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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2009

 

ARTIGOS

 

Psicologia do trânsito no Brasil: de onde veio e para onde caminha?

 

Traffic Psychology in Brazil: where did it come from and where is it going?

 

 

Fábio Henrique Vieira de Cristo e SilvaI; Hartmut GüntherII

IUniversidade de Brasília - DF - Brasil
IIUniversidade de Brasília - DF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, são abordados aspectos históricos da psicologia do trânsito no Brasil: o desenvolvimento dos primeiros estudos psicotécnicos com motoristas para a promoção da segurança no trânsito e a importância dos Departamentos de Trânsito (DETRANs) na institucionalização e expansão da psicologia brasileira. Ao final, são sugeridas direções futuras de pesquisa e trabalho nesta área, em face às novas oportunidades e desafios que emergem com maior intensidade no século XXI, na perspectiva de melhorar a qualidade de vida urbana, prejudicada com os congestionamentos e a poluição atmosférica.

Palavras-chave: Comportamento no trânsito, Circulação humana, Qualidade de vida urbana, Psicologia do trânsito, História da psicologia.


ABSTRACT

In this article, the historical aspects of Traffic Psychology in Brazil are addressed: the development of the first studies with drivers aimed at promoting traffic safety, and the importance of the Traffic Departments (DETRANs) for the institutionalization and expansion of (Traffic) Psychology. The article closes with considerations regarding the future of Traffic Psychology in Brazil, in light of the challenges and opportunities that emerge with the XXI century, such as the quality of urban life, traffic jams and air pollution.

Keywords: Traffic behavior, Human circulation, Quality of urban life, Traffic psychology, History of psychology.


 

 

Neste artigo, são abordados alguns aspectos históricos da psicologia do trânsito no Brasil, em complementação ao que tem sido publicado sobre o tema (ver Spagnhol, 1985; Rozestraten, 1988; Alchieri & Stroeher, 2002; Hoffmann & Cruz, 2003). Na primeira parte, discutiremos as raízes do modelo brasileiro de habilitação e o desenvolvimento dos primeiros estudos psicotécnicos com motoristas. Em seguida, apresentaremos um breve histórico dos Departamentos de Trânsito (DETRANs), salientando a sua importância na institucionalização e expansão não só da psicologia do trânsito, como também da psicologia brasileira enquanto profissão e ciência. Na terceira parte, são apontadas direções futuras para a psicologia do trânsito no enfrentamento de alguns problemas que se intensificaram neste século, uma vez que o trânsito tem impactado negativamente a qualidade de vida urbana (p. ex., os congestionamentos e a poluição atmosférica). Serão discutidos possíveis desenvolvimentos futuros no campo acadêmico e profissional, como também no campo da pesquisa e intervenção. Nossa expectativa é de possibilitar aos psicólogos do trânsito o conhecimento de alguns itinerários históricos que lhes permitam entender de onde vieram e para onde caminham.

 

De onde viemos? As raízes da psicologia do trânsito e os primeiros estudos sobre avaliação psicológica de condutores no Brasil

No início do século XX, os primeiros automóveis e caminhões começaram a circular no Brasil. Era o início de um projeto coletivo em que o transporte rodoviário assumiria um papel fundamental nos deslocamentos. A locomoção em massa por bondes e trens foi sendo lentamente substituída pelo uso do automóvel, fruto de opções de políticas urbanas na esfera federal e estadual, e da pressão das elites da época que apoiavam a indústria automobilística do país (Lagonegro, 2008). Embora a produção e o uso em massa do automóvel tenham contribuído sobremaneira no desenvolvimento econômico do país, engendrou sérios problemas de segurança e saúde pública, em decorrência dos acidentes de trânsito que começaram a se intensificar na década de 1940 (Antipoff, 1956).

Como conseqüência, nas décadas de 1940 e 1950, as autoridades buscaram desenvolver e implementar medidas preventivas, dentre elas, a seleção médica e psicotécnica. Esta, por sua vez, tinha a finalidade de restringir o acesso ao volante das pessoas consideradas propensas a se envolver em acidentes de trânsito. A concessão do documento de habilitação passou a ser considerada pelas autoridades um privilégio, em que o candidato provaria sua capacidade de conduzir com segurança, por meio de uma bateria de testes e exames. Discutia-se, ainda, a necessidade de validade temporária e não mais permanente da habilitação, instituindo verificações periódicas das condições mínimas de capacidade física e psíquica dos motoristas; assim como, a identificação dos critérios e da forma de avaliação dessa capacidade conforme o tipo de habilitação, uma vez que diferentes categorias de veículos exigiriam diferentes habilidades (Côrtes, 1952). Começava a se estruturar o que se chama de modelo brasileiro de habilitação (Hoffman, 1995).

No tocante à tarefa de avaliar as condições psíquicas dos motoristas, essa estruturação ocorreu com forte influência estrangeira, principalmente com os trabalhos desenvolvidos por Tramm na Alemanha, Lahy na França, Münsterberg e Viteless nos Estados Unidos da América, e Mira y López na Espanha, pois não havia no Brasil instrumentos construídos ou validados para realizar este intento (Campos, 1951). Convém destacar que a psicologia aplicada ao trânsito, nesse período, centrava a sua atuação fortemente no fator humano, por meio da seleção de pessoal, orientação e instrução profissional. Dessa forma, buscava-se identificar os indivíduos certos para ocupar os lugares certos, seja para conduzir trem ou ônibus (Mange, 1956; Trench, 1956; Antunes, 2001).

Nesse contexto, a teoria da propensão aos acidentes (accident proneness) era fortemente discutida no âmbito internacional (Forbes, 1954; Nagatsuka, 1989). Essa teoria exerceu grande influência nas disciplinas que atuavam junto ao trânsito no mundo inteiro e teve fortes repercussões no Brasil (Campos, 1951, 1978, 1978b). Segundo essa teoria, algumas pessoas são mais propensas do que outras a se envolver em acidentes, o que justificava a elaboração de um processo de habilitação para identificar os indivíduos propensos/não propensos aos acidentes - quer dizer, os indivíduos aptos/inaptos para dirigir - e, desse modo, esperava-se aumentar a segurança no trânsito (ver Haight, 2001).

Nesse momento histórico, em que havia forte demanda social e justificativas científicas para implementar um processo de avaliação psicológica de condutores, a psicologia começou a contribuir com o trânsito rodoviário brasileiro. A partir da aplicação de técnicas psicológicas nos motoristas, notadamente pelos engenheiros (considerados os primeiros "psicólogos do trânsito"), formou-se um campo de trabalho e uma área de atuação profissional que posteriormente viria a ser chamada de Psicologia do Trânsito (Mange, 1956; Rozestraten, 1988). O marco legal para a avaliação de características psicológicas no âmbito rodoviário foi o Decreto-lei nº 9.545, de 5 de agosto de 1946, tornando os exames psicotécnicos obrigatórios para a aquisição da carteira de habilitação, sendo aplicado a critério da junta médica, porém sem caráter eliminatório (Vieira, Pereira, & Carvalho, 1953; Vieira, Amorim, & Carvalho, 1956; Spagnhol, 1985). Essa medida somente entrou em vigor no ano de 1951, sendo um ano importante para a psicologia brasileira.

Como decorrência, foram publicadas, ainda na década de 1950, as primeiras reflexões sobre a seleção psicotécnica de motoristas e sua importância na diminuição dos acidentes de trânsito, bem como a elaboração dos primeiros critérios e normas para a população brasileira nos diversos testes usados para a habilitação (Campos, 1951; Amorim, 1953; Vieira et al., 1953; Antipoff, 1956; Nava, 1957; Nava & Cunha, 1958). O desenvolvimento dos primeiros estudos para o exercício fundamentado desta prática, assim como das aplicações dos testes, ficou sob a responsabilidade do Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), no Rio de Janeiro. O ISOP foi fundado em 1947 por Emílio Mira y López, criador do Psicodiagnóstico Miocinético (PMK), amplamente usado nas avaliações psicológicas ainda hoje (Vieira et al., 1956; ver Mira y López, 1999). Por intermédio da Divisão de Seleção, coordenada muitos anos por Francisco Campos, o ISOP proporcionou à psicologia aplicada e à pesquisa psicométrica elevadas contribuições por meio de publicações, participações em eventos científicos, capacitação de profissionais, validação e padronização de testes, técnicas e baterias (Campos, 1973).

Uma das primeiras pesquisas empíricas realizadas no ISOP sobre avaliação psicológica em condutores foi a de Vieira et al. (1953). Nesse trabalho, foram divulgados os resultados de exames psicológicos e tabelas de testes de aptidão, como: Atenção Difusa, Inibição Retroativa, Visão Noturna e Ofuscamento e Volante Dinamógrafo. Além disso, Vieira et al. (1953) responderam algumas críticas feitas contra o exame psicotécnico, relacionadas, principalmente, ao prejuízo causado aos motoristas considerados inaptos, com o afastamento do seu meio de vida sem o recebimento de aposentadoria, assim como o elevado custo dos exames. Nesse artigo, foram identificados alguns dos problemas ainda não resolvidos até hoje, como: o tempo necessário para a reavaliação do candidato inapto (que era de quatro meses à época), as imprecisões dos critérios para se definir um candidato apto/inapto e a diferenciação nos critérios e no modo de avaliar os motoristas, de acordo com a categoria de veículo pretendida. Em outro estudo, Vieira et al. (1956) apresentaram resultados de exames de motoristas nos testes PMK, Atenção Difusa, Tacodômetro e Visão Noturna e Ofuscamento. Os autores também destacaram a importância de estudar a personalidade e os fatores patológicos que aparecem com maior frequência nos exames (ver Alchieri & Stroeher, 2002, sobre as limitações da avaliação psicológica em motoristas).

As pesquisas desenvolvidas pelo Gabinete de Psicotécnica da Superintendência de Trânsito de Minas Gerais também têm importância histórica. Elas serviram como modelo de atuação para os psicólogos vinculados aos futuros Departamentos de Trânsito dos estados brasileiros, conforme será apresentado no tópico a seguir (Dagostin, 2006). Uma importante publicação desta instituição foi a Revista do Gabinete de Psicotécnica em Trânsito, considerado o primeiro periódico brasileiro especializado em psicologia do trânsito (Hoffmann & Cruz, 2003). Neste órgão, foram realizadas algumas pesquisas como a de Antipoff (1956), que estudou, em 110 motoristas, a influência da idade e da emotividade no teste de Atenção Difusa de Lahy. Nesse trabalho, Antipoff salientou a necessidade de validar instrumentos estrangeiros para o contexto brasileiro.

O reconhecimento da profissão de psicólogo no país ocorreu na década de 1960, por meio da Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962, e sua regulamentação pelo Decreto nº 53.464, de 21 de janeiro de 1964. Nessa época, os psicólogos iniciaram o movimento de criação do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Psicologia. Vale ressaltar que os profissionais que atuavam na avaliação das condições psicológicas para dirigir já contavam com a tradição de mais de uma década na aplicação dos exames psicológicos (Hoffmann & Cruz, 2003; Dagostin, 2006).

Em função do avanço da legislação de trânsito e da psicologia aplicada nos anos de 1960, foi regulamentada, em 1968, a criação dos serviços psicotécnicos nos Departamentos de Trânsito dos estados. Desde então, e com o advento do código de trânsito brasileiro em 1998, o psicólogo se inseriu no processo de habilitação nos DETRANs, realizando a avaliação psicológica pericial de motoristas, outrora denominado de exame psicotécnico, sendo atualmente um procedimento obrigatório para todos os candidatos à obtenção da carteira de motorista e na renovação, no caso dos condutores que exercem atividade remunerada dirigindo (Vieira et al., 1956; Spagnhol, 1985; Brasil, 2002).

 

Os Departamentos de Trânsito e o seu papel na institucionalização e expansão da psicologia

O DETRAN, enquanto parte integrante do Sistema Nacional de Trânsito, foi criado em 21 de setembro de 1966 pelo Decreto-lei 5.108 que instituiu o segundo Código Nacional de Trânsito. Em 23 de fevereiro de 1967, aquele decreto foi modificado pelo Decreto-lei nº 237, sendo efetivamente regulamentado em 16 de janeiro de 1968, por meio do Decreto-lei 62.127. Em função dessa nova organização do sistema de trânsito, cada estado brasileiro procedeu à criação do seu DETRAN, seja pela estruturação do serviço que outrora não existia, seja pela re-estruturação do serviço administrativo de trânsito existente (eis algumas denominações antigas dos serviços de trânsito dos estados: Diretoria do Serviço de Trânsito em São Paulo, Serviço de Trânsito no Rio de Janeiro, Departamento do Serviço de Trânsito no Paraná, Serviço Estadual de Trânsito em Belo Horizonte). Esta modificação ocorreu na maioria dos estados nas décadas de 1960 e 1970.

De acordo com aquela regulamentação, os Departamentos de Trânsito deveriam dispor de um conjunto de serviços a fim de realizar suas atribuições, dentre eles o serviço médico e psicotécnico. Esta exigência reconheceu a importância dos fatores psicológicos na segurança viária, principalmente para serem avaliados no processo de habilitação; além do mais, ampliou o mercado de trabalho para o psicólogo, cuja profissão havia sido regulamentada em 1964.

Os Departamentos de Trânsito assumiram, e ainda assumem, um importante papel na institucionalização e expansão da psicologia brasileira enquanto profissão, ao abrir espaço para o trabalho dos psicólogos e, mais recentemente, por meio do credenciamento de profissionais e clínicas de psicologia terceirizadas, devido ao aumento da demanda pela carteira de habilitação. Em função disso, poucos estados possuem atualmente apenas uma clínica conveniada (p.ex., Rio Grande do Norte) e/ou os próprios psicólogos dos DETRANs realizam a avaliação psicológica.

Dessa maneira, em parte por razões históricas, os psicólogos que hoje trabalham nos DETRANs continuam atuando prioritariamente com a avaliação psicológica de condutores: administrando, avaliando e analisando os resultados dos instrumentos; coordenando este serviço, desempenhando atividade administrativa, ou fiscalizando as atividades realizadas pelas clínicas credenciadas. A inserção nos Departamentos de Trânsito contribuiu, também, para que os psicólogos assumissem outras tarefas decorrentes da evolução da legislação de habilitação e de novas demandas sociais: a capacitação de psicólogos peritos em trânsito, capacitação de diretores e instrutores de trânsito e elaboração/implantação de programas de reabilitação e educação de motoristas infratores (Hoffmann, 2003a, 2003b).

A expansão do campo de atuação dos psicólogos nos Departamentos de Trânsito incluiu, ainda, ações para prevenir acidentes; perícia em exames para motorista objetivando sua readaptação ou reabilitação profissional e tratamento de fobias ao volante. Outro ponto que merece destaque é a inserção profissional de estudantes de psicologia através de estágios curriculares, propiciando experiência de aprendizagem (Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Norte, 2005; Alchieri, Silva, & Gomes, 2006). Observa-se, portanto, uma diversificação das atividades da psicologia em alguns DETRANs, embora seja constatado que o modelo de atuação profissional vigente em alguns estados é muito restrito, implicando sub-aproveitamento com tarefas burocráticas, de quem poderia ser um "psicólogo do trânsito" (Alchieri et al., 2006).

A importância dos DETRANs na institucionalização e expansão da psicologia também pode ser observada no âmbito da ciência, embora atualmente com menor ênfase do que outrora, conforme evidenciado em diversos estudos, por exemplo, Alchieri e Stroeher (2002), Dagostin (2006), Mira (1984), Spagnhol (1985), Joly, Silva, Nunes e Souza (2007) e Silva e Alchieri (2007, 2008). Em alguns casos, os DETRANs contribuíram concedendo o material psicológico para fins de pesquisas que visaram o estabelecimento de tabelas normativas para testes psicológicos (Chiança & Chiança, 1999a, 1999b) e para pesquisar a possibilidade de prever a ocorrência de infrações por meio dos resultados dos testes (Silva, 2008). Em outros casos, artigos e livros foram produzidos por profissionais dos serviços de psicologia, relacionados à: procedimentos de adaptação e padronização de medidas de comportamento no trânsito (Antipoff, 1956; Nava & Cunha, 1958; Miranda et al., 1984; Sisto, Ferreira, & Matos, 2006), avaliação de diferenças individuais e de traços de personalidade dos condutores infratores e acidentados (Nava, 1957) e análise das contribuições científicas para mitigar os acidentes de tráfego (Nava, 1955).

A importância dos DETRANs também ocorreu, e ainda ocorre, na viabilização de eventos na área de trânsito (congressos, seminários e encontros científicos), oferecendo apoio financeiro e estimulando a participação dos psicólogos lotados nos serviços de psicologia, para que divulguem os seus trabalhos. Cabe destacar a participação dos DETRANs de diversos estados e dos psicólogos dessas instituições no I Encontro Inter-Estadual de Psicologia do Trânsito em Ribeirão Preto, em 1983, e nos Congressos Brasileiros de Psicologia do Trânsito, colaborando na construção de espaços férteis para o desenvolvimento da psicologia rumo a um trânsito mais harmônico (ver http://www.conpsitran.com.br; Rozestraten, 1984).

 

Para onde caminhamos? Direções futuras para a psicologia do trânsito no Brasil

A seguir, são apontados alguns caminhos pelos quais a psicologia do trânsito poderá ou deverá percorrer em seu itinerário. Nossa reflexão se baseia no que apresentamos anteriormente, no momento atual da área no contexto nacional e internacional e nas expectativas que nutrimos, tanto no campo acadêmico e profissional, quanto no campo da pesquisa e intervenção. Essa divisão é meramente didática, visto que esses campos interagem mutuamente.

Campo acadêmico e profissional

Como visto até aqui, algumas instituições colaboraram direta ou indiretamente com a emergência e expansão da psicologia do trânsito, de maneira específica, e da psicologia brasileira, de maneira geral, especialmente por meio das atividades relacionadas aos exames psicotécnicos. Em função disso, a identidade de muitos psicólogos do trânsito ainda permanece fortemente associada à avaliação psicológica, como atividade profissional, e aos DETRANs e clínicas psicológicas, enquanto contextos de atuação.

Isso justifica, em parte, as tensões que decorrem da crítica reflexiva à atuação profissional baseada somente na testagem psicológica e circunscrita a esses contextos de trabalho. Essa herança histórica continuará servindo como elemento constitutivo da identidade da maior parcela dos psicólogos do trânsito no Brasil. Entretanto, a problemática da mobilidade vai além do comportamento do motorista, incluindo todos os comportamentos dos participantes do trânsito: pedestres, ciclistas, motociclistas, policiais, engenheiros e autoridades, assim como suas relações com o contexto sócio-ambiental (Rozestraten, 1988; Günther, 2003).

No plano acadêmico, esse modo de compreender o trânsito vem sendo difundido no Brasil com maior ênfase a partir da década de 1980, fruto das reflexões sobre a efetiva contribuição ou não da psicologia do trânsito na segurança viária. O livro do eminente professor Rozestraten, Psicologia do Trânsito: Conceitos e Processos Básicos, publicado em 1988, sintetiza esse pensamento. Passados mais de 20 anos, essa obra continua sendo a introdução mais importante à psicologia do trânsito no Brasil. O professor Reinier Rozestraten, a partir de sua presença, de suas publicações e traduções, influenciou e inspirou diversos profissionais e estudantes, mesmo aqueles que não tiveram o privilégio de um contato direto com ele. Sua morte física em junho de 2008, aos 84 anos, deixou uma lacuna que dificilmente será preenchida (ver Rozestraten, Maciel, & Vasconcellos, 2008, para conhecer um pouco mais sobre sua vida e obra).

Em 1999, o I Fórum Nacional de Psicologia do Trânsito foi considerado um marco importante na elaboração de diretrizes para as políticas e normatizações do Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia na área de trânsito, levando em conta o potencial da área em planejamento urbano e educação. Assim, foram elaboradas diretrizes de atuação, por assim dizer, sugeridas pelo Conselho Federal de Psicologia, estimulando uma atuação ampla e interdisciplinar, exigindo outras competências profissionais, englobando: a elaboração de pesquisas no campo dos processos psicológicos, psicossociais e psicofísicos para desenvolver ações sócio-educativas, análise dos acidentes de trânsito e orientações para evitar ou atenuá-los, assim como prestar assessoria e consultoria aos órgãos públicos/privados de trânsito (Conselho Federal de Psicologia, 2000; ver, ainda, Rozestraten, 1988, Hoffmann, 2000; para outras indicações de atuação e intervenção). Atualmente, muitas dessas diretrizes servem como indicações do que se pode fazer; isto é, não representam efetivamente as práticas consolidadas do psicólogo do trânsito.

Apesar disso, destacam-se esforços para fazer pesquisa sobre trânsito a partir de uma perspectiva mais ampla, sendo que parcela dos estudos está reunida em duas importantes obras. Uma delas foi o número especial sobre psicologia do trânsito da revista Arquivos Brasileiros de Psicologia, publicada em 2001, contendo investigações associadas: ao comportamento perigoso de meninos no trânsito (Rocha, 2001a), ao avanço do sinal vermelho (Rocha, 2001b), aos desafios do cego no trânsito (Sant'Ana, 2001), aos conflitos de tráfego entre pedestres idosos e veículos (Monteiro, 2001), à avaliação da gravidade de infrações de trânsito por motoristas e policiais (Clark & Engelmann, 2001), como também relacionadas às representações sociais do carro e o comportamento dos jovens (Souza, 2001).

Outra importante obra foi o livro Comportamento Humano no Trânsito, publicado em 2003, que reuniu várias pesquisas e reflexões teóricas sobre: ambiente, psicologia e trânsito (Günther, 2003; Rozestraten, 2003), o uso do carro como uma extensão da casa (Corassa, 2003), marketing social e circulação humana (Perfeito & Hoffmann, 2003), educação como promotora de comportamentos socialmente significativos no trânsito (Hoffmann & Luz Filho, 2003), psicologia social e o trânsito (Machado, 2003) e o envolvimento da comunidade para redução de acidentes de trânsito (Lemes, 2003).

Em um futuro breve, novos livros na área devem ser organizados e publicados, sintetizando os conhecimentos produzidos na última década e/ou oferecendo um ponto de vista alternativo aos já existentes. Constata-se a ausência de um livro texto que contenha as principais teorias e/ou aplicações da psicologia do trânsito, direcionado aos estudantes de graduação e de pós-graduação. As publicações desse tipo devem tentar esclarecer com objetividade: quais são as contribuições da psicologia do trânsito na segurança? Em que a psicologia contribuiu/contribui para conhecermos o comportamento do brasileiro no trânsito? Quais propostas, baseadas em nossas investigações, foram elaboradas para ajudar as autoridades a resolver os problemas do trânsito?

No campo profissional, é oportuno reconhecer que existe vida fora das clínicas e dos DETRANs. Isso implica no desafio de continuar expandindo as atividades do psicólogo, de ocupar outros campos potenciais de atuação e desenvolver práticas inovadoras, porquanto novos desafios e oportunidades emergem no início deste século, os quais os psicólogos também devem colaborar (Günther, 2003; Alchieri et al., 2006).

A esse respeito, destaca-se a resolução nº 267/2008 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), recentemente em vigor. Ela estabelece algumas mudanças importantes para o trabalho do psicólogo, dentre elas, que, até 2013, só serão credenciados os profissionais portadores de título de especialista em psicologia do trânsito reconhecido pelo CFP. Essa medida é importante para que, em alguns anos, tenhamos profissionais mais capacitados para atuar em diversos problemas do trânsito, desenvolvendo novas competências e ocupando outros espaços, notadamente no contexto das políticas públicas de transporte (nível regional e federal). As universidades terão um papel crucial no desenvolvimento da psicologia do trânsito, especialmente no início deste século, preparando os profissionais do provir; isso porque, as especializações deverão ser oferecidas por instituições de ensino superior de psicologia, reconhecidas pelo Ministério da Educação.

Logo que começou a vigorar esta resolução do CONTRAN, identificou-se o surgimento de vários cursos de especialização no país (p.ex., em Minas Gerais, Bahia, Goiás, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná). A perspectiva é de expansão, uma vez que novos cursos estão em fase de elaboração. O próprio CFP (2009) tem sinalizado que irá realizar com maior frequência os concursos para a concessão do título de especialista na área. Com essas iniciativas, o cenário atual mudará. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2009), dos 692 psicólogos que têm este título em psicologia do trânsito, nenhum obteve a partir da conclusão de um curso de especialização. A maioria deles (657) adquiriu por comprovação da experiência profissional; outra parcela (35) obteve o título a partir dos concursos de provas e títulos promovidos pelo CFP.

O aumento da oferta de cursos de especialização poderá ter outros desdobramentos. Um deles é que, em vez de continuarmos preparando os psicólogos para serem exclusivamente peritos em trânsito, teremos a oportunidade de formar os profissionais para atuar nos diversos problemas do trânsito; caso contrário, continuaremos seguindo o modelo anterior de formação de psicólogos peritos, porém sob um novo rótulo, o de especialista. A perspectiva de preparar consultores pode abrir portas para outros mercados, visto que diversos órgãos de trânsito e transporte demandam conhecimentos e intervenções criativas para minimizarem seus problemas.

Talvez, a resolução nº 267/2008 do CONTRAN também produza um movimento para a criação de disciplinas obrigatórias de psicologia do trânsito na graduação. Muitos psicólogos que estão se capacitando como peritos em trânsito nunca tiveram qualquer contato com a área na universidade, e, nem sempre (ou quase nunca), essa falta de formação é preenchida pelos cursos de perito.

Os cursos de especialização ampliarão o campo de trabalho do psicólogo, particularmente na área de ensino. A demanda por mestres e doutores para assumirem as disciplinas já está ocorrendo; mas, será que teremos tantos profissionais para fomentar as especializações no futuro, sendo eles capazes de operar efetivamente a mudança necessária na área? E a produção do conhecimento, aumentará na mesma proporção, em quantidade e em qualidade? Esta é uma oportunidade de ampliarmos a produção científica da psicologia do trânsito brasileira, senão apenas daremos eco à pouca produção existente, continuando com o discurso de que pouca coisa é publicada. Deveremos estimular a pesquisa empírica nos trabalhos de conclusão de curso e divulgação dos resultados em congressos e revistas.

A este respeito, em 2009, foi lançado um periódico científico na área de trânsito: Transporte: Teoria e Aplicação, uma revista interdisciplinar que publica pesquisas em português, inglês e espanhol com acesso livre (http://www.inghum.com/ojs2/index.php/TTAP/index). Trata-se de uma parceria entre o Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná e a Universidade de Nova Iorque. Esta revista tem um papel importante, à medida que dá visibilidade internacional à produção brasileira e possibilita o contato de nossos profissionais com a produção estrangeira, notadamente da América Latina, articulação que deverá ser cada vez mais frequente futuramente, seja através de visitas interinstitucionais, da criação de uma associação profissional ou de uma rede virtual. O periódico está atualmente em seu segundo número, e espera-se que tenha longa vida, o que não aconteceu com a revista Psicologia: Pesquisa & Trânsito, criada em 2005, com apenas dois números publicados, e sem perspectiva para a publicação de novos números.

No caso da pós-graduação stricto sensu, isto é, mestrado e doutorado, a expansão não está ocorrendo com a mesma velocidade das especializações. Poucos laboratórios possuem linhas de pesquisa específicas em psicologia do trânsito, como é o caso da Universidade de Brasília (Laboratório de Psicologia Ambiental) e da Universidade Federal do Paraná (Núcleo de Psicologia do Trânsito). Fortalecer essas linhas de pesquisa e estimular a criação de outros laboratórios na área é fundamental para a consolidação da psicologia do trânsito e a produção do conhecimento.

Campo da pesquisa e intervenção

Dos vários desafios atuais, um que tem merecido atenção de instituições internacionais, de governos e de sociedades civis organizadas, no Brasil e no mundo, são os efeitos negativos do transporte motorizado na qualidade de vida urbana, gerando alterações ambientais e intensificando a poluição atmosférica e a poluição sonora (Rothengatter, 1997; Nunes da Silva, 2005; ver ainda Gärling & Steg, 2007, para uma compreensão sobre a ameaça do automóvel à qualidade de vida urbana).

De acordo com organismos internacionais e nacionais, grande parte da poluição atmosférica é produzida pelos automóveis que emitem gases poluentes e partículas em quantidades superiores às industriais; daí a necessidade de pôr em evidência o controle das emissões veiculares e do uso do carro. A Associação Nacional de Transporte Público (2002), por exemplo, esclarece que, nas grandes cidades, os veículos motorizados são responsáveis por até 70% das emissões. Na cidade de São Paulo, conforme um relatório de qualidade do ar de 2007, a causa dos índices elevados de poluição do ar decorre, principalmente, das emissões dos veículos. Nesta cidade, a poluição do ar é responsável por muitas doenças respiratórias, gerando transtornos para muitas pessoas, em especial crianças e idosos (Marín & Queiroz, 2000; Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental, 2007).

Diversas medidas têm sido implementadas a fim de reduzir os efeitos negativos do transporte motorizado, como a formulação de políticas e ações estratégicas para a redução de danos ambientais pelo uso de meios de transporte sustentáveis, privilegiando os modos não motorizados e coletivos de circulação (Departamento Nacional de Trânsito, 2004; Worldwatch Institute, 2005; Ministério das Cidades, 2007; Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana, 2007; Worldwide Fund for Nature, 2007). Outras medidas de cunho tecnológico têm sido estimuladas e implementadas pelas autoridades e empresas automobilísticas - p.ex., a fabricação de carros movidos à energia elétrica, a produção de biocombustíveis e de motores flex (Vlek, 2003).

Em que pese a importância dessas novas tecnologias, estudiosos do comportamento consideram que elas são insuficientes para resolverem os problemas atuais e futuros em relação ao meio ambiente. Desta forma, também será necessária a redução da demanda pelo uso do carro particular, associada à estimulação de outras alternativas menos poluentes de transporte, como a bicicleta, o ônibus e o metrô (Gärling, Gärling, & Loukopoulos, 2002; Gärling & Schuitema, 2007). Psicólogos da Europa, América do Norte e da Ásia têm desenvolvido pesquisas, principalmente nos últimos dez anos, buscando entender os processos psicológicos que atuam na escolha das pessoas pelo modo de transporte, bem como o impacto e as conseqüências psicológicas das políticas de redução do uso do automóvel (Aarts, Verplanken, & van Knippenberg, 1998; Gärling et al., 2002). Essas pesquisas têm subsidiado conhecimentos relevantes para a implementação e eficácia das políticas de gerenciamento do trânsito naqueles países.

Diferentemente das nações consideradas desenvolvidas, onde muitas dessas investigações são realizadas, o Brasil precisa resolver problemas de infra-estrutura básica de transporte de massa a fim de disponibilizar e incentivar a escolha por modos sustentáveis de locomoção. Isso pode se refletir no comportamento do brasileiro, mas ainda se sabe pouco sobre essa questão. Em face disso, espera-se para os próximos anos que a psicologia do trânsito brasileira busque também estudar os diversos aspectos associados à escolha do modo de transporte, amparando-se na nossa realidade, com nossos matizes sócio-culturais e ambientais diferenciados, analisando possíveis diferenças regionais e sócio-econômicas. A seguir são oferecidas algumas sugestões de pesquisa e intervenção, como uma forma de incentivar este processo de conhecer, estimulando, em um futuro breve, intervenções baseadas em evidências empíricas:

• identificar o impacto das mudanças na estrutura viária e de transporte no aumento ou diminuição do uso do transporte público;

• entender os vínculos que se estabelecem entre as pessoas e os seus veículos;

• avaliar o nível de satisfação dos usuários com os serviços de transporte coletivo, assim como os aspectos que o influenciam;

• prever o comportamento de uso do transporte público ou da bicicleta (atitude, hábito, possíveis diferenças de gênero etc.);

• elaborar campanhas para estimular a adoção de modos de transporte sustentáveis, buscando conhecer as características dos indivíduos que provavelmente seriam melhores alvos;

• identificar possíveis soluções estruturais para os congestionamentos nas cidades a partir da ótica dos usuários (p.ex., conhecer a vontade das pessoas que viajam de carro de casa para o trabalho para financiar melhorias no transporte público);

• compreender a efetividade, aceitabilidade e viabilidade política de estratégias de gerenciamento da demanda de viagens para reduzir o uso do carro particular, especialmente de cobrança de taxas para circulação de automóveis;

• conhecer as barreiras psicológicas das pessoas em relação às tentativas para reduzir a utilização do automóvel ou para mudar para o transporte público;

• prever possíveis consequências psicológicas da redução do uso do carro;

• investigar padrões de deslocamentos diários, potencial para mudanças e motivadores que afetam decisões dos diversos usuários (universitários, trabalhadores etc.) nos seus deslocamentos.

Estudos nessa direção poderão contribuir na elaboração de futuras políticas públicas de mobilidade urbana que visem reduzir o uso do automóvel, que estimulem outros modos de transporte ou possibilitem a integração entre os diversos modais, uma vez que o Brasil deverá discutir e implementar algumas dessas medidas com maior ênfase neste século. Para a investigação desses e de outros tópicos de pesquisa, sugere-se a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e as Olimpíadas de 2016, que serão realizados em nosso país. Grandes eventos como esses intensificam os deslocamentos e têm impacto na vida das pessoas e das cidades próximas. Se essas oportunidades ímpares forem aproveitadas para elaborar, testar e desenvolver instrumentos, métodos e teorias, impulsionaremos o desenvolvimento da psicologia do trânsito. Além disso, os conhecimentos produzidos poderão ser aplicados em curto-prazo.

 

Considerações finais

À guisa de finalização, não sugerimos que a psicologia do trânsito no Brasil deva deixar de colaborar para a melhoria da segurança viária. Esta é uma questão importante que norteia grande parte dos trabalhos da área até hoje. Mas, além desta preocupação, os psicólogos deverão dar subsídios teóricos e técnicos às novas demandas do trânsito que surgem a partir do aumento do uso do automóvel, o que, em décadas anteriores, não se configurava como problema (congestionamentos, poluição atmosférica e sonora). A psicologia do trânsito avança em seu itinerário por vias promissoras e sua necessidade será cada vez mais reconhecida pela sociedade e pelas autoridades. Só nos resta saber se estaremos prontos para os desafios que o trânsito brasileiro nos proporcionará.

 

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Endereço para correspondência:
Fábio Henrique Vieira de Cristo e Silva
Endereço: CLN 213, Bloco D, Apto. 219, Ed. Athenas Shopping, Asa Norte
Brasília, DF. CEP: 70872-540
Fone Res: (61) 3526-3351 e Cel. (61) 9221-1727
E-mail: fabiodecristo@gmail.com

Enviado em Abril de 2009
Aceite direto em Fevereiro de 2010
Publicado em Junho de 2010

 

 

Agradecimentos a Marcelo de Cristo e Lílian de Oliveira pelo apoio e comentários úteis na versão preliminar deste artigo. Ao CNPq pela bolsa de doutorado concedida ao primeiro autor e de produtividade ao segundo autor.

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