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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.1 Natal jan./mar. 2021

https://doi.org/10.22491/1678-4669.20210009 

10.22491/1678-4669.20210009

ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DAS INTERAÇÕES ENTRE PESSOAS E DIVERSOS CONTEXTOS SOCIOAMBIENTAIS

 

Modulações entre Psicologia, saúde pública e contextos rurais

 

Modulations between Psychology, public health and rural contexts

 

Modulaciones entre Psicología, salud pública y contextos rurales

 

 

Gustavo ZambenedettiI; Vanessa SidoskiI

IUniversidade Estadual do Centro-Oeste

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo compreender como os contextos rurais modulam os modos de olhar e atuar de psicólogos vinculados ao SUS em municípios de uma Regional de Saúde do Paraná. O método foi orientado pela perspectiva institucionalista, na convergência entre a cartografia e a análise institucional. Foram consideradas para a análise as entrevistas realizadas com 16 psicólogas/os que atuam em serviços públicos de saúde nos nove municípios da 4ª Regional de Saúde do Paraná. Os resultados foram apresentados e discutidos em três eixos analíticos: contextos rurais: territórios (não) vistos; O reconhecimento dos contextos rurais: modulações do olhar; O trabalho de psicólogos: modulações da atuação nos contextos rurais. Afirmamos o reconhecimento dos contextos rurais, de suas especificidades e heterogeneidade, proporcionando um exercício de modulação das práticas psicológicas ao território.

Palavras-chave: psicologia; saúde pública; rural; território.


ABSTRACT

This research aimed to understand how rural contexts modulate the way of looking and acting of psychologists linked to SUS in municipalities in a Health Region of Paraná. The methodology was guided by the institutionalist perspective, in the convergence between cartography and institutional analysis. For the analysis, interviews with 16 psychologists / those working in public health services in the nine municipalities of the 4th Health Region of Paraná were considered. The results were presented and discussed along three analytical axes: rural contexts: territories (not) seen; The recognition of rural contexts: perceptual modulations; The work of psychologists: modulations of performance in rural contexts. We affirm the need to recognize rural contexts, their specificities and heterogeneity, providing an exercise in modulating psychological practices in the territory.

Keywords: psychology; public health; rural; territory.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo comprender cómo los contextos rurales modulan la forma de mirar y actuar de los psicólogos vinculados al SUS en los municipios de una Región de Salud de Paraná. La metodología estuvo guiada por la perspectiva institucionalista, en la convergencia entre cartografía y análisis institucional. Para el análisis se consideraron entrevistas con 16 psicólogos / que laboran en los servicios de salud pública en los 9 municipios de la 4ª Región de Salud de Paraná. Los resultados fueron presentados y discutidos en tres ejes analíticos: contextos rurales: territorios (no) vistos; El reconocimiento de contextos rurales: modulaciones de la mirada; El trabajo de los psicólogos: modulaciones del desempeño en contextos rurales. Afirmamos la necesidad de reconocer los contextos rurales, sus especificidades y heterogeneidad, proporcionando un ejercicio de modulación de las prácticas psicológicas en el territorio.

Palabras clave: psicología; salud pública; rural; território.


 

 

Esta pesquisa delimita como campo de análise as modulações da psicologia no campo da saúde com os contextos rurais. Nosso argumento acerca desta modulação está assentado em dois pontos de partida. O primeiro deles corresponde a compreensão de que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem o território como conceito operador da gestão e da atenção em saúde. O segundo, diz respeito a compreensão de que a Psicologia, a partir de uma posição ético-política, deve ser sensível aos processos de produção de conhecimento e intervenções contextualizadas, atentas à realidade social, às iniquidades constitutivas da sociedade brasileira e seus efeitos sobre a saúde.

Ao abordarmos a Psicologia, compreendemos a mesma como uma instituição, em consonância com a perspectiva institucionalista (Baremblitt, 2012; Guirado, 2009). Isto implica no reconhecimento de que a Psicologia é conformada por um conjunto de saberes e práticas, com pontos de acomodação, assim como com pontos de ruptura e produção de movimentos, os quais se expressam na relação da profissão com as políticas sociais.

Nas últimas décadas, a Psicologia ampliou consideravelmente sua atuação nas políticas sociais (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012). Tal expansão vem sendo acompanhada de uma constante interrogação: para quem as práticas psicológicas são dirigidas e a que servem (CFP, 2019). Tais perguntas colocam em evidência a crítica à histórica elitização e descontextualização das práticas psicológicas (Bock, 2015), assim como o tensionamento em relação às forças que as sustentam, podendo estar em consonância com processos de emancipação ou de controle, sujeição e colonização.

Dentro deste cenário, realizamos a pesquisa guarda-chuva intitulada O Psicólogo no contexto das políticas públicas de Saúde, Assistência Social e Educação em cidades de pequeno porte: formação e atuação profissional, vinculada ao edital Universal CNPq 2016. A referida pesquisa realizou um diagnóstico e discussão acerca da inserção, modos de atuação e formação do/a psicólogo/a no contexto das políticas de saúde, assistência social e educação nos municípios de abrangência da 4ª Regional de Saúde (RS) do Paraná.

Neste artigo, realizamos um recorte analítico desta pesquisa mais ampla, com a proposta de compreender como os contextos rurais modulam os modos de olhar e atuar de psicólogos vinculados ao SUS em municípios de pequeno e médio porte da 4ª RS do Paraná.

O território constitui-se como um operador do SUS, expressando-se em conceitos como o de regionalização, área adscrita, regiões de saúde, distritos sanitários, territorialização. Faria (2020, p. 4522) indica que existe ampla produção acerca da perspectiva teórico-metodológica da territorialização no SUS, destacando a superação "da velha ideia materialista e reducionista que vê o território na sua dimensão político-administrativa apenas" em direção a definições processuais de território, em aproximação com o planejamento estratégico.

Segundo Haesbaert (2009), os territórios não são unidades homogêneas, podendo adquirir marcadores zonais (os territórios-zona), expressando seus limites, fronteiras, controle de áreas e posse da terra; assim como podem ser analisados através das redes e dinâmicas que ativam, em uma perspectiva de conexão, fluxos e profundidade (os territórios-rede). Para Haesbaert (2009), tais conceitos não são dicotômicos, compondo dimensões de análise dos territórios. Desse modo, o conceito de território adscrito pode servir para delimitar a área geográfica e população de referência de uma unidade de saúde (território zona), dialogando com os fluxos e redes que efetivamente produzem esse território em uma perspectiva dinâmica (território-rede).

Ao discutir o conceito de território como operador do SUS, colocamos relevo na discussão acerca dos contextos rurais, considerando que estes constituem-se como marcadores relevantes para a construção de uma prática psicológica contextualizada social e historicamente no campo da saúde.

Os estudos sobre o cuidado em saúde mental voltado as populações do campo, assim como os estudos sobre a abordagem da psicologia em torno das ruralidades, são recentes em nível nacional e internacional (Costa Neto & Dimenstein, 2017; Silva & Macedo, 2017). Entre os estudos existentes, destaca-se a proposição de uma perspectiva territorial de compreensão acerca dos processos de saúde/adoecimento a partir de suas determinações sociais (Dantas, Dimenstein, Leite, Macedo, & Belarmino, 2020; Dimenstein, Siqueira, Macedo, Leite, & Dantas, 2017). Tais estudos ressaltam a necessidade de reconhecimento de que as formas de adoecimento psíquico de uma população estão associadas aos seus modos de vida e trabalho, sendo as dinâmicas urbanas e rurais importantes de serem consideradas nessa apreensão. Cirilo Neto e Dimenstein (2020) destacam a existência de vulnerabilidades psicossociais e ambientais específicas atreladas às populações do campo, relacionadas à pobreza, privação de bens e serviços e condições de vida e trabalho, as quais são associadas a formas de sofrimento psíquico, expressas nos Transtornos Mentais Comuns (TMC).

É importante indicarmos que a dicotomia urbano-rural não deve desconsiderar as contradições internas e a complexidade constituinte de cada um de seus pólos. Oliven (2010) ressalta que "as desigualdades internas às regiões rurais de um mesmo país podem ser muito mais significativas que as referentes ao contraste rural/urbano". Visando ressaltar essa diversidade, estudo realizado por Bitoun e Miranda (2009) apresentou 19 tipologias de cidades brasileiras, definidas através de critérios multidimensionais, sendo que as cidades com menos de 20.000 habitantes foram classificadas como "espaços rurais".

Diante disso, devemos reconhecer a complexidade e heterogeneidade em relação as formas de constituição do rural e do urbano.

Campo de Intervenção: o Território da Pesquisa

Enquanto o campo de análise corresponde à delimitação de um campo conceitual e compreensivo, o campo de intervenção corresponde a um recorte de realidade no qual buscamos traçar estratégias e táticas para nele atuar (Baremblitt, 2012). Esta pesquisa delimita como recorte os nove municípios que conformam a 4ª RS do Paraná: Irati, Mallet, Rio Azul, Rebouças, Inácio Martins, Fernandes Pinheiro, Teixeira Soares, Imbituva e Guamiranga. As RS correspondem a divisões político-administrativas, com a função de apoio aos municípios na implantação de políticas públicas e fomento da cooperação e articulação intermunicipal.

O município sede desta RS possui aproximadamente 60.000 habitantes. O segundo município mais populoso da RS possui cerca de 30.000 habitantes, enquanto os outros sete municípios possuem entre 5.000 e 15.000 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010). Quatro entre os nove municípios possuem população rural superior à urbana, compondo de 53,4% a 71,70% de sua população, ao encontro dos dados do IBGE (2010), que indicam que 29% dos municípios brasileiros apresenta população rural superior à urbana. Nos outros cinco municípios, a população rural também é significativa, variando de 20,10% a 42,5%.

Estes dados atualizam o título da publicação de Veiga (2004) "Nem tudo é urbano", na qual problematiza o mito do desaparecimento do rural pela força da urbanização, indicando que "ruralidade não é deficiência, e também não é sinônimo de declínio; tanto quanto urbanidade e aglomeração não garantem, automaticamente, um próspero desenvolvimento" (p. 28). Esses territórios e populações são muitas vezes invisibilizados em decorrência da perspectiva urbano-centrada e etnocêntrica que caracteriza a produção das práticas e saberes em diversas áreas, incluindo a psicologia (Dantas et al., 2018; Dimenstein, Siqueira et al., 2017; Nascimento et al., 2018).

Destacamos que oito dos nove municípios da RS compõem a chamada "espacialidade crítica - porção central" do Estado do Paraná (Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social [IPARDES], 2017). Segundo IPARDES (2017), além de pouco representativos do ponto vista econômico, os municípios que compõem esta espacialidade "apresentam volumes expressivos de carência em seu interior, quando analisados os números absolutos de população de pobres e condições de moradia" (p. 51). Entre os indicadores críticos considerados, estão os de taxa de mortalidade infantil, Índice de Gini, proporção de pobres, IDH-M, entre outros. Esta espacialidade distancia-se, assim, das que são consideradas as áreas de máxima, elevada e média relevância socioeconômica do Estado1, evidenciando um grau de desigualdade intraestadual.

Do ponto de vista da agropecuária, a chamada espacialidade crítica - porção central tem participação significativa no Estado, visto que muitos municípios têm sua atividade principal baseada na economia rural, destacando-se o cultivo da soja, milho, os madeiráveis, a criação de bovinos e suínos. Uma peculiaridade da região é a produção de tabaco, sendo que três municípios da RS (Irati, Rio Azul e Guamiranga) compõem o grupo de oito municípios responsáveis por 81% da produção de tabaco paranaense (IPARDES, 2017).

Outra especificidade desta região é a transição da tradição dos faxinais para novas formas de uso e apropriação da terra. O faxinal corresponde a um modo de campesinato, presente no Paraná, especialmente na região centro-sul e sudeste do Estado, tendo como singularidade a forma de organização coletiva, através do criadouro comum de animais a solta, com utilização das pastagens naturais (Almeida, Montysuma, & Schorner, 2019). Segundo Almeida et al. (2019), o que caracteriza os faxinais não são apenas os aspectos ambientais e econômicos, mas os aspectos sociais e culturais, como os laços de solidariedade e reciprocidade constituídos. Apesar de ainda presentes na região, existe uma tensão entre as forças que convergem para a sua manutenção e aquelas que levam a sua descaracterização ou dissolução. Estas últimas emergiram após a introdução da produção do fumo (pós década de 1960) e foram acentuadas com a introdução de mudanças nos modos de ocupação da terra na região, após a década de 1980, com a inserção de novas formas de produção, marcados pelo latifúndio, privatização do uso da terra, uso de maquinários e produtos químicos no manejo agrícola. Estas características foram estabelecidas dentro de uma política agrícola nacional que favorecia os grandes agricultores. Ao mesmo tempo, este mesmo processo produziu movimentos migratórios campo-cidade da população faxinalense, com impactos psicossociais importantes (Schorner & Correio, 2011).

 

Método

Esta pesquisa é orientada pelo referencial institucionalista, no campo de convergência da análise institucional (Baremblitt, 2012; Lourau, 1993) com a cartografia (Kastrup, 2007). A análise institucional interroga as instituições, evidenciando os conflitos e as contradições existentes. A principal instituição interrogada nesta pesquisa é a Psicologia, especialmente em sua potencialidade de produzir encontros e modulações frente a novos contextos e marcadores (como a saúde e os contextos rurais) ou, pelo contrário, homogeneização e invisibilização. Destaca-se a inexistência de um protocolo investigativo único, sendo indicado por Lourau (1993) a formação de um campo de coerência, multireferencial, com vistas à construção de processos de desnaturalização e intervenção sobre a realidade. Nesse caminho, afirmamos a pesquisa como um modo de produzir movimentos de desnaturalização, demonstrando que o modo como olhamos não é natural.

Os dados selecionados para análise neste artigo foram produzidos através de duas estratégias. Na primeira delas, foram utilizadas as transcrições das entrevistas que ocorreram na segunda etapa da pesquisa mais ampla, em que foram selecionadas 16 entrevistas, relativas aos/às psicólogos/as atuantes na atenção primária e secundária dos nove municípios que compõem a RS. O roteiro de entrevista contemplou questões versando sobre a inserção no trabalho, as formas de organização do processo de trabalho (ações desenvolvidas, cotidiano de trabalho, trabalho em equipe, especificidades da saúde, etc), abordagens, formação para atuação nas políticas públicas.

Neste primeiro movimento de leitura, buscamos explorar se e como os contextos rurais permeavam as entrevistas, com inspiração no conceito de rastreio e toque desenvolvido por Kastrup (2007). O rastreio consiste em um "gesto de varredura do campo" (p. 19), buscando pistas e signos de processualidade relacionados ao problema de pesquisa. Já o toque é sentido como um primeiro movimento em direção ao processo de seleção, denotando que "algo acontece e exige atenção" (Kastrup, 2007, p. 19).

Enquanto o primeiro movimento de pesquisa buscou pistas em um material amplo, num segundo movimento de pesquisa foi construída uma estratégia de focalização, com a realização de entrevistas complementares com quatro profissionais, os quais atuam na atenção primária nos quatro municípios que possuem população rural maior que a urbana. Os movimentos atencionais de toque e pouso (Kastrup, 2007) se acentuam nesta estratégia, visando uma focalização e aprofundamento das questões relativas ao trabalho do psicólogo e sua relação com os contextos rurais.

Os participantes foram três homens e 13 mulheres, sendo que o município-sede concentrava seis participantes (três vinculados a serviços municipais e outros três a serviços de abrangência regional), enquanto seis municípios contavam com a presença de um psicólogo e dois contavam com a presença de dois psicólogos. Em relação ao nível de atenção, oito estavam vinculados a diferentes arranjos de atenção primária (três em Núcleos Ampliados de Saúde da Família-NASF, três em UBS, dois em Secretarias Municipais de Saúde) e oito na atenção especializada (dois em CAPS, dois em Ambulatórios de Saúde Mental, quatro em centros de especialidades ou atuação isolada). A inserção destes profissionais nas redes de atenção ocorreu principalmente após 2012, marcando um período de expansão da inserção da psicologia na região, atrelado à descentralização das políticas de saúde mental. Essa expansão ocorreu sob vínculos estáveis (estatutários) e vínculos frágeis (contratação via CNPJ e pregão eletrônico), produzindo maior rotatividade destes últimos. São psicólogos jovens (75% tem menos de 30 anos), a maioria tem atuação recente no serviço (pós 2017) e a maioria fez sua formação acadêmica em municípios polo da região ou próximos. Para a maioria dos participantes, assumir o cargo de psicólogo representou a possibilidade de retorno para sua cidade natal ou de permanecer próximo a ela, semelhante ao dado encontrado no estudo de Silva e Macedo (2019).

A pesquisa seguiu as diretrizes éticas em pesquisa, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COMEP-UNICENTRO) sob número do parecer 2.515.252.

A apresentação dos resultados ocorre de forma articulada com a discussão, em três eixos analíticos: contextos rurais: territórios (não) vistos; O reconhecimento dos contextos rurais: modulações do olhar; O trabalho de psicólogos: modulações da atuação nos contextos rurais. Esses eixos analíticos foram constituídos a posteriori, tomando por base os analisadores emergentes na leitura das transcrições das entrevistas selecionadas, em diálogo com o objetivo da pesquisa. Os analisadores podem ter diferentes materialidades (falas, disposições arquitetônicas) e "permitem fazer surgir, com mais força, uma análise" (Lourau, 1993, p. 35), proporcionando o diagnóstico de uma realidade, a análise das formas instituídas e dos processos instituintes.

Para preservar a identidade dos/das participantes, estes serão identificados por P1, P2 e assim sucessivamente.

 

Resultados e discussão

Contextos Rurais: Territórios (Não) Vistos

Neste eixo analítico, tomamos como analisador a relação da presença/ausência de menção aos contextos rurais nas entrevistas, especialmente no movimento de rastreio dessa informação. O primeiro movimento de análise consistiu em buscar pistas acerca do rural em um material mais amplo de pesquisa, no qual foi solicitado aos participantes que falassem sobre a população que acessa o serviço onde atuam, como organizam suas ofertas de atenção e processos de trabalho no território, entre outros aspectos. Diante de tais perguntas, emergiram respostas que mencionaram formas de organizar o trabalho para contemplar diferentes populações (incluindo os contextos rurais), assim como respostas onde tais contextos não foram mencionados, tanto por psicólogos atuantes na atenção primária quanto secundária, denotando uma invisibilidade dos mesmos.

Santos (2002) cria um procedimento designado de sociologia das ausências. Segundo o autor, trata-se de um modo de demonstrar "que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe" (p. 246). Trata-se de considerar que a não existência, expressa na ausência de menção aos contextos rurais em algumas entrevistas, é também uma produção da Psicologia, atualizando-se no exercício profissional de psicólogos.

O rural pode se tornar tanto um espaço de significação quanto um espaço vazio, tal qual nomeado por Bauman (2001). Não se trata de um espaço inexistente, nem invisível, mas sim de um espaço invisibilizado, para o qual o olhar não é direcionado. Segundo Bauman (2001, p. 122), "o vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda". Para Butler (2006), o não reconhecimento de pessoas e populações impede que as mesmas possam ser consideradas em suas singularidades e precariedades, naturalizando a perspectiva de que existem vidas que valem mais (as quais são direcionadas ações e investimentos) e vidas que valem menos (para as quais não se direcionam ou direcionam menos ações e investimentos).

Nesse sentido, pensamos que a menção ou não aos contextos rurais demarca relações de visibilidade ou invisibilidade, podendo esta última repercutir em homogeneização da clientela e naturalização das demandas. Segundo Souza (2012, p. 750), "há uma ideologia que afirma que o Brasil é urbano, em contraponto a estudos que afirmam que as características do país estão fundadas em relações culturais, econômicas e sociais rurais".

Concordamos com Santos (2002), ao afirmar que o objetivo de tomar a sociologia das ausências como um procedimento é transformar as ausências em presenças. Com isso, buscamos ampliar as possibilidades de experiência, produzindo outros possíveis na relação entre a psicologia, a saúde e os contextos rurais .

O Reconhecimento dos Contextos Rurais: Modulações do Olhar

Enquanto no primeiro eixo analítico destacamos os processos de (in)visibilidade dos contextos rurais frente à atuação de psicólogos, neste eixo destacamos modulações emergentes nos modos de olhar os contextos rurais.

Segundo Bock (2015, p. 118), na perspectiva tecnicista, o sujeito da psicologia "É um sujeito qualquer de qualquer lugar do planeta ". Diferentemente da perspectiva tecnicista, a modulação exige a produção de uma variação na relação com os territórios: o que se passa na relação do sujeito com o lugar que habita, com o modo que vive e produz ?

Parte dos psicólogos relata a percepção de uma distinção muito tênue em relação ao urbano/rural, em decorrência de atuarem em cidades pequenas: "não percebo diferença entre a população rural e cidade em termos de tratamento psicológico, a dificuldade maior seria a questão do acesso" (P2). Esta compreensão remete a noção de "cidade rural" (Bitoun & Miranda, 2009), onde o porte populacional e as características da cidade como um todo se sobressaem em relação à dicotomia rural-urbano. Apesar da diversidade em relação ao que é conceituado como um município pequeno ou com características rurais, a descrição realizada por Soares e Melo (2010) é condizente com características dos municípios da 4ª RS, especialmente aqueles com menos de 20.000 habitantes: apresentam maior proximidade ou borramento entre o núcleo urbano e rural, tendência de perda ou estagnação populacional aliada ao processo de envelhecimento, menor acesso a tecnologias de informação e comunicação, dependência de um sistema urbano regional, formas diferenciadas de relação com a natureza, com ampla oferta de espaços verdes, lazer (como rios e cachoeiras).

Entretanto, outros profissionais mencionaram diferenças entre essas duas realidades, mesmo em municípios pequenos, especialmente em relação ao acesso a serviços, práticas esportivas e de lazer, contato com outras pessoas, resultando em diferentes modos de sociabilidade. Segundo P4, a população que vive nos meios rurais "possui menos condições para explorar realidades de vida diferentes". Essa percepção aproxima-se daquela encontrada em estudo realizado por Silva e Macedo (2019, p. 353): "o rural como lugar de poucas oportunidades, sem informação e distante do moderno". Entretanto, destacamos que a condição de explorar realidades diferentes não deve ser vista como uma característica natural do meio rural, mas sim à situação de pobreza e vulnerabilidade que pode estar associada ao mesmo. Segundo o IPARDES (2017), três municípios da região possuem indicadores críticos em relação a pobreza, expressando-se também (mas não só) nos contextos rurais. De modo contrastante, um desses municípios sedia um luxuoso hotel-fazenda, explorando o turismo rural e as características naturais da região, como os lagos, rios e matas de pinheirais, evidenciando o rural como lócus de expressão de desigualdades.

Haesbaert (2009) destaca que as lógicas reticulares têm alterado as relações de tempo-espaço do sujeito contemporâneo, de modo que tão importante quanto a posse da terra é a capacidade de se conectar e circular por outros territórios. Entretanto, as desigualdades sócio-econômicas produzem sujeitos barrados em seu poder de circulação, conformando aglomerados de exclusão (Haesbaert, 2009), com expressões nos meios urbano e rural.

Destaca-se, na fala de alguns participantes, a associação entre os modos de ser e estar no contexto rural com o marcador gênero e trabalho. Afirmam que é mais comum as mulheres procurarem espontaneamente pelo atendimento psicológico, reconhecendo com mais facilidade estarem passando por problemas que envolvem aspectos emocionais. Também identificam nas mulheres maior frequência de transtornos mentais comuns, tal como indicado em estudo realizado por Furtado, Saldanha, Moleiro, e Silva (2019).

Em contraposição, foi indicado que os homens apresentam maior dificuldade para identificar a relação entre os problemas que vivenciam e aspectos emocionais, sendo mais comum procurarem auxílio em decorrência de um encaminhamento médico ou demandas familiares. Entre as demandas dos homens, o alcoolismo predominou, incluindo o público jovem: "criança com 13 anos já estão começando a usar álcool, a beber, (...), eles chegavam na venda conheciam quem era o dono da venda, ou o dono vendia porque sempre o pai tava lá " (P4 ).

A facilidade de acesso a bebida alcoólica e o machismo foi associado por um participante com aspectos culturais que podem repercutir em sofrimento psíquico: "Muitas mulheres que eu atendo, muito novas, submetidas a um casamento ou a uma dinâmica familiar muito triste, que envelhece elas até, tem pessoas que chegam e falam 'ah, eu tenho 30 anos' e a cara é de 50" (P4).

Em relação ao trabalho, alguns participantes identificam a percepção de que, para as pessoas que vivem no campo, ter saúde corresponde a ter condições para o trabalho, sendo que o impedimento para este é que designaria a demanda por auxílio: "só iam pro atendimento quando eles não conseguiam trabalhar mais" (P4).

Também foi relatada a percepção de vulnerabilidade decorrente da relação mulheres-trabalho, em decorrência de a gestão financeira ser reconhecida como atribuição masculina: "aí tinha toda aquela relação machista e tudo mais de o marido mandar e aquilo era difícil e aí isso relacionava-se com o sofrimento maior, (...) "eu ir trabalhar pra outro, seja de uma roça de aqui do lado, ele não deixa"" (P4).

Alguns participantes associaram expressões de sofrimento psíquico com as pessoas que "não são proprietárias da terra" e que "são proprietárias da terra". No primeiro caso, em função da precariedade nas relações de trabalho, baixa remuneração e da oscilação na oferta de trabalho. No segundo caso, em decorrência da vivência de situações de estresse e preocupação quanto ao plantio, à colheita, às condições climáticas, coincidindo com aspectos identificados como estressores por Favero, Sarriera, Trindade e Galli (2013). Segundo P3:

Na área rural tudo gira em torno disso: quem planta, quem é o dono do terreno, quem é a pessoa que tá ali como o chefe, vamos dizer assim, ele tá preocupado se vai dar, se vai chover, se ele vai conseguir pagar as contas no final da safra, se ele vai dar conta de tudo, então tem o sofrimento da família. E daquelas que são contratadas, eu nem falo de um contrato legal, é sobretudo um trabalho por dia mesmo, então as pessoas que não tem um terreno pra fazer a sua produção trabalham pra outras pessoas, e por exemplo, as pessoas da área rural elas não têm outro trabalho de assim, de abril a setembro, então a pessoa trabalha ali de outubro a fevereiro, março e precisa guardar e se organizar com a sua renda pro ano todo.

As menções ao ser homem/mulher neste contexto, assim como as relações com o trabalho, emergem como analisadores, evidenciando modos de expressão e intersecção das relações de gênero e trabalho no campo. Interseccionalidade foi um conceito cunhado pela feminista negra Kimberle Crenshaw e que tem ganhado notoriedade no Brasil com Akotirene (2018). Este conceito serve como uma ferramenta ou sensibilidade analítica na compreensão acerca de como determinados marcadores se relacionam e interpenetram, sustentando relações de opressão. Neste estudo, as tensões urbano-rural, feminino-masculino e no campo do trabalho se entrecruzam, reforçando relações que podem produzir privilégios e/ou vulnerabilidades.

Estudo realizado por Zanello, Fiuza e Costa (2015) evidenciou diferenças nos sofrimentos psíquicos dos homens e das mulheres, com base nos estereótipos de gênero, os quais influenciam na adesão e continuidade de tratamentos. Em relação ao alcoolismo, a "dependência do álcool os impede de levar adiante os seus papéis sociais, principalmente os de ser provedor e trabalhador, que, como visto, são fundamentais para a sua definição social. Por isso, deve ser combatido quando usado em excesso" (Zanello & Silva, 2012, p. 274). Desse modo, o uso de álcool possui um limiar que pode situar o homem em uma posição de virilidade e valorização, assim como numa posição de descrédito, caso o seu uso seja excessivo ou comprometa a relação com o trabalho e provento da família. Estudo realizado por Macedo, Dimenstein, Leite, e Dantas (2016, p. 565) em assentamentos rurais indicou que "as condições de vida, as fragilidades na infraestrutura dos assentamentos, gênero, escolaridade, renda, ocupação, acesso aos serviços de saúde e educação, são fatores influenciadores do consumo problemático nesses contextos". Nesse sentido, complexificam-se os marcadores e suas formas de intersecção na determinação de sofrimento psíquico e uso problemático de álcool em contextos rurais (Dimenstein, Macedo, Leite, Dantas, & Silva, 2017).

De acordo com Dimenstein, Macedo et al. (2017), homens e mulheres do meio rural vivenciam suas atribuições de maneiras diferentes, o que ocasiona modos singulares de adoecimento. Enquanto os homens receiam não providenciar o sustento necessário para a família, as mulheres apresentam vulnerabilidades associadas ao relacionamento conjugal, a conciliação de diferentes atividades (domésticas e na agricultura), o cuidado com a família e parentes, ausência de uma autonomia e independência financeira, entre outros .

Segundo Lima (2003), muitos dos sintomas e transtornos mentais são decorrentes das condições de vida e trabalho. Estudo conduzido por Rosa e Svartman (2018) auxilia a compreender os impactos do trabalho no campo sobre a saúde e qualidade de vida de famílias que lidam com o cultivo de fumo no sudeste paranaense. Os participantes do estudo relatam o modo como a cultura do tabaco organiza seus modos de produção e de vida, desde o recebimento por produção, o endividamento para a compra de maquinário, os efeitos do manuseio das folhas da planta e dos agrotóxicos na saúde, o envolvimento da família no processo de plantio, colheita e secagem das folhas. A produção do fumo costuma ser feita em pequenas propriedades, com características familiares. Deste modo, para além da diferenciação entre "ser proprietário" e "não proprietário" da terra, destacamos ainda as diferenças entre ser proprietário de uma pequena ou grande propriedade, assim como as relações entre as produções e os modos de vida e organização do cotidiano, gradações estas pouco presentes na percepção dos participantes do estudo .

Por fim, é importante pontuar que as modulações nas formas de olhar os contextos rurais é heterogênea entre os participantes e foram produzidas sob a forma de um saber prático, ou seja, não foram apreendidas na formação acadêmica, mas no cotidiano da atuação profissional, evidenciando a carência formativa neste tema, conforme apontado em outros estudos (Silva & Macedo, 2019).

O Trabalho de Psicólogos: Modulações da Atuação nos Contextos Rurais

Modular significa produzir variação, numa consonância e sensibilidade entre os modos de trabalhar e os contextos (Zambenedetti, 2019). Diferencia-se da noção de aplicação, que pressupõe a sobreposição de um saber supostamente já constituído sobre um determinado campo. Modular implica numa variação constante, na qual os saberes profissionais interpelam os contextos e são também interpelados por estes. Os processos de modulação exigem um grau de abertura permanente do psicólogo em relação ao seu campo de intervenção, assim como a construção de dispositivos para fazer ver e falar tal campo.

Com base nesta compreensão, neste eixo buscamos identificar as modulações que os contextos rurais provocam nos modos de organizar o trabalho de psicólogos/as.

Ao sistematizar as práticas psicológicas e as relações com os contextos rurais, observamos dois arranjos de práticas. No primeiro, observamos a centralidade da oferta da psicoterapia, em serviços localizados em área central dos municípios. Essa conformação apareceu tanto na atenção primária quanto na especializada, indicando um modo de sedentarização do exercício profissional, com pouca interação em equipe, reproduzindo o modelo clínico-ambulatorial tradicional, conforme já descrito em outros estudos (Cintra & Bernardo, 2017; Dimenstein & Macedo, 2012; Ferreira Neto, 2011; Spink, 2010). Em algumas situações foi relatada a reserva de um dia da semana para a realização de atendimentos em uma unidade de saúde localizada em contexto rural, visando facilitar o acesso geográfico dos usuários. Entretanto, preservando o modelo clínico tradicional, centrado na compreensão intrapsíquica de sujeito e com pouca interlocução com o trabalho em rede e com as equipes de saúde.

Observamos que as atuações perpassadas por esse arranjo são aquelas onde a menção aos contextos rurais é inexistente ou incipiente, reproduzindo um modelo de atendimento a um sujeito abstrato. As motivações que sustentam esse arranjo são diversas: desde a crença de que é o principal e mais efetivo modo de atuação da psicologia, passando pelo desconhecimento e insegurança acerca de outras formas de atuação, percepção de pressão da população e das gestões por este modelo de atendimento, ausência de processos de educação permanente e remuneração por procedimento, sendo este último atrelado a formas precárias de vínculo profissional.

Num segundo arranjo, encontramos movimentos de nomadização do exercício profissional, expressos na diversificação das estratégias de atenção (grupos, visitas domiciliares, acolhimento, matriciamento) e na circulação do profissional por diferentes unidades de saúde, visando maior proximidade com os contextos rurais e com as equipes da atenção primária, especialmente com o trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde-ACS, responsáveis pelo importante papel de articulação das demandas da comunidade com os profissionais de saúde. Destaca-se a potência desta articulação para o trabalho territorial, considerando-se que a cobertura de ESF é de mais de 75% nos municípios da 4ª RS, com exceção do município sede da regional, que apresenta cobertura de ESF inferior a 40%2. O dispositivo psicoterápico não é excluído deste arranjo, mas recolocado: "a gente precisa dividir o trabalho entre atendimento clínico, em visita domiciliar e os trabalhos de prevenção" (P3).

Estudo realizado por Dimenstein, Siqueira et al. (2017) indicou baixo conhecimento das equipes das políticas sociais acerca do território, assim como o fato de que a oferta de consultas, visitas domiciliares e palestras, quando feitas de modo descontextualizado, não atingem a efetividade esperada. Compreendemos que a diversificação das ofertas de cuidado, o trabalho em equipe e articulado com as ACS, assim como o deslocamento do psicólogo no território, potencializam a ampliação do acesso e a contextualização da atenção. Entretanto, estes somente se convertem em um cuidado nômade se forem acompanhados de mudanças nos modos de compreender os territórios, numa perspectiva não colonialista.

Destacamos a compreensão de que todo exercício profissional comporta movimentos de sedentarização, assim como de nomadização, em diferentes graus e conformações. O nômade, segundo Deleuze e Guattari (1997), é aquele que se desloca na busca de recursos que lhe permitam seguir habitando um território. Pensamos, assim, que a nomadização envolve a produção de deslocamentos (nos modos de olhar e de atuar) que possam produzir as melhores condições para a produção do cuidado .

As visitas domiciliares costumam surgir por demanda de outros profissionais da equipe para averiguação de alguma situação (pessoas em sofrimento psíquico, suspeita de violação de direitos, etc) e nos casos em que há impossibilidade de deslocamento do usuário. Foi citada a realização de visitas domiciliares interprofissionais, em que o psicólogo atua em conjunto com outro profissional, sendo o assistente social o mais citado.

A literatura tem destacado as potencialidades do trabalho em saúde que envolve o deslocamento dos profissionais e não apenas dos usuários, especialmente quando envolve ações de prevenção (Lancetti, 2006, Lemke & Silva, 2010). Ressalta-se aí tanto um aspecto que facilita o acesso físico, quanto também a possibilidade de conhecer o território, as relações sociais, os saberes e as práticas tradicionais que podem ter um caráter terapêutico para esta população (Costa Neto & Dimenstein, 2017).

Apesar das potencialidades indicadas, foram identificados desafios relacionados aos aspectos geográficos e econômicos, destacando-se a distância, os problemas decorrentes das condições das estradas e dos problemas socioeconômicos dos usuários. Conforme destacado por P3: "são visitas que demoram mais, então uma visita na cidade a gente faz com um determinado tempo X e na área rural se a gente for fazer, a gente demora o dobro, o triplo desse horário".

Sanchez e Ciconelli (2012) ressaltam que a discussão sobre acesso muitas vezes é reduzida ao aspecto geográfico e financeiro. Afirmam a necessidade de serem também consideradas as dimensões sociais e culturais que afetam a aceitabilidade, assim como a dimensão da circulação da informação. Em relação à dimensão social e cultural, observamos variações decorrentes dos modos de vida e trabalho no campo que afetam a aderência dos usuários: "quando a gente prepara uma atividade, é de março a novembro, porque eles começam na colheita e aí eles não vêm" (P2), e

aqui no município, a agricultura predomina e então na área rural a gente tem a produção de fumo e no período de outubro a março é um período que tem muito mais falta, então a gente inicia uma atividade, eu iniciei grupo, o pessoal veio até um determinado período e acaba precisando trabalhar e acabam não frequentando mais e o grupo acaba se desfazendo por falta de participantes (P3).

Diante disso, observa-se o reconhecimento de que a aceitabilidade e aderência está associada a características dos modos de vida e produção, não podendo ser reduzia a fatores intrapsíquicos, como resistência, por exemplo.

Por fim, cabe destacar que, apesar do segundo arranjo evidenciar movimentos de nomadização do cuidado em direção a uma abordagem territorial, são ainda incipientes as ações realizadas "com" as comunidades e não apenas "nas" comunidades. Acreditamos que isso esteja associado a ênfase das abordagens teóricas dos participantes, visto que as de caráter individual-restritivo (Calatayud, 1999), como psicanálise e cognitiva-comportamental, predominaram sobre as de caráter social-expansivo, como a psicologia social e comunitária, as quais não foram mencionadas pelos participantes.

As perspectivas da psicologia social, comunitária e institucional trazem potencialidades ao tomar os contextos rurais como objetos de análise e não como simples espaços naturalizados. Silva e Macedo (2019) afirmam como contribuição da psicologia social a compreensão de que o sofrimento ou mal-estar psicossocial é produzido a partir das condições de existência, devendo a prevenção estar articulada aos modos de produção da vida cotidiana. Dimenstein, Siqueira et al. (2017) destacam que a perspectiva territorial auxilia na compreensão do sofrimento psicossocial articulado as condições de vida, possibilitando o delineamento de estratégias de suporte e apoio, atentos aos recursos comunitários. Ainda nesta direção, a análise institucional pode trazer contribuições através das abordagens participativas, fomentando processos grupais sob o viés co-analítico e co-gestivo (Lourau, 1993).

 

Considerações finais

A contribuição deste artigo reside em dois pontos principais. Primeiro, em demonstrar que a ausência da ruralidade como marcador dos conhecimentos e intervenções de psicólogos na saúde não deve ser apreendida apenas como uma "falta de conhecimento", estando relacionada à racionalidade universalizante que atravessa as formas de produzir conhecimento em psicologia. Segundo Santos (2002, p. 243), a racionalidade moderna possui uma pretensão totalizante, que esconde sua parcialidade e seu efeito de homogeneização, que "não só tem uma compreensão limitada do mundo, como tem uma compreensão limitada de si própria".

O segundo ponto reside na reflexão sobre as formas de reconhecimento dos contextos rurais. Isso porque, segundo Butler (2006), enquanto o não reconhecimento pode levar a invisibilidade, também existem formas de reconhecimento que podem levar a processos de deslegitimação, penalização e colonização. Portanto, devemos colocar em análise sob que bases ocorrem os processos de reconhecimento e que efeitos produzem.

Nesse sentido, observamos o desafio de que o rural não seja associado apenas a falta de recursos, carência de oportunidades, dificuldade de acesso ou a ausência daquilo que existe na cidade; mas que também se constitua um olhar que reconheça a heterogeneidade e as expressões da desigualdade no campo, assim como seus efeitos sobre os processos de saúde e adoecimento.

Ao abordarmos a emergência do rural e as modulações nos modos de olhar e intervir, buscamos ampliar o campo de possíveis para os psicólogos atuantes na saúde. A noção de modulação aponta para as forças instituintes, que tensionam a Psicologia a se reinventar, frente ao mandato ético-político da profissão. Aponta também para a necessidade de compreendermos que os contextos rurais não são meros locais de aplicação de técnicas e saberes psicológicos, demandando uma abertura para o campo interdisciplinar e para a construção de dispositivos que possibilitem a aproximação com tais contextos.

No tocante ao processo de reconhecimento dos contextos rurais, a perspectiva da interseccionalidade mostrou-se potente na revelação do modo como os marcadores gênero e trabalho interagem na reprodução de desigualdades. Pontuamos a necessidade de políticas públicas que promovam a redução das iniquidades, assim como intervenções com caráter comunitário e participativo que possam atuar na desnaturalização dos marcadores mencionados, integrando ainda a análise de outros marcadores como cor, escolaridade, renda, os quais não foram abordados nesta pesquisa.

Por fim, indicamos a necessidade de fomentar as discussões sobre ruralidades na formação e intervenção de psicólogos/as, incorporando este tema como objeto de discussão, visando a sua qualificação e direcionamento para as abordagens territoriais.

 

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Endereço para correspondência:
Departamento de Psicologia/UNICENTRO
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Recebido em 18.ago.20
Revisado em 26.fev.21
Aceito em 28.mar.21

 

 

1. A "espacialidade com máxima relevância" corresponde à região metropolitana de Curitiba, estendendo-se em direção ao interior até Ponta Grossa e em direção do litoral até Paranaguá. As espacialidades com "elevada relevância" correspondem à região norte-central (formada pelas aglomerações de Maringá e Londrina) e à região oeste (tendo Cascavel como principal polo). As espacialidades de média relevância são a Centro-Oriental (tendo como principal referência Telêmaco Borba), a porção noroeste (Cianorte, Umuarama e Paranavai) e porção sudoeste (Pato Branco e Francisco Beltrão). Guarapuava e Irati são também classificadas como de média relevância, apesar de não conformarem uma espacialidade regionalizada. Há ainda a espacialidade com mínima relevância (norte pioneiro, tendo Jacarezinho como cidade polo), a qual acompanhou os índices gerais do Estado. Por fim, as chamadas "espacialidades críticas": porção central e Vale do Ribeira.
2. A consulta teve como base julho/2019 e foi realizada no site: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml
Gustavo Zambenedetti, Doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é Professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Campus Irati-Paraná.
Vanessa Sidoski, Estudante de Graduação em Psicologia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Campus Irati-Paraná. Email:vsidoski@unicentro.edu.br

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