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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.14 n.1 Ribeirão Preto jun. 2006

 

RESENHA

 

A espécie simbólica: a co-evolução da linguagem e do cérebro – impressões gerais

 

 

Ana Letícia de Moraes NunesI; Olavo de Faria GalvãoII

I Secretaria Executiva de Saúde Pública do Pará e Universidade Federal do Pará
II Universidade Federal do Pará

Endereço para correspondência

 

 

Resenha do livro: Deacon, T. W. (1997). The symbolic species: The co-evolution of language and the brain. New York: Norton.

Deacon se propõe a demonstrar, nas três grandes partes (linguagem, cérebro e co-evolução) de seu livro A Espécie Simbólica, qual a natureza da linguagem e porque ela é uma característica que confere caráter único à espécie humana; em que a estrutura do cérebro humano difere da estrutura cerebral dos outros primatas e como o cérebro resolve os problemas da linguagem; o autor tenta examinar pela lógica da seleção natural como (co)evoluíram cérebro humano e linguagem e que tipo de problema a comunicação impôs para que essa evolução “sem precedentes” fosse iniciada. No final, o autor especula sobre o significado dessas descobertas para o entendimento da consciência humana.

O livro inicia-se com uma pergunta de uma criança para o próprio autor a respeito da linguagem (“Mas os outros animais não têm suas linguagens próprias?” 1) que o levou a rever muitas questões que antes eram reduzidas a poucas alternativas. Nos primeiros capítulos, Deacon se pergunta “de onde vem a mente humana?”, “por que não há linguagem em outras espécies?”. O autor defende que o termo “representação simbólica” como um modo peculiar de pensamento vai além da simples comunicação. Ele retoma Peirce e propõe que existem diferentes formas de relações de referência: ícone, índice e símbolo, cada uma delas desenvolvida a partir da presença da anterior. Relações simbólicas envolvem uma hierarquia de relações, portanto, a comunicação pode envolver: 1) Relações icônicas, cujo sinal tem características do objeto de significação; 2) Relações indéxicas, cujo sinal é arbitrário e refere-se a categorias de objetos de significação; e 3) Relações simbólicas, cujos sinais têm relações indéxicas com os objetos de significação e também têm relações entre si, isto é, os sinais modificam os sinais.

A comunicação simbólica teria sido o ponto de partida (ou como o próprio autor chama, a travessia do “Rubicão”) da divergência do cérebro humano e seu tamanho relativo, imposta pelo início do uso de comunicação simbólica por nossos ancestrais, datado de pelo menos 2 milhões de anos. Para Deacon, o termo “referência simbólica” é “o modo como as palavras se referem às coisas”. As habilidades cognitivas necessárias para lidar com o símbolo envolvem a necessidade de responder a estímulos complexos e de diferentes durações, função que envolveria relações entre neurônios distantes entre si, no cérebro.

Deacon critica as teorias chamadas pelos biólogos de “hopeful monsters”, propostas sem levar em consideração o processo evolutivo, que são veiculadas como explicações para a natureza da linguagem. O maior exemplo seria do lingüista Noam Chomsky e sua “Gramática Universal”. Para explicar a habilidade das crianças em adquirir a gramática da primeira língua e dos adultos em usá-la sem dificuldade, teríamos que assumir que existe um órgão lingüístico universal. A noção de Pinker, de que o “instinto da linguagem evoluiu com a seleção natural” tenta dar uma coerência evolutiva para a capacidade lingüística humana, mas fica muito aquém de considerar as pressões evolutivas, tratando apenas da linguagem humana como ela é hoje. Essas explicações, segundo Deacon, ignoram muitas questões sobre a origem, a relação entre função e estrutura da linguagem e se constituem em explicações circulares do problema, colocando como explicação justamente o problema. A pergunta: “Como evoluiu a linguagem?” é transferida para a pergunta: “Como evoluiu o instinto da linguagem?”.

O autor critica também as teorias que colocam a evolução do cérebro antes da evolução da linguagem. A novidade estaria na forma como Deacon inverte a ordem dos fatos e tenta explicar como se deu o início de um sistema simbólico comunicativo com valor de sobrevivência que passou a ser o modo único de referência dos humanos, a “referência simbólica”, como ela seria contra-intuitiva para outras espécies e como ela pressiona o crescimento do cérebro dos nossos antepassados.

Mais adiante, outros fatores também importantes são introduzidos por Deacon como peças de um grande quebra-cabeça: a noção de “encefalização”; a competição de diferentes neurônios por sinapses, a forma de “deslocamento” 2 dos axônios; a “plasticidade” neural de células embriões; a forma única de vocalização dos nossos ancestrais; o surgimento do osso hióide; o desenvolvimento da laringe e do controle de movimentos precisos envolvidos na fala; o papel da aprendizagem e da memória; e principalmente, com as demandas impostas pela aprendizagem simbólica, como se deu a mudança na organização cerebral com o aumento do córtex pré-frontal e as mudanças na conectividade cerebral dessa área com outras.

Deacon analisa evidências do envolvimento do córtex pré-frontal e algumas áreas classicamente associadas à linguagem (Wernicke & Broca) em tarefas lingüísticas. Dentre elas, as conseqüências de lesões neurológicas, tais como as afasias e outras patologias próprias da espécie humana, síndromes que provavelmente envolvem alterações neurológicas como autismo e síndrome de Williams assim como evidências advindas de estudos com imagens in vivo, em pessoas com diferentes histórias de desenvolvimento da linguagem. O autor tenta mostrar que os dados in vivo permitem compreender que a idéia de especialização de áreas envolvidas na linguagem advém de lesões em áreas nas quais o processamento neural lingüístico se afunila e defende a noção de que esse processamento envolve todo o cérebro. Caracteristicamente, envolve a sincronia neural de várias regiões do cérebro, com maiores distâncias correspondendo a tarefas mais complexas.

Destaca também as necessidades que levariam à comunicação simbólica, impostas pela sobrevivência da espécie humana como a reciprocidade das relações sociais dos grupos humanos, como forma de pressão para a criação de símbolos e regras de conduta. Um cenário hipotético pode sugerir essa pressão da reciprocidade sobre o surgimento do símbolo: O recebimento de “presentes” deixa o cesto na mão do que recebe e fica devendo. O cesto está sempre com o devedor e passa a ser um índice da dívida. Outros objetos podem também adquirir função indéxica, até o ponto em que relações entre eles passam a formar um sistema de relações entre os índices, portanto relação simbólica. O surgimento dos primeiros símbolos foi possivelmente anterior ao desenvolvimento da fala, ou seja, deve ter ocorrido quando o cérebro dos hominídeos era ainda muito pouco diferenciado do dos demais primatas. Habilidades simbólicas seriam uma mudança na estratégia de comunicação. Deacon descreve o contexto anterior a essa mudança e como todos esses fatores podem ter concorrido para a co-evolução da linguagem e do cérebro.

A Espécie Simbólica é uma obra marcante e inovadora, colocando juntas muitas das peças do quebra-cabeça, antigas e recentes, para criar uma hipótese consistente com os mecanismos evolucionários e ao mesmo tempo justificar o fato da comunicação simbólica ter se desenvolvido apenas na espécie humana. Pode-se afirmar tranqüilamente sem medo de errar que essa obra divide a pesquisa sobre a evolução da linguagem e do cérebro em antes e depois dela.

 

 

Endereço para correspondência
Ana Letícia de Moraes Nunes
E-mail:al.mn@hotmail.com
Olavo de Faria Galvão
E-mail:olavo@pesquisador.cnpq.br

Enviado em Janeiro/2007
Aceite final em Agosto/2007

 

 

1 “But don’t other animals have their own languages?”
2 Displacement.

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