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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.19 no.1 Ribeirão Preto jun. 2011
PRIMEIRA PARTE: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES INTERNACIONAIS
Ponto de vista: sobre o movimento das representações sociais na comunidade científica brasileira
Denise Jodelet
École des Hautes Études em Sciences Sociales - Paris - França
Em breve, completará 30 anos que acompanho o desenvolvimento das pesquisas sobre representações sociais no Brasil, presenciando o nascimento de talentos individuais, de correntes coletivas de pesquisa, de programas de pós-graduação em vários lugares, do norte ao sul, do leste ao oeste. Eu retomo este desenvolvimento no momento de uma dupla comemoração. A dos 50 anos de aniversário da primeira publicação da obra "La Psychanalyse, son image et son public", pela qual Serge Moscovici inaugurou esta corrente teórica, abrindo, no plano internacional, um vasto campo de pesquisa; e aquela dos 20 anos do aniversário da criação do Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição (LACCOS), dirigido por Brigido Camargo, que elaborou sua tese em Paris, no Laboratório de Psicologia Social da École des Hautes Études em Sciences Sociales (LPS- EHESS) que Serge Moscovici e eu sucessivamente dirigimos. A história deste acontecimento de certa maneira é um caso exemplar do processo de constituição de um campo científico. E eu me permitirei, a respeito disto, retomar algumas reflexões que já formulei em congressos anteriores que reuniram a comunidade brasileira.
Eu já evoquei esta história duas vezes. Na I Conferência Brasileira de Representações Sociais, ocorrida em 2003 no Rio de Janeiro; evento este simultâneo a III Jornada Internacional sobre Representações Sociais. Nessa ocasião considerei os 20 anos de experiência e de comunicação com meus numerosos amigos e colegas do Brasil, sob um modo narrativo e mais pessoal do que um balanço científico que considerasse as competências dos pesquisadores brasileiros (Jodelet, 2005). Esse balanço foi objeto de várias contribuições dedicadas seja ao conjunto de pesquisas feitas no Brasil, seja aquelas próprias de certos campos de aplicação da teoria como o da educação ou o da saúde (Sá & Arruda, 2000; Arruda, 2005; Camargo, Wachelke & Aguiar, 2007; Arruda, 2009).
Seis anos mais tarde, em 2009, na IV Conferência Brasileira sobre Representações Sociais, que teve lugar também no Rio de Janeiro, fiz uma conferência que registrava os progressos evidentes do campo de estudo das representações sociais. Isto foi feito em termos de número de publicações individuais e coletivas (livros, capítulos de livros e artigos), de teses e dissertações de mestrado, de pesquisas; e de participantes (alunos integrantes do programa de iniciação científica, mestrandos, doutorandos, pesquisadores confirmados e professores) que pertencem a diversas universidades em quase todos os estados do Brasil.
Para dar uma visão da amplitude geográfica desse progresso, basta observar que em 2010 apenas cinco estados, de um total de 26 e mais o Distrito Federal, não tinham nenhum representante do nosso campo de estudo. Essa importância quantitativa testemunha a vitalidade do campo que aparece significativamente mais destacada no Brasil do que em outros países da America do Sul e do Norte e mesmo da Europa. Parece-me agora importante destacar a especificidade desse desenvolvimento que segue ativo pela organização e participação em diferentes congressos da área. Além dos congressos localizados no Brasil, a contribuição de brasileiros forma uma parte importante do público que participou dos eventos internacionais; como as Conferências Internacionais sobre as Representações Sociais (CIRS) que ocorreram no Canadá, França, Espanha, Indonésia, Inglaterra, Itália, México e Tunísia; e a Jornada Internacional sobre Representações Sociais (JIRS) que ocorreu na Argentina. E mais do que a importância quantitativa é necessário estimar o que representa qualitativamente este crescimento da participação brasileira para a produção científica desta teoria.
Na conferência que fiz em 2003 (Jodelet, 2005), introduzi a ideia de que nos encontrávamos diante de uma "Escola brasileira", e retomei esta expressão em 2009, e aqui eu quero trazer mais uma vez esta discussão buscando a melhor maneira de qualificar a fisionomia atual do campo de estudos das representações sociais no Brasil. Realmente, é necessário precisar o sentido empregado para a noção de "escola", para que ela seja adaptada a situação característica das tendências de pesquisa. Isto deve ser feito antes de examinar se outras qualificações não seriam mais adequadas ao que se desenha nas atividades dos diferentes grupos de pesquisa e nas trocas que eles estabelecem entre si.
A noção de "escola" se define de diferentes maneiras. Num primeiro sentido, essa noção é concebida como o que constitui para um sujeito um modo de aprendizagem através de experiências que formam a personalidade, ensinam, esclarecem o sentido do vivido. Assim se diz que se vive na escola do mundo, da pobreza ou da riqueza, etc. Isto quer dizer que se aprende por experiência a maneira de se viver, as condutas que são difundidas nas instâncias da sociedade ou nos grupos aos quais pertencemos.
Num segundo sentido, "escola", designa o ensinamento, oral ou escrito, que é recebido por um conjunto particular de pessoas ligado a um pensador que difunde sua doutrina, deste modo falamos de "escola platoniana" em Filosofia ou de "escola keynesiana" em Economia. Disto resulta a existência de diferentes escolas de pensamento que podem entrar em conflito umas contra as outras.
Num terceiro sentido, a noção de escola remete ao caráter comum apresentado por obras que pertencem aos domínios da arte, da literatura ou da ciência. Designam-se assim grupos de criadores que se afiliam a uma mesma corrente de estilo ou uma liderança de forma, por exemplo, em literatura a escola realista ou a escola do novo romance. Mais especificamente, em pintura, o termo "escola" qualifica uma série de pintores que trabalham dentro de um mesmo estilo que pertence a um país do qual os pintores são geralmente originários, e a uma época onde vivem, por exemplo: "escola holandesa" ou "escola italiana quatrocentista".
Se aplicarmos estas definições ao campo científico, como o das representações sociais, elas podem servir para especificar algumas de suas características. De uma parte, podemos empregar a noção de escola, num primeiro sentido, para indicar um modo específico de existir no seio da psicologia social, para os pesquisadores que utilizam na sua prática científica o paradigma das representações sociais, eles se distinguem de outras correntes de pesquisa, dominantes ou alternativas. Dentro do espaço universitário nacional, a escola brasileira das representações sociais se distancia de outros modelos propostos na psicologia social, ainda que diversos pesquisadores busquem manter laços entre problemáticas das representações sociais e aquelas da psicologia social. Porém, esta designação é demasiadamente vasta e vaga para corresponder ao que poderia ser uma escola brasileira de representações sociais.
Para se aproximar mais da situação do campo das representações sociais temos que considerar o segundo sentido de "escola" que remete a uma adesão e aplicação de um quadro definido por um modelo ou uma perspectiva encarnada numa pessoa, num instituto ou num grupo ou pessoas líderes. Mesmo se o paradigma de Moscovici segue vigente e orientador, formando a base referencial de todos os trabalhos que se reclamam da teoria das representações sociais, hoje não se pode dizer que constitui o único modelo usado nas pesquisas. Ao longo dos cinquenta anos de existência desse campo científico, vimos aparecer diversas "escolas" caracterizadas pela existência de um conjunto de pesquisadores que se reúnem ao redor de uma mesma prática marcada por uma associação estreita entre um modelo teórico e uma metodologia. Assim, são distinguidas na Europa diversas "escolas". A "estruturalista", dita "escola de Aix em Provence" porque os pesquisadores trabalham na Universidade de Aix en Provence, sob a liderança de C. Flament, J.C. Abric, J. Vergès e outros (Abric, 1994; Sá, 1996). A "escola de Genebra" (Almeida, 2009; Doise, 1982, 1986) que sob a liderança de W. Doise estuda a gênese sociocognitiva das representações sociais usando o modelo proposto por ele mesmo dos quatros níveis (individual, intergrupal, social e ideológico) para analisar os processos psicossociais. Este mesmo pesquisador sugere de se falar de "Escola Lemana"1 porque ali se reúnem pesquisadores pertencendo a diferentes universidades suiças, devolvendo perspectivas complementares que unem as problemáticas da psicologia social (categorização, relações de gênero ou intergrupais, processos de influência etc.) ao enfoque das representações sociais. Nessa escola observamos, como no caso da de Aix en Provence, uma elaboração conjunta de aspetos teóricos e de metodologias adequadas aos pressupostos teóricos, o que constitui a especificidade de cada escola.
Nos últimos anos, com as contribuições de autores como R. Farr, G. Duveen, I. Markova, S. Jovchelovitch, M. Bauer, G. Gaskell e jovens pesquisadores, a gente começa a falar da "escola anglo-saxã" ou da London School of Economics, mais orientada, como o faz, na Áustria W. Wagner que é muito ligado a essa corrente de pensamento, para a análise do discurso, a dialogicidade, a narratividade num quadro contextual (Marková, 2003). Agora, cientistas franceses que fizeram seu doutorado no Laboratório de Psicologia Social da École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), querem que se considere também uma "escola de Paris" que adota uma perspectiva mais simbólica e antropológica, aproximando-se das ciências sociais, com um uso de métodos qualitativos.
Não acho pessoalmente que essa denominação tem justificações. Mas ela expressa um desejo de diferenciação e de "ecumenismo científico" prevalente em pesquisadores que buscam uma aproximação mais abrangente dos fenômenos representacionais.
Voltaremos um momento às duas escolas historicamente reconhecidas: a de Aix en Provence e a de Genebra, que se diferenciam como "estruturalista" e "sociogenética" da perspectiva "processual" mais clássica correspondente as orientações delineadas por Moscovici. Essas duas escolas foram até pouco tempo consideradas, no geral, como divergentes, dando lugar a linhas de pesquisa diversas e às vezes incompatíveis. Mas nos últimos anos foram encontrados pontos de convergência favorecendo novas pesquisas que juntam as duas perspectivas no estudo de representações sociais. Podemos observar a luz de essa evolução o caso do campo de pesquisa no Brasil.
No campo brasileiro, a introdução dos estudos de representações sociais seguiu várias etapas que atestam a influência de uma ou de outra dessas escolas europeias. Após uma abordagem processual, foi a abordagem estruturalista que foi adotada, completada mais tarde pela abordagem sociogenética. Mas a influência que as escolas tiveram no desenvolvimento do campo de estudo do fenômeno das representações sociais no Brasil, servindo de inspiração teórica e provendo com metodologias, as referências europeias foram usadas no contexto de uma aproximação diversificada das representações sociais. Raras foram as pesquisas que aplicaram os modelos propostos de maneira rígida e estritamente reprodutiva. O fenômeno que me parece um traço importante da produção brasileira: sua capacidade de assimilar nas suas problemáticas os aportes exteriores sem submissão passiva a suas prescrições. Descobri essa tendência com Silvia T. Maurer Lane. Ela foi a primeira professora brasileira convidada por nosso laboratório como Directeur d'Études Associée da EHESS, para o intercâmbio de trabalhos e perspectivas. Em Paris ela recebeu informações sobre os diferentes recursos oferecidos para se analisar as representações sociais. A partir de um modelo estruturalista ela apresentou uma análise de entrevistas livres feita no Brasil, retomando a ideia de buscar uma estrutura nos discursos dos participantes. Mas fez para isso um uso totalmente original da ideia de núcleo central, ponte chave do modelo estruturalista, afastando-se de um tratamento quantitativo para a identificação desse núcleo. E seu esquema funcionava perfeitamente, embora focalizado em relações semânticas isoladas, analisadas de maneira totalmente qualitativa.
Essa tendência evoca para mim, algo similar ao que teve lugar na literatura brasileira nos anos 20 do século passado com o movimento do "modernismo" que recusava uma dependência aos modelos franceses que eram nessa época as referências literárias dominantes. Sob o nome de "antropologia" os escritores brasileiros pretendiam destacar a especificidade e a originalidade de sua inspiração nacional numa literatura que assimilava as perspectiva de fora sem obedecer a suas regras.
A partir de essa constatação podemos então falar de uma "escola brasileira" de representações sociais? Acho que esse termo não é adequado se referimos ao tipo de escola representado por Aix en Provence ou Genebra, mesmo se aqui ou lá os pesquisadores escolheram um ou outro dos dois modelos propostos nestes lugares. Minha inclinação é dizer que se existe tal escola, ela deve ser interpretada a partir do terceiro sentido já indicado aqui para esta noção, aquela empregada na pintura. A que se refere a um grupo de pesquisadores unido por um mesmo estilo e uma mesma preocupação ou orientação. Essa orientação comum, pela diversidade dos produtos, parece focalizada sobre temas que diz respeito ao entendimento de problemas identificados na realidade social do país. A preocupação dos cientistas não é tanto de tipo puramente teórico, não responde tampouco a um desejo exclusivo de aperfeiçoamento e aprofundamento de metodologias. A perspectiva comum é de usar a teoria e os modelos das representações sociais para enfrentar questões vivas que atravessam a sociedade brasileira hoje em dia. Prova disto são as avaliações nacionais do emprego da teoria das representações sociais no Brasil desde 2000 (Arruda, 2005, 2009; Camargo, Wachelke, & Aguiar, 2007; Sá, & Arruda, 2000). Os trabalhos são desenvolvidos essencialmente em torno de temas ou domínios chamados de "aplicação", mas que em efeito, são domínios onde surgem problemas sociais importantes: educação, saúde, ambiente, política e justiça social, movimentos sociais, memória e história.
Para mim, essa orientação social é característica de uma "escola" radicalmente diferente da perspectiva das escolas europeias. Estas se dedicam a processos e temas definidos de maneira teórica para enriquecer a teoria, afinar as metodologias, no laboratório ou no campo; ou para oferecer novas vias de análise dos fenômenos, conceitos e temas da disciplina "psicologia social", opondo-se as correntes tradicionais. É verdadeiro que essa oposição ao tradicional tem que ver com o sucesso da teoria das representações sociais, particularmente, nos países latino-americanos, que buscam entender sua realidade social. Nessa medida, a escola brasileira é comparável as outras correntes de pesquisa que usam a teoria das representações sociais na América do Sul.
No entanto a "escola brasileira" tem diversas originalidades. Além da importância quantitativa, já mencionada, no âmbito das pessoas envolvidas em universidades de quase todos os estados, no volume da capacitação do pessoal pela quantidade de diplomas de pós-graduação, de pesquisas e publicações; duas características brasileiras chamam a atenção. De um lado, a diversificação dos domínios de estudos. De outro lado, uma concepção comunitária das práticas de pesquisa, através de encontros internacionais e sobretudo nacionais, como as Jornadas Internacionais sobre Representações Sociais (JIRS), as Conferências Brasileiras e os grupos da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Esses encontros constituem um progresso enorme em termos de comunicação, intercâmbios de ideias, realizações e experiências e em termos de aprimoramento das práticas de investigação.
Uma nova forma de articulação entre pesquisadores em campos específicos como o da educação, saúde, psicologia social, aparece também como um fator de unificação e de progresso. Penso aos centros e redes inaugurados pela iniciativa de Serge Moscovici: o "Centro Internacional de Estudos em Representações Sociais e Subjetividade - Educação" (CIERS-ed) de São Paulo que associa mais de 20 universidades2; o "Centro Internacional de Pesquisa em Representação e Psicologia Social 'Serge Moscovici'" em Brasília que reúne psicólogos sociais do Rio de Janeiro, Vitória, Recife, Belo Horizonte3 ; a Rede Internacional de Pesquisa sobre Representações Sociais de Saúde (RIPRES) que associa, no campo da saúde, universidades brasileiras (Florianópolis, Rio de Janeiro, João Pessoa), sob uma perspectiva internacional de relações com universidades portuguesas (Évora, Lisboa), francesas (Amiens, Aix en Provence, Brest, Paris), italianas (Roma, Pádua), entre outras4.
Esses novos agrupamentos permitem a estudantes, cientistas e universitários de diversas instituições do país definir, de maneira coletiva, problemáticas inovadoras e relevantes para os diversos campos, cooperar em pesquisas, produzir um saber comum, elaborar novos caminhos teóricos e metodológicos. Assim se estabelece uma verdadeira comunidade das representações sociais da qual tenho pessoalmente uma experiência marcante pelo meu trânsito nos diferentes grupos. Posso testemunhar os laços afetivos e intelectuais que permanecem, através do tempo, entre os membros dessa comunidade, apesar de certos conflitos que emergem, de vez em quando, como é inevitável em todas as comunidades, particularmente quando entram em jogo questões de poder.
Tal dinâmica resulta em uma estruturação nova do campo de estudo das representações sociais. No passado, a estruturação assumiu uma forma inovadora na medida em que a difusão do enfoque das representações sociais começou a margem do mundo acadêmico. A teoria entrou no Brasil pelos estados de Paraíba e de Santa Catarina, passando pela PUC de São Paulo, antes de se difundir no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e outras cidades do norte, do sul e do centro-oeste do Brasil (Arruda, 1987; Jodelet, 2005; Sá, & Arruda, 2000). Nesse progresso cada universidade adotava o modelo que parecia melhor adaptado as suas problemáticas. Assim, vimos a UFRJ divulgar a perspectiva processual, a UERJ aparecer como a sede da escola estruturalista, a UNb como a sede da escola de Genebra, o LACCOS - UFSC desenvolver a articulação entre atitudes e representações sociais, a UFRGS propor uma perspectiva centrada na comunicação nos espaços públicos e comunitários, etc. Podemos agora observar, com a cristalização de grupos ao redor de temáticas e campos definidos, algo como "arquipélagos" dentro da comunidade das representações sociais. Cada grupo que reúne diversas universidades focaliza sua atenção em problemáticas, preocupações práticas e teóricas particulares. Este novo quadro nos indica que o termo mais adequado para descrever o que se passa no campo de estudo brasileiro das representações sociais, parece ser a noção de "movimento", e não a de "escola".
Realmente, o conceito de movimento permite considerar a diversidade e a complexidade do campo das representações sociais, tal como aparece hoje no Brasil. Ela preserva a liberdade de cada grupo dentro de uma visão compartilhada. Ele permite abandonar a ideia de uma liderança única associada ao conceito de escola. Mas seja qual for o nome escolhido, movimento ou escola, o desenvolvimento do campo das representações sociais merece modificar seu estado atual para oferecer uma autêntica contribuição científica. O que significa essa asserção? Os estudos brasileiros utilizam a Teoria das Representações Sociais (TRS) como um instrumento para um melhor conhecimento da realidade social e uma melhora na forma de intervenção sobre ela. Com isto mostram a adequação da teoria ao manejo dos problemas que surgem nos domínios de aplicação. Deste modo, devemos esperar que esses estudos tragam uma contribuição inegável ao progresso do campo científico desenvolvendo a teorização das representações sociais.
Uma teoria necessita ser comprovada na vida concreta. Nesse sentido a aplicação da teoria pode enriquecer a reflexão. Muitos pensadores que são favoráveis a uma perspectiva "societária" na psicologia social tomam a pesquisa aplicada como uma via privilegiada para contribuir com as teorias centradas nos problemas das sociedades contemporâneas. Este é o caso da teoria das representações sociais. O Brasil oferece muitos exemplos de contribuições para uma perspectiva centrada nos problemas e nas características da realidade social. É chegado o momento de elaborar sobre esses exemplos contribuições para um progresso teórico no campo do conhecimento.
Podemos registrar desde agora contribuições deste tipo. Por exemplo, no caso de estudos realizados em comunidades (Jovchelovitch, 2000) foi possível elaborar um modelo dos tipos de saberes construídos no espaço público. Sobre a memória, o trabalho sobre memórias brasileiras vivas de um passado relativamente recente (Sá, Oliveira, Castro, Vetere, & Carvalho, 2009) abriu novas vias para tratar do esquecimento e do reconhecimento do passado político. Outras contribuições criaram novos espaços de reflexão, como o ilustram os casos a seguir. No paradigma princeps de Moscovici, encontramos propostas para aproximar as dimensões imagéticas e imaginárias das representações sociais. Esta problemática foi quase esquecida nas pesquisas europeias. Ao contrário, no contexto brasileiro, onde culturalmente e na tradição intelectual se dá uma grande atenção às dimensões relativas ao imaginário desenvolveram-se, no campo das representações sociais, iniciativas criativas dando lugar a emergência de uma linha inovadora onde se juntam reflexões teóricas e invenções metodológicas (Arruda, & Alba, 2007). Outro retorno as propostas pouco exploradas do paradigma de Moscovici tem que ver com o estudo do pensamento mítico (Paredes, & Jodelet, 2009).
Além dessas novas contribuições estreitamente ligadas ao contexto brasileiro, podemos esperar que em campos como educação, saúde, meio ambiente, política, justiça; os resultados obtidos por os numerosos trabalhos realizados em contextos concretos poderão fornecer uma base de discussão sobre as contribuições dos diferentes modelos empregados para se aproximar das representações sociais. Desse ponto de vista, acho que não é suficiente realizar "estados da arte" examinando as áreas estudadas, os referentes teóricos e metodológicos usados, como foi o caso até agora dos trabalhos apresentados em conferências e livros. Tais procedimentos são úteis em termos de avaliação dos progressos empíricos nos diferentes campos, mas necessitam ser complementados por análises das realidades sociais colocadas em evidencia através das pesquisas. Duas direções de aprofundamento poderiam ampliar a avaliação das contribuições teóricas das pesquisas feitas em Brasil.
A primeira seria sobre os conteúdos representacionais identificados nas pesquisas sobre os principais temas próprios de cada campo estudado (saúde, educação etc.). Essa análise permitiria identificar a evolução ou a estabilidade das representações sociais, no contexto nacional, e obter uma visão cumulativa das diferentes pesquisas. A segunda direção de análise remete a estruturação dos diferentes campos de pesquisa. No contexto brasileiro, como em outros contextos nacionais, os campos estudados devem levar em conta os sistemas de valores, ideologias específicas e provenientes do funcionamento destes próprios campos. Isso vale particularmente no caso do campo da saúde ou no da educação. Esses campos aparecem em cada país como sistemas ligados as organizações institucionais, aos estados e aos problemas particulares da sociedade e de seus diversos grupos, como as escolhas políticas. Especificar as características desses sistemas, como contextos de formação das representações próprias aos grupos profissionais ou sociais envolvidos, permitiria uma melhor aproximação da formação e das funções das representações ao nível categorial o ao nível individual. Assim poderíamos esclarecer a dinâmica social e simbólica que sustenta as tomadas de posições dos sujeitos da pesquisa. Poderíamos também aprofundar, via comparações interculturais, os processos de gênese social das representações sociais que entram em combinação com a experiência vivida dos sujeitos. Nos campos que se supõe uma formação dos agentes, como é o caso do trabalho social, da saúde, da educação; seria importante seguir o modelo usado pelos especialistas da formação profissional, que a nosso ver estabelece uma diferença entre três tipos de representações das tarefas profissionais: 1) as representações compartilhadas na sociedade que constituem o recurso mental dos agentes no momento de sua entrada na formação; 2) as representações sócio-profissionais que são delineadas no curso da formação e 3) as representações profissionais que são cristalizadas no momento onde o agente exerce uma atividade profissional concreta. Assim, o contexto definido por o sistema que organiza um campo de atividade, as diferenças introduzidas pela formação e a prática profissional são quadros cuja delimitação permitiria uma análise e uma comparação dos processos de gênese e de funcionamento das representações sociais. Seria possível ultrapassar uma mera descrição de estados de representação, uma mera explicação das repostas dos sujeitos a partir de sua posição nas interações grupal e social, para incluí-las numa perspectiva social e nacional mais abrangente; e assim enriquecer a aproximação do lado social do estudo dos fenômenos representacionais. Hoje, duas grandes orientações teóricas se destacam no estudo das representações sociais. Uma orientação interativa e comunicacional, centrada nos discursos e na linguagem, nos processos de comunicação intersubjetiva e massiva. A outra orientação e de tipo societal, focalizada nos quadros sociais das produções mentais. Nos campos de aplicação as duas orientações podem ser combinadas e complementares.
Os estudos feitos em Brasil, que levam em conta suas realidades sociais concretas, trazem uma grande potencialidade para o avanço teórico. Desta forma, movimento brasileiro de representações sociais, em vista da sua história e da diversidade dos seus desenvolvimentos, é chamado a desempenhar um importante papel no progresso do pensamento cientifico relativo as representações sociais.
Referências
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Enviado em Junho de 2011
Aceite em Junho de 2011
Publicado em Julho de 2011
1 Termo utilizado por Doise para qualificar a Suiça francesa situada no entorno do lago Leman ou de Genebra.
2 http://www.fcc.org.br/pesquisa/ciers.html
3 http://www.centromoscovici.com.br/
4 http://www.cicts.uevora.pt/RIPRES