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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

Violências, elaboração onírica e o horizonte testemunhal

 

Violencies, work of dreams and the horizon of testimony

 

 

Paulo Cesar Endo

Universidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende discutir o testemunho como paradigma da luta contra os efeitos das catástrofes e atrocidades. Ele examinará brevemente a escrita do testemunho e suas narrativas como a expressão de um radical descontentamento interno. Entretanto, o fracasso do testemunho evidencia claramente a tensão entre as atrocidades e a linguagem, entre a representação e a ausência de representação. Ao mesmo tempo, as mentiras, os enganos, a falta e o vazio são aspectos importantes dos sonhos. Isso foi observado por Freud em seu trabalho intitulado A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1900. Tentaremos demonstrar que a dinâmica dos sonhos é um importante ponto de partida para compreender a riqueza e a complexidade dos testemunhos em nossos dias.

Palavras-chave: Psicanálise, Testemunho, Sigmund Freud, Elaboração onírica.


ABSTRACT

This paper intends disscus the testimony like a paradigm of struggle against the efects of the catastrophes and atrocities. It will examine briefly the written of testimony and its narratives like a radical discontents with itself. However, this language's failed of the testimony show cleary the tension between the atrocities and the language, between the representation and the hole of representation. In the same time the lies, the mistakes, the lack and the empty are important aspects of the dreams. It was pointed out by Sigmund Freud in his work entitled The Interpretation of Dreams, published in 1899. We will try to demonstrate that the dinamics of dreams is an important starting point to understand the richness and the complexity of the testimony nowadays.

Keywords: Psichoanalysis, Testimony, Sigmund Freud, Work of dreams.


 

 

Por duas vezes, Freud revelou o caráter excessivo do trauma e a explicitação das diferenças profundas encontradas num caso e no outro na formação e no trabalho do sonho. Incertezas, imprecisões e equivocidades definiriam, desde a comunicação preliminar de 1893, a experiência traumática. Primeiro, o trauma sexual se definia como oposição radical que faz implodir no psiquismo a dor dos inconciliáveis, a impossibilidade em ultrapassar o caráter pulsional do desejo e o contradesejo, ou superdesejo, que captura o trabalho psíquico na imobilidade e no risco: o sintoma.

Traumático seria então o próprio conflito, traduzido como experiência perturbadora no afeto somato-psíquico da angústia, capaz de revelar a natureza insidiosa e persistente do traumatismo provocado pelo conflito sexual. Desde então, para a inteligência psicanalítica, o traumático é uma experiência de eternidade e não um colapso brevíssimo e intenso. O traumático saca do evento a experiência da organização temporal que lhe seria coeva para relançá-la na eternidade da repetição.

Vinte anos depois, com a publicação do artigo Mais além do princípio do prazer (1981c/1920), coisas importantes serão modificadas, é verdade, porém elementos substantivos permanecem intocados. Entre eles, a radicalização do princípio que rege o trauma: uma pulsão vindoura e oponente que entre em jogo diante do despertar do desejo: pulsão de morte, assim ela será nomeada por Freud. A pulsão de morte opositora e oportunista que colide com as pulsões de vida deslocando grande parte do trabalho psíquico para a sustentação da imobilidade e da repetição.

Seria, e é, uma imersão completa na própria impossibilidade psíquica se essa catástrofe se entrega ao seu próprio mecanismo de imobilização dinâmica - a repetição endógena-eterna camisa de força para agitação psíquica. Mas há os sonhos. Um recurso de segunda ordem entra em cena: a elaboração onírica e fantasmática, tal como Freud já havia observado no traumatismo sexual. Freud se volta então, em 1920, em Mais além do princípio do prazer (1981c/1920), para os sonhos novamente, mas dessa vez para atestar o fracasso da elaboração onírica. Nos sonhos traumáticos, ao que parece, é a literalização da experiência vivida e traumática que se compacta entre um corpo em dor e um psiquismo que, de certo modo, ignora esse sofrimento. Se não fosse assim, porque então o sonho, puro produto psíquico, reproduziria, literalmente, o sofrimento insuportável? A ressurgência retraumatizante da experiência traumática, ela mesma reconstituindo o traumático e o repetindo.

A experiência catastrófica reencontraria então um acesso privilegiado à experiência psíquica revelando a mesma força e impacto presentes no instante de gênese do traumático, na ocasião do trauma.

Desse modo, os sonhos traumáticos seriam a expressão de uma modalidade sintomática inusitada, sem as distorções do recalque e mesmo sem a interveniência dos mecanismos usuais presentes na própria elaboração onírica: a condensação e o deslocamento. O sonho, quem diria, não poderia mais do que ser literal.

Assim, um elemento novo tornava-se visível para Freud: a sobrevivência no psiquismo de um sofrimento psiquicamente insuportável, fisicamente insistente, mas que encontrava um índice de permanência na experiência produzindo, a posteriori, o instante sempiterno, infinitamente revisitado pelos soldados que estiveram na guerra e ali viveram o horror, para depois voltar a vivê-lo em seus sonhos.

Algumas exemplos importantes podem nos auxiliar nesse ponto:

Há algum tempo atrás, ouvi um relato de uma militante política, presa e torturada no Brasil. Ela me dizia que frequentemente acorria a ela a seguinte cena onírico-fantasmática: durante a noite, em sua casa, enquanto quase adormecia e sentindo um frio repentino na madrugada, reconhecera o seguinte devaneio: "eles só dão um cobertor". Como se estivesse nos porões da ditadura perpetuando a experiência de privação físico-psíquica, que provavelmente seria uma das mais tênues enfrentadas por ocasião de sua prisão política.

Tratar-se-ia então, no sonho, de reviver o desconforto físico e psíquico que escancarava toda a situação de perigo radical à que estava submetida diante da perspectiva da dor e da morte.

Diante do desconforto físico - o frio durante a madrugada - toda a situação de perigo se refaz. A restrição informada pelo corpo somático impõe a angústia do traumático e transforma a situação do sono em transtorno. A figurabilidade no sonho traumático se instala em seu ponto de origem: nas tentativas de figuração do catastrófico cuja fixação do trauma e não no trauma, como sugere Laplanche (1993/1980) impossibilitam o trabalho do sonho como realização desejo, pondo a pique os mecanismos de condensação e deslocamento, cujos esforços buscariam a compatibilização dos inconciliáveis.

Na ausência dessa figuração, refaz-se a experiência literal, cuja representação psíquica será buscada nas informações e percepções do corpo - o frio durante a madrugada e a ausência de alguém que corresponda à sua necessidade e ao seu desejo, cedendo-lhe mais um cobertor; aquele que lhe daria conforto para voltar a dormir, resguardando o sono, tal como faria a elaboração onírica e o próprio sonho. Na ausência do cobertor a mais, nada resta senão despertar, não dormir e permanecer vígil e expectante, protegendo-se da dor física e psíquica que se podia esperar nas prisões políticas no Brasil.

Seria, nesse caso, como se a gênese do acontecimento traumático devesse ser buscada nas informações guardadas no corpo físico, igualmente aprisionado e a reboque do instante traumático. Lembremos, a propósito dos textos de Freud sobre a guerra, a substituição psíquica da neurose pela ferida física. Observará Freud (1981c/1920) nessa ocasião:

nas neuroses traumáticas comuns se destacam dois aspectos que poderiam ser tomados como ponto de partida da reflexão : que o centro da gravidade da causação parece situar-se no fator surpresa, no terror, e que um simultâneo dano físico ou ferida dificulte, na maioria dos casos, a produção de uma neurose. (p. 2510).

Essa observação importantíssima de Freud revela o que tentamos grifar. O trabalho psíquico necessário para a produção da neurose é imobilizado diante do dolo físico, do perigo somático e da dor intensa do corpo. O princípio da autoconservação assume prioridade para o psiquismo, e socorrê-lo passa a ser uma necessidade, também psíquica, de primeira ordem.

Esta urgência estará presente também no trabalho do sonho e os sonhos traumáticos são, para Freud, sua expressão inequívoca. O terror que instala o traumático, no instante traumático, imobiliza o sentido metafórico do sintoma e convoca e impõe ao psiquismo um trabalho ao rés do chão. O que pode então salvar o organismo vivo é também o que indiferencia corpo e psiquismo no momento do perigo.

Momento em que percepção e motilidade se superpõem, e o próprio trabalho inconsciente - a elaboração onírica - parece estar em colapso. O que assume o seu lugar coloca fora de jogo o princípio do prazer e torna possível a dominância da pulsão de morte que, aliás, é o que está em operação quando o sujeito não pode (e não deve) viver outra coisa senão o trauma, o instante traumático. A Pulsão de morte então como pulsão oportunista que se instila nos desvãos que o princípio do prazer deixou para trás, e dali pode assumir predominância.

Elie Wiesel (2006), numa entrevista para tv americana1, comentara que embora tivesse escrito dezenas de livros sobre o holocausto, ainda deveria escrever tantos mais, infinitos acrescentaríamos. Construindo ali sua morada: sobre o chão dos mortos insepultos. Aqueles que são para Primo Levi (1990) as verdadeiras testemunhas. Os que morreram e, com eles, a verdade sobre o catastrófico.

A dominância da pulsão de morte traz consigo uma função radicalmente negativa, como observou Derrida (2001). A pulsão de morte seria aquela que apaga seus próprios traços, suas marcas e, no limite, impossibilitaria a própria constituição do psiquismo enquanto tal.

Cito Derrida (2001) sobre a pulsão de morte:

Ela trabalha, mas uma vez que trabalha sempre em silêncio, não deixa nenhum arquivo que lhe seja próprio.(...) Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus próprios traços- que já não podem desde então serem chamados de próprios. Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-los produzido externamente. (p. 21)

Lembremos que no esquema bidimensional sugerido por Freud (1981a/1900) no capítulo VII de A interpretação dos sonhos observamos, entre a percepção de um lado e a motilidade de outro, as marcas mnêmicas e o próprio inconsciente2. Apagar as marcas significaria aqui o apagamento do que Freud entendia como o psiquismo enquanto tal e a superposição entre percepção e motilidade capaz de revelar, precisamente, a prontidão ao trauma. O imperativo de perceber e reagir imediatamente ao que se percebe a fim de sobreviver. Seria essa a tradução mais simples do traumático.

O esforço do psiquismo seria então o de fazer coincidir temporalmente a percepção do fato ofensivo e traumático e a imediata reação a ele. Entretanto, para isso, paga-se o preço do empobrecimento psíquico, do apagamento de marcas mnêmicas e, no limite, o próprio inconsciente correria riscos a ponto de levar-nos a considerar a hipótese extrema de um psiquismo sem o inconsciente. Um psiquismo incapaz de produzir mediação, radicalmente aderido à realidade que põe em risco a vida do organismo, incapaz de realizar a função psíquica que promove a inscrição temporal e aplaca a reiteração do presente e do agora. A fobia e a paranóia revelam-se, portanto, como posições psíquicas que persistem na experiência do perigo contínuo e deflagram a impossibilidade do descanso e do sonho.

Giorgio Agamben (2005), colocando a bibliografia sobre testemunhos no campo dos debates e desreverenciando a produção testemunhal como fim em si mesma, sugere uma nova continuidade e destaca a divergência entre Primo Levi (1990), Terrence Des Pres e Bruno Bettelheim. Num livro que obteve grande destaque quando de sua publicação, Sobrevivente: anatomia da vida nos campos da morte, Des Pres (1976) insiste em que seria preciso resgatar a tarefa de viver como a ação mais digna num contexto de morte e aniquilamento. Ele recusa a vergonha que adviria do ter sobrevivido enquanto tantos morreram (como Primo Levi destacara tantas vezes) e destaca a tarefa de sobreviver e o sobrevivente como o verdadeiro paradigma ético de nosso tempo (Agamben, 2005).

Des Pres acusa Bettelheim de infravalorar a luta dos deportados dos campos para sobreviver enquanto supervaloriza o herói que está disposto a renunciar a própria vida.

Bettelheim responde imediatamente a Des Pres, indicando que a eleição do herói está na posição de Des Pres quando postula o grande heroísmo da sobrevivência, e os sobreviventes como verdadeiros heróis. Entre os corajosos e os fracos haveria um debate ético que quer sobreviver num horizonte onde toda preocupação ética parece se desmanchar: o horizonte do traumático.

Como situação liminar, a própria ocorrência do traumático indica que toda ética foi colocada de lado em nome do aniquilamento necessário só justificável por uma inexorável pulsão de destruição. Esse debate se trava sobre a possibilidade ou impossibilidade do ultrapassamento da própria vergonha de estar vivo que, não raro, sobrevém àquele que testemunhou a morte, a humilhação e a dor alheia, que as suportou e sobreviveu a elas. Que homem restaria após isso? Um homem envergonhado como já nos disseram tantos testemunhos. Que apesar da produção incessante do próprio ato de testemunhar jamais poderá dar a ver o que viu, sendo ele mesmo condenado a testemunhar para sempre o que viu.

No rastro dessa vergonha e dessa impossibilidade, ainda é o sonho traumático que exibe uma verdade além da própria narrativa, além (ou aquém) do próprio testemunho. É o sonho que persiste como a experiência que permite a convivência entre inconciliáveis e é o sonho que perdura ante a experiência do absurdo. Do ponto de vista da Psicanálise, o absurdo do sonho traumático seria antes, seu divórcio com o princípio do prazer tendo como seu corolário a repetição psíquica do insuportável. A isso se deve a gênese metapsicológica de um inconciliável para Freud e para a própria teorização psicanalítica: a pulsão de morte. A pulsão de morte elide a dúvida e a dívida e determina o fim. Desejo de não desejar, destruição doobjeto, suspensão no tempo na eternidade da repetição e no imobilismo psíquico.

É possível, portanto, que seja o sonho traumático o testemunho mais fiel, literal talvez, no sentido da fidelidade descritiva do absurdo e que define o traumático, cuja fonte do excesso, permanecem extrapsíquicas, porém, e ao mesmo tempo, permanecem fixadas, incrustadas intrapsiquicamente. É o modelo de uma flecha sugerido por Jean Laplanche (1993) que nos auxilia, retomando rapidamente o que sugeri anteriormente como fixação do trauma e não fixação no trauma. Um golpe cuja intensidade depende da quantidade de força com que o arco foi envergado, mas que, uma vez perfurado o alvo, a dor que se irradia desde o ponto da perfuração não depende apenas da ponta da flecha cravada na carne, mas do restante dela que permanece exterior e produzindo ressonâncias a posteriori a partir do ponto ferido. A parte da flecha foi incorporada e a outra parte, não incrustada, permanece como extensão sensível do corpo ampliado. A parte da flecha que ficara para externa torna-se parte do corpo atingido.

As implicações dessa mútua pertinência e formação de compromisso do traumático (intra e extrapsíquica) e sua figuração no sonho encontra notável elucidação num sonho narrado por Primo Levi. Um sonho dentro de um sonho, como ele dirá:

Estou comendo com a família, ou com os amigos, ou no trabalho ou em uma campina verde; em um ambiente aprazível e relaxante, alijado aparentemente da tensão e da dor; contudo sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que se aproxima sobre mim. E, de fato, à medida em que se desenvolve o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, cada vez de forma diferente, tudo se derruba e se desfaz ao meu redor: o cenário, as paredes, as pessoas e a angústia se faz mais intensa e mais precisa. Tudo se tornou um caos. Estou só no centro de um nada cinza e turvo. E de repente sei o que isso significa e sei também o que tenho sabido sempre: estou de novo no lager3 e nada era verdade fora dele. (...) Agora este sonho interno, o sonho de paz acabou e no sonho exterior, que segue seu curso gélido, ouço ressoar uma voz bem conhecida: uma só palavra, não imperiosa, mas bem breve e surda. É a ordem do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantar-se, wstawac. (Levi, 1997/1963, p. 359)

O sonho dentro do sonho, como se buscasse uma interioridade mais radical a salvo do traumático além do sonho exterior que irrompe e impõe a vigília: levantar-se é a ordem do sonho exterior que zela pela inexorável luz do dia no campo de concentração. A obrigação de viver o que não se pode viver e o fracasso da elaboração onírica lá onde ela se escondia: no interior do interior.

Irrompe então o comando e o imperativo da exterioridade como se não mais fossem possíveis o repouso, o sono e o trabalho do sonho. Sob o imperativo da vigília se exerce então o testemunho, fiel ao que o sonho traumático eterniza.

Se concordarmos com Agamben (2005) em sua afirmação de que o testemunho é o "sistema das relações entre o dentro e o fora da língua, entre o dizível e o não dizível em toda língua; ou seja entre uma potência de dizer e sua existência, entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer." (p.151-152), não há dúvida que o testemunho desloca-se para um mais além do sonho traumático, por um lado fiel à indizível verdade do sonho, e infiel à sua repetição eterna do trauma que o sonho impõe. O testemunho chama o auxílio da escuta afetável pelo esforço do dizer e, nesse sentido, arrisca-se ao contingente, ao público e ao poder não ser. O sonho traumático, de outro modo, é radicalmente conservador e se exibe através de seu triunfo sobre o tempo: a sempiterna compulsão à repetição.

Para o sonho traumático, atado pela pulsão de morte, é a própria representação, a própria possibilidade de enunciação que é colocada em cheque. É o aprisionamento na percepção e na motilidade: que no sonho narrado por Primo Levi indica a percepção do horror e a ação correspondente (levantar-se) que repetidamente apaga a possibilidade de fazer marcas e do trabalho psíquico, só possível a partir delas.

O testemunho seria então um descolamento do sonho traumático e sua iminência. A insistência na inscrição de marcas-matéria a ser perlaborada pela posteridade - mesmo que, para aqueles atravessados pela catástrofe se imponha a sucessiva impressão de marcas e o sucessivo apagamento dessas mesmas marcas recém impressas. Tal como relatara Elie Wiesel e indicaram suicídio de Paul Celan, Bettelheim, Jean Amery e o provável, possível e imaginado suicídio de Primo Levi.

Gostaria de retomar agora, brevemente, o conhecido e formidável sonho apresentado por Freud (1981a/1900) no sétimo capítulo da Interpretação dos sonhos, muito antes da segunda teoria do trauma.

O filho morto que se encontra no quarto rodeado de velas é velado pelo pai durante dias. Extenuado, o pai deita-se no cômodo ao lado deixando, entretanto, a porta entreaberta. Encontrava-se no quarto um senhor que fora chamado para velar o filho morto. Ele se encontrava ao lado do corpo, murmurando preces. O pai adormece, e o homem ao lado de seu filho morto também. Durante o sono, o pai sonha que seu filho o acorda de modo enfático e repreensivo com os dizeres: "Pai, não vês que estou queimando!".

O pai desperta, vê um clarão que se insinua através da porta do quarto. Ao chegar à beira do caixão vê que uma das velas havia caído sobre o braço do filho morto e a havia queimado. Freud interpretara a cena como a vociferação grandiloquente de um desejo realizado pelo sonho. O desejo de que o filho estivesse vivo.

Mas o desejo de que o filho estivesse vivo, a representação do filho vivo no sonho é remetida imediatamente à constatação da morte do filho quando o pai desperta e uma nova experiência de morte se executa. Esse desejo, presente nesse sonho, não deixa de ser uma composição original de um sonho traumático em que ainda sopra o princípio do prazer. Todavia o pai, quando desperto pelo sonho, revê o filho morto e, mais uma vez, na passagem do sonho à vigília constata sua morte pelo fogo. O fogo do filho queimando em febre. Para o pai foi, talvez, a febre que matou seu filho. Um pai jamais deveria dormir, já que seu sono e seu sonho representam a morte do filho. O sonho do pai queima, fere o filho e seu despertar o mata novamente.

Desperto do sonho traumático, o pai reencontra a cena do filho queimando por seu descuido. Como reencontra também o instante da morte do filho que se executa no instante traumático - ou retraumático - da passagem do filho vivo do sonho para o filho morto da vida desperta. É sob todas as formas uma repetição do instante traumático e o princípio do prazer trabalhando em prol do traumático.

Reencontramos aqui aquilo que forja o representacional sem representabilidade.

Representações afogadas no caldo da pulsão de morte, onde é repetido o horror que não cessa de colidir com o campo representacional que o mitiga e o acentua infinitas vezes. Essa é a repetição traumática, hetero e auto-imposta ao sujeito, como retraumatismo e exacerbação da dor. O horror, que extravasa o limite do suportável, a partir de onde se torna possível e desejável dar cabo à própria vida. Tal como o fizeram aqueles que encontraram no suicídio um termo ao círculo imposto pela pulsão de morte. Como se, para alguns notáveis escritores, testemunhas da shoah, das ditaduras e das catástrofes, a crença na marca das palavras fosse também uma passagem, rumo à própria morte e aos próprios mortos. A elaboração onírica reencontraria o desejo possível em meio ao traumático - o desejo de que o filho estivesse vivo realiza o desejo no sonho para, moto contínuo, relançar o pai à vida desperta onde o desejo é traumaticamente irrealizado e o pai se vê, mais uma vez, ao lado do féretro onde seu filho jaz morto.

Diante da insistência e da repetição dessa ação e dessa intensidade, o psiquismo fracassa e, invertendo a polaridade, pode desejar a própria morte - o desejo de não mais desejar rompendo o ciclo onde o desejo de estar, mais uma vez ao lado do filho vivo reproduz o paradoxo inultrapassável e insuportável da morte do filho. Situação extrema em que o psiquismo ameaça romper com a tarefa da sobrevivência.

Com esse sonho, creio que Freud antecipava uma figura nova, só compreensível retroativamente e que levou Freud a reformular nas Novas conferências introdutórias, de 1981b/1933, a afirmação de que o sonho é uma realização de desejo, para a proposição de que o sonho é uma "tentativa de realização de desejo" (p. 3115) que pode, em seu trajeto, ser capturada pela pulsão de morte. A elaboração onírica trabalhando para irrealizar traumaticamente o desejo, a partir do próprio desejo de ver o filho vivo. Colapso psíquico para o qual a Psicanálise ainda não encontrou a devida resposta, embora Freud já houvesse apontado seus dramáticos paradoxos. O alargamento da compreensão desse paradoxo, em minha opinião, revela sua complexidade e maturidade nos diálogos entre a Psicanálise, os estudos sobre os testemunhos e sua literatura e sua produção oral.

 

Referências

Agamben, G. (2005). Lo que queda da Auschwitz: el archivo y el testigo (homo Sacer III). Valencia: Pré-textos. (Trabalho original publicado em 1999).         [ Links ]

Derrida, J. (2001). Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: relume-Dumará. (Trabalho original publicado em 1995).         [ Links ]

Des Pres, T. (1976). The Survivor: An anatomy of survive in the death camps. New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Freud, S. (1981a). La interpretacion de los sueños. In S. Freud, Obras Completas (Vol. I, pp. 343-720). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1900).         [ Links ]

Freud. S. (1981b). (Leccion XXIX): Revision de la teoria de los sueños. In S. Freud, Nuevas lecciones introductorias al psicoanalisis (pp. 3102-3115). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1933).         [ Links ]

Freud, S. (1981c). Mas allá del principio del placer. In S. Freud, Obras Completas (Vol. III, pp. 2507-2541). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1920).         [ Links ]

Laplanche, J. (1993). A Angústia. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1980).         [ Links ]

Levi, P. (1990). Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Levi, P. (1997). A trégua. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1963).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
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Enviado em Novembro de 2009
Aceite em Janeiro de 2010
Publicado em Outubro de 2010

 

 

Sobre o autor:

Paulo Endo. Psicanalista, Psicólogo, Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

 

 

1 Disponível no site www.oprah.com/world/inside-auschwitz/1.
2

 

 

Esquema do aparelho psíquico sugerido por Freud no capítulo VII do texto "A Interpretação dos Sonhos".
3 Campo de concentração.

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