a plena realização erótica, ou amorosa, não organiza o ideal regente do laço social.
Palavras-chave: Psicanálise, Erotismo, Cinema, Família, Sexualidade.
ABSTRACT
We will take authors of the psychoanalysis, interested in the analysis of the ideology, such as Souza (1994) and Kehl (2002), to illustrate and to interpret the thematic decline of the erotism in the Brazilian cinema of the end of the XX century. There is a species of tragic turn in the New Brazilian Cinema, that can be understood, under the hypothesis of this article, through the freudiana notion of decline (Erniedrigung). We examine the flotation of the representation of the feminility and the dominance of images witch presents the acceleration of jouisance in the Brazilian society. The hypothesis of the decline of the imago of the father is argued criticaly. The paper concludes endorsing the idea that seems to be in formation a new politics of erotism where the full erotic accomplishment, or love, does not organize the ideal regent of the social relationship.
Keywords: Psychoanalysis, Erotism, Cinema, Family, Sexuality.
1) A degradação da vida erótica
O erotismo é uma das esferas mais fortes de representação do Brasil. Ele se manifesta nos principais estereótipos que temos sobre nós mesmos, e também na forma como nos imaginamos sendo imaginados pelo outro. O samba, o futebol e as nossas paisagens paradisíacas distinguem-se justamente por esse toque de erotismo deslocado. Mais recentemente, na música, na moda e até mesmo no turismo, encontramos sinais claros de como nosso erotismo pode se conjugar com a lógica cultural do capitalismo tardio. Ao que tudo indica, a idéia de que erotismo faz parte do “nome da marca”, e que a partir disso devemos, com o cinismo que for necessário, explorar tal produto, foi plenamente incorporada ao projeto político nacional. Superamos algumas oposições que davam o tom moderno da questão: colonizador-colonizado, devorador-devorado (antropofagia), consumidor-consumido. Por outro lado, podemos pensar que se trata apenas de um ajuste: miséria, erotismo e exotismo assumiriam, nesse caso, apenas um formato mais ajustado ao mercando mundial e sua forma fetichista pós-moderna.
Otávio Souza, em seu estudo sobre a identidade nacional, já apontava como o próprio cultivo da diferença erótico-exótica, que nos constituiria ao olhar estrangeiro como brasileiros, é um caminho que pode tomar o sentido contrário ao desejado:
o sintoma da cultura brasileira é expresso por este tipo mesmo de queixa: a busca de identidade pela afirmação de uma diferença mais diferente que as outras diferenças. O que se deixa escapar com uma tal formulação, como já foi dito, é que sob a atitude pedagógica manifesta na cultura oficial contra a qual nos rebelamos, esconde-se o pedido de que emprestemos nosso ser para representar a essência da diferença pelo viés da aparência exótica (Souza, 1994, p. 165).
Em outras palavras, e confirmando a apreciação de Otávio Souza, quase dez anos depois, boa parte da cultura de massa incorporou a diferença erótica-exótica agora consciente do valor agregado de sua imagem. Isso se mostra de forma extensiva: erotização da infância pela propaganda, colonização pornográfica da internet, canibalização da sensualidade pela dança coletiva, exploração midiática do corpo sensual, práticas de modelagem e técnicas de modificação da imagem corporal ampliadas para o consumo interno. O erotismo pode e vem sendo ser tratado como um produto a pornografia é o melhor exemplo disso. No entanto, há uma espécie de paradoxo: quanto mais se reconhece tal produto como um produto, menor valor ele tem. O erotismo mostrouse muito eficaz como valor agregado ao objeto, mas quando ele mesmo torna-se um objeto, perde-se boa parte da potência dessa estratégia.
A imagem publicitária evoca o gozo que se consuma na própria imagem, ao mesmo tempo que promete fazer do consumidor um ser pleno e realizado. Tudo evoca o sexo ao mesmo tempo que afasta o sexual, na medida em que a mercadoria se oferece como presença segura, positivada no real, do objeto de desejo (Kehl, 2002, p. 123).
O domínio do erotismo, assim como o da violência, está continua-mente exposto à banalização, ou ao que Freud chamava de Erniedringung (Freud, 1912/1988), a degradação ou declínio do valor libidinal do objeto. A imagem que Freud evoca para exemplificar o processo é a do casal que, depois do enamoramento inicial, vê o casamento se arrastar para a tediosa repetição cotidiana. O homem de volta à roda de amigos no bar e a mulher transformada em um dragão insatisfeito e malhumorado. O enredo prossegue com a aparição de objetos consolatórios: crianças para a mulher, outras mulheres para os homens.
É este o contexto que torna compreensível o título deste artigo. Há declínio do erotismo quando este assume a figura de um produto, parte ou traço que representa a totalidade repetitiva do objeto. Há declínio do erotismo quando a diferença que o constitui transforma-se em uma diferença domesticada e previsível. No caso da experiência estética, isto ocorre quando esta é dominada pela sua própria imagem; quando, em vez de nos esquecermos que se trata de imagem, reconhecemos o artifício do engano que ela produz. É importante lembrar que isso não ocorre por efeito de ironia calculada ou por uma reversão metalingüística interna à produção da obra, mas pela sua incapacidade de surpreender o olhar do destinatário. Em outras palavras, o objeto perde seu encanto fálico, seu efeito de surpresa e passa a se localizar em uma rede previsível de antecipações.
Isto que Freud chamava de uma “mais geral tendência à degradação (ou declínio) na vida erótica dos seres humanos” pode ser desdobrado para os processos da cultura, a ponto de reconhecermos claramente seus traços na cultura de massa. Quero chamar a atenção para o fato de que tal processo adquire contornos um pouco diferentes quando olhamos para o que vem acontecendo com o cinema brasileiro, notadamente nos últimos dez anos.
2) O cinema brasileiro dos anos 90
Antes de tudo cabe assinalar algumas transformações. Na última década o cinema nacional incorpora-se definitivamente ao sistema de distribuição e divulgação das grandes produtoras. Financiamentos híbridos tornam-se mais constantes diante da Lei de Incentivo à Cultura, da participação de empresas brasileiras e consórcios americanos. Fruto desse deslocamento, o cinema nacional desprende-se um pouco do circuito europeu, onde sempre teve melhor acolhida, e passa a ser reconhecido pela chamada Academia de Holywood, primeiro com O quatrilho (Luis Carlos Barreto, 1995) e depois com Central do Brasil (Walter Salles Jr., 1998). Isso teve por efeito a formação de um grupo relativamente restrito de diretores com acesso às linhas de crédito para produção e benefícios estatais indiretos.
Concomitantemente, acompanhamos uma crescente inserção do cinema nacional junto às camadas médias. A qualidade técnica mostra uma sensível evolução, que não é fruto apenas do aumento dos insumos, mas também da aproximação gradual entre o universo da produção cinematográfica e o cinema publicitário brasileiro, ascendente nesse mesmo período. Filmes como Domésticas, e empreendimentos correlatos, foram gestados a partir de produção de filmes publicitários e são tributários em sua composição, argumento e, principalmente, montagem das técnicas e costumes da propaganda. A distribuição em formato vídeo e DVD integra-se ao sistema. Igualmente, a convergência entre cinema e o universo da televisão torna-se mais intensa, principalmente no que diz respeito ao público infantil e adolescente.
Observamos então, de forma geral, uma internacionalização e uma profissionalização de uma parte do cinema brasileiro, que acaba por incluí-lo definitivamente como parte da indústria cultural de nossa época.É evidente que junto a esse movimento devemos salientar inúmeras iniciativas que permanecem à margem deste circuito, levando adiante a tradição do cinema de vanguarda, alternativo e experimental. Mas quero me deter fundamentalmente neste cinema que reconhece claramente seu lugar como produtor de objetos estéticos para consumo das classesmédias. É neste campo que pretendo examinar a hipótese do declínio do erotismo nacional, pois é nesta porção específica do cinema brasileiro que teve que resolver mais diretamente o problema do erotismo como essência nacional.
Como sugeri acima, a entrada de produtos estéticos brasileiros no mercado mundial e sua concomitância com a expansão do mercado interno faz pensar que o erotismo nacional preste-se a representar legitimamente o nosso “nome da marca”, para recuperar a feliz expressão de Fontenelle (2001) em seu estudo sobre o McDonalds. Mas contra esta suposição, e contra a tendência histórica das pornochanchadas, das comédias maliciosas e do cinema literário impregnado de exotismo, não é isso que se verifica como central no cinema em questão.
3) Deslocamento do erotismo
O argumento genérico seria o seguinte: do ponto de vista temático, o erotismo característico da história nacional no cinema foi substituído pelo tema da crise de sentido dos relacionamentos humanos. Em outras palavras, temos um cinema que aborda sistematicamente o fracasso, a precariedade ou a periculosidade do laço social, sem que o erotismo ocupe lugar estrutural na trama ou lhe sirva, quer sob ótica romântica ou trágica, de destinação conciliatória. No lugar do erotismo vemos surgir a violência urbana, a miséria, o desencanto e o polimorfismo da vida cotidiana, dominado por uma existência errática e, no entanto, singular.
Segundo Xavier (2000), há duas tendências dominantes no cinema brasileiro a partir dos anos 60. Uma voltada para a dramaturgia familiar, situações de classe e vida política. Outra centrada nas paixões, no desejo e na sexualidade. A partir dos anos 70, e definitivamente nos anos 90, a segunda vertente torna-se hegemônica. Desta absorção do universo político e suas contradições ao campo da intimidade nasce o temachave dos anos 90: o ressentimento. As emoções envenenadas, a prepotência e as pequenas tiranias substituem as grandes alegorias em torno da decadência familiar, da ambição e da resistência à autoridade constituída, tematicamente marcantes nos anos 80. Assim a ascenção do ressentimento parece corresponder ao declínio do erotismo. Poderíamos argumentar que a violência ressentida torna-se mais palatável que o erotismo pré-fabricado, e que a miséria vem a dar nova forma a nosso exotismo, agora aderente também ao universo urbano.
Se a hipótese é válida, isso nos leva a perguntar, em segundo plano, como as narrativas do cinema brasileiro da última década conseguem nos oferecer uma alternativa à incorporação do erotismo como figuração fetichizada do objeto de consumo. Ou seja, a tese do declínio do erotismo pode ser lida em uma chave crítica. Trata-se do declínio do erotismo como forma essencializada, exótica e alienante da brasilidade, notadamente em seu veio estético.
Isso conduz a uma última questão: não estaria aí, em constituição, um outro lugar para o erotismo que não o de metonímia de nossa própria cultura? Não seria este um sinal da renovação de nossas questões, e que enfim estaríamos deslocando-nos da condenação a reencontrar sempre nossa verdade como objetos exóticos para um gozo estrangeiro?
4) Oscilações
Uma primeira série de filmes do período em questão aponta para uma pequena oscilação do lugar do erotismo. Neles o exotismo ainda se mantém presente; no entanto, já se nota, nesta vertente, um deslocamento principalmente das posições masculina e feminina, e das formas de representação da paternidade. Em O quatrilho (Luis Carlos Barreto, 1995), por exemplo, encontramos um filme que caminha no quadro do erotismo tradicional, mas o aborda segundo uma condição peculiar, ou seja, o da tensão entre amizade e desejo, aliás presente também em O que é isso, companheiro (Luis Carlos Barreto, 1996). Vimos como a amizade surge, já para Freud, como a cena de formação dos objetos consolatórios. O quatrilho aponta uma novidade interessante é a amizade entre homens e mulheres que aparece substituindo a decepção interna ao casamento. Retomando a imagem freudiana do ressentimento, poderíamos dizer que agora na mesa do bar estão também mulheres.
Essa mudança de posição da mulher se confirma em Eu, tu, eles (Andrucha Waddington, 2000), no qual acompanhamos a trajetória de uma mulher, cortadora de cana no agreste nordestino, que da posição de escolhida pelo pequeno tiranete local acaba por reunir em torno de si três homens. Vê-se assim uma espécie de efração de papéis: o pai, o amigo e o amante, todos convivendo em uma nova forma de família. O tema romântico da sobreposição entre o objeto da demanda de amor e o objeto de desejo é subvertido pela distribuição e deslocamento.É uma solução interessante, pois mostra que muito do que se poderia interpretar como patriarcalismo nada mais é do que uma posição de agente no processo de produção. O erotismo se mantém, poder-se-ia argumentar, às custas de uma posição masculina à qual a personagem se identifica. Ela sustenta a casa. Mas não é o que encontramos, e daí a mensagem crítica do filme. A posição de agente não se identifica com a masculinidade, nem traz consigo a habitual dessexualização das relações, transformada e absorvida ao plano do poder. Pelo contrário, é essa posição que permite à protagonista sustentar um erotismo não exótico nem infantilizado. Mas o preço dessa experiência de conciliação, como assinalou Xavier (2000), é a substituição do conflito por acordos pragmáticos, sem ideologia, sem religião e sem pauta moral.
Um deslocamento semelhante é encontrado em Deus é brasileiro (Carlos Diegues, 2002). História da peregrinação de Deus, na figura de Antonio Fagundes, à procura de um homem santo, perdido na floresta amazônica. Reencontramos aqui essa figura patriarcal desinvestida de sua hipertrofia habitual. Dotado de uma ironia quase cínica, o texto é uma paródia da esperança messiânica. Esse cinismo permissivo explica de certa forma o fato de que a experiência do encontro com Deus simplesmente não tenha qualquer efeito na transformação da subjetividade dos personagens. Eles estão ali da mesma forma como estavam antes do início da narrativa. Suas vidas mudaram, mas não sua forma de interpretá-las. O casal bem formado ao fim navega em sua canoa nupcial. Citação irônica de José de Alencar.
Tanto em Deus é brasileiro, como em Eu, tu, eles e em O quatrilho, há uma vertente de valorização do exotismo regional: o sertão, os pampas e a floresta amazônica são mais que cenários, alegorias de um erotismo mitigado. Nos três filmes vemos uma clara oscilação da posição da mulher em sincronia com a oscilação da figura do pai. Nele não se localiza mais a sede do poder, mas mesmo assim não se pode dizer que ele esteja ausente.
5) O declínio da imago paterna
A redução da autoridade paterna, atestada pelos filmes precedentes, tem sido usada para justificar a crise de sentido que reconhecemos nolaço social da atualidade. É necessário precisar a tese. Se entendemos por crise de sentido qualquer formação de conflito que o mantém não resolvido ou aberto, a extensão do conceito torna-o simplesmente inútil. Tomarei como ponto de partida uma concepção bastante em voga sobre a natureza dessa crise qual seja, a de que ela emana do declínio da imago paterna. Como se sabe, essa tese emergiu na psicanálise dos anos 40 (Lacan, 1948), e também pode ser encontrada com modificações em alguns autores da sociologia na mesma época, como mostrou Roudinesco (2003).
Ocorre que tal tese caiu bem na cultura, bem demais, o que nos leva à necessidade urgente de desconstruí-la. Espero que este artigo contribua indiretamente para isso. A evolução desta idéia de que o declínio do pai levou à desagregação da família, à perda dos referenciais e à contínua falta de limites que domina nossa sociedade tornou-se uma formação discursiva hegemônica. Na clínica, na escola, na segurança pública, na política, na religião e genericamente em todos os campos, onde alguma indagação ética vê-se forçosamente colocada, tal tese em suas inúmeras versões vê-se representada. Falta pai, falta pai simbólico, falta limite, falta uma posição fixa de onde a subjetividade poderia ser enfim estabilizada. Ora, temos que reconhecer, tal tese é simplesmente conservadora, ideologicamente muito conveniente e institucionalmente reprodutiva. Além disso, ela exprime de forma trivial a resposta neurótica básica diante do desejo. Desde que há neurose há apelo ao pai, e ele não está bem no lugar em que se o supõe.
Percebe-se facilmente como se poderia extrair desta tese uma interpretação confirmatória em filmes como Central do Brasil, Abril despedaçado (Walter Salles, 2001) e Lavoura arcaica (Luis Fernando Carvalho, 2001). Mas se saímos desta superfície podemos encontrar exatamente o contrário. A viagem de um menino à procura de seu pai, o trajeto de reconciliação que isso realiza em relação à inicialmente cínica escritora de cartas têm por efeito mostrar-nos que o pai está lá em seu lugar, onde ele sempre esteve. Como uma carta à espera, ausência eficaz e estruturante cujo efeito mostra-se na transformação sofrida pela protagonista. Mas há aqui uma inversão importante: é a criança que ensinaseu caminho ao adulto. É da criança que se recebe a formação de ideal que supostamente ela deveria obter como destinatária.
Em Abril despedaçado acompanhamos a saga inexorável da vingança entre duas famílias rivais, o que em tese crítica confirma a prevalência do patriarcado como instância reguladora da violência. Mas o que se vê, por outro lado, é justamente o caráter não instrumental de tal destruição. É um filme que faz mais uma vez Kant encontrar Sade. É a demonstração em ato do puro dever como absoluta irracionalidade. Ironicamente, vemos que o pleno exercício superegóico, baseado na paridade entre crime e castigo ou na reequilibração da honra, é tão sem sentido como o sem sentido a partir do qual reclamamos a presença do pai.
Finalmente, em Lavoura arcaica verificamos como o incesto, longe de ser um fracasso da instância paterna, liga-se a sua excessiva realização imaginária. Um filme com altos teores de erotismo, sem que este seja jamais reduzido ao consumo de sua imagem. Aliás, um filme altamente plástico, marcado por sua fotografia e música, justamente porque se trata de uma erótica da ausência cujos instrumentos são a alusão e o silêncio. Alta densidade narcísica, com aquela velha interioridade intimista e vertical da qual nos sentimos saudosos. O pai em seu lugar, e mesmo assim a suprema transgressão.
Mas como entender então os efeitos tão convincentes do declínio da imago paterna uma vez que isto explicaria tão bem nossa crise de sentido? Tal crise se expressaria privilegiadamente pela redução da eficácia simbólica das formações de ideal, na proliferação superegóica de imperativos de gozo e pela planificação ou achatamento da economia narcísica dos sujeitos. Três efeitos que sabemos redutíveis e clinicamente tratáveis pela rearticulação da posição paterna para um sujeito. Há controvérsias no que diz respeito ao caso do narcisismo.
No que toca o erotismo, a função paterna exerce genericamente uma função de mediação constituitiva. Ou seja, a função paterna liga aquilo que funciona como representante da falta ao próprio objeto de gozo. A função do pai é “unir o desejo à lei” ou seja, recobrir com um véu fálico e falicizante o objeto. O erotismo, quer como saber, quer como prática, quer como discurso, é sempre o domínio primeiro no qual essa cobertura fálica dialetiza-se com o objeto. Tomemos, por exemplo, a definição de Bataille:
o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e finalmente o erotismo do sagrado. Falarei destas três formas a fim de deixar bem claro que nelas o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda (Bataille, 1987, p. 15).
Ora, este sentimento de continuidade profunda é o traço do objeto. O objeto que nunca se encontra mas que permanece curiosamente contínuo nesse desencontro. A repetição de um mesmo que nunca está, mas do qual extraímos todo o gozo possível. Substituindo essa constância, recortando e indicando a cada momento sua inscrição na linguagem, está a função fálica, que articula significantes e imagens cujos contornos isoláveis fazem supor a promessa do objeto.
Se o erotismo se faz representar pela solução da experiência de descontinuidade, e se esta experiência de descontinuidade figura-se no ressentimento, podemos entender porque encontramos um tema recorrente no cinema dos anos 90 o tema do encontro inesperado. Segundo Xavier (2000), este é um tema absolutamente recorrente no cinema desse período. Tudo se passa se o desencontro, outrora motor do erotismo, se transformasse em um encontro marcado pela disparidade. Reconhecemos aqui o destino sintomático do exotismo. A velha dama indigna encontra a criança inocente em Central do Brasil; Sarah Bernard encontra três mulheres do interior de Minas, em Amélia (Ana Carolina, 2000); o torturador encontra sua vítima em Ação entre amigos (Beto Brant, 1998). Este encontro inesperado precipita a queda do objeto, a revelação de sua cobertura fálica.
Concluímos, assim, que o erotismo não equivale ao campo geral da sexualidade, ou ainda ao domínio amplo das pulsões ou do cultivo dos prazeres. Há erotismo quando a sexualidade apresenta-se de forma atualizada pela mediação de uma fantasia. Inversamente, não há erotismo, ou este declina, quando objeto e falo não se dialetizam, quer por disjunção, quer por conjunção, como procurei mostrar em outro momento (Dunker, 2002). Nos dois casos podemos falar plenamente em sexualidade, mas não em erotismo. Ora, tendo em vista que a descontinuidade, representada pela imago paterna, torna possível a continuidade no plano do erotismo, e a crer no valor estratégico do tema do encontro inesperado, bem se poderia dizer que desse encontro inesperado efetiva-se a conjectura paterna o que é cabal pelo menos em Central do Brasil.
6) Aceleração do gozo
Voltemos ao cinema. Tomemos agora uma série que inclui O invasor (Beto Brant, 2001), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Carandiru (Hector Babenco, 2003). Aqui a crise de sentido, e a hipótese do declínio da imago paterna, poderia ser aplicada pela deriva e reconstrução do universo da lei. São tentativas de interpretar a violência nascente segundo sua própria lógica. Em todos os casos temos a intrusão de um olhar deslocado: o menino de classe média que se envolve com o tráfico em Cidade de Deus, o médico de presídio em Carandiru, e o matador que passa a participar, como um intruso, na vida de seus contratantes em O invasor. Nos três casos há uma espécie de prazer hesitante em conhecer as raízes do excluído social. A fascinação exercida pela alteridade interna, mas distante, dá lugar ao horror e angústia quando reconhecemos sua proximidade. Não creio que se trate apenas de humanização do excluído mas, como afirmou a crítica literária Maria Elisa Cevasco (2003), de filmes que “usam a linguagem da mercadoria, da propaganda, para falar da realidade de quem está excluído do consumo”.
No filme de Beto Brant vemos a trajetória de dois empresários que resolvem contratar um pistoleiro para matar o terceiro sócio, e desta forma concluir negócios ilícitos com o governo. Consumado o fato ocorre o insólito encontro inesperado. O pistoleiro, encenado pelo inenarrável Paulo Miklos (o mesmo dos Titãs), muda-se para a firma dos dois contratantes e passa a sumariamente freqüentar o recinto, bem como a vida dos dois criminosos. Termina por se envolver com a filha do homem que acabou de assassinar. A trama está baseada intensamente no desdobramento perpétuo da corrupção: dois empresários traem um amigo, o mediador dessa traição torna-se ele mesmo um traidor ao invadir as vidas dos mandantes. Finalmente um dos empresários trai o outro ao premeditadamente designar uma garota de programa para se envolver com o amigo, e na verdade vigiar seus passos. Ao descobrir a trama o amigo traído vai à polícia e denuncia o crime cometido. Naturalmente a polícia trai seu papel ao mostrar-se mancomunada tanto com o invasor quanto com o pérfido amigo.
Ora, a prevalência da traição supõe a hegemonia da ação instrumental e impune. Em outras palavras, o consumo subverte a lei do adiamento da satisfação, o interesse se impõe a qualquer outro laço de fidelidade. Neste sentido, as práticas eróticas que abundam tais enredos não se diferenciam, em linhas gerais, das práticas de consumo de drogas ou de imagens. O filme se passa entre casas de massagens e o ambiente da empresa, mostrando sua curiosa contigüidade. O prazer erótico-sexual declina na moeda comum e mais universal do prazer estético-narcísico. A violência deixa de ser, neste sentido, a consecução de um meio para um fim, e passa a refletir o estado de um “eu sitiado”, conforme expressão de Lasch (1989). Desta forma, a extensão do laço social é equivalente ao tempo e às condições para o exercício do gozo. Concluído o evento o laço deve se desfazer, sem vestígios, para poder ser recomposto em qualquer outra posição. Daí a feliz expressão: invasor. O retorno do rastro sob forma da permanência insólita do excluído.
É esta posição sitiada que vemos, metaforicamente, na famosa cena da galinha que abre o filme Cidade de Deus aliás, outro encontro inesperado. O narrador, nesse caso, é um fotógrafo, alguém capaz de extrair imagens-mercadoria para um jornal de classe média, alimentando assim o voyeurismo sobre a barbárie. Ele nos faz viver a fantasia de estar “do outro lado”, como alguém descomprometido mas que ocupará um lugar decisivo na trama. Como disse Ismail Xavier:
O ressentimento se escancara, vira tema de conversa, atinge a condição de traço fisionômico de uma classe média feita de denegações, infeliz porque está no seu lugar e gostaria de estar fora dele (Xavier, 2000, p. 95).
Ou seja, um olhar que procura estar fora de seu lugar, quando na verdade está onde sempre esteve. Não seria esta uma das figurações miméticas do falso declínio da imago paterna?
Temos assim um erotismo produzido no olhar do espectador a partir de uma posição deslocada. Erotismo que não se reconhece como tal, e encontra como substitutivo a violência. Situação simétrica verifica-se no caso da jovem esposa, algo entediada com seu marido, que recebe da vizinha uma receita para aditivar suas relações: a introdução de uma banana no seio da vida erótica do casal. A resposta do marido vem em ato: ele mata sua própria esposa, intuindo que a invenção de tal prática só poderia advir de um relacionamento extra-conjugal. Vê-se bem aqui como a violência emerge no lugar do erotismo suprimido. Demonstração do equívoco de Reich. A sociedade de indivíduos dóceis, apáticos... “bananas” (para voltar ao assunto) não é apenas efeito da repressão do erotismo, mas de um erotismo que suporta mal as oscilações da fantasia que o sustenta.
Muito se tem criticado Carandiru por colocar em primeiro plano a imagem midiática de Rodrigo Santoro no papel do travesti “Lady Di”, em franco contraste com os outros personagens do filme, que são figurados como pessoas comuns. Nisso se esquece que tal personagem só adquire realmente consistência a partir de seu envolvimento com “Sem Chance”, um mirrado representante gabiru, de quem se esperaria um erotismo convencional. Trata-se de mais um encontro inesperado. O contraste entre a bela exuberância do primeiro com a minguada estética do segundo fala-nos de uma espécie de miscigenação estética que alimenta uma nova forma de erotismo, estritamente distante e corrosiva diante do ideal segregatório hegemônico.
Nos três filmes desta série vemos a instrumentalização dos ideais de forma muito localizada, e pode-se dizer até trivial. A corrupção, a traição, a quebra dos laços de fidelidade social, familiar e sexual é feita para um sujeito (espectador) que saberá muito bem interpretar a mensagem: falta lei. Mas ao fazer tal interpretação justamente o que se produz é uma versão do pai e não outra coisa.
Todavia, não é no enredo que isso se mostra de forma mais aguda, mas na própria montagem. São todos filmes compostos por pequenas, às vezes minúsculas narrativas. A redução da extensão narrativa é congruente com a redução da extensão do laço social, própria do eu sitiado e da linguagem publicitária. Isso dá o tom dominante de ação para esta série de filmes, em contraste com a velocidade sensivelmente mais morosa de Abril despedaçado, Central do Brasil e Lavoura arcaica. Esse é o elemento-chave para entender o declínio do erotismo nesses filmes. O caráter não fragmentário mas fugaz das relações, que devem se resolver do modo mais rápido possível e trazer o mote de suas ações de forma simplificada e sem muita ambigüidade. Não há declínio do pai, mas aceleração do gozo.
Essa tática baseada em micronarrativas, com o trabalho de câmara dominado por poucas tomadas longas, geralmente de introdução, rápidas tomadas em primeiríssimo plano, e dominância de planos médios, tem por efeito reduzir a interiorização dos personagens e lançar o espectador em expectativa de ação. Ora, esse movimento converte as pequenas histórias em unidades pouco comunicantes com os outros elementos da trama. A dispersão do conjunto contribui para a fluidificação do erotismo, que atravessa o texto, mas como uma espécie de música de fundo. Assim como a trilha sonora, o erotismo adere-se ao olhar como um adereço, não como um mote. É como aquela música que esperamos encontrar no supermercado, feita para não ser ouvida, mas perfeitamente em seu lugar.
7) Conclusão
Retomemos agora, conclusivamente, a hipótese. Penso ter ficado claro que o lugar e a forma ocupados pelo erotismo no cinema em questão diverge da sua tradicional implantação essencializante, característica do estereótipo nacional. Ele não aparece concentrado nas vicissitudes do encontro do objeto, do qual a imagem da mulher seria a metonímia. Em segundo lugar, ele não se prende à fragilidade da instância de representação paterna, seja na vertente de liberalização dos costumes ou da transgressão libertária. As inovações trazidas passam pela reconfiguração social da família, pela ruptura da heterosexualidade como forma erótica compulsória e pela miscigenação estética.
São filmes que levantam, ou dão forma, a uma nova agenda na política do erotismo. Agenda em que a plena realização erótica, ou amorosa, não organiza o ideal regente do laço social. De forma geral usam o representante paterno fora do patriarcalismo, ou então de modo a criticá-lo cinicamente, ou ainda na forma de um olhar deslocado. Isso converge com a conexão instável entre o objeto e suas formas de falicização e com a redução e aplainamento da densidade do eu. O declínio do erotismo não decorre do declínio do pai, mas da aceleração do gozo.
Quero crer que tal declínio exige uma nova maneira de pensar a Erniedrigung freudiana. Não se trata mais do esgotamento do casamento como lugar de realização do imperativo de felicidade, mas do esgotamento e encurtamento dos laços sociais nos quais esperamos algum consolo para a questão. Em suma, os amigos do bar, mencionados por Freud, ainda estão lá, mas hoje estão acompanhados pelas mulheres que são ensinadas por suas crianças, o único universal que nos resta (Xavier, 2000, p. 97). A prisão do casamento inclui agora formas homoeróticas e poligâmicas à sombra de seu cínico carcereiro paterno.
Referências Bibliográficas
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Endereço para correspondência
Christian Ingo Lenz Dunker
R. Abílio Soares, 932 Paraíso
04005-003 São Paulo - SP
Tel.: +55-11 3887-0781
E-mail: chrisdunker@uol.com.br
Recebido em 29/08/03
Aprovado em 03/11/03
1 Doutor em Psicologia (USP); Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.