Introdução
A Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, que institui o Estatuto da Juventude, prevê como princípios que regem as políticas públicas de juventude, entre outras, a promoção da autonomia e emancipação, esta entendida como a trajetória de inclusão, liberdade e participação do jovem na vida em sociedade; o reconhecimento do jovem como sujeito de direitos universais, geracionais e singulares; o respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude; e a promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação.
Noutro passo, o atual modelo retributivo de justiça penal se mostra a serviço dos propósitos dos sistemas capitalista, neoliberal, patriarcal, classista e racista. Assim, tanto o modelo retributivo de justiça penal quanto os referidos sistemas de controle, além de vigentes na sociedade brasileira, favorecem a perpetuação das violências estruturais e do encarceramento em massa de parcela específica da sociedade brasileira: os jovens, homens, negros, pobres e periféricos (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2018; Bueno & Lima, 2022).
Evidencia-se então, a atuação contraditória do Estado, pois de um lado ele cria leis que estabelecem princípios para inclusão da juventude em políticas públicas, e de outro permite a atuação excludente do sistema penal retributivo que perpetua violências contra essa mesma juventude.
Assim, como eixo central, estabeleceu-se investigar significações na perspectiva das(os) jovens que integram a parcela da sociedade que mais sofre com a ausência de políticas públicas e com as diversas formas de violências – institucional, racial, de classe, de gênero, em razão do território em que residem –, o que fazem delas(es) tanto autoras(es) quanto vítimas de atos delituosos (Bueno & Lima, 2022).
O termo “jovens”, no âmbito desse estudo, refere-se, exclusivamente, às pessoas da faixa etária de 15 a 29 anos, como estabelecido nos parágrafos 1º e 2º do artigo 1º da Lei nº 12.852/2013, que dispõe sobre o Estatuto da Juventude.
Nessa direção, com o intuito de apresentar noções básicas de uma teoria vinculada à disciplina de criminologia, que dialoga com a violência institucional da qual as(os) jovens negras(os), periféricas(os) e marginalizadas(os) são vítimas, é necessário abrir, neste momento, um parêntese.
Remonta à origem da humanidade a punição (castigo) como consequência direta e imediata à prática de algo considerado reprovável (criminoso) pelo grupo social. Durante séculos, a pena, de caráter cruel e desproporcional (esquartejamentos, mortes na fogueira), era aplicada como instrumento de vingança divina ou pública, pela própria vítima ou por seus familiares, à pessoa do agressor. No final do século XVIII, a partir dos ideais iluministas, começaram a surgir as teorias criminalistas humanitárias – Beccaria (1738-1794); Bentham (1748-1832); Feuerbach (1775,1833); Carrara (1805-1888) –, com fundamento nos sentimentos de piedade, compaixão e respeito à pessoa humana, com vistas à substituição das penas de caráter cruéis pelas de caráter retributivo. Nasce assim o Direito Penal Moderno, instrumento legal do Estado que visa punir o condenado pela prática de uma conduta causadora direta de um resultado jurídico reprovável pelo ordenamento jurídico vigente (Anitua, 2008; Zaffaroni, 2014).
Durante a Segunda Guerra Mundial, com fundamento nos pensamentos de Heinrich Henkel (1913-1981) e de Georg Dahm (1904-1963), críticos à aplicação do princípio da legalidade no âmbito penal, o Estado Nazista Alemão passou a adotar a teoria segundo a qual o Estado estaria autorizado a punir todos aqueles que o sentimento popular indicassem como inimigos da comunidade. (Anitua, 2008; Zaffaroni, 2014).
Nessa direção, Günther Jakobs (2008) criou a recente teoria do Direito Penal do Inimigo, que visa punir de forma diferenciada as pessoas consideradas perigosas ao Estado: terroristas, chefes de organizações criminosas ou ligadas ao tráfico de drogas. Essa teoria autoriza o Estado a não aguardar a exteriorização da conduta do suspeito, para só, depois, reagir; ao Estado cabe agir antecipadamente, no estado prévio da conduta, justamente pelo fato de o agente ser perigoso, ou seja, inimigo do Estado (Jakobs & Meliá, 2012). O fundamento para a criação da teoria do Direito Penal do Inimigo é o fato de que, em todo agrupamento social, por razões religiosas, de segurança do próprio Estado ou da classe dominante e, inclusive, de manutenção do sistema econômico capitalista, existem sujeitos ou grupos de pessoas para os quais se voltam a “hostilidade de um grupo social” (França, 2012, p. 7), exatamente por compartilharem de “uma característica peculiar que os classificam como inimigos” (França, 2012, p. 6).
Para Jakobs e Meliá (2012), “quem por princípio se conduz de modo desviado não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo” (p. 29). A Teoria do Direito Penal do Inimigo cria, portanto, duas categorias de sujeitos, a partir de uma fonte de expectativas de comportamento: as pessoas (cidadãos), merecedoras de direitos e garantias constitucionais; e as não pessoas (inimigos), objeto de coação. Desse modo, “aquele que se conduz de modo cronicamente desviado, não oferecendo garantia de um comportamento pessoal expectado, não pode ser tratado como pessoa (cidadão), devendo ser combatido como não pessoa (inimigo)” (França, 2012, p. 16).
Fecha-se aqui o parêntese com a seguinte indagação: no atual momento geopolítico de ataques à democracia, considerando que a Constituição da República vigente proíbe a aplicação da “pena de morte, salvo em caso de guerra declarada” (art. 5º, inc. XLVII), bem como a omissão (ou condescendência) das autoridades públicas (Congresso Nacional, Ministério Público e Corregedorias), as condutas violentas e de caráter de extermínio desferidas pela polícia aos considerados periféricos, pobres, negros, ou seja, aos grupos marginalizados, diariamente noticiadas pelas mídias, são atos de guerra declarada contra esses inimigos do Estado brasileiro?
Ao analisarem a questão das(os) jovens sob o prisma da psicologia social, que estuda as relações humanas e as violências nelas existentes, Costa e Barroco (2021) destacam que:
[...] se faz necessário tecer explicações que revelem a violência social como um fato concreto, como síntese de múltiplas determinações e que, por sua complexidade, demanda teorizações das mais diversas áreas científicas. Nesse sentido, é fundamental que a Psicologia se posicione de maneira a desvelar e a denunciar os efeitos da violência e da desigualdade estrutural na vida das pessoas, para a constituição de seus psiquismos, de suas personalidades, de suas consciências. (p. 67)
A violência estrutural, portanto, diz respeito às privações e violações em que vive a classe trabalhadora em uma sociedade de classes. Aqui se evidencia o caráter social da violência como um processo que se desenvolve a partir das condições que a requerem, tanto no exercício da expropriação e exploração do homem pelo homem (violência estrutural), quanto para manutenção dessa relação (violência institucional ou estatal). Esta, por sua vez, é a forma de manutenção da organização social por meio da força policial ou do exército, a repressão dos movimentos sociais e o genocídio por parte do Estado, é uma violência institucionalizada. É a forma mais direta da violência estrutural, pois além de refletir a hierarquização da sociedade, é parte fundamental para sua reprodução
(pp. 74-75, grifo nosso).
Desse modo, este estudo objetivou apreender os sentidos e os significados, na concepção dos jovens participantes dos Círculos de Construção de Paz (CCP) da Justiça Restaurativa realizados pelo Centro Judiciário de Justiça Restaurativa (Cejure) de Goiânia, no Poder Judiciário do Estado de Goiás, de quem são tais jovens para o Estado, isto é, como o Estado os enxerga.
Método
Os aportes teóricos usados para a análise e para a relação das diversas temáticas foram os pressupostos da Psicologia Sócio-Histórica de Lev Semionovitch Vigotski (1869-1934), fundamentada pelo método materialista histórico-dialético.
Da perspectiva de pesquisa qualitativa, este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, sob o parecer nº 5.128.011, CAEE: 53213121.4.0000.0037. Em todas as etapas respeitaram-se as normas estabelecidas na Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
Segundo Vigotski (2009), historicamente, o ser humano expressa as vivências e as experiências da consciência humana por meio da palavra, ao lhes atribuir sentidos e significados. Desse modo, para o autor,
[...] o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. Como se sabe, em contextos diferentes a palavra muda facilmente de sentido. O significado, ao contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos.
(p. 465)
O método materialista histórico-dialético ancorou a análise das falas dos jovens entrevistados, com vistas a extrair os sentidos e significados por eles constituídos, a partir de suas participações nos Círculos de Construção de Paz, somados às produções e às reproduções implícitas e explícitas nos processos culturais, políticos, sociais e econômicos determinados pela sociedade, de forma a desvelar a essência do ser social nos processos presentes no fenômeno em estudo.
Estabeleceram-se os seguintes critérios de inclusão: jovens que concordaram em participar voluntariamente da pesquisa, residentes na região metropolitana de Goiânia, na faixa etária entre 15 e 29 anos, de ambos os sexos, que participaram de um ciclo de CCP realizado pelo Cejure, em virtude de ter praticado ou ter sido acusado de praticar ato(s) infracional ou criminal. Como critérios de exclusão, consideraram-se jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação e/ou encarceradas(os) e/ou incluídas(os) em programa de proteção às vítimas de violência do Governo Federal.
Os quatro jovens participantes deste estudo leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e são aqui apresentados, por meio de nomes fictícios, por eles mesmos escolhidos e com uma descrição sintética das informações sociodemográficas.
Galego, 27 anos, solteiro, pardo, ensino médio completo, autônomo, possuía uma renda variável de dois a três salários-mínimos. Em um imóvel alugado na região sudoeste de Goiânia, morava sozinho e, nesse mesmo local, funcionava seu estacionamento/lava a jato. Os fatos que o levaram a participar dos CCP foram um acidente de trânsito e uma arma encontrada em seu carro durante uma blitz de trânsito.
Guilherme, 26 anos, casado, preto. Pôde concluir o ensino médio somente em 2021, em razão da necessidade de trabalhar desde os 8 anos. Em uma casa cedida na região norte de Goiânia, morava com a esposa e suas duas filhas. Trabalhava como autônomo na fabricação de calhas. Possuía renda de um a dois salários-mínimos e era o único responsável pela renda familiar. O fato que o fez participar dos CCP foi o envolvimento em uma discussão com policiais civis durante uma festa pública que resultou em sua prisão por suposto desacato, desobediência e resistência.
Marcos Antônio, 22 anos, solteiro, pardo, ensino médio concluído em 2020. Em uma casa financiada, na região oeste de Goiânia, morava com os pais e uma irmã. Trabalhava como feirante junto com a mãe e ambos possuíam uma renda de um a três salários-mínimos. O fato que o levou a participar dos CCP foi por ter sido acusado de tráfico ilícito de drogas, após a polícia tê-lo abordado na rua, entrado em sua casa e lá ter encontrado uma pequena quantidade de drogas.
Bruno Henrique, 26 anos, recém-casado, preto, ensino médio concluído em 2019. Em uma casa financiada, na região oeste de Goiânia, morava com a esposa. Trabalhava como motorista de aplicativo, sendo a renda familiar entre dois e três salários-mínimos decorrentes do trabalho dele e da esposa. O fato que acarretou sua participação nos CCP foi uma prisão em flagrante por ter sido parado em uma blitz de trânsito após ter consumido bebida alcoólica.
Na etapa de coleta de dados, entre janeiro de 2021 a março de 2022, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com esses jovens, as quais foram gravadas com anuência dos participantes e transcritas para posterior análise. Três entrevistas aconteceram nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e uma foi realizada no ambiente de trabalho do jovem entrevistado.
No processo de análise qualitativa, adotaram-se os “núcleos de significação”, um procedimento metodológico dialético para compreender a realidade para além das aparências. Inicialmente, leituras flutuantes das transcrições completas ajudaram a pesquisadora a se familiarizar com o objeto de estudo. Nas etapas seguintes, foram identificados aspectos relevantes nas falas dos entrevistados, como complementação, similaridade e contradição, constituindo os pré-indicadores. Esses pré-indicadores foram então agrupados para formar indicadores, que possibilitaram a constituição dos núcleos de significação (Aguiar et al., 2021 ). Esse processo foi complementado pelos referenciais teóricos da Psicologia Sócio-Histórica, do método materialista dialético e da Justiça Restaurativa, integrando teoria e prática para compreender integralmente o sujeito dentro dos contextos sociais, culturais, políticos, econômicos e religiosos do contexto histórico.
Resultados e discussão
A partir dos relatos dos jovens entrevistados, identificaram-se os sentidos e significados de quem são esses jovens para o Estado. Para tanto, foram estruturados dois núcleos de significação: “Quem mora lá na periferia” é tratado “como se fosse do crime” e “Eu não era aquele ato que eu estava sendo enquadrado”.
“Quem mora lá na periferia” é tratado “como se fosse do crime”
Este núcleo de significação evidenciou o tratamento discriminatório e preconceituoso realizado pelos agentes do Estado (policiais e autoridades judiciais) àqueles que habitam os espaços periféricos das grandes cidades.
Sobre o tratamento dispensado aos moradores da periferia, o jovem Marcos Antônio pontuou:
Ainda mais porque, tipo, né... igual quem mora lá na periferia, né! Dizendo eles (os policiais) que não é do centro, esses trem. O policial, “eles olham” para nós, um “cara” novo andando aí de carro ou de moto, “eles dizem” que a gente não trabalha, né! Mas a gente trabalha para nós aí, né! Porque eu trabalho com a minha mãe e tal. Aí eles pegam e falam: Você tinha era que estar trabalhando em uma coisa e está aqui na rua!
A gente anda e é um perigo ser abordado. Porque na hora que acontece qualquer tipo de ato lá na periferia, o policial ele faz o que quer e não está nem aí, ele te pega e te leva preso, mesmo você não tendo culpa nenhuma. Eu mesmo já tive um ato desse jeito uai. Porque eu fui preso uma vez, daí chegou em frente ao juiz e ele me inocentou. Eu só estava na hora, no momento errado e porque o “cara” me olhou e falou que eu tinha cara de quem faz as coisas erradas.
Nessa direção, o jovem Guilherme acrescentou:
A parte da sociedade que eu falo que tem traumas é justamente essas pessoas que moram na periferia, entendeu? Que muitas vezes são pessoas que trabalham, são pessoas honestas, mas que devido elas morarem na periferia, elas são acostumadas, por exemplo, a andar com uma roupa mais folgada, um estilo assim mais periférico. Mas quando a polícia vê eles (os periféricos) na rua, já trata como se eles fossem da “bocada”. Já como se fosse do crime.
O jovem Galego também destacou em uma de suas falas que:
Tem muitas pessoas que fazem coisas muito piores e tudo, só que por um meio ou outro, ele não é punido, ele não tem a vida dele prejudicada, nem a da família dele, igual eu tive, né!
As falas dos jovens Marcos Antônio, Guilherme e Galego apontaram para a questão do processo de exclusão social e mencionaram a existência de um tratamento desigual por parte dos agentes públicos àqueles jovens designados como periféricos e marginais. Já as falas bastante sucintas de Bruno Henrique, ao longo de toda a entrevista, não evidenciaram tais percepções.
Destacaram-se, ainda, além da categoria da territorialidade, outras categorias relevantes no processo de marginalização da população jovem que reside nas periferias, como a importância do trabalho como critério de reconhecimento de cidadania e a questão dos tipos de violências estruturais, que a seguir serão esmiuçadas.
Quanto à categoria da territorialidade, Santos (2007) afirma que as condições geográficas e sociais de um indivíduo definem sua cidadania. Pessoas que possuem condições morais, intelectuais e econômicas similares são valorizadas de forma diferente a depender do lugar em que vivem. O fato de alguém ser, ou não, considerada(o) cidadã(ão) está vinculado diretamente ao local que habita. Nesse sentido, o espaço geográfico guarda relação direta com a condição socioeconômica em razão da presença ou ausência de bens e serviços que possibilitam às pessoas desfrutarem de uma existência digna.
Nesse seguimento, Santos (2007) assevera:
O homem-cidadão, isto é, o indivíduo como titular de deveres e direitos, não tem o mesmo peso nem o mesmo usufruto em função do lugar em que se encontra no espaço total. (pp. 112-113)
A localização das pessoas no território é, na maioria das vezes, produto de uma combinação entre forças de mercado e decisões de governo [...]. Uma política efetivamente redistributiva, visando a que as pessoas não sejam discriminadas em função do lugar onde vivem, não pode, pois, prescindir do componente territorial. (p. 141)
Morar na periferia é se condenar duas vezes à pobreza. A pobreza gerada pelo modelo econômico, segmentador do mercado de trabalho e das classes sociais, superpõe-se à pobreza gerada pelo modelo territorial. Este, afinal, determina quem deve ser mais ou menos pobre somente por morar neste ou naquele lugar. (p. 143)
É impossível imaginar uma cidadania concreta que prescinda do componente territorial. Vimos, já, que o valor do indivíduo depende do lugar em que está e que, desse modo, a igualdade dos cidadãos supõe, para todos, uma acessibilidade semelhante aos bens e serviços, sem os quais a vida não será vivida com aquele mínimo de dignidade que se impõe. (p. 144)
Há desigualdades sociais que são, em primeiro lugar, desigualdades territoriais, porque derivam do lugar onde cada qual se encontra. Seu tratamento não pode ser alheio às realidades territoriais. O cidadão é o indivíduo num lugar. A República somente será realmente democrática quando considerar todos os cidadãos como iguais, independentemente do lugar onde estejam.
(p. 151)
Ainda em relação à territorialidade, Chaui (2017) apresenta dois conceitos: o das populações periféricas e o das populações marginalizadas.
Sobre a população dos periféricos, a autora relata que são os sujeitos que constituem a maioria das populações das grandes cidades e representam a classe trabalhadora responsável pela força de trabalho social essencial à manutenção do sistema capitalista e à acumulação de riqueza e poder da classe hegemônica, isto é, “a periferia é formada por aquela parte da sociedade que permite à sociedade como um todo, existir, funcionar e acumular riquezas” (pp. 92). Porém, em razão das políticas habitacionais e econômicas, os periféricos são forçados a morar em locais distantes do centro, ou seja, em “cidades-dormitórios”, que em sua maioria são desprovidas de infraestrutura e dos serviços básicos que lhes garantem dignidade (Chaui, 2017).
Quanto à população marginalizada, Chaui (2017) pontua a questão a partir do sentido relacionado à força de trabalho, afirmando que não há que se falar em marginalidade nesse aspecto, posto que “todo serviço [...] contribui direta ou indiretamente para a acumulação do capital” (p. 92). Como um segundo sentido, a autora considera como marginais ou marginalizadas(os) todas(os) aquelas(es) que, apesar de participarem de maneira direta ou indireta da produção ou da circulação de mercadorias, são sujeitos que não desfrutam “sequer das garantias legais e sociais mínimas para a sobrevivência física, psíquica, política e cultural” (p. 92), tais como as pessoas em situação de rua, os favelados, a população carcerária, entre outras populações.
Ao dar seguimento a essa questão, a autora estabelece algumas análises para identificar os pontos convergentes e divergentes entre a população periférica e a população marginalizada. No que tange ao aspecto geográfico ou espacial, os periféricos e os marginais ocupam em geral espaços diferentes, isto é, os sujeitos periféricos habitam territórios longe dos centros urbanos e os sujeitos marginais podem ser encontrados tanto distantes quanto próximos às zonas centrais, como é o caso, por exemplo, daqueles que habitam as favelas e os cortiços. Quanto ao aspecto econômico, costuma haver distinção na forma como cada grupo se insere no mercado de trabalho, sendo que aos sujeitos periféricos cabe a denominação dos “trabalhadores propriamente ditos” (p. 93) e aos sujeitos marginalizados cabe a denominação pejorativa de “marginais” (p. 93). Já no aspecto social, tanto as(os) habitantes da periferia como as(os) da margem são ambas(os) pertencentes às camadas populares ou de trabalhadoras(es) que constituem uma mesma classe social, a classe dos dominados (Chaui, 2017).
Nessa direção e ampliando o entendimento sobre a marginalização e o tratamento discriminatório dispensado aos moradores da periferia, Caldeira (2003) menciona que
O crime e os criminosos são associados aos espaços que supostamente lhes dão origem, isto é, as favelas e os cortiços, vistos como os principais espaços do crime. [...] Como residências um tanto anômalas, ou seja, que não se encaixam totalmente na classificação de casas apropriadas, favelas e cortiços acabam classificados como sujos e poluidores [...] Excluídos do universo do que é adequado, eles são simbolicamente constituídos como espaços do crime, espaços de características impróprias, poluidoras e perigosas. Como seria de esperar, os habitantes desses espaços são tidos como marginais. A lista de preconceito contra eles é infinita. De certo modo, tudo o que quebra os padrões do que se considera boa conduta pode ser associado a criminosos, ao crime e a seus espaços.
(pp. 79-80)
De acordo com Telles (2007), a pobreza é difundida pela classe hegemônica como sendo uma patologia social de estado natural, não havendo autores ou responsáveis por sua criação e, tampouco, pelas consequências sofridas pelos sujeitos que se encontram nessa situação. A pobreza é algo que se encontra visível por todos os lados, e os sujeitos com situação econômica desfavorecida são frequentemente tratados de forma preconceituosa, sendo também denominados de marginais pelo simples fato de habitarem um determinado território e/ou por não possuírem trabalho regular e regulamentado por lei.
Assim, os termos “periféricos” e “marginais”, além do sentido da territorialidade, são também utilizados de forma depreciativa para designar sujeitos sem valor, desqualificados, perigosos, ou seja, indignos de serem pertencentes à sociedade. Nesse sentido, Telles (2007) faz um comparativo entre as(os) periféricas(os) e marginais, assim conceituadas(os), com aquelas(es) que não possuem trabalho com carteira assinada, colocando todas(os) em uma mesma categoria de cidadãs(ãos) inferiores, desprovidas(os) de direitos civis, passíveis, portanto, de sofrerem violências de toda a ordem, inclusive a policial, que insiste em desqualificá-las(los), reiterando continuamente o tratamento desigual, apesar de que, constitucionalmente, todas(os) são iguais perante a lei. Dessa forma, o respeito e a dignidade são valores dispensados apenas às pessoas pertencentes às classes superiores (dominantes).
Corroborando as falas do jovem Marcos Antônio – “‘eles dizem’ que a gente não trabalha, né! Mas a gente trabalha para nós aí, né! Porque eu trabalho com a minha mãe e tal” – e com as do Guilherme – “Que muitas vezes são pessoas que trabalham, são pessoas honestas, mas que devido elas morarem na periferia [...] quando a polícia os vê na rua, já trata como se eles fossem da ‘bocada’. Já como se fossem do crime”. Caldeira (2003) explicita o tratamento depreciativo destinado pelo Estado aos periféricos e marginais:
Para a polícia, como para muita gente, a fronteira que separa a imagem do trabalhador pobre da do criminoso é de fato muito tênue. Em consequência, membros das classes trabalhadoras podem ser molestados pela polícia, mortos como criminosos e suas reações naturais de medo (como fugir) podem ser interpretadas como comportamento de criminosos.
(p. 182)
As violências praticadas pelo poder público aos sujeitos considerados marginais seguem uma tendência introduzida pelo sistema capitalista de tratar essas pessoas como inimigos da sociedade, por consequência, do próprio Estado. Dessa forma, sujeitos considerados periféricos, marginais, pobres, desempregados, bem como negros, ou aqueles em situação de carência econômica, social, política, cultural, intelectual não são reconhecidos como sujeitos e, portanto, passíveis de serem tratados como seres perigosos, indignos de confiança, dando legitimidade ao poder público para que os submeta a tratamentos desiguais e violentos (Martins, 1997; Nascimento, 1994; Sawaia, 2001).
Para elucidar quem são os destinatários dos diversos tipos de violência estrutural, em especial a institucional, e ratificar o tratamento desigual e excludente destinado pelo Estado à parcela de jovens, majoritariamente do sexo masculino e negros, realizou-se a análise do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 (Bueno & Lima, 2022).
O Anuário 2022 evidenciou o percentual da faixa etária da população prisional, nela incluídas as pessoas encarceradas no Sistema Penitenciário Federal no ano de 2021, não considerados os presos sob custódia das polícias em carceragens, destacando-se que naquele ano não consta a informação de idade de 10.840 presos. Observou-se que aproximadamente 50% da população prisional do ano de 2021 são jovens na faixa etária dos 18 aos 29 anos (46,3%), contra 53,6% que se encontram na faixa etária de 30 a mais de 60 anos.
O Anuário 2022 apresenta, também, a série histórica evolutiva da população prisional masculina e feminina de 2008 a 2021. O documento revelou que, apesar de nesse período de 13 anos tanto a população prisional do sexo feminino quanto a do sexo masculino terem aumentado, em percentuais relativamente iguais de 109% e 107%, respectivamente, o destaque referiu-se à enorme discrepância entre o número total de pessoas encarceradas do sexo masculino e do sexo feminino, que em 2021 foi de 769.947 em relação aos homens, enquanto que o de mulheres era de 45.218, representando uma superioridade populacional prisional masculina de 1.602,74%.
Destaca-se, ainda, a série histórica da evolução prisional por cor/raça de 2005 a 2021, que mostrou o aumento da população prisional da cor/raça negra em número percentual de 9,10%, enquanto a da cor/raça branca diminuiu em 10,8%.
Ante o exposto, constatou-se que o perfil da população prisional ou da clientela do sistema judicial penal é composto majoritariamente pela população jovem, masculina e negra, que em geral habita os espaços da margem e da periferia dos grandes centros urbanos. São sujeitos coisificados, cujos corpos seguem sendo marcados desde o período colonial até os dias atuais, conforme encontra-se adicionalmente exposto no núcleo de significação a seguir.
“Eu não era aquele ato que eu estava sendo enquadrado”
Este núcleo de significação refere-se aos sentidos e significados que os jovens atribuíram à imagem estereotipada formada sobre eles pelas autoridades judiciais e pelos agentes policiais, como se pode verificar nos relatos a seguir.
O jovem Marcos Antônio revelou a existência de alguns estereótipos atribuídos aos jovens com o propósito de desqualificá-los e deslegitimá-los enquanto cidadãos, ao afirmar:
A gente é julgado pela nossa aparência, porque a gente tem tatuagem, sei lá por não sei o quê. Aí, os policiais dizem que a gente é maloqueiro e eles veem a gente de uma forma diferente.
(Marcos Antônio)
Em outra fala, o jovem Marcos Antônio evidenciou, ainda, que os estereótipos direcionados aos jovens legitimam as atitudes preconceituosas dos agentes policiais e da autoridade judicial e, por conseguinte, geram a desumanização ao reduzi-los aos atos por eles praticados ou a eles atribuídos em determinada situação de suas vidas:
Porque, tipo, eu queria também tentar mostrar para o juiz que eu não era aquele ato que eu estava sendo enquadrado no momento, né! Que eu só era um simples usuário de droga. Aí eu tentei participar para ele (o juiz) entender que eu só sou usuário e que eu não vendo esse tipo de coisa. Aí eu fiz a participação.
(Marcos Antônio)
Nessa direção, o jovem Guilherme revelou ter vivenciado o preconceito decorrente dos estereótipos que caracterizam os jovens de forma depreciativa, por meio da postura adotada pela juíza e pelos agentes policiais:
A juíza estava mais assim para o lado da polícia, ela quis falar que o policial não mente, né? E na verdade a gente sabe que tem muitos policiais honestos, mas também tem muitos corruptos, né?
A juíza disse que eu tinha que ser reintegrado à sociedade porque eu não tinha condições de estar na sociedade da maneira que eu era. Ela disse que eu tinha que ser reintegrado à sociedade, entendeu? Ela me colocou assim como se eu fosse uma pessoa “mau”, entendeu? Uma pessoa que a qualquer momento podia fazer alguma coisa errada ou cometer um crime.
Então, assim, por mais que alguns agentes não estavam na hora da prisão, mas só por eles ouvirem falar que a gente foi preso, porque desacatou ou alguma coisa, né, então eles já formam uma opinião sobre a gente, né? Então, assim, eles ficam falando aquilo, né. Aí eu olhei para trás assim, para ver quem que estava falando. Daí eles falaram: Aí, o senhor não olha para trás não moço, abaixa a cabeça e sai, né? Falando desse jeito.
(Guilherme)
Nesse contexto, as falas de Marcos Antônio e de Guilherme revelaram a vivência de outros preconceitos praticados por parte dos agentes do Estado, que não são resultantes apenas do lugar em que eles residem. O destaque, agora, está na percepção da existência de um tratamento preconceituoso direcionado aos jovens que são pobres, em razão de certas características depreciativas que lhes são conferidas. Quanto às falas dos jovens Galego e Bruno Henrique, não houve apontamentos nesse sentido durante as entrevistas.
Dessa forma, destacaram-se as seguintes categorias: os preconceitos e os estereótipos; a associação da pobreza com a violência e a criminalidade; a culpabilização individual; a articulação dos veículos de comunicação no processo de exclusão dos jovens; e o processo de redução do jovem a um ato.
Quanto à categoria dos preconceitos e estereótipos, de acordo com Jodelet (2001), tem-se que tanto os preconceitos quanto os estereótipos negativos funcionam como processos psicossociais de exclusão, decorrentes dos contextos sócio-históricos de um grupo de sujeitos e massificados largamente pelos processos de comunicação que se estabelecem nas relações sociais. Por preconceito, entende-se como sendo o “julgamento [...] formulado sem exame prévio a propósito de uma pessoa ou de uma coisa e que, assim compreende vieses e esferas específicas” (p. 59). Quanto aos estereótipos, trata-se das características físicas ou atributos pessoais de integrantes de grupos sociais específicos. “Eles são considerados como resultantes de processos de simplificação próprios ao pensamento do senso comum” (p. 59). Os preconceitos e os estereótipos são utilizados para reforçar a regulação das relações sociais entre classes em conflitos como forma de a classe dominante perseguir e excluir a classe dominada.
Ainda, sobre esse tema, Jodelet (2001) assevera que a atitude de atribuir estereótipos de deslegitimação a certos grupos de pessoas tem por objetivo excluí-los, desvalorizá-los e desmoralizá-los diante dos demais, bem como acarretar a “desumanização que autoriza a expressão do desprezo e do medo e justifica as violências e penas” (p. 64) infligidas a esses grupos.
Sobre a categoria de associação da pobreza com a violência e a criminalidade, identificada nas falas dos jovens, observou-se que as autoridades judiciais e policiais utilizam-se dos estereótipos de “mau”, “maloqueiro”, sem “condições de estar na sociedade” para vinculá-los à violência e à criminalidade, uma vez que são pobres e periféricos. Nesse sentido, Rodrigues e Sousa (2017) afirmam que:
A associação da pobreza com a violência é uma realidade, tanto pelas ações arbitrárias dos agentes do Estado, no caso, policiais militares, quanto por julgamentos estereotipados que, historicamente, foram constituídos acerca da pobreza e da localização de suas moradias. A criminalização dos jovens pobres os marca como vândalos e com ideais e condutas que não respeitam a lei e a ordem estabelecida, potenciais perturbadores e responsáveis pela violência e a desordem social.
(p. 208)
Nessa direção, pode-se perceber, com clareza, que há uma divisão bem demarcada na sociedade: “há cidadãos e marginais e estes não podem almejar um tratamento com humanidade por parte dos poderes públicos. A justiça é, então, evocada para garantir a distinção, para fazer com que os tratamentos sejam diferenciados” (Caldeira, 1984, p. 232).
Quanto à categoria da culpabilização individual, assim como os preconceitos e estereótipos, segundo Guareschi (2001), trata-se de uma das estratégias psicossociais de exclusão mais hábeis, pois a culpabilização individual imputa exclusivamente ao indivíduo toda a responsabilidade por uma situação adversa e destaca o seu caráter perverso. O autor ressalta que, ao aplicar essa tática de legitimação da exclusão, faz-se
[...] necessário encontrar uma vítima expiatória sobre quem descarregar o pecado de marginalização, ou quase genocídio, de milhões. Essa vítima é o próprio excluído. O culpado não é um sistema, baseado em relações excludentes, que faz milhões de pobres. Não existe, dentro da ideologia liberal, espaço para o social. Por isso o ser humano é definido como um indivíduo, isto é, alguém que é um, mas não tem nada a ver com os outros. O ser humano, pensado sempre fora da relação, é o único responsável pelo seu êxito ou pelo seu fracasso. Legitima-se quem vence, degrada-se o vencido, o excluído.
(p. 154, grifo nosso)
A seguir, ao analisar as falas que evidenciam a engenhosa arquitetura para a manutenção da exclusão social das(os) jovens pobres e estereotipadas(os), fez-se necessário buscar compreender acerca do meio empregado para disseminar e reforçar os estereótipos conferidos a essas(es) jovens da sociedade brasileira, qual seja: os veículos de comunicação.
Evidenciou-se que as(os) jovens pobres, não brancos e periféricos são estereotipadas(os) e estigmatizadas(os) em virtude da articulação realizada pelos veículos de comunicação de massa que conseguem introjetar sorrateiramente na sociedade certas ideias e convicções que se tornam naturais, sem chamar a atenção para as causas reais que dão origem às questões das violências e do crime (Martins, 1997; Nascimento, 1994; Sawaia, 2001).
Ao ampliar o entendimento sobre o papel exercido pelos meios de comunicação na estratégia de disseminação e consolidação dos estereótipos depreciativos conferidos às(aos) jovens que são pobres, Mello (2001) pontua que, além de os meios de comunicação não esclarecerem a sociedade a respeito das “raízes sociais, culturais, políticas e econômicas que permeiam a violência nas relações sociais” (p. 139), tais veículos atuam como se fossem juízes, isto é, julgam e condenam. Essas práticas contribuem ainda mais para aprofundar e ampliar os estigmas atribuídos às(aos) jovens pobres.
Ainda em relação a essa questão, a autora alerta:
Se há um perigo para a democracia na exacerbação da violência urbana, há, também, um sério perigo embutido no poder inconfesso de meios de comunicação, voltados deliberadamente para a manipulação e controle das massas. Mas, com certeza, também a justiça e os órgãos de investigação não podem continuar se omitindo vergonhosamente da apuração do assassinato dos jovens nas periferias.
(Mello, 2001, p. 140)
Notou-se que, no contexto da vida em sociedade, a classe dominante tem dificuldade em “reconhecer um igual nas personagens da pobreza” (Mello, 2001, p. 135). O diferente é reconhecido como desigual e inferior, logo sendo esse indivíduo desumanizado, como assevera Mello (2001):
Reconhece-se o diferente como desigual. Da desigualdade à inferioridade não há muita distância. Da desigualdade, reconhecida como inferioridade e do desconhecimento ao temor, do ponto de vista psicológico, não há, também, grande distância. O medo à desordem e à perda da vida e das propriedades, um grande descrédito na polícia e na justiça podem transformar a insegurança e o temor difusos em acusações contra segmentos sociais ou grupos específicos de sujeitos de quem se desconfia, que não são reconhecidos como iguais, ou seja, não são portadores da mesma humanidade que reconheço em mim e nos meus iguais. São, por definição, portadores de características desabonadoras, de traços de caráter indesejáveis, de um potencial de violência que os torna pouco humanos.
(p. 135, grifo nosso)
Esse cenário de preconceitos, apontado pelos jovens entrevistados, evidenciou claramente o processo de redução da(o) jovem a um ato. Nesse sentido, Soares (2011) assevera e alerta:
Temos a tendência a classificar as pessoas aprisionando-as a um momento de sua vida, no qual elas foram autoras de atos condenáveis [...]. O rótulo que a sociedade prende em seu pescoço – “o criminoso”, “o violento” resiste às mudanças que o sujeito se esforça por empreender, caso tente se libertar da violência e de seu passado. Não é boa para ninguém essa rotulação, essa fixação do sujeito a seu próprio passado e contra sua vontade. Por isso, devemos ter cautela e evitar as armadilhas da estigmatização, do preconceito, dos rótulos, das acusações que transfiram para o sujeito – ou sua natureza – os atributos de seus atos.
(pp. 62-64, grifo nosso)
Ainda, sobre a prática de reduzir a(o) jovem a um ato reprovável e a ela(e) atribuída(o), Chaui (2017) explica:
A violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda ideia que que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural, isto é, de ausência de direitos. Mais do que isso, a sociedade brasileira não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega para o lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo [...] são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato esporádico de superfície.
(p. 41)
Considerações finais
Os sentidos e significados apresentados pelos jovens entrevistados desvelaram o complexo fenômeno da injustiça social presente historicamente na vida desses jovens periféricos, injustiça essa expressada por meio das inúmeras formas de violências, a destacar, as violências institucionais infligidas pelo Estado a quem caberia o papel de proteger, mas que, ao invés de fazê-lo, acaba por discriminar, segregar e exterminar parcelas marginalizadas da população jovem, por considerá-las inimigas. Às(Aos) jovens periféricas(os) e “marginais” são negadas as condições materiais e objetivas para que possam ter dignidade e assim fazerem parte da sociedade brasileira.
Nesse sentido, dos relatos dos jovens constataram-se outras formas de violências e outros atores sociais igualmente violentos. Identificaram-se tantos outros preconceitos que se alimentam dos estereótipos negativos conferidos às(aos) jovens pobres ao longo da história, os quais são decorrentes das relações de exclusão e de segregação estabelecidas em sociedade, amplamente disseminados e reforçados por meio dos veículos de comunicação, que seguem atuando com o propósito de manter sob controle a classe dos dominados, para que a classe dominante siga no poder absoluto perpetrando a desigualdade.
Diante desse contexto, evidenciou-se a imprescindibilidade de se realizarem mais estudos ancorados pela perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica que objetivem abarcar as temáticas do sistema de justiça, da violência, da juventude e das políticas públicas, posto que são temáticas complexas, transversais e profundamente impactadas pelos contextos histórico, político, econômico, cultural, religioso e filosófico. Reafirmamos, com base nos resultados da pesquisa, a importância crucial de implementar políticas públicas robustas e efetivas, que contem com a participação ativa das(os) jovens tanto no seu processo de formulação quanto no de implementação. Tais medidas não só podem ajudar a reduzir as desigualdades, como também promover uma sociedade mais justa e inclusiva para todas(os) jovens. Ademais, seria completamente descabida a pretensão de apresentar soluções simplificadas para as questões sociais ora discutidas.