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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. v.1 n.3 Ribeirão Preto dez. 1993
A concepção Piagetiana da relação sujeito-objeto e suas implicações para a analise da interação social
Ronald João Jacques Arendt1
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
O conhecimento é definido por Piaget (1966) como uma certa relação entre um sujeito e um objeto. Para dar conta desta relação será necessário determinar "não apenas o que percebe e concebe este sujeito, mas o que percebem, concebem sujeitos de todos os níveis, em particular nas diversas etapas da história das ciências". Por toda sua obra, Piaget sempre se preocupou em investigar as leis gerais que regem o processo de construção das estruturas cognitivas pelo sujeito conhecedor. Sua concepção de interação será, consequentemente, pensada como um intercâmbio entre o mundo exterior e o indivíduo que propicie tal processo construtivo. Em seus estudos, Piaget explorou principalmente o aspecto físico do mundo exterior, o que levou alguns críticos a considerarem Piaget um autor pouco interessado pelos aspectos sociais da interação. Assim Freitag (1984,1985a), p. ex., afirma que embora a psicogênese piagetiana ofereça um quadro rico e dinâmico em termos teóricos, sua omissão da dimensão sociológica a empobrece e limita sua validade.
Nada impede, porém, que se ampliem tais explorações fazendo incluir, neste mundo exterior ao sujeito, o mundo social. É nossa hipótese que o conceito de interação piagetiano não só permite, mas impõe sua ampliação para o social. Duas citações de Piaget retiradas de obras escritas na década de 70, portanto em seus últimos anos de vida, corroboram tal hipótese e indicam que a dimensão social, antes de omitida, estaria embutida no conceito de interação. O primeiro texto é uma autobiografia escrita em 1974 abrangendo toda sua obra até 1966. Nela, após passar em revista a sua produção por aproximadamente meio século, Piaget discorre sobre os projetos para o futuro:
"Reempreender sistematicamente o estudo da causalidade é pois recomeçar a análise do desenvolvimento cognitivo, mas situando-se do ponto de vista do objeto e já não do sujeito; é um domínio imenso que pode reservar muitas surpresas. Mas ao término de uma carreira, mais vale estar disposto a mudar de perspectivas do que ficar condenado a permanecer se repetindo". (Piaget, 1974, p. 181)
O segundo texto, escrito em parceria com o físico Rolando Garcia foi publicado postumamente em 1982. No trecho que citamos, após descrever o processo de assimilação do sujeito construtor de estruturas cognitivas, isto é, as leis internas que regem a interação dialética entre os objetos que se incorporam ao conhecimento e os instrumentos cognitivos que permitem tal integração, os autores observam que tal estudo:
"ficaria inconclusivo se não retomássemos a análise desde outra perspectiva, centrando-nos não no indivíduo senão nos elementos que constituem a referência objetiva do conhecimento, isto é, numa centração sobre o objeto, em lugar da centração anterior sobre o sujeito. No que se segue, nos propomos a mostrar que esta mudança de centração é necessária para poder chegar a uma síntese totalizadora que sirva como esquema explicativo na interpretação da evolução do conhecimento tanto em escala individual como em escala social". (Piaget e Garcia, 1982, p. 227)
Percebe-se um ponto em comum nestas citações: uma disposição em efetuar uma mudança de perspectiva, em realizar uma descentração, uma consciência de que ocorreu uma centração exclusiva no sujeito do conhecimento, uma sensação de repetição, a avaliação de que o trabalho está incompleto. Os estudiosos de Piaget sabem que esta descentração não foi efetivamente efetuada. Piaget deixou esboços de interpretação que caminham nesta direção, abrindo uma importante linha de pesquisa na investigação do pensamento e da inteligência. Neste trabalho pretendemos discutir algumas perspectivas propiciadas por esta abertura.
Porque o estudo da causalidade aproximou Piaget do objeto? Para Piaget a causalidade será o processo de atribuir aos objetos uma organização que será análoga à forma como o sujeito coordena suas próprias ações. A causalidade será uma forma de abordar o real: o sujeito atribuirá uma causa aos fenômenos da realidade externa em função do estágio de desenvolvimento em que se encontra. A causalidade será, portanto, o processo pelo qual o sujeito busca uma organização, uma lógica nos fatos que observa. É interessante observar que, sem abrir mão dos processos de construção no sujeito, a concepção piagetiana de causalidade relaciona a cognição ao conteúdo envolvido nos objetos do mundo externo. Se o sujeito, com seus instrumentos cognitivos, procura dar forma aos conteúdos dos objetos do mundo percebido, abre-se um espaço para analisar as resistências que este mundo pode opor às formas que procuram capturá-lo.
Um dos textos mais significativos de Piaget, e que caminha na direção proposta por este trabalho, é um artigo publicado em 1972, no qual ele analisa a evolução intelectual da adolescência à idade adulta. Revendo as principais características dos processos intelectuais que permitem a construção de estruturas do pensamento formal por sujeitos de 12 a 15 anos, Piaget conclui que a lógica, para o adolescente, é um sistema complexo e coerente, diferente da lógica infantil, constituindo a essência da lógica adulta, proporcionando a base para formas elementares do pensamento científico. Essa conclusão, porém, foi obtida com base em experimentos efetuados em crianças de 11 a 15 anos advindas das escolas secundárias de Genebra; pesquisas recentes haviam mostrado que sujeitos de outros tipos de escola, ou meios sociais diferentes, às vezes forneciam resultados que divergiam das normas obtidas; para os mesmos experimentos, seria como se tais sujeitos tivessem se mantido no nível do pensamento operatório concreto. Logo, não se poderia generalizar para todos os sujeitos a conclusão de uma pesquisa efetuada numa população um tanto privilegiada. Nestas pesquisas, se a ordem de sucessão mostrou ser constante, a idade média em que as crianças passavam por cada estágio podia variar consideravelmente de um meio social a outro, de um país ou mesmo de uma região de um país a outro país ou região. Por que isto se daria?
Para Piaget, uma primeira possibilidade de explicação seria a qualidade e freqüência de estimulação intelectual recebida dos adultos ou obtida das possibilidades disponíveis às crianças para atividade em seu meio. Depreende-se que, no caso de estimulação e atividade pobres, o desenvolvimento nas diferentes etapas será mais lento.
"Em síntese, nossa primeira interpretação significaria que, em princípio, todos os indivíduos normais seriam capazes de atingir o nível das estruturas formais sob condição do meio social e da experiência adquirida fornecerem ao sujeito os recursos cognitivos e a estimulação intelectual necessária para tal construção". (Piaget, 1972, p. 8)
Uma segunda possibilidade seria levar em consideração a diversificação e diferenciação individual progressiva das aptidões com a idade. Piaget compara este modelo de crescimento intelectual a um leque, no qual os círculos concêntricos representariam os sucessivos estágios de desenvolvimento enquanto os setores, se abrindo em direção à periferia, corresponderiam às crescentes diferenças em aptidão. Tal interpretação implicaria excluir certas categorias de indivíduos normais, mesmo em ambientes favoráveis, de atingir o nível formal:
"Iríamos tão longe, a ponto de dizer que certos padrões comportamentais caracteristicamente foram estágios com propriedades muito gerais: isto ocorre até que um certo nível de desenvolvimento seja atingido; a partir deste ponto, entretanto, aptidões individuais se tornam mais importantes que estas características gerais, criando diferenças cada vez maiores entre sujeitos. "(Piaget, 1972, p. 8)
Nessa linha de interpretação torna-se possível distinguir entre adolescentes cujo talento fez com que se aprofundassem em questões de matemática, lógica ou física e adolescentes cujo talento fez com que se aprofundassem em questões de lingüística, de literatura ou arte. Se o primeiro grupo se desenvolve a ponto de construir estruturas formais, enquanto o segundo não se mostra capaz de fazê-lo, isto:
"não seria um problema de sub-desenvolvimento comparado ao desenvolvimento normal, mas simplesmente uma crescente diversificação entre os indivíduos (...) Em outras palavras, nosso quarto período já não pode ser caracterizado como propriamente um estágio, mas pareceria ser avanço estrutural na direção da especialização. "(Piaget, 1972, p.9)
Há, porém, para Piaget, a possibilidade de uma terceira hipótese (e, observa ele, a mais provável, no presente estado de conhecimento), em que o conceito de estágios poderia ser reconciliado à idéia de progressivas diferenciações de aptidões:
"(...) nossa terceira hipótese iria estabelecer que todos os sujeitos normais atingem o estágio formal de operações ou estruturações, se não entre 11-12 e 14-15 anos, em todo o caso entre 15 e 20 anos. Entretanto, eles atingem este estágio em diferentes áreas de acordo com suas aptidões e suas especializações profissionais (estudos avançados ou diferentes tipos de aprendizagem para os vários ofícios): a forma pela qual tais estruturas formais são utilizadas, porém, não é necessariamente a mesma em todos os casos. "(Piaget, 1972, p. 10)
É particularmente significativa a análise que Piaget efetua sobre sua terceira hipótese:
"Em nossa investigação de estruturas formais utilizamos tipos específicos de situações experimentais que eram de natureza física e lógico-matemática, pois estas pareciam ser compreendidas pelas crianças das escolas amostradas. Entretanto, é possível questionar se estas situações são, fundamentalmente, muito gerais e, portanto, aplicáveis a qualquer escola ou ambiente profissional Consideremos o exemplo de aprendizes de carpinteiro, chaveiro ou mecânico, que mostraram aptidões suficientes para um treinamento bem sucedido nos ofícios escolhidos, mas cuja educação geral é limitada. É altamente provável que eles saberão como raciocinar de maneira hipotética em sua especialidade, isto é, dissociando as variáveis envolvidas, relacionando termos de forma combinatória e raciocinando com proposições envolvendo negações e reciprocidades. Eles seriam, portanto, capazes de raciocinar formalmente em seu campo particular, enquanto que, em face a nossas situações experimentais, sua falta de conhecimento, ou o fato de haver esquecido certas idéias particularmente familiares a crianças ainda na escola ou no colégio, iria impedi-los de raciocinar de maneira formal, e eles iriam dar a aparência de estar no nível concreto. "(Piaget, 1972, p. 10)
Entretanto, como ficaria, frente a esta interpretação, uma das características essenciais do pensamento formal, a independência da forma da realidade do conteúdo? Responde Piaget:
"(...) uma coisa é dissociar a forma do conteúdo num campo que é do interesse do sujeito e no qual ele pôde aplicar sua curiosidade e iniciativa, e outra éser capaz de generalizar esta mesma espontaneidade de pesquisa e compreensão a um campo alheio à carreira e interesses do sujeito. (...) Em síntese, podemos reter a idéia de que operações formais estão livres de seu conteúdo concreto, mas precisamos acrescentar que isto é verdadeiro apenas na condição de que, para os sujeitos, as situações envolvam aptidões ou interesses vitais iguais ou comparáveis. "(Piaget, 1972, p. 10)
Um ponto chama imediatamente nossa atenção: são três as hipóteses levantadas por Piaget, neste texto, para dar conta das variações observadas. Tais hipóteses não são excludentes entre si, mas da primeira à terceira há uma estreita continuidade. Esclareçamos nosso ponto de vista: a terceira hipótese representa o fecho de um raciocínio que se inicia com as duas hipóteses anteriores. Isto é: não se trata de colocar três hipóteses autônomas como alternativas na solução de um problema. Piaget trabalha seu texto para que a última hipótese seja uma conseqüência lógica das anteriores. E ele faz uso de recursos tanto metodológicos quanto estilísticos: primeiro propõe uma solução fundada em suas bases usuais de argumentação. Como todo cientista que vê seus resultados submetidos à crítica dos dados empíricos, Piaget faz o que Lakatos (1979) chama de "heurística positiva": procura manter seu programa de pesquisa, apesar dos contra-exemplos reais. Assim, os dados empíricos permitiam que se mantivesse a seqüência de etapas sucessivas, mas questionavam as idades médias obtidas originalmente; para dar conta das defasagens, Piaget coloca então a hipótese dos recursos cognitivos e da estimulação intelectual existentes no meio social acelerarem ou retardarem as etapas de desenvolvimento, hipótese que, por ser compatível com o modelo anterior, mantém seu programa de pesquisa além de enriquecê-lo com uma hipótese complementar (numa linguagem piagetiana, a hipótese seria uma possibilidade desenvolvida a partir do patamar anterior); a seguir Piaget propõe, propositalmente, uma solução extremamente ousada, beirando quase o absurdo, na medida que todo o seu modelo teórico, laboriosamente construído em meio século de pesquisas, corre o risco de ser abandonado: seja porque perderia em generalidade, pois a diversificação e diferenciação individual progressiva das aptidões "implicaria em excluir certas categorias de indivíduos normais de atingir o nível formal", seja porque o quarto período de desenvolvimento, o mais sofisticado dos seus estágios, fim de todo um processo de construção, já não poderia "ser caracterizado como propriamente um estágio, mas pareceria ser uma variação estrutural na direção da especialização". Nos termos de Lakatos, que utilizamos acima, esta hipótese seria um outro programa de pesquisa. Ora, é óbvio que Piaget jamais pensou em abrir mão de seu programa de pesquisa, em abrir mão do conceito de sequencialidades sucessivas, básico em seu modelo. Sua ousadia, porém, não entrou apenas como recurso de retórica: efetivamente os dados da pesquisa exigiam uma reavaliação teórica; frente à decisão lógica de manter seu programa de pesquisa ou abrir mão de suas bases conceituais, surge a terceira hipótese, "a mais provável no presente estado de conhecimento": Piaget não opta entre duas hipóteses até aqui aparentemente "excludentes", mas propõe reconciliá-las. Surge aqui, mais uma vez, o argumento interacionista. Trata-se de "e " e não de "ou". A manter o conceito de estágios (primeira hipótese) ou a idéia de diferenciações progressivas (segunda hipótese), Piaget propõe uma hipótese em que a ousadia é integrada ao modelo original: nem todos os indivíduos atingem o estágio formal - o contexto social pode retardar seu atingimento, mas há padrões comportamentais comuns, a partir dos quais as aptidões se tornam mais importantes; havendo estimulação adequada e um contexto propício para explorar uma aptidão, um sujeito pode atingir o estágio formal de acordo com a área de sua especialização.
Consideramos esta terceira hipótese um dos exemplos da proposta teórica de Piaget em "recomeçar a análise do desenvolvimento cognitivo, mas situando-se do ponto de vista do objeto" e já não apenas do sujeito. Além de apontar para o seu pensamento interacionista, ela nos mostra um Piaget muito atento ao meio social, à experiência contextual vivida pelo sujeito e sua influência em sua inteligência geral e específica. Ela caminha para o que Inhelder (1982) chamou de "interacionismo integral" e nós (Arendt, 1988) preferimos chamar de interação radical, ou seja, uma interação levada às últimas conseqüências e que procura abordar a construção do conhecimento tanto pelo lado do sujeito quanto pelo lado do objeto, sem privilegiar um ou outro lado da relação de conhecimento.
O quanto esta interpretação da interação piagetiana torna possível a solução de problemas na psicologia ou mesmo nas ciências sociais? A título de exemplo, tomemos o debate sobre a inteligência da criança brasileira travado entre pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade de São Paulo, com participações isoladas de pesquisadores de outras Universidades brasileiras. (Consultar Camargo, 1986, Carraher, e Schliemann, 1982, 1986, Carraher e Schliemann, 1983, Freitag, 1985a, Moro, 1986, Patto, 1984, Ramozzi-Chiarottino, 1984, Schliemann, 1986, entre outros). Acreditamos poder contribuir para o encaminhamento deste debate, aparentemente sem solução.
O debate gira em torno da questão da existência ou não de um déficit no desenvolvimento cognitivo da criança em função da influência social. Particularmente no caso da criança pobre, como interfeririam em seu desenvolvimento cognitivo diferenças reais de classe? Se uma criança pobre fracassa na escola, isto se deve a um não desenvolvimento cognitivo, logo a um déficit, ou à escola que não foi capaz de atingir o aluno o qual, por si só, não teria qualquer defasagem cognitiva, sendo o fracasso não tanto do aluno, mas da instituição escolar? Esta discussão evidentemente antecede a um debate em torno do modelo de desenvolvimento piagetiano. Trazida, entretanto, para o campo da psicogênese dos conhecimentos, ela teria implícita uma interpretação divergente do modelo piagetiano. Assim, Patto (1984), a quem se deve o mérito de ter trazido esta polêmica para as revistas científicas especializadas, incentiva as duas partes a jum debate maior, conclamando "aqueles que dominam o modo de pensar piagetiano" a melhor se expressar: estaria a equipe da USP dizendo algo realmente novo (além do fato de trazer para a teoria piagetiana as teses da teoria da carência)? Por outro lado, ao colocar todo o peso explicativo na dimensão escolar, não estaria a equipe da UFPE negligenciando os efeitos deletérios que as condições materiais de vida resultantes da exploração e da dominação podem ter sobre o desenvolvimento humano, pergunta Patto?
"Por que diferentes pesquisadores obtém resultados opostos com a aplicação das mesmas provas numa mesma população? Diferenças reais nas amostras estudadas ou interferência dos pressupostos do pesquisador sobre os resultados da pesquisa? Será o método clínico especialmente vulnerável à interferência das expectativas do examinador sobre os resultados ou as diferenças de metodologia presentes nas pesquisas mencionadas responderiam pelas diferenças dos resultados? Estaremos diante de interpretações diversas do pensamento piagetiano? (Patto, 1984, p. 11).
Diríamos que não estamos diante de uma interpretação divergente do pensamento piagetiano, mas frente a uma interpretação insuficiente deste pensamento. Afinal, o que é "o modo de pensar piagetiano"? Entendemos que a teoria piagetiana é muito mais abrangente que a leitura que dela fazem as partes em debate. A partir da análise que efetuamos sobre o conceito de interação em Piaget, podemos afirmar que tanto a proposta da equipe paulista quanto a proposta da equipe nordestina cabem no escopo da teoria piagetiana. Pelo menos no que se refere à teoria piagetiana não haveria porque a existência de um debate. Nos termos de nossa discussão, a equipe da USP estaria abordando a teoria piagetiana por um lado da relação de conhecimento, enquanto a equipe da UFPE a estaria abordando por outro; melhor dizendo, a primeira aborda a relação sujeito-objeto a partir do sujeito, a segunda a partir do objeto. Todo o debate está calcado numa disjunção: ou se aceita a tese da deficiência intelectual, ou se aceita a tese da diferença e equivalência funcional das estruturas cognitivas. Em nenhum momento do debate se vislumbra a possibilidade teórica de trabalhar num mesmo referencial ambas as posições. Entretanto, é para aí que caminha uma interpretação fundada na interação radical - que foi proposta precisamente para contestar esta disjunção. Assim, antes de polemizarem entre si, as posições se complementam. O que não significa que elas sejam convergentes: as duas tratam de problemáticas diferentes, mas não mutuamente exclusivas, englobadas no modelo piagetiano.
O argumento do grupo paulista segue rigorosamente a psicogênese piagetiana. Epistemologicamente, o ser humano é um ser construtor de estruturas cognitivas; especificamente, a criança representa um caso especialíssimo onde estas construções podem ser observadas no decorrer do desenvolvimento. Permanecendo exclusivamente no âmbito infantil, tal argumento pesquisará a idéia original, mas totalmente integrada ao pensamento do psicólogo suíço, de que se algo não vai bem na aprendizagem da criança, algo deve ter ocorrido no processo construtivo, algo privou a criança de oportunidades para a ação. Privado desta oportunidade, o sujeito não estabelecerá adequadamente a relação de conhecimento e todo seu processo de aprendizagem, fundado na construção seqüencial gradativa, ficará comprometido. Esta falta de oportunidade para a ação é creditada ao meio social que interfere no desenvolvimento cognitivo da criança.
O argumento do grupo nordestino, ao trabalhar com referenciais etnográficos, traz para a teoria piagetiana a concepção relativista da antropologia cultural: qualquer que seja o indivíduo, ele se desenvolve segundo uma sequencialidade epistêmica que é equivalente, independentemente das características sociais dos diferentes contextos. O grupo nordestino não estuda a criança ou o fracasso escolar em si. A criança e a escola entram como exemplos de interação social. Centrar-se na análise de fenômenos ou problemas de pesquisa de interesse para a sociedade brasileira é uma indicação que nossa interpretação é correta: está sendo analisada a construção cognitiva no sujeito em geral. O projeto da equipe nordestina é, então, garantir a equivalência cognitiva, nos termos propostos por Lévi-Strauss com relação ao indígena (Levi-Strauss, 1976, 1980): não há, em geral, indivíduos ou grupos primitivos, assim como não haveria indivíduos ou grupos deficientes, apenas por pertencerem a outra classe. Se há um pensamento selvagem, se há um pensamento do indivíduo de outra classe social, este pensamento é diferente, mas nem por isso inferior, deficiente. Ao proceder a uma progressiva incorporação no modelo de desenvolvimento cognitivo dos contextos cultural e histórico em que o indivíduo vive, o grupo nordestino efetua o que Piaget não chegou a fazer, mas que não é externo à sua teoria.
Assim, é preciso pensar a deficiência nos termos da interação radical. O desenvolvimento nunca é uniforme, contínuo: haverá campos em que o sujeito se desenvolverá, outros em que seu desenvolvimento estará represado, haverá ritmos mais acelerados, e ritmos mais lentos nos indivíduos ou nos grupos sociais. Sempre haverá bloqueios, considerando a grande complexidade do contexto social e das oportunidades ou obstáculos para a ação que ele propicia. O problema não será existirem deficiências, mas julgar que uma deficiência possa ser generalizada, isto é, considerar que alguém deficiente ou defasado em um campo, venha a sê-lo também em outros. Nesse sentido, se concordarmos que o fracasso escolar não representa incompetência da criança pobre, que nos seus contextos culturais apresenta desempenhos altamente competentes, devemos acrescentar que a própria noção de competência é descontínua: sempre haverá sujeitos mais ou menos competentes num ou noutro campo possível de desenvolvimento cognitivo.
Esta série de considerações a respeito do debate sobre a inteligência da criança brasileira teve como objetivo específico indicar como a análise aprofundada da teoria piagetiana permite abrir novas perspectivas na investigação da construção do pensamento, desfazendo, a nosso ver, um debate que se estende tendo por base uma leitura insuficiente dessa teoria. O objetivo mais geral, porém, foi mostrar sua fecundidade e as inesperadas possibilidades que o descentramento proposto por Piaget oferece. Atualmente estamos trabalhando num projeto de pesquisa que pretende confrontar a concepção piagetiana de pensamento e construção do conhecimento com a concepção do pensamento em autores como M. Foucault e G. Deleuze que efetuam uma crítica à identidade do conceito, aprofundando a análise das condições do pensamento que se encontram do lado do objeto.
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(1) Instituto de Psicologia.