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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.4 no.1 Ribeirão Preto abr. 1996
PSICOLOGIA E SAÚDE
Psiconcologia e o programa Simonton
Maria Margarida M. J. de Carvalho1
Universidade de São Paulo
A palavra câncer é utilizada para descrever um grupo de doenças que se caracterizam pela anormalidade das células e pela sua divisão excessiva. Na definição de Simonton (Simonton, Simonton e Creigton, 1987),
"Um câncer começa com uma célula que contém informações genéticas incorretas, de modo que se torna incapaz de cumprir as funções para as quais foi designada. Se esta célula reproduz outras células com a mesma construção genética incorreta, então um tumor começa a ser formado, composto de uma massa dessas células imperfeitas" (p. 39).
Entretanto, existe uma grande variedade de tipos de câncer. Por exemplo, o tipo denominado carcinoma, que surge nos tecidos epiteliais; o sarcoma, que surge nas estruturas dos tecidos conectivos, tais como músculos ou ossos; a leucemia, que se origina na medula óssea e afeta o sangue; o câncer que ataca a pele, denominado melanoma, e muitos outros.
Todos estes diferentes tipos de câncer provavelmente não têm uma única causa, mas sim uma etiologia multifatorial (Hugues, 1987). Para que a doença se manifeste parece ser necessária uma operação conjunta de vários fatores. Sabe-se que a exposição a determinados fatores ambientais aumenta o risco de desenvolvimento do câncer. Já são conhecidas algumas substâncias ou agentes cancerígenos, tais como o fumo, o excesso de sol, alguns produtos químicos industriais, algumas substâncias alimentícias, radiações e vírus. Sabe-se também da predisposição hereditária e, acredita-se em contribuições psicológicas para o crescimento do câncer. Mas, mesmo estando presentes uma ou mais destas causas, muitas pessoas não adoecem.
Assim, para compreendermos o câncer, devemos compreender não somente as causas que levam algumas pessoas a contraírem a moléstia, mas também o que impede outras pessoas de adoecerem; enfim, o que mantém a saúde. Devemos compreender o sistema de defesa do corpo humano - o sistema imunológico -, o qual é composto por vários tipos de células designadas a atacar e destruir substâncias estranhas ou processos nocivos ao nosso organismo. Este sistema funciona como um processo permanente de autocura.
Um dos exemplos citados por Simonton et al (1987) é o caso relatado por Glasser (1976). Trata-se de um transplante de rim contendo células cancerosas que não haviam sido percebidas antes do transplante. Como o receptor do rim havia tomado uma medicação que suprimia seu sistema imunológico, para que este não rejeitasse o rim transplantado, o câncer, em poucos dias, evoluiu surpreendentemente, fazendo com que o rim transplantado aumentasse de volume, devido a uma massa tumoral. Logo em seguida, uma radiografia mostrou um tumor no pulmão do paciente. Como antes do transplante o paciente havia sido examinado e não apresentara nenhum tumor, estes só podiam haver surgido após o transplante, o do pulmão como metástase daquele do rim.
Imediatamente, foi suspensa a medicação que eliminava as defesas naturais e os tumores regrediram e desapareceram. Mas, nesse momento, o rim começou a ser rejeitado e os médicos o retiraram, tendo o paciente retornado à diálise crônica e não voltando a apresentar nenhum sinal de câncer.
Este caso demonstra dramaticamente como o desenvolvimento de câncer não exige apenas a presença de células anormais, mas também a supressão das defesas naturais. Casos como esse levaram ao que os médicos chamam hoje de "Teoria da Vigilância Imunológica" no desenvolvimento do câncer. Segundo esta teoria, o sistema imunológico está inibido, enfraquecido, e por isso permite a formação de um aglomerado de células anormais, configurando um câncer.
Portanto, a pergunta passa a ser: o que enfraquece o sistema imunológico? Sabemos, atualmente, após inúmeras pesquisas, da ligação estreita entre o stress e a pré-disposição às doenças. A partir daí começou-se a trabalhar com a conexão corpo, mente e emoções como causa das enfermidades.
Seyle (1956), já na década de 20, começou a estudar o mecanismo fisiológico do stress ou tensão e hoje inúmeras pesquisas com seres humanos e animais, em laboratório, nos revelam, cada vez com mais clareza, que somos dotados de um organismo apto a sofrer alterações fisiológicas provocadas pelo nosso sistema nervoso e voltar ao normal, sem maiores conseqüências. Por exemplo, o homem primitivo, frente a um perigo, tinha de ter uma resposta rápida: lutar ou fugir. O corpo sofria uma mudança de equilíbrio hormonal que, após a luta ou a fuga, retornava ao normal. Hoje, nas sociedades modernas, a resposta é freqüentemente inibida. Por exemplo, no trânsito ou nas relações empregado-patrão, a resposta à tensão é muitas vezes impossibilitada pelas circunstâncias que cercam o momento. A resposta ao estímulo não é descarregada, iniciando-se um processo cumulativo, levando ao stress crônico. Numa descrição do próprio Dr. Seyle, o stress crônico produz desequilíbrios hormonais, os quais, por terem um papel essencial no regulamento das funções corporais, levam, conseqüentemente, ao desequilíbrio destas. O Dr. Seyle também demonstrou que o stress crônico suprime o sistema imunológico.
Outras pesquisas importantes têm sido feitas, em relação à depressão e suas conseqüências no sistema imunológico. Simonton et al (1987) citam, por exemplo, autores que pesquisaram mulheres viúvas e encontraram em todas um forte rebaixamento no sistema imunológico.
Atualmente, existem muitos estudos sobre tipos de personalidade e determinadas doenças.
Foram pesquisadas as personalidades de pacientes cardíacos, asmáticos, de câncer e outros, tendo sido encontrado, estatisticamente, um grande número de características comuns.
Na verdade, este tipo de estudo já havia sido feito por Galeno (segundo Simonton et al 1987), há quase 2 mil anos, o qual observou que mulheres deprimidas tinham mais tendência ao câncer. Inúmeros outros médicos e pesquisadores, no correr dos anos, vêm mostrando as conexões entre o psíquico e as moléstias físicas.
Segundo a análise de Simonton etal (1987), o surgimento da anestesia, o desenvolvimento das técnicas cirúrgicas, a radioterapia e a crescente especialização dos médicos, que proporcionaram grandes êxitos à medicina no século XX, parecem ter levado a mesma a descartar os problemas emocionais. Os problemas físicos passaram a ser tratados, essencialmente, de forma física; problemas emocionais, por sua vez, foram considerados como inevitáveis, mesmo porque a medicina não dispunha de instrumentos adequados para lidar com eles.
Entretanto, os psicólogos começaram a desenvolver técnicas de diagnóstico e de tratamento dos distúrbios mentais e emocionais e, atualmente, a medicina e a psicologia começam a reconhecer seus limites e as vantagens de um trabalho integrado.
Existem vários trabalhos psicológicos focalizando o câncer e o psiquismo. Por exemplo, a Dra. Evans (1926), analista junguiana, faz um interessante estudo das pessoas que depositavam sua identidade em outro ou em um trabalho, e quando perdiam a outra pessoa ou o emprego se desestruturavam, e esta situação as predispunham ao câncer. LeShan (1977) fez um levantamento das situações que propiciam o surgimento do câncer e das características de personalidade típicas do paciente de câncer.
Carl Simonton, médico oncologista, e sua esposa Stephanie, psicóloga, trabalhando juntos desde 1969, procuraram integrar os conhecimentos da Medicina e da Psicologia.
Como médico interno no Oregon Medicai School, Simonton observou que pacientes com câncer, com os mesmos diagnósticos e prognósticos, apresentavam evoluções diferentes. Enquanto alguns vinham a falecer num prazo ainda inferior ao prognosticado pelo médico, outros tinham um longo período de sobrevida e outros até mesmo atingiam a cura. Simonton começou a inquirir esses pacientes com sobrevida, perguntando a quê eles atribuíam a evolução favorável de sua doença. As respostas eram muito semelhantes entre si. Exemplo: "0 meu trabalho precisa de mim", ou "Preciso ver meus filhos crescerem" etc. Eles mostravam que podiam ter alguma influência sobre o curso da moléstia; tinham uma "força vital" mais poderosa do que os outros, ou mais motivação para viver.
Os Simonton começaram, então, a pesquisar o que os pacientes que estavam se recuperando tinham em comum e no que se diferenciavam dos casos sem recuperação. Fizeram a seguinte pergunta: "Se a diferença está na convicção de poder exercer um controle sobre a doença, como poderiam levar os outros pacientes a seguirem na mesma direção?"
A partir daí fizeram um levantamento de várias técnicas. Estudaram biofeedback, psicologia da motivação, formas de terapia de grupo, meditação, processos de visualização, cursos de desenvolvimento da mente e outras, e montaram um programa intensivo, com um número fixo de sessões.
Tendo os Simonton tomado conhecimento de que através da visualização as pessoas conseguiam influenciar seus próprios processos internos, tais como ritmo cardíaco, pressão sangüínea etc, decidiram utilizar essa técnica como instrumento principal do programa. Eles se inspiraram nos trabalhos pioneiros de biofeedback de Green e Green (1977), da Clínica Menninger. Descobriram que qualquer pessoa pode aprender a controlar voluntariamente estados físicos, normalmente considerados como estando sob o controle involuntário do sistema nervoso autônomo. Eletrodos foram colocados na pele para que a máquina de biofeedback pudesse monitorar as funções fisiológicas, tais como as batidas do coração. A máquina dava sinais sonoros e visuais e, através destes, a pessoa começava a perceber que interferências suas (emocionais, de atitude, de postura etc.) modificavam as batidas do coração. A partir desta percepção, começavam a poder controlar seus batimentos cardíacos.
Essa técnica demonstrou que toda mudança no estado fisiológico é acompanhada por uma mudança no estado emocional ou mental, e vice-versa. A mente, as emoções e o corpo são um sistema unitário. Portanto, a mente pode ajudar a eliminar a doença, da mesma forma que pode facilitar seu aparecimento, permitindo seu desenvolvimento e/ou sua regressão.
No livro que escreveram, "Com a Vida de Novo" (Simonton et ai, 1987), os Simonton descrevem, na primeira parte, a teoria aqui resumida e, na segunda parte, seu programa denominado "Caminhos para Saúde". Dentro de uma abordagem holística do ser humano, insistem que seu programa não é substitutivo, mas complementar e de apoio ao tratamento médico, ajudando mesmo o paciente a compreender, aceitar e valorizar os procedimentos da medicina.
As partes que compõem o "Caminho para Saúde" são as seguintes:
1 .Participando da saúde: nesta parte os autores buscam dar consciência ao paciente de sua participação em sua própria saúde;
2. Benefícios da doença: uma doença grave pode trazer vantagens colaterais, tais como, não ter de trabalhar em um serviço desagradável, receber mais carinho, atenções etc. Portanto, é importante que o paciente se permita ter estas vantagens e/ou conseguí-las, sem precisar adoecer;
3. Aprender a relaxar e a visualizar sua cura: são ensinados fundamentos desta técnica e propostas visualizações especialmente programadas para o paciente de câncer;
4. Valor das imagens mentais positivas: são examinadas as imagens mentais negativas que podem estar impelindo o paciente à doença e é ensinado o valor das imagens mentais positivas;
5. Superando o ressentimento: não de forma imposta ("você tem que"), mas com técnicas apropriadas de liberação de emoções;
6. Criar o futuro; estabelecer objetivos: estabelecer metas é uma forma de assumir desejos e de direcionar a motivação, ao mesmo tempo em que a pessoa é levada a comprometer-se com o futuro;
7. Um guia mental para a saúde: sob a forma de visualização, o paciente é estimulado a comunicar-se com um guia mental, o qual pode ser visto como Deus, um Santo, um espírito amigo, uma pessoa falecida da família ou como uma parte inconsciente de si mesmo. O importante é que encontre um aliado que o apoie em seu processo de recuperação;
8. Lidar com a dor: é importante compreender a dor, saber que ela está ligada ao medo e também saber controlá-la;
9. Exercícios físicos e alimentação: são passadas informações e estimulados exercícios físicos e hábitos alimentares, ambos favorecendo a saúde;
10. Lidar com o medo da recaída e da morte: é mostrada a importância de se poder falar, pensar e sentir a morte e não fazer dela um tabu. São utilizadas técnicas específicas com esta finalidade;
11. Sistema de apoio da família: é ressaltada a importância do amor, da compreensão e da verdade nos relacionamentos familiares, bem como dar consciência à família de seus próprios medos (da perda, da doença, da morte).
Finalmente, os Simonton enfatizaram que seu programa não promete curas, mas promete ajuda para que cada paciente possa identificar de que maneira contribuiu para sua doença e para que ele possa também contribuir para sua recuperação. Mostra a importância da ajuda médica e também da auto-ajuda.
As pesquisas realizadas para verificação da eficácia do programa mostraram que os pacientes tratados pelos Simonton têm uma média de tempo de vida duas vezes superior aos índices nacionais americanos e, em alguns pacientes, foram constatados dramáticos casos de cura. Também foi verificado que a qualidade de vida dos pacientes, pelo tempo que sobreviveram, foi muito superior à daqueles que não passaram pelo programa.
Assim, comprovadamente, tanto a quantidade quanto a qualidade de vida foram superiores em seus pacientes, o que nos estimulou a divulgar em nosso país o trabalho do casal Simonton.
Após termos passado por uma fase de aprendizado na "Câncer Support and Education Center", em Palo Alto, Califórnia, nos Estados Unidos, onde o Programa Simonton é oferecido a pacientes de câncer, trouxemos esta proposta para a cidade de São Paulo. Em 1984, foi fundado o "Centro Alfa de Atendimento a Pacientes de Câncer" e, em 1987, o corpo técnico da Alfa uniu-se ao CORA - Centro Oncológico de Recuperação e Apoio, fundado, em 1996, por pacientes, ex-pacientes e profissionais de saúde. Esta experiência foi relatada no livro Introdução à Psiconcologia (Carvalho, 1994).
Duas pesquisas avaliaram o efeito da participação no Programa Simonton, no CORA. Na primeira, foi pesquisada a população atendida entre 1987 e 1993 (Carvalho e Nogueira, 1995) e, na segunda, foi feito um seguimento destes mesmos pacientes, em 1996 (Carvalho e Nogueira, 1996). Encontramos melhor condição emocional, melhor qualidade de vida, mais autoconhecimento e perspectiva otimista do futuro. No seguimento dos casos, não foi possível verificar o tempo de sobrevida e os falecimentos, por dificuldade de contato com muitos dos ex-pacientes. Naqueles que foram localizados, os efeitos positivos da participação no programa não só persistiram como estavam mais fortes e presentes, coincidindo com os dados obtidos nas pesquisas norteamericanas, no tocante à qualidade de vida.
Referências Bibliográficas
Carvalho, M.M.M.J. (1994) Introdução à Psiconcologia. Campinas: Editora Psy. [ Links ]
Carvalho, M.M.MJ, e Nogueira, S.P. (1995) Establishing a psychosocial program for cancer patiens: challenges and achievements. Anais do 13th World Congress of Psychosomatic Medicine. Jerusalem, Israel. A35 [ Links ]
Carvalho, M.M.M.J. e Nogueira, S.P. (1995) Effect of psychosocial group program on cancer patients: a follow-up study. Anais do III World Congress of Psycho-Oncology. New York: EUA. [ Links ]
Evans, E. (1926; A Psychological Study of Cancer. New York: Dodd, Mead and Co. [ Links ]
Glasser, R (1976) The Body is the Hero. New York: Random House. [ Links ]
Green, E. e Green, A. (1977) Beyond Biofeedback. New York: Delacorte. [ Links ]
Hugues, J. (1987) Cancer and Emotion. Great Britain: John Wiley and Sons. [ Links ]
LeShan, L. (1977) You Can Fight for your Life. New York: M. Evans and Co. [ Links ]
Selye, H.(1956) The Stress of Life. New York: McGraw-Hill. [ Links ]
Simonton, C; Simonton, S.M. e Creighton, J.C. (1987) Com a Vida de Novo. São Paulo: Summus Editora. [ Links ]
(1) Prof. Drª do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IPUSP. Coordenadora do curso Introdução à Psiconcologia, no Instituto Sedes Sapientae. Psicóloga Clínica.