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versão impressa ISSN 1413-2907
Interações v.9 n.17 São Paulo jun. 2004
ARTIGOS
As dislexias de desenvolvimento: aspectos neuropsicológicos e cognitivos
The developmental dyslexia: neuropsychological and cognitive aspects
Jerusa Fumagalli de Salles*1; Maria Alice de Mattos Pimenta Parente**2; Simone da Silva Machado***3
*Centro Universitário Franciscano.
**Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Psicologia.
***Universidade de Santa Cruz do Sul.
RESUMO
Esta revisão de literatura discute várias pesquisas sobre dislexias de desenvolvimento, focalizando as dificuldades de sua definição. Os fatores causais foram classificados em extrínsecos (correlações com o funcionamento cerebral, fatores genéticos, características constitucionais) e intrínsecos (cognitivo-lingüísticos) às dislexias. A concepção teórica adotada é a da Psicologia Cognitiva e a da Neuropsicologia Cognitiva. A partir dessa revisão da literatura, analisamos a possibilidade dessa perspectiva teórica fornecer maiores subsídios para uma intervenção efetiva com as crianças disléxicas.
Palavras-chave: Dislexia de desenvolvimento, Leitura, Psicologia cognitiva, Neuropsicologia, Intervenção.
ABSTRACT
This literature review discusses several researches about developmental dyslexia focusing on the problems of its definition. Causal factors were classified as extrinsic factors (correlations between brain functioning, genetic factors, constitutional characteristics) and intrinsic ones (cognitive and linguistic). The theoretical approach is grounded on cognitive psychology and cognitive neuropsychology. Based on this literature review, we analyze the possibilities of this perspective providing subsidiaries for an efficient intervention with the dyslexic children.
Keywords: Developmental dyslexia, Reading, Cognitive psychology, Neuropsychology, Intervention.
Introdução
O estudo dos problemas de leitura é bastante antigo e existem divergências quanto às perspectivas teórico-metodológicas assumidas. Muitas teorias foram elaboradas em várias áreas do conhecimento (neurologia, psicologia, educação) para descrever e explicar os déficits na aprendizagem da leitura e escrita em crianças. Neste artigo pretende-se expor uma revisão sobre as pesquisas que utilizam a Neuropsicologia e a Psicologia Cognitiva, abordagem de Processamento da Informação, como aportes teóricos de base, e analisar a contribuição destes no estabelecimento de estratégias de intervenção efetivas nas dislexias de desenvolvimento. Pretende-se apresentar um panorama geral da área, salientando os problemas neste campo de estudos.
Antes de tratarmos especificamente da caracterização dos transtornos de leitura, exploraremos como as abordagens cognitivas consideram o processo de leitura competente (modelos cognitivos da leitura). Em seguida, trataremos dos conceitos de dificuldades específicas de aprendizagem, e em particular de dislexia, bem como dos tipos de leitores disléxicos e dos fatores etiológicos das dificuldades de aprendizagem da leitura. Finalmente, serão explanadas as implicações desses estudos para as abordagens de intervenção.
O enfoque teórico adotado na condução do tema está baseado nos estudos da neuropsicologia infantil, que enfatiza a relação entre as funções psicológicas e as estruturas cerebrais, durante sua formação e desenvolvimento (Solovieva e Rojas, 2001), e na Psicologia Cognitiva, abordagem de Processamento da Informação, que estuda o modo como as pessoas percebem, aprendem, recordam e pensam sobre a informação (Sternberg, 2000) – neste caso, os estímulos gráficos. Essas disciplinas focalizam a análise dos processos neurocognitivos subjacentes à habilidade de ler, tanto no leitor proficiente, no leitor iniciante, como naqueles com distúrbios de leitura.
O processo de leitura competente envolve fluência e automatismo (precisão e rapidez) no reconhecimento de palavras e compreensão do material lido (Mercer, Campbell, Miller, Mercer e Lane, 2000). O reconhecimento de palavras (acesso ao léxico mental), em um sistema de escrita alfabético, pode ocorrer por meio de um processo visual direto (rota lexical) ou por meio de um processo envolvendo mediação fonológica. Recebem, conseqüentemente, o nome de modelos de leitura de dupla-rota (Ellis e Young, 1988; Ellis, 1995; Hillis e Caramazza, 1992, por exemplo). A Rota Fonológica utiliza o processo de conversão grafemafonema, permitindo uma pronúncia precisa das palavras que possuem correspondência letra-som regular. Na Rota Lexical, geralmente utilizada por leitores proficientes, as representações de palavras familiares são armazenadas em um léxico de entrada visual, que permite acesso direto ao significado. No leitor hábil, as duas rotas estão disponíveis e podem intervir paralelamente na leitura, porém a rota lexical tem papel central na obtenção da competência em leitura (Seymour, 1987).
Após os processos mais básicos de leitura, como identificação e extração do significado de palavras individuais, outros processos operam na frase ou sentença, e também tratam da organização global ou da estrutura temática de toda uma história (Salles, 2001), que são os processos envolvidos na habilidade de compreensão de leitura.
As dislexias de desenvolvimento
Após uma breve exposição do que se entende por leitor competente, serão então analisados os processos subjacentes às dificuldades de aprendizagem da leitura. Na perspectiva neuropsicológica, as dificuldades de aprendizagem (learning disabilities) são entendidas como um conjunto de desordens sistêmicas e parciais da aprendizagem escolar que surgem como conseqüência de uma insuficiência funcional de um ou vários sistemas cerebrais. Esses sistemas cerebrais têm a responsabilidade de assegurar o surgimento de uma ou várias cadeias interligadas dentro da estrutura psicológica no processo de aprendizagem (Santana, 2001). Quando ocorrem falhas nesse processo, a aprendizagem torna-se deficitária.
Um pressuposto básico subjacente à abordagem neuropsicológica é o da modularidade, que propõe que o sistema cognitivo possui vários módulos ou processadores cognitivos de relativa independência. O dano causado a um módulo não afeta diretamente o funcionamento dos demais. Cada módulo (como linguagem oral, leitura, percepção visual, percepção auditiva, memória...) decompõe-se em subprocessos. As dissociações encontradas entre pacientes, ou seja, casos em que alguns processos de leitura estão preservados (ex: leitura de palavras familiares) enquanto outros estão prejudicados (ex: leitura de palavras não familiares e de palavras inventadas), enfatizam a estrutura modular dos sistemas de processamento da informação subjacentes à leitura.
Ressalta-se a diferenciação entre crianças que apresentam distúrbios de aprendizagem gerais, e portanto apresentam problemas com a maioria das matérias escolares, daquelas que apresentam uma dificuldade específica – em leitura, por exemplo. As crianças cujo nível geral de desenvolvimento intelectual é normal, mas que apesar disso apresentam dificuldades em tarefas específicas (como leitura), são classificadas como tendo uma “dificuldade específica de aprendizagem” (Dockrell e McShane, 2000) – nesse caso, dificuldade específica de aprendizagem da leitura, também denominada dislexia de desenvolvimento.
É importante considerar a diferença entre dislexia primária ou específica, ou de desenvolvimento, na qual o fracasso na aquisição da completa competência na leitura/escrita é de origem constitucional, e dislexia adquirida ou sintomática, na qual as habilidades de leitura/escrita, já normalmente desenvolvidas, são perdidas como resultado de uma lesão cerebral (Spreen, Risser e Edgel, 1995; Pinheiro, 1995).
A definição do conceito de dislexia talvez seja um dos aspectos mais controversos da área. São tantas as nomenclaturas propostas e descrições das características das crianças, que fica difícil saber quando nos referimos à mesma síndrome e quando tratamos de quadros diferentes. Segundo os critérios do DSM-IV-TR (2002), o transtorno da leitura (dislexia) consiste em rendimento em leitura substancialmente inferior ao esperado para a idade cronológica, inteligência e escolaridade do indivíduo. De acordo com Nunes, Buarque e Bryant (2001), crianças com dislexia de desenvolvimento apresentam dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita consideradas muito maiores do que se esperaria a partir do seu nível intelectual.
A maioria das definições das dificuldades específicas de leitura estabelece critérios de comparação entre o nível de leitura e o Quociente Intelectual (QI). Porém, QI mais baixo pode ser conseqüência de uma menor exposição a materiais escritos (Morais, 1996; Nunes e cols, 2001). Além disso, não há instrumentos padronizados para avaliação da dislexia no Brasil que descrevam o nível de leitura esperado para a escolaridade e faixa etária. Em função disso, os processos de identificação dessas crianças diferem, tornando extremamente subjetiva a rotulação das crianças como tendo dificuldades de aprendizagem da leitura (Sternberg e Grigorenko, 2003).
Um outro problema nas definições tradicionais de dislexia é o fato de que se deve excluir déficit sensorial, problemas emocionais, meio social muito desfavorável e danos neurológicos evidentes como causa dos problemas de leitura. Considerando a população brasileira que freqüenta escolas públicas, dificilmente conseguiríamos diagnosticar com segurança um quadro de dislexia se tivéssemos que excluir todos esses fatores.
Dada a fragilidade dos critérios diagnósticos tradicionais, baseados em uma metodologia de exclusão, salientamos a definição de Sternberg e Grigorenko (2003), que propõem uma caracterização do quadro. Os principais indicadores das dificuldades de aprendizagem da leitura, segundo eles, são dificuldades em decodificar e analisar fonemas dentro das palavras (consciência fonológica), sendo estas específicas para o processamento de símbolos escritos.
Uma questão crucial no estudo das dislexias é o fato de que a definição e o diagnóstico dependem das características do sistema de escrita. Mesmo entre os sistemas de escrita alfabéticos há diferenças significativas. O inglês e o francês são sistemas ortográficos bastante irregulares, ao contrário do português e do espanhol, que têm uma ortografia regular ou quase regular (Parente, Silveira e Lecours, 1997). Isto conduz à impossibilidade do uso direto de padrões de pesquisas realizadas na língua inglesa para avaliação de crianças alfabetizadas no sistema de escrita do português.
A estimativa das taxas de prevalência dos distúrbios de leitura também se torna problemática, já que depende da definição usada para dislexia (Beitchman e Young, 1997) e dos instrumentos utilizados para o diagnóstico. Não foram encontrados dados nacionais a respeito da prevalência das dislexias. Considerando a população norte-americana, a prevalência de todas as formas de dislexia combinadas é estimada em 20% (Spreen e cols, 1995). Na Inglaterra as dificuldades específicas de leitura atingem de 3 a 5% das crianças em idade escolar, sem incluir aquelas cuja dificuldade de leitura é esperada em função do baixo QI (Pinheiro, 1995). A incidência de dislexia na população geral é estimada em cerca de 10 a 15% (Ianhez e Nico, 2002).
Considerando o fator gênero, muitas alterações de linguagem têm sido descritas como mais comuns em meninos do que em meninas, sendo a dislexia uma delas. Finucci e Childs (citados por Spreen e cols, 1995) referem que evidências epidemiológicas confirmam que há mais meninos disléxicos do que meninas, como a observação clínica tem indicado. Ianhez e Nico (2002) citam a teoria hormonal proposta por Galaburda como possível explicação para o fato. Segundo essa teoria, a dislexia estaria ligada à produção excessiva de testosterona na fase de gestação. Sendo esse um hormônio masculino, em excesso na gestação de um feto feminino provocaria um aborto natural.
Estudos recentes (Flynn e Rahbar citados por Beitchman e Young, 1997) não mostram diferenças significativas na freqüência de dificuldades de leitura entre os sexos. As diferenças previamente reportadas poderiam ser devido às práticas de encaminhamentos feitas pelos professores, nas quais os meninos cujas dificuldades escolares acompanham-se geralmente de problemas de comportamento seriam mais freqüentemente indicados para avaliação. As meninas com dificuldades de leitura similares, mas sem problemas de comportamento em sala de aula, não chamariam a atenção dos professores.
Na abordagem neuropsicológica cognitiva, a dislexia deixou de ser vista como uma entidade única. Hoje é aceita a fragmentação do conceito em pelo menos dois tipos de leitores deficientes, considerando os modelos de leitura de dupla rota (Ellis e Young, 1988; Hillis e Caramazza, 1992; Morais, 1996; Pinheiro, 1995). Os mais comuns são os “disléxicos fonológicos”, caracterizados por uma incapacidade de decodificação fonológica grave, que se manifesta por um desempenho muito ruim na leitura de estímulos não familiares e pseudopalavras. Esses sujeitos também têm dificuldade em tarefas de memória de curtoprazo fonológica e consciência fonológica. Essas funções mentais serão definidas na próxima sessão.
Os “disléxicos de superfície” apresentam uma incapacidade no nível do tratamento ortográfico da informação (rota lexical), revelada por dificuldades na leitura de palavras irregulares. Estas são regularizadas (como exemplo, “tóxico” pode ser lido como /tóchico/) em função de serem lidas pelo processo fonológico. Existem também “disléxicos mistos”, apresentando distúrbios ao mesmo tempo na decodificação fonológica e no processo ortográfico, e os leitores simplesmente atrasados, cujo padrão de leitura não difere daquele de leitores normais mais jovens (Morais, 1996).
Lovett (1987), baseado em uma visão de desenvolvimento dos problemas de leitura, propõe a existência de dois tipos de leitores deficientes. Os leitores com problemas em precisão no reconhecimento de palavra seriam equivalentes ao grupo de disléxicos fonológicos, enquanto o grupo de leitores lentos poderia ser visto como apresentando dificuldades na construção de um léxico ortográfico (dislexia de superfície), ou seja, na lexicalização da rota fonológica, como diria Share (1995). Corroborando esta idéia, Manis, Seidenberg, Doi, MacBride-Chang e Peterson (1996) concluíram que o padrão de disléxico de superfície é melhor descrito como um atraso de desenvolvimento geral do que como um padrão de leitura desviante, possivelmente decorrente de habilidades fonológicas deficitárias, combinado com inadequadas experiências de leitura (Stanovich, Siegel e Gottardo citados por Castles, Datta, Gayan e Olson, 1999).
Quanto aos fatores etiológicos das dificuldades específicas de aprendizagem da leitura, há basicamente duas linhas principais de discussão: a dos fatores biológicos (neuropsicológicos e genéticos) e a das perspectivas funcionais (caracterização dos déficits cognitivos e de linguagem escrita). As perspectivas funcionais concentram-se no que chamaremos de fatores intrínsecos às dislexias, ou seja, no conhecimento dos mecanismos cognitivos da criança disléxica, interpretando as manifestações cognitivo-lingüísticas à luz de modelos teóricos de leitura.
A maioria das pesquisas está voltada para a busca de soluções unicausais para a dislexia, seja em fatores biológicos, seja em fatores ambientais (sócio-educacionais) ou cognitivos. Adotaremos aqui uma abordagem multicausal, através da visão de Sternberg e Grigorenko (2003) de que as dificuldades de aprendizagem da leitura são decorrentes de uma interação entre fatores biológicos (neuropsicológicos e genéticos), cognitivos e sociais. Pennington (1997) também acredita que tanto fatores genéticos como ambientais podem causar a dislexia, sendo esta etiologicamente heterogênea. Concentramo-nos nos fatores biológicos e cognitivos, considerando que muito pouco é conhecido sobre as causas ambientais da dislexia, apesar de suas origens envolverem também o ambiente educacional e tradições de leitura familiares (Sternberg e Grigorenko, 2003).
Dislexias de desenvolvimento: fatores biológicos (neuropsicológicos e genéticos)
O interesse hegemônico da neurologia (corrente organicista) pelos problemas de leitura estendeu-se de 1890 a 1950. A partir desta data, esta corrente de estudos divide espaço com a corrente instrumental, que culmina com os modelos cognitivos das dislexias, a partir da década de 70 (Piérart, 1997). Como a busca de marcadores biológicos de diagnóstico é tradição das áreas médicas, as pesquisas sobre as dislexias geralmente são de natureza experimental. Em função de serem pesquisadas amostras pequenas, selecionadas criteriosamente dentro do conceito de dislexia, torna-se difícil a generalização dos resultados, já que não representam a diversidade de crianças com problemas de aprendizagem da leitura.
Apesar de atualmente serem usadas técnicas de neuroimagem mais sofisticadas e menos invasivas, o que acarretou em aumento dos achados de alterações encefálicas, estruturais e funcionais, estes ainda não têm implicações diretas para nortear os programas de intervenção nas dislexias.
Os modelos atuais que estabelecem um relacionamento entre cérebro e dislexia de desenvolvimento são de dois tipos. O modelo de déficit propõe que disfunções cerebrais estão subjacentes à inabilidade na aquisição de adequadas habilidades de leitura. Os modelos de atrasos maturacionais adotam um panorama de desenvolvimento e propõem que a maturação cerebral está atrasada nessas crianças (Spreen e cols, 1995).
Estudos realizados com amostras de células cerebrais de disléxicos postmortem, como o de Galaburda e Kemper (1979), encontraram anomalias de células no córtex cerebral da região silviana esquerda (lobo temporal). Em outro estudo, Galaburda e cols (citados por Beitchman e Young, 1997) constataram falta da esperada assimetria (região do hemisfério esquerdo maior do que do direito) no planum temporale em crianças com distúrbios de linguagem e aprendizagem. Atualmente supõe-se que o cérebro desses indivíduos disléxicos tenha sofrido, durante a vida intra-uterina, uma agressão de tipo química, hormonal ou imunológica, que constitui a origem das lesões anatômicas (Kandel, Schwartz e Jessels, 1997).
A análise de Eletroencefalogramas (EEG) sugere um problema de maturação cerebral nessas crianças (Shiota, Koeda e Takeshita, 2000). A desconexão natural dos córtices sensoriais primários (visual e auditivo), um dos fatores importantes de desenvolvimento cerebral, poderia estar falha nas crianças disléxicas, resultando em alta coerência no EEG.
Rumsey, Nace, Donohue, Wise, Maisog e Andreason (1997) avaliaram o fluxo sangüíneo cerebral de homens disléxicos, por meio de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET), e encontraram um padrão alterado de ativação no córtex temporal médio-posterior bilateralmente e no córtex parietal inferior, predominantemente no hemisfério esquerdo, durante a realização das tarefas de leitura de palavras em voz alta e decisão lexical. Seki e cols (2001) estudaram, usando ressonância magnética funcional (FMRI), a leitura de sentenças de crianças japonesas disléxicas no sistema de escrita silábico “kana”, e também encontraram alteração na ativação do giro temporal medial (parte da área de Wernicke). Segundo os autores, além do processamento normal, um processamento incomum (ativação bilateral do lobo occipital e do giro frontal inferior) também ocorre no cérebro desses sujeitos, o que poderia indicar diferenças nas funções hemisféricas para compensar dificuldades de leitura.
O fato desses dois estudos mostrarem resultados similares sugere que pessoas disléxicas sofrem de disfunções cerebrais semelhantes, que são independentes das diferenças de linguagem, educacionais ou culturais (Seki e cols, 2001).
Embora relações de causa-e-efeito não possam ser diretamente inferidas de estudos neuroanatômicos e citoarquitetônicos, há um consenso de que disfunções cerebrais estão subjacentes às dislexias de desenvolvimento (Pirozzolo e Campanella, 1981). Apesar desses achados não serem considerados conclusivos, eles dão suporte à visão de que, em nível neurofuncional e neuroanatômico, no mínimo alguns indivíduos com dificuldades de leitura diferem daqueles que não apresentam tais dificuldades (Beitchman e Young, 1997).
Deve-se considerar ainda que a maioria dos estudos recentes utiliza técnicas de imagens de funcionamento cerebral. Considerando que o funcionamento cerebral depende também da ativação do meio ambiente, as anomalias apontadas podem ser influenciadas por fatores ambientais. Sendo assim, as alterações funcionais podem ser remediáveis, alteradas por estímulo ambiental ou por meio de intervenções terapêuticas.
Cabe tratar do conceito de plasticidade cerebral, ou seja, a capacidade do Sistema Nervoso Central em se adaptar ou mudar em resposta à estimulação ambiental (Spreen e cols, 1995), outro pressuposto teórico no qual a neuropsicologia está alicerçada. No cérebro em crescimento, assim como no adulto, o tecido nervoso modela-se sem cessar sob a influência principal da própria experiência do indivíduo. Há estruturas anatômicas geneticamente predeterminadas, cuja organização e funcionamento são parcialmente especificadas pelos inputs externos (Epstein, 2001). Essas questões são cruciais para os métodos de intervenção.
Quanto aos fatores hereditários e genéticos das dislexias, a consciência fonológica (conceituada a seguir) e a leitura de palavras isoladas foram associadas aos cromossomos 6 e 15, respectivamente (Grigorenko e cols citados por Beitchman e Young, 1997). Gayan e Olson (1999) apontam para o possível locus dos distúrbios de leitura no cromossomo 6.
Em estudos com gêmeos, mono e dizigóticos, de 6 e 7 anos, Hohnen e Stevenson (1999) encontraram que as diferenças individuais nos estágios iniciais de desenvolvimento da lecto-escrita, nas habilidades de consciência fonológica e linguagem entre as crianças estudadas parecem ser fortemente influenciadas por fatores genéticos. Em relação à aquisição da leitura e escrita, nas crianças de 6 anos a hereditariedade foi estimada em 0,60, e nas crianças de 7 anos, em 0,59.
Olson, Wise, Conner, Rack e Fulker (citados por Pinheiro, 1995) referem que um componente genético parece estar associado com a dislexia fonológica, mas ainda não foi encontrada uma conexão no que diz respeito à dislexia de superfície. Possivelmente esta esteja mais relacionada a fatores ambientais.
O interesse pela dislexia de desenvolvimento não se restringe ao debate quanto aos aspectos mais globais (fatores extrínsecos às dislexias), como a questão de sua etiologia orgânica, apesar desses estudos atraírem a atenção em função da tecnologia usada. Parece-nos mais aplicável na prática compreender os tipos de alterações cognitivas e os mecanismos cognitivos dessas crianças, ou seja, uma análise mais refinada de suas dificuldades e competências (fatores intrínsecos às dislexias), pois estas constituirão o foco dos programas de intervenção.
Dislexias de desenvolvimento: fatores cognitivo-lingüísticos
Inicialmente, entre as décadas 50 e 70, as dificuldades de leitura eram atribuídas a déficits perceptuais (visuais e auditivos), de organização espaço-temporal, déficits psicomotores, como de motricidade geral, lateralidade, orientação direita-esquerda (Piérart, 1997). Os distúrbios associados às dificuldades de leitura muitas vezes são tomados (erroneamente) como a causa. As evidências empíricas atuais não dão apoio à hipótese de que esses fatores estejam na origem das dificuldades de leitura, porém isto não elimina a possibilidade de que uma dificuldade real em processamento visual poderia causar dificuldades de leitura, pelo menos em algumas crianças (Dockrell e MacShane, 2000). Essas crenças deram suporte, durante muito tempo, às abordagens de intervenção baseadas na estimulação psicomotora, hoje bastante questionada.
O aprendizado da leitura envolve habilidades perceptivas, memória, decomposição das palavras em seus sons constituintes (consciência fonológica), ligação da forma escrita da palavra com a forma falada, aprendizado de regras e elaboração de suas várias exceções, elaboração de inferências lingüísticas, habilidades que devem se agrupar quando as crianças começam a ler (Bryant e Bradley, 1987). No entanto, com base nesses pré-requisitos, muitos déficits têm sido apontados como causa da dislexia.
A literatura atual aponta diversos déficits em crianças com dificuldades específicas de leitura, como: 1) dificuldades no reconhecimento de palavras escritas (Torgesen, 2000); e 2) falhas no processamento fonológico da linguagem, como consciência fonológica, memória de curto-prazo verbal (Pennington, Orden, Kirson e Haith, 1991; Mayringer e Wimmer, 2000; Jong, 1998) e lentidão de acesso à informação fonológica na memória de longo-prazo (Mayringer e Wimmer, 2000).
Concordamos com as pesquisas atuais, que têm mostrado que os déficits dessas crianças encontram-se no processamento fonológico da linguagem, ou seja, nas operações mentais dos indivíduos que fazem uso da estrutura fonológica ou sonora da linguagem oral quando estão aprendendo como decodificar a linguagem escrita (Torgesen, Wagner e Rashotte, 1994).
Consciência fonológica é uma habilidade metalingüística específica, que corresponde à identificação dos componentes fonológicos em uma unidade lingüística, e a manipulação intencional desses componentes (Gombert, 1992). A memória de trabalho fonológica é a capacidade de manter ativados os sons previamente decodificados para formar uma palavra. A velocidade de acesso à informação fonológica no léxico mental refere-se à habilidade para extrair o significado de uma palavra escrita pela transformação de seus símbolos gráficos em um sistema de representação baseado no som. Esse processo supõe a aplicação de regras de correspondência grafema-fonema.
A concepção científica da leitura deficiente predominante nos dias atuais é, portanto, uma concepção em termos de déficit no processamento fonológico (Wagner e Torgesen, 1987; Torgesen, Wagner e Rashote, 1994; Morais, 1996; Beitchman e Young, 1997). Essa mudança de foco teórico teve importantes implicações para as abordagens terapêuticas com sujeitos disléxicos.
Há concordância na literatura de que grande parte das dificuldades com as quais as crianças disléxicas se deparam ocorre no âmbito da palavra individual, em particular na aquisição de habilidades automáticas de reconhecimento de palavras, o que altera a leitura fluente (Lovett et al., citados por Byrne, 1998). Por isso, crianças com dificuldades de leitura são mais dependentes do contexto do material lido. Essa dependência pode ser, em parte, um modo de compensar habilidades menos proficientes de reconhecimento de palavras (Perfetti, 1992).
O estabelecimento de déficits cognitivos comuns aos indivíduos disléxicos torna-se difícil em função de a dislexia de desenvolvimento não ser uma entidade única, mas apresentar-se sob várias formas (dislexias fonológicas, dislexias de superfície). Os déficits subjacentes à dislexia fonológica parecem estar relacionados aos baixos níveis de consciência fonológica, mas pouco se sabe a respeito do que faz com que uma criança não adquira normalmente o processo lexical (Pinheiro, 1995). Segundo Manis e cols (1996), o disléxico de superfície teria um atraso de desenvolvimento geral da linguagem escrita, e não um desvio propriamente dito, relacionado à deficiência nas habilidades fonológicas, associada a escassas experiências de leitura.
Intervenção nas dislexias de desenvolvimento: enfoque da neuropsicologia e psicologia cognitiva
Com base nas teorias propostas para explicar os déficits na aprendizagem da leitura nas crianças disléxicas, em anos de estudos em torno do tema, ou mesmo partindo de suposições não fundamentadas teoricamente, foram propostas várias formas de intervenção com esses sujeitos. Porém, a multiplicidade de abordagens terapêuticas não significa necessariamente que haja efetividade das mesmas. Muitas foram criticadas por não apresentarem evidência empírica e efeito benéfico nas habilidades acadêmicas da criança. A maior parte dessas concepções está ainda presente no âmbito clínico, e é subjacente aos instrumentos utilizados para a avaliação dos distúrbios de leitura e às abordagens de intervenção (Piérart, 1997).
O problema principal das abordagens de intervenção nas dificuldades específicas de leitura é a inexistência de um modelo teórico consistente dos processos cognitivos envolvidos na leitura proficiente e uma teoria de desenvolvimento das habilidades de leitura. Tais teorias devem estar subjacentes ao processo de avaliação das habilidades de leitura, permitindo ao clínico/pesquisador detectar os componentes do modelo de leitura intactos e os prejudicados nas crianças disléxicas. Por sua vez, um diagnóstico preciso dos componentes deficitários é usado para nortear o processo de intervenção. Atualmente, o enfoque mais promissor tem sido a intervenção direta nas habilidades de leitura, associada com atividades relacionadas ao processamento fonológico da linguagem.
A Psicologia Cognitiva e a Neuropsicolingüística, além de servirem como referência para avaliação e diagnóstico dos problemas de aprendizagem da leitura, têm estabelecido bases para o processo terapêutico. Nesta visão, os problemas de leitura da criança podem ocorrer por dificuldades nos processos perceptivos, em seus respectivos subprocessos, ou por processos psicolingüísticos (de natureza léxica, visual ou fonológica, sintática ou semântica), sempre centrados na ta-refa de leitura. O programa de intervenção, portanto, será elaborado a partir de uma correta e completa avaliação do(s) processo(s) de leitura deficitário(s) (García, 1998).
No Brasil, o enfoque neuropsicológico de intervenção nas dislexias de desenvolvimento é ainda pouco difundido. Os poucos estudos nacionais em geral enfocam a instrução em consciência fonológica e nas correspondências grafema-fonema (abordagem fônica) em crianças de pré-escola e séries iniciais com atrasos nas habilidades fonológicas como forma de prevenção de dificuldades de leitura (Capovilla e Capovilla, 1998, 2000 a,b, 2002; Santos e Navas, 1997).
Capellini e Ciasca (2000) aplicaram um programa de treinamento em consciência fonológica em dois grupos de crianças: 1) com distúrbio específico de leitura/escrita; e 2) com distúrbio de aprendizagem. O treino da consciência fonológica teve efeitos sobre o desempenho nas tarefas de consciência fonológica e no nível e velocidade de leitura de ambos os grupos. Em outro estudo nacional, Rego e Dubeux (1994) realizaram uma intervenção em crianças de pré-escola e primeira série, centrada na leitura em contexto, envolvendo reflexão sobre a palavra como seqüência de sons, para despertar o conhecimento da estrutura do sistema de escrita alfabético. Seus resultados foram favoráveis em termos de compreensão do sistema alfabético de escrita e na leitura.
Existe uma grande quantidade de estudos de intervenção nas habilidades de leitura-escrita e processamento fonológico na literatura internacional, realizados principalmente no sistema de escrita da língua inglesa. Algumas abordagens enfocam as habilidades de processamento fonológico da linguagem (consciência fonológica) em pré-leitores e leitores iniciantes, considerados de risco para desenvolver dificuldades específicas de leitura (Byrne e Fielding-Barnsley, 1989, 1990; Byrne, 1995; Schneider, Küspert, Roth, Visé e Marx, 1997; Berninger e cols, 2002). A maioria desses estudos é consistente com a visão de que a instrução em consciência fonêmica pode auxiliar as crianças a aprender a ler (Bradley e Bryant, 1991; Lundberg, Frost e Petersen, 1988), e que consciência fonêmica e conhecimento de letras são necessários, mas não suficientes, para proporcionar à criança a descoberta do princípio alfabético (Byrne e Fielding-Barnsley, 1989, 1990, 1991, 1993; Ball e Blachman, 1991).
Em crianças que apresentam dificuldades específicas no aprendizado da leitura, a instrução em consciência fonológica também tem se mostrado efetiva, especialmente quando combinada com tarefas de leitura (Hatcher, Hulme e Ellis, 1994), principalmente aquelas que enfocam o desenvolvimento da rota fonológica (Berninger e cols, 1999). Na literatura internacional a intervenção em leitura especificamente enfoca ou as habilidades de reconhecimento de palavras isoladas (leitura fora de contexto), ou o processo de compreensão textual (leitura em contexto). Outros estudos associam essas duas formas de intervenção à instrução em consciência fonológica (Wise, Ring e Olson, 1999). Na pesquisa de Lovett, Ransby e Barron (1988) foi demonstrado que a intervenção direta em reconhecimento de palavras isoladas é mais efetiva para melhorar a habilidade de acesso ao léxico mental do que uma abordagem baseada na leitura e compreensão textual.
Considerações finais
Uma abordagem teórica que considere os fatores extrínsecos (neuropsicológicos) e especialmente os intrínsecos (cognitivo-lingüísticos) às dislexias é necessária para uma melhor compreensão do problema, e conseqüentemente a elaboração de estratégias mais eficientes de intervenção. A Neuropsicologia Cognitiva aliada aos modelos cognitivos de leitura normal e de leitura deficiente propostos pela Psicologia Cognitiva, teoria de Processamento da Informação, parecem atender a essa condição.
Uma intervenção bem-sucedida depende de uma avaliação criteriosa e multidimensional desses fatores relacionados às dislexias de desenvolvimento. O processo de avaliação dos fatores cognitivolingüísticos deve estar intimamente ligado aos modelos teóricos de aprendizagem da leitura. A forma como a avaliação é executada depende de quais são os fatores considerados centrais no sistema cognitivo. Uma das vantagens do uso da abordagem de processamento da informação é que ela possibilita uma avaliação cognitiva que, ao localizar o problema de leitura na rota lexical ou na fonológica (ou em partes de ambas), tem implicações diretas para a construção de um programa de reeducação (Pinheiro, 1995).
O processo de avaliação e diagnóstico das dificuldades específicas de leitura deve ser realizado por equipe interdisciplinar, envolvendo especialidades como neurologia, fonoaudiologia, psicologia, pedagogia ou psicopedagogia, além de considerar a percepção do professor que acompanha intimamente o processo de aprendizagem da criança.
Considerando que fatores ambientais, como um sistema de ensino que não condiz com as necessidades educativas da criança, acrescido às influências do contexto sócio-familiar, interagem na constituição das dificuldades específicas de aprendizagem da leitura, estes contextos familiar e escolar também devem ser objeto de análise e devem ser partes componentes do processo de intervenção. Os papéis da família e da escola são cruciais tanto na identificação precoce das dificuldades da criança quanto no tratamento.
Em relação ao tipo de intervenção nos quadros de dificuldades específicas de leitura, torna-se da mesma forma necessária uma abordagem em equipe, que desenvolva um trabalho específico e adequado a cada problemática, podendo incluir psicólogos, pedagogos, fonoaudiólogos e orientadores educacionais. Para cada caso é delineado um plano de reabilitação, delimitando metas a curto e longo prazos, bem como as especialidades que se façam mais necessárias em cada momento do processo. Cada tipo de dislexia do desenvolvimento exige práticas terapêuticas específicas.
A orientação aos pais e professores é parte imprescindível do programa de intervenção. Um conhecimento mais aprofundado sobre as necessidades da criança/adolescente resulta em programas de ensino mais condizentes com suas peculiaridades. Escola, profissionais envolvidos no caso e família devem estar integrados para favorecer o processo de aprendizagem da criança e minimizar seus déficits.
Acreditamos ser necessária uma efetiva incorporação dos achados das pesquisas atuais ao fazer clínico. Nunes e cols (2001) salientam que alguns psicólogos e pedagogos de instituições públicas não incluem avaliação da leitura e escrita em crianças com queixa de dificuldades de leitura. Tanto esses profissionais como aqueles atuando em consultórios não avaliam o desempenho das crianças em tarefas de consciência fonológica, demonstrando o reduzido impacto dos estudos na área sobre a prática clínica no Brasil. Ainda há um certo distanciamento entre pesquisa e prática em muitas áreas da educação, especialmente na avaliação e ensino da leitura.
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Endereço para correspondência
Jerusa Fumagalli De Salles
Av. Ipiranga, 7120 / 202 – 91530-000 – Bairro Jardim Botânico – Porto Alegre/RS
tel: (51) 3381-4674
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Maria Alice De Mattos Pimenta Parente
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Simone Da Silva Machado
Rua João Guimarães, 136 / 08 – 90630-170 – Santa Cecília – Porto Alegre/RS
tel: (51) 3331-3058
e-mail: ccstress@terra.com.br
recebido em 13/02/03
aprovado em 13/04/04
1 Fonoaudióloga; Especialista em Linguagem (CFFa); Mestre e Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS); Professora do Centro Universitário Franciscano.
2 Fonoaudióloga; Pós-Doutora pelo Centre de Recherche du Centre Hôspitalier “Côte-des-Neiges” / Universidade de Montreal, Canadá, e pelo Laboratório de Neuropsicolingüística Jacques Lordat – Universidade Toulouse Le Mirail/França; Professora do Instituto de Psicologia da UFRGS.
3 Psicóloga; Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS); Professora da Universidade de Santa Cruz do Sul.