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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.23 no.3 Ribeirão Preto set. 2015

https://doi.org/10.9788/TP2015.3-10 

ARTIGOS

 

Mães, filh@s e homossexualidade: narrativas de aceitação

 

Mothers, children and homossexuality: acceptance narratives

 

Madres, hijos e homossexualidad: narrativas de aceptación

 

 

Mariane HauerI; Rafael Siqueira de GuimarãesII

IUniversidade Estadual do Centro Oeste - Unicentro, Irati, PR, Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário e Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro Oeste - Unicentro, Irati, PR, Brasil. Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Universidade Federal do Sul da Bahia, Itabuna, BA, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apesar do aumento da sua visibilidade social, a homossexualidade ainda é encarada como um tabu, um assunto velado principalmente no âmbito familiar. Devido à organização heteronormativa da sociedade, a possibilidade de ter um filho ou uma filha homossexual sequer é pensada e, quando se deparam com essa situação, os pais e as mães iniciam um trajeto de diversos embates entre as suas concepções e o amor d@ filh@. A delimitação dos papéis de gênero, a ideia do que é ser homem ou mulher, a forma "correta" de expressão da sexualidade, os planos futuros feitos em torno de uma provável relação heterossexual d@ filh@: tudo isso é revisto, repensado, desconstruído e reconstruído. Tendo em vista essas dificuldades, o presente artigo traz os delineamentos do processo de aceitação enfrentado por mães de filh@s homossexuais. A pesquisa foi realizada a partir de entrevistas com três mães, sob a perspectiva da análise narrativa. Percebeu-se que o processo de aceitação das entrevistadas possui tanto pontos comuns quanto singulares, destacando-se questões referentes às causas atribuídas à homossexualidade d@s filh@s, convivência com o estigma e superação de preconceitos.

Palavras-chave: Homossexualidade, aceitação, filh@, mãe.


ABSTRACT

Despite increased social visibility, homosexuality is still seen as a taboo, a subject veiled mainly within the family. Due to the society heteronormative organization, the possibility of having a son or daughter gay is not even thought of, and when faced with this situation, the fathers and mothers begin a journey of several clashes between their views and the children's love. The demarcation of gender roles, the idea of being a man or woman, the "correct" way to express sexuality, future plans made around a probable heterosexual marriage: all of this is revised, rethought, deconstructed and reconstructed. Given these difficulties, this paper provides the outlines of the process of acceptance faced by mothers of homosexuals children. The research was conducted through interviews with three mothers, from the perspective of narrative analysis. It was felt that the process of acceptance of the interviewees has both commonalities as natural, highlighting issues concerning homosexuality causes attributed to the children, living with the stigma and overcome prejudice.

Keywords: Homossexuality, acceptance, child, mother.


RESUMEN

Mismo con el aumento de su visibilidad social, la homosexualidad aún es vista como un tabu, un tema oscuro principalmente en el contexto familiar. Por la organización heteronormativa de la sociedad, la posibilidad de tener un hijo o una hija homosexual no és nunca pensada y, así que estea frente a esta situación, los padres y las madres empezan un trayecto de múltiplos conflictos entre sus concepciones y el amor del/a hij@. La deliitación de los roles de género, la idea de que és ser hombre o mujer, la manera correcta de expresión de la sexualidad, los planes hechos sobre una probable relación heterosexual del/a hij@: esto es repensado, se desconstuye y reconstruye. Tenendo em cuenta estas dificultades, este trabajo hace las líneas del proceso de aceptación de las madres de hij@s homosexuales. La investigación ha sido realizada con entrevistas com tres madres utilizando la análisis narrativa. La análisis toma em cuenta que el proceso de aceptación de estas mujeres tinen muchos puntos comunes asi como singulares, y el más importante son cuestiones sobre las causas de la homosexualidad de l@s hij@s, el estigma y la superación de preconceptos.

Palabras clave: Homosexualidad, aceptación, hij@, madre.


 

 

Aceitar a homossexualidade de um filho ou filha demanda um difícil processo, pois entre as expectativas, medos e incertezas próprias da espera de um bebê, a possibilidade de que el@ tenha uma orientação sexual homossexual não é sequer cogitada por pais e mães. A heterossexualidade e o binarismo de gênero são "tão certos", "tão naturais", que se tornam o ponto central em torno do qual giram os planos para a criança que vai chegar. Se for menina vai usar rosa, terá bonecas, fará aulas de balé; se for menino, usará azul, brincará de carrinho e frequentará uma escolinha de futebol. Para os pais e mães, tudo isto é tão certo quanto o dia em que a filha encontrará um rapaz, ou o filho encontrará uma moça, com quem vai se casar e ter filhos. O órgão sexual é um fator decisivo na vida da criança, de tal forma que "esse 'dado' sexo vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo. Supostamente não há outra possibilidade senão seguir a ordem prevista" (Louro, 2004, p. 15).

Porém, a orientação sexual d@ filh@, bem como diversos outros aspectos de suas vidas, é algo que foge ao controle dos pais e das mães. Conforme explica Louro (2004), "mesmo que existam regras, que se tracem planos e sejam criadas estratégias e técnicas, haverá aqueles e aquelas que rompem as regras e transgridem os arranjos. A imprevisibilidade é inerente ao percurso" (p. 16).

Dessa forma, o choque dos pais e das mães ao se depararem com um filho ou uma filha homossexual é quase inevitável. Charbonneau (1973) aponta que, quando o filho ou a filha causa uma decepção, a frustração se apodera dos pais e das mães, os quais "veem desaparecer todas as esperanças que tinham alimentado cuidadosamente: têm um filho que se revela cada vez mais diferente do que tinham projetado e que nada tem a ver com o ser sonhado que esperavam" (p. 21). Consequentemente, os planos são desfeitos e surge o medo do julgamento social e divino; os pais e as mães procuram a quem culpar, e há aqueles que acreditem ser apenas uma fase passageira.

Costantin (2011) afirma que o padrão heterossexual vigente, que faz com que os pais e as mães reajam de tais formas ao se depararem com a homossexualidade d@ filh@, é determinado pela sociedade e pela cultura, tomado como regra e como parte da norma social. Se a homossexualidade, por não fazer parte da vida cotidiana, não é objeto de reflexão ou discussão, que dirá a possibilidade de se ter um filho ou filha homossexual. É grande o desconhecimento e o desinteresse acerca do assunto, e isso não se restringe apenas à homossexualidade, pois abarca tantas outras questões referentes à sexualidade como um todo.

Esse mesmo desconhecimento, muitas vezes, se encontra intrínseco ao preconceito social, o qual acaba produzindo um ciclo, pois "nos impede de 'ver' que 'não vemos' e 'o que é que não vemos', ou seja, ele atua ocultando razões que justificam determinadas formas de inferiorizações históricas, naturalizadas por seus mecanismos" (Prado & Machado, 2008, p. 67). Assim, a barreira do preconceito gera invisibilidade, colocando @s homossexuais num lugar de marginalidade e discriminação. Essa discriminação social, embasada em valores morais e religiosos de sociedades heteronormativas (Butler, 2003; Scott, 1995), repudia qualquer expressão ou identidade sexual que fuja à regra da heterossexualidade, como ocorre em manifestações de homofobia, por exemplo.

Dessa forma, é necessário discutir acerca do conceito de sexualidade, comumente resumido a questões que se referem principalmente a sexo e genitalidade e que, no entanto, é muito mais abrangente. De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, sexo (s.d.) é a "diferença física ou conformação especial que distingue o macho da fêmea". Diz respeito, portanto, a aspectos estritamente biológicos. Por outro lado, conforme Santos e Araujo (2009), pode-se entender que a sexualidade:

constitui-se em uma categoria de análise mais ampla, que considera as relações de poder, os referenciais de classe, as relações entre os gêneros, a diversidade sexual, os aspectos sociais, históricos, políticos, econômicos, éticos, étnicos e religiosos. A sexualidade compreende também os conceitos de linguagem, corpo e cultura. (p. 17)

Cabe, ainda, esclarecer que a sexualidade se desenvolve ao longo da vida, ou seja, não pode ser vista como dada, natural e acabada. Conforme Toniette (2004), é a partir de múltiplos discursos, os quais produzem saberes, valores e parâmetros sociais, que a sexualidade se forma, pois esta consiste em uma construção social, histórica e cultural, que ultrapassa a genitalidade. Assim, ela pode ser experienciada e expressada no cotidiano das pessoas, em seus pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, atividades, práticas, regras e relacionamentos.

Dessa forma, as questões ligadas à sexualidade não se restringem simplesmente àquelas relacionadas a sexo. Toniette (2004), tomando por base o documento Promotion of Sexual Health: Recommendations for Action, da Organização Pan-Americana de Saúde e da Organização Mundial de Saúde, com colaboração da Associação Mundial de Sexologia, afirma que a sexualidade envolve diversos aspectos presentes na vida das pessoas, tais como gênero, orientação do desejo sexual, vínculo emocional, atividade e práticas sexuais, entre outros.

Scott (1995) estudou o conceito de gênero desde que começou a ser utilizado, através de uma profunda análise histórica. Ela explica que gênero emergiu como uma categoria de caráter social, em resposta ao determinismo biológico que, exclusivamente, se encarregava de fazer a distinção entre os sexos (homem/ masculino e mulher/ feminino). Porém, como um aspecto historicamente constituído, o gênero ultrapassa a dicotomia macho/fêmea; vai além, pois faz ver o indivíduo enquanto ser social, permeado por suas experiências e atravessado por suas relações. A importância do campo social é também ressaltada por Louro (1997), pois "é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos" (p. 22). Os gêneros, segundo a autora, são construídos no âmbito das relações sociais, e as justificativas para as desigualdades só podem ser encontradas "nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação" (Louro, 1997, p. 22), e não simplesmente nas diferenças biológicas. Assim, conforme Scott (1995), da mesma forma que a sexualidade, o gênero não é limitado ou estável, mas está em constante movimento e construção.

Bem como o gênero, a orientação do desejo sexual e o vínculo emocional não são determinados pelo órgão genital e de acordo com o padrão heteronormativo. Esses aspectos dizem respeito ao direcionamento afetivo e sexual, ao desejo de cada pessoa. Conforme Toniette (2004), a orientação do desejo sexual pode ser expressa pela escolha d@ parceir@, através do envolvimento erótico e emocional. A orientação sexual pode configurar-se de diversas formas, sendo a homossexualidade uma delas.

Durante muito tempo @s homossexuais foram considerad@s pela medicina e pela psicologia como portadores de uma doença ou desvio comportamental. A homossexualidade é objeto de pesquisa desde o século XIX. Apesar da luta por sua despatologização existir há muito mais tempo, a homossexualidade foi retirada da lista internacional de doenças (CID 10) da Organização Mundial de Saúde apenas em 1993, sendo que, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina tomou essa decisão em 1985, conforme o site do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (2012).

Prado e Machado (2008) relatam que a homossexualidade esteve presente nas mais diversas sociedades em todos os períodos históricos, embora sua visibilidade seja maior hoje. Isso decorre, conforme os autores, da emergência de debates acerca do tema, especialmente no Brasil, visto que a não-heterossexualidade vem ocupando espaço na mídia, nas ruas, na cultura, e as lutas pela causa vêm crescendo significativamente. Porém, há ainda quem acredite que @s homossexuais podem ser mudad@s ou curad@s, que possuem uma perversão ou escolheram sua orientação sexual; são estigmatizad@s, estereotipad@s.

Segundo Goffman (1988), pode-se entender estigma como um defeito, uma característica pessoal dissonante daquilo que é esperado, ideal. Toledo (2007), baseando-se na obra de Goffman (1988), define estigma como:

uma relação entre atributo e estereótipo, profundamente depreciativo, não sendo em si honroso ou desonroso, mas que estigmatiza alguém confirmando a normalidade de outrem. Ou seja, inabilita o indivíduo para a aceitação social plena, e se concentra em dominar e oprimir alguns com vistas à obtenção de privilégios sobre estes. (Toledo, 2007, p. 87)

O conceito possui duas perspectivas: a do estigmatizado desacreditado, e a do desacreditável. O desacreditado, aponta o autor, é aquele cuja característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente, como, por exemplo, indivíduos que possuem algum tipo de deficiência física visível. A outra perspectiva, a do estigmatizado desacreditável, abrange características que não são perceptíveis imediatamente ou que são desconhecidas pelas outras pessoas, como é o caso d@s homossexuais.

A fim de encontrar apoio, ressalta Goffman (1988), é comum que os estigmatizados formem grupos com outras pessoas portadoras do mesmo estigma, tal como se pode observar em diversos grupos voltados ao acolhimento de homossexuais. Esse apoio também pode vir de pessoas "informadas", ou seja, dos "normais" (termo usado pelo autor para se referir àqueles que não são estigmatizados) com quem o estigmatizado desacreditável compartilha sua vida, e que acabam por simpatizar e aceitar com o estigma. "Os 'informados' são os homens marginais diante dos quais o indivíduo que tem um defeito não precisa se envergonhar nem se autocontrolar, porque sabe que será considerado como uma pessoa comum" (Goffman, 1988, p. 37). A família e @s amig@s que aceitam a orientação sexual d@ homossexual, por exemplo, podem ser considerados "informados". Por consequência, algumas dessas pessoas, em especial a família, acabam adquirindo certo grau do estigma, por vezes tendo que lidar pessoalmente com o descrédito do estigmatizado com quem se relacionam, como se el@s próprios fossem portadores do estigma.

Tendo em vista a construção histórica da homossexualidade, a heteronormatividade vigente, a estigmatização desses indivíduos, entre outros aspectos, é um tanto compreensível a reação negativa da maioria das mães e dos pais ante a revelação da homossexualidade d@ filh@. Entretanto, a sexualidade d@s filh@s, bem como os demais âmbitos de suas vidas, faz parte do cotidiano parental, e a relação das crianças com esse aspecto é influenciada pelo modo como é tratado no ambiente doméstico. Com as recorrentes mudanças nas estruturas familiares (Dias & Gomes, 1999), criou-se mais espaço para o diálogo entre mães, pais e filh@s, sendo a sexualidade um tema abordado com mais frequência por ambas as partes. Porém, ainda é predominante a quantidade de pais e mães que não abrem espaço para o diálogo, seja por sentirem-se despreparados, seja por ignorarem o assunto.

Contudo, independentemente da forma como é tratada, a sexualidade está presente na vida de cada indivíduo, evidenciando-se durante a adolescência, pois é nessa fase que ocorre o "despertar do erotismo, o que a faz um período delicado no qual poderá surgir um aumento de conflitos entre pais e filhos" (Almeida & Centa, 2009, p. 72). Se o "despertar da sexualidade" por si só já causa um desequilíbrio no ambiente familiar, a presença de um filho ou filha homossexual, que, na maioria das vezes, toma consciência de sua orientação sexual nessa fase, acaba por acentuar ainda mais esses conflitos. A reação inicial e a maneira de enfrentamento são particulares de cada pai e de cada mãe, mas podem ter elementos em comum.

Costantin (2011), apoiando-se no trabalho de Modesto (2008), expõe seis etapas vivenciadas por mães e pais de homossexuais: descoberta, luto, negação, defesa, conformação e aceitação. Conforme explica a autora, não há uma regra geral, já que cada indivíduo é singular. Além disso, a aceitação plena por parte das mães e dos pais não se dá em todos os casos. Ela ainda é, para a maioria das pessoas homossexuais, uma utopia, algo que, infelizmente, está muito distante da realidade, tendo em vista os aspectos discutidos anteriormente. Pode-se afirmar que não se trata de um processo fácil, para ambos os lados: assim como há o sofrimento dos pais e das mães, há também o sofrimento d@ filh@.

Assim, a pesquisa apresentada teve o propósito de desvelar as dificuldades do processo de aceitação de um filho ou filha homossexual por suas mães. O objetivo central foi compreender de que forma se dá o processo de aceitação de um filho ou filha homossexual por parte de sua mãe, e se desdobra em: (a) investigar os fatores que influenciaram a aceitação, (b) perceber o que mudou na relação entre mãe e filh@ após a revelação da homossexualidade, (c) investigar se as concepções das mães acerca da homossexualidade mudaram em decorrência da aceitação e, por fim, (d) perceber como as mães concebem a homossexualidade e as relações de gênero.

 

Metodologia

A pesquisa em tela foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual do Centro-Oeste. As três participantes, mães de homossexuais, foram convidadas a dar entrevista após assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e sanarem todas as dúvidas relacionadas aos procedimentos da pesquisa. Informações importantes, como a participação voluntária sem nenhum tipo de remuneração ou benefício, a possibilidade de desistência a qualquer momento e sem acarretar prejuízos, garantia de sigilo, entre outras, foram esclarecidas a todas as entrevistadas. As participantes foram escolhidas por indicação de estudantes da Universidade onde a pesquisa foi realizada e o critério para participação era ser mãe que autodenomina aceitar a homossexualidade de filh@ que se autodenomina de orientação homossexual. Por tratar-se de um estudo sobre estas dimensões subjetivas e sobre as narrativas destas pessoas, decidiu-se considerar a autodenominação como critério.

O pequeno número de participantes justifica-se por se tratar de uma pesquisa qualitativa, na qual o foco está nas subjetividades de cada entrevistada, e não na preocupação em obter generalizações e números, como ocorre em pesquisas quantitativas. Segundo González Rey (2002), "o conhecimento científico, a partir desse ponto de vista qualitativo, não se legitima pela quantidade de sujeitos a serem estudados, mas pela qualidade de sua expressão" (p. 35). Conforme apontam Martins e Bicudo (1994), a pesquisa qualitativa "busca uma compreensão particular daquilo que se estuda.... O foco da sua atenção é centralizado no específico, no peculiar, no individual, almejando sempre a compreensão e não a explicação dos fenômenos estudados" (p. 23). Dessa forma, tendo o humano como objeto de estudo, considera-se que:

diante dele o pesquisador não pode se limitar ao ato contemplativo, pois encontra-se perante um sujeito que tem voz, e não pode contemplá-lo, mas tem de falar com ele, estabelecer um diálogo com ele. Inverte-se dessa maneira, toda a situação, que passa de uma interação sujeito-objeto para uma relação entre sujeitos. (Freitas, 2002, p. 24)

Assim, a relação entre pesquisadora e participantes aconteceu através da interlocução, o que implicou numa troca de discursos, com aspectos objetivos e subjetivos. As falas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas de forma literal, a fim de não perder nenhum dado. Utilizou-se o modelo de entrevista narrativa, deixando que as entrevistadas ficassem à vontade para abordar outros pontos que julgassem pertinentes, sem perder o foco da pesquisa. Realizamos a entrevista narrativa na forma individual, tendo as três participantes narrado sua experiência a partir de uma questão disparadora sobre como foi seu processo de aceitação da homossexualidade de sua/seu filh@. A partir da história narrada pela mãe, foram sendo inseridas questões no sentido de dirimir dúvidas acerca do que foi dito, o que constitui o material empírico da pesquisa. Cada entrevista durou cerca de uma hora e meia.

Considerando a riqueza de detalhes presente nos discursos das participantes, optou-se por trabalhar com os dados sob a perspectiva da pesquisa narrativa. As entrevistas foram reorganizadas pela pesquisadora no formato de narrativas, com os fatos apresentados na ordem cronológica. A narrativa, segundo Benjamin (1987),

é uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (p. 205)

Porém, a experiência não se acaba quando narrada; ela vai se recriando, se aperfeiçoando e se re-significando à medida que é contada. O discurso reflete o que foi vivido, e a narrativa torna-se uma interpretação da experiência do narrador, pois está permeada por sua subjetividade. Nesse contexto, o interlocutor participa ativamente, é sensibilizado e atribui significados à experiência de quem fala, assimilando-os com suas próprias experiências (Dutra, 2002). "O investigador que utiliza o método da narrativa as descreve e faz construção e reconstrução das histórias pessoais e sociais, de acordo com um modelo interpretativo dos acontecimentos" (Carter, 1993, citado por Galvão, 2005, p. 328).

A impossibilidade de descolar a experiência narrada da subjetividade do narrador é o ponto chave do processo da análise narrativa, visto que é a interpretação feita por ele que conduz a apreciação do que foi dito. "A análise narrativa pressupõe a exploração não só do que é dito, mas também de como é dito. Olha-se para o conteúdo e para a forma, podendo examinar-se o modo figurativo como a linguagem é usada" (Galvão, 2005, p. 335).

 

Narrativas de Aceitação

A partir dos dados colhidos nas entrevistas realizadas com mães de homossexuais, a pesquisadora construiu as narrativas apresentadas a seguir. Todos os nomes presentes no texto foram trocados a fim de preservar a identidade das pessoas envolvidas.

A Narrativa de Neuza: "O Ser Humano é Imprevisível"

Viúva há quinze anos, Neuza criou as três filhas sozinha. Deixou sua vida pessoal de lado para se dedicar exclusivamente às meninas, que já são adultas. Formada em Pedagogia, atuou como conselheira tutelar mediando todo tipo de situação, inclusive entre adolescentes homossexuais e seus pais. Porém, ela não esperava sentir na pele o drama dessas famílias.

Ainda na adolescência, Sabrina, a filha mais nova, começou a conviver com um grupo de meninas que jogavam futebol, e Neuza ficou preocupada com a possível influência do grupo sobre ela. Apesar de ser tranquilizada por amig@s, ela continuava inquieta, especialmente quando começou a perceber a relação muito próxima de Sabrina com uma amiga em particular: "era uma amizade assim... mãe conhece, né". A outra filha, Roberta, embora já tivesse se relacionado com rapazes, também lhe trazia certa desconfiança.

A "amiga" de Sabrina ia à casa da família com muita frequência, e Neuza já estava quase certa de que essa amizade estava mais colorida do que o comum. Embora tivesse uma relação aberta com as filhas, nenhuma das duas, nem Sabrina, nem Roberta, tomou a iniciativa de falar sobre sua homossexualidade. "Eu só fiquei triste nesse sentido. Elas apresentaram como amiga, não falaram que era namorada". Mesmo com certo receio e muito constrangimento, Neuza resolveu conversar com as meninas.

Após confirmar a suspeita, o apoio de uma amiga foi essencial. "Não foi fácil. Eu fiquei tentando entender, encaixar essa situação na minha vida". Através das conversas com a amiga e da participação no cotidiano das filhas, a mãe foi conseguindo entender e aceitar a homossexualidade das meninas. "Até você se adaptar, se acostumar a ver tua filha beijando outra menina... Você que foi criada nos padrões em que mulher tem que se relacionar com homem, e homem com mulher".

Em alguns momentos, Neuza pensou ser responsável pela orientação sexual das filhas, já que elas cresceram apenas sob os seus cuidados. "Eu não me casei novamente pra não tirar a liberdade delas dentro de casa. Então eu fiquei me perguntando: 'será que eu não contribuí pra isso?'".

A relação entre mãe e filhas mudou apenas no sentido da cobrança, já que, para Neuza, é essencial que elas assumam a responsabilidade de estar em um relacionamento, seja ele hetero ou homossexuais.

Eu falei pra elas: "A partir da hora que você traz uma namorada e está praticamente morando junto, sob o meu teto, você tem que assumir essa responsabilidade". Nessa época, a Sabrina ainda era menor de idade, mas a Roberta não; aí eu disse: "eu estou aqui se precisar de apoio, mas siga teu rumo, crie uma estrutura, seja capaz de se sustentar".

A mãe ainda enfrentou a reprovação da família: "vem cobrança, vem filha cobrando, e irmãos também. Pra todos meus irmãos foi uma surpresa, porque tem evangélico, e outras religiões que não admitem isso". A filha mais velha e

o genro sugeriram expulsar Sabrina e Roberta de casa, mas ela manteve-se o tempo todo ao lado das meninas, procurando compreender: "não vou jogar pra fora de casa, elas não deixaram de ser minhas filhas".

A aceitação e o apoio que dá às filhas são, para Neuza, fundamentais. "Se eu não aceitasse, imagine como elas iriam se resolver. Eu não ia querer que elas ficassem sofrendo só porque escolheram transar com mulher".

A Narrativa de Luiza: "Ele é Desse Jeito, e Daí? É Meu Filho!"

O nascimento de Eduardo foi a realização de um sonho para Luiza, que já tinha três meninas e um enorme desejo de ter um filho homem. Trabalhando como diarista, divorciou-se há 19 anos, ficando responsável pelo cuidado das filhas e do filho, que desde pequenininho era "diferente". Apesar de sempre ter tido amig@s homossexuais, ela jamais imaginou ter um filho gay.

Luiza ficou sabendo da homossexualidade do filho caçula quando ele tinha 17 anos. Certa noite, ao chegar em casa, ela percebeu que Eduardo estava com alguém no quarto, e então começou a ligar os fatos. Seu filho nunca levava mulheres para casa e, além disso, ao entrar em casa, Luiza percebeu que havia um calçado masculino do lado de fora, que não era de Eduardo. "Eu fiquei bem louca, queria arrebentar a porta do quarto, o cara teve que pular a janela, teve que fugir de mim".

O choque fez com que ela procurasse conforto na bebida. "Foi insuportável, eu chorava, fiquei louca". Eduardo sempre tentava conversar com a mãe, que não queria entender e até ameaçou deixar a casa e abandoná-lo. Entretanto, com o passar do tempo, Luiza foi compreendendo e ficando mais tranquila. As conversas e o apoio das filhas e do atual marido foram fundamentais para a aceitação.

Luiza acredita que a homossexualidade é inata, já que Eduardo apresentava comportamentos "diferentes" desde criança. "Eu sabia, mas não enxergava". Por vezes, pensou que pudesse ter influenciado na orientação sexual do filho pois, durante a gestação de Eduardo, ela pensava que teria mais uma filha mulher. "Eu acho que era de tanto que eu queria um homem que me deu mais uma mulher".

Hoje, sua maior preocupação é que façam mal a seu filho, pois sabe do preconceito existente na sociedade. "Eu tenho medo pelo que eu vejo na televisão, tem muitos lugares que matam gays, e mexem, e fazem o que querem". A relação entre mãe e filho, após a aceitação, mudou para melhor. "Ele é assim, mas é um filho de ouro".

A Narrativa de Regina: "A Gente Pensa que na Nossa Família Nunca Vai Acontecer"

"A gente pensa que na nossa família nunca vai acontecer". Essa era a percepção de Regina acerca da homossexualidade antes de saber sobre Cássio, seu filho mais velho. Junto com a irmã, ele foi criado apenas pela mãe, que se divorciou quando os dois ainda eram pequenos.

O pai de Cássio nunca teve participação direta em sua vida, de modo que Regina sentia falta de uma figura masculina de referência para o filho. "Ele não teve o apoio do pai dele, um apoio masculino". Com a casa constantemente cheia de amigas da mãe, Cássio cresceu cercado por mulheres. "Talvez se ele tivesse tido um pai presente na infância isso seria diferente".

Quando mais jovem, Cássio vivia em outra cidade, onde ficou noivo de uma moça; porém, o relacionamento terminou, e ele voltou a morar com sua mãe, que havia se casado novamente e tido mais dois filhos. Regina não compreendeu o motivo do término do noivado, mas preferiu deixar que o filho se sentisse à vontade para falar, não perguntando nada a respeito. Nessa época, ela notou que Cássio estava muito triste, pois pouco conversava em casa, preferindo isolar-se. "Eu achava que era por essa desilusão que ele teve com a namorada".

Contudo, Regina começou a perceber que Cássio estava diferente. "O modo de ele agir, eu percebi que ele estava com um ar meio afeminado". Sua filha mais velha, que já sabia da homossexualidade do irmão, sugeriu que a mãe falasse com ele, e foi o que ela fez. "Quando eu cheguei do trabalho, perguntei pra ele o que estava acontecendo. Ele não olhou diretamente pra mim, mas disse: 'mãe, tenho uma coisa pra te contar'". Após a revelação, ela ficou em choque. "Eu não sabia o que responder, fiquei muda, não consegui falar nada pra ele". O alívio veio quando seu marido chegou em casa, pois Regina precisava contar para alguém. "Eu estava com aquilo guardado dentro de mim e não podia soltar, eu me desesperei". No outro dia, ela ainda procurou uma amiga para conversar, encontrando apoio e consolo.

A mãe sentia-se um tanto culpada, pois pensava ser responsável pelo abuso sexual que Cássio sofreu de um vizinho quando tinha oito anos, o que soube apenas recentemente. Ela acreditava que esse fato, somado à ausência do pai, possa ter influenciado na orientação sexual de seu filho. Entretanto, aos poucos Regina foi retirando de si a culpa. "Eu estava me culpando por esse acontecimento, mas se o Cássio tivesse me contado no mesmo dia talvez tivesse resolvido de outra maneira. Mas também pode ser que seja o destino dele ser homossexual".

Com a aceitação da mãe, o que Regina considera fundamental para o bem do filho, a relação entre eles mudou para melhor. "Teve mais aproximação, a gente se tornou mais amigo. Hoje ele se abre comigo, ele confia em mim. Já não sinto aquela dor por dentro de escutar o que ele tem pra me contar".

As narrativas mostram processos de aceitação marcados por sofrimento e superação, com características semelhantes e, ao mesmo tempo, singulares. Ao investigar os fatores que influenciaram a aceitação, conforme o primeiro objetivo da pesquisa, foi possível perceber que o processo de aceitação se delineou a partir da causa que as mães atribuíram para a homossexualidade d@s filh@s. Entender e aceitar o fenômeno implica em conhecê-lo, nomeá-lo, e neste processo torna-se fundamental conferir-lhe uma causa, embora "a orientação sexual humana seja complexa e diversamente influenciada" (Abdo, 1997, p. 134). A partir da hegemonia heterossexual, qualquer manifestação que fuja à norma padrão é considerada errada. As mães precisam encontrar o ponto a partir do qual seus filh@s tomaram o caminho contrário, precisam ter um ponto de apoio, saber quem ou o que culpar para, só então, conseguirem iniciar o processo de aceitação. Como discute Butler (2003), na sociedade, a heterossexualidade é compulsória, toda a conduta que se mostra distinta da lógica das relações heterossexuais é considerada desvio e, logo, trará dificuldades na vida das pessoas, que terão que viver fora do padrão de normalidade posto, que é o da heterossexualidade. Neste sentido, Louro (1997, 2004) e Scott (1995), autoras que trabalham no escopo das teorias feministas, já denotam que a discussão sobre a dimensão do gênero é mais ampla que o binarismo masculino/feminino, tendo a necessidade de compor o aspecto da heteronormatividade como ponto essencial para a ampliação teórica sobre o tema, para recolocar as múltiplas formas do devir homem e do devir mulher em outro ponto, também no das formas normatizadas de vivências da orientação sexual.

É interessante notar que as três entrevistadas explicaram a origem da homossexualidade de formas distintas, abarcando as esferas biológica, psíquica e social, predominando a última, e que essa explicação se deu através do modo como perceberam @s filh@s enquanto homossexuais. Ao mesmo tempo em que acredita ser uma opção, Neuza disse que a filha tornou-se homossexual através da influência exercida pelo grupo de amigas e pela prima.

Eu comecei a desconfiar, sabe, observar a partir da convivência de uma delas, a mais nova principalmente.... A partir de uma altura da adolescência ela começou a conviver com meninas, assim, que conviviam... Porque tem aquele preconceito do esporte, a menina que gosta de jogar bola, de isso e aquilo, é sapatão, é isso. Só que ela começou a conviver, daí eu disse "será que isso vai interferir, vai influenciar?"... Tanto que tem uma sobrinha minha que também é, e até acho que foi a partir da convivência com essa minha sobrinha que a minha filha se identificou, e daí eu comecei a perceber. (Neuza)

Além disso, a mãe acredita que o fato de as filhas não terem crescido numa família "padrão" possa ter contribuído para se tornarem homossexuais.

Eu fiquei viúva faz quinze anos.... Eu não casei novamente pra não tirar a liberdade delas. Porque a partir do momento que eu achei que eu amasse um homem que nem foi com o pai delas, por mais que eu confiasse e trouxesse pra dentro de casa, que elas são umas meninas bonitas, três ainda. E como que eu vou, meu Deus.... Mas daí eu pensei: "eu vou tirar a liberdade delas aqui dentro de casa". E aí eu fiquei me perguntando: "será que eu não contribuí pra isso?" (Neuza)

A influência também aparece no discurso de Luiza, porém, de outra forma, misturando-se ao fator biológico. No entanto, isso se justificou pelo fato da mãe acreditar que estava grávida de uma menina.

"Eu vivia dizendo, quando estava grávida: 'com certeza vai vir mais uma menina', porque eu já tinha três. Quem sabe foi isso também, que aí foi trocado... não veio piá e não veio menina" (Luiza).

Por outro lado, Regina explica a homossexualidade do filho baseada principalmente no fator psíquico, como resultado do trauma por ter sido abusado sexualmente, junto ao social, caracterizado pela ausência da figura paterna na infância.

Quando ele tinha oito anos, eu já era separada. Aí, então, eu tava trabalhando nesse dia, ou eu tinha saído com uma amiga minha... e ele ficou em casa com a irmã. E essa amiga minha tinha dois filhos homens, e a gente morava no mesmo terreno, só que tipo, eu confiava, né... E foi o mais velho e abusou dele. Só que nunca ele me contou. Ele veio me contar agora, depois de dias... Aí então eu também acho que eu tava me culpando por esse acontecimento. (Regina) Eu acho que no caso dele foi um trauma. Talvez até uma carência. Talvez tenha sido isso: a falta de uma parte masculina. Porque ele foi criado por mim, e ele nunca teve um apoio masculino, nunca teve o apoio do pai dele, nunca teve.... O pai dele não teve participação nenhuma na infância dele. Então eu acho que... e, talvez, ele tinha mais contato comigo. E depois que eu me separei, minha casa era cheia de amigas. Então ele toda vida esteve só com mulheres. Então o que ele escutava, o que ele via, era só feminino mesmo, participação masculina ele não teve nenhuma. (Regina)

A ausência da figura paterna na infância é um ponto crucial para Neuza e Regina explicarem a homossexualidade d@s filh@s, pois, para elas, faltou uma referência masculina com quem o menino pudesse se identificar e a partir da qual as meninas pudessem se diferenciar. Já Luiza, embora também tenha cuidado do filho sem a presença do pai, não utiliza esse argumento como explicação pois, para ela, Eduardo "nasceu assim".

Mesmo atribuindo causas diferentes para a homossexualidade d@s filh@s, com fatores alheios ao seu controle, as mães sentiram-se culpadas em algum momento. Como apontam Badinter (1986) e Toledo (2007), numa sociedade como a Ocidental, em que a mãe tem o papel de cuidadora no interior da família, na criação d@s filh@s, a culpa torna-se muito comum, pois pode significar uma expectativa frustrada de cumprimento de seu papel. Além d@ filh@ desviar do papel esperado, é também a mãe que desvia.

Porém, com a conformação (Costantin, 2011), a culpa é retirada de si.

"Mas, ao mesmo tempo, eu fiquei pensando que tem famílias que seguem os padrões e também têm filhos assim" (Neuza).

Eu acho assim, que posso até ter tido culpa, mas não é o fato de ele ter escondido de mim isso daí [abuso]... Se ele tivesse me contado no dia talvez tivesse resolvido de outras maneiras. Ou, sei lá, se é o destino dele ser homossexual. (Regina)

Neste sentido, é importante também ressaltar que estas explicações que se referem, como colocado à sua culpabilização (Badinter, 1986) em relação a este desvio, conforma-se com o que foi apontado acima sobre a questão da heteronormatividade (Butler, 2003; Louro, 1997, 2004; Scott, 1995), pois se faz necessário, de alguma forma, elaborar um discurso sobre @ filh@ desviante, explicar, por algum tipo de discurso (biológico, social ou psicológico) a subjetividade do ente querido, elaborando o sofrimento de ter @ filh@ desviante de estar numa sociedade que determina padrões de conduta heteronormativos.

Isentas da culpa, as mães começam a encarar a homossexualidade como algo natural d@s filh@s, algo que era obra do destino. Foi possível perceber o que mudou na relação entre mães e filh@s após a revelação da homossexualidade, bem como a mudança da concepção de homossexualidade por parte das mães. Elas passam de estigmatizadoras a "informadas" (Goffman, 1988), tomando para si um pouco do estigma, e procurando proteger @s filh@s, principalmente em relação ao preconceito social. O desviante não se torna apenas familiar, pois passa a ser visto como que necessitando de apoio, proteção.

"Porque às vezes tem bastante preconceito, né. E hoje em dia eu não aceito, porque se eu ver alguém falando dele eu brigo" (Luiza). "A minha preocupação é mais isso, mais nesse sentido da sociedade, sabe. Questão da profissão também, dependendo, as pessoas são preconceituosas na questão profissional" (Neuza).

Olha, ele viaja, mas é o dia inteiro que eu tenho que conversar, eu tenho um cuidado dele, eu tenho medo. Por que eu vejo televisão, tem muitos lugares que matam gays, e mexem, e fazem o que querem, que tem muito preconceito. Então eu fico muito preocupada quando ele viaja. É quando ele liga pra mim, que eu to escutando a voz dele, que daí eu fico sossegada. (Luiza)

A delimitação dos papéis de gênero também aparece de forma significativa nas entrevistas, possibilitando a percepção do modo que as mães concebem homossexualidade e as relações de gênero, conforme descrito no quarto objetivo. São citados aspectos como brincadeiras, formas de se vestir e se comportar, e características da personalidade "próprias" de cada sexo.

"A menina que gosta de jogar bola, de isso e aquilo, é sapatão" (Neuza).

"Até hoje ele não gosta de futebol, nunca gostou de futebol. Ele nunca foi de pegar um carrinho e brincar" (Regina).

"Tem fotografia dele ali, é toda vida com o pezinho, todo tortinho, sabe, era safadinho desde criança. Só que eu cuidava dele ali, atendia ele como meu piá, né, meu homem. Mas foi pra ser assim, fazer o quê" (Luiza).

"Além de tudo, ele se torna mais carinhoso" (Regina).

O binarismo de gênero e a oposição entre os sexos são ainda muito marcantes na sociedade atual (Louro, 1997, 2004). A ausência ou "troca" dessas características são motivos para desconfiança, pois há uma imensa preocupação em distinguir e definir o que é ser homem e ser mulher, e a homossexualidade coloca essa delimitação de papéis em xeque. Porém, "ser agressiva, racional e objetiva, assim como dirigir caminhões e utilizar calças largas não significa que uma mulher seja lésbica, tampouco um homem ser sensível, frágil ou gostar de cozinhar e balé diz da sua orientação sexual" (Toledo, 2007, p. 89). Apesar disso, as mães mostraram-se preocupadas com o jeito através do qual @s filh@s se mostram.

Ele não se expõe muito, ele não é aquela pessoa assim que, que sai ali na rua e ta se expondo, que nem... Eu falei: "tudo bem, pode fazer o que você quiser, mas seja discreto, não precisa chamar a atenção". Porque tem pessoas que... Até tem um amigo que ele é [homossexual], dá, assim, pra você ver. Então, até o jeito dele falar, o jeito dele agir assim, sabe, os modos dele, dá pra você ver no ato. Aí, que nem, o Cássio já não, ele já é mais cauteloso, já é mais pra quatro paredes mesmo. (Regina)

Só uma coisa eu disse pra elas: "vocês querem fazer... ou ter a vida homossexual, vocês são mulheres. Nada de querer se vestir igual homem, né, porque..." Não é preconceito, sabe, mas eu acho ridículo. Eu acho que você pode ser homossexual, mas não precisa você querer usar... que nem homem, se vestir que nem homem.... Tem que ter uma certa postura, até porque a sociedade vai cobrar, e é mais bonito. Fica mais bonita, fica mais fácil também. (Neuza)

A cobrança da sociedade a que Neuza se refere diz respeito ao papel social delimitado e oposto para mulheres e para homens, dos comportamentos e formas de expressão entendidos como próprios de cada um. Se ser homossexual já é ser desviante, uma mulher homossexual que se veste com "roupas para homem" é mais desviante ainda. Nesse sentido, o discurso de Neuza deixa claro que quanto menos desviantes da norma suas filhas forem, melhor.

Luiza se refere ao filho ora com "menina" e "mulher", ora como se ele não se encaixasse em nenhuma categoria: "não veio piá e não veio menina". Aqui fica clara a representação de homem e masculino, pois, para que seu filho fosse homem, deveria ser heterossexual.

É muito comum no imaginário social se pensar a homossexualidade juntamente com uma inversão dos papéis sexuais, a identificação da mulher com o masculino e do homem com o feminino. Este é o mito social de que gays são afeminados e lésbicas são masculinizadas, todavia, os papéis sexuais são tão diversos na homossexualidade quanto o são na hetero ou na bissexualidade. (Toledo, 2007, p. 89)

Porém, essa concepção não é compartilhada com Regina: "no início é muito difícil, principalmente pra uma mãe, ou talvez um pai que seja um pai moralista, daqueles que quer um filho ali, homem, mas nem por isso ele deixa de ser". Para ela, a homossexualidade de Cássio não o torna menos homem. Cabe ressaltar que Eduardo, filho de Luiza, é afeminado, ao contrário de Cássio, filho de Regina, o que pode sugerir o motivo da divergência de opinião das mães.

Como asseveram Prado e Machado (2008), a invisibilização d@ desviante, num processo que @ aproxima da normalidade, favorece que as subjetividades homossexuais estejam menos aparentes e sejam mais aceitas nos meios sociais. Estas mães buscam, em suas tentativas de proteção, deixar menos aparentes estas características e, ao mesmo tempo, realizam um processo de elaboração, por meio da informação e da vivência, deste processo para elas, na relação com @s filh@s. Mesmo que pessoas homossexuais não possam ser padronizadas em um único tipo de conduta (Toledo, 2007), há, de um lado, a tentativa da invisibilização e, de outro, de aceitação e compreensão do processo acontecendo conjuntamente.

Durante o processo de aceitação, o apoio de amig@s e familiares foi fundamental para as entrevistadas, principalmente no início. Ter alguém para desabafar, alguém que se solidarize com a situação, torna o processo mais fácil.

Eu dei graças do meu marido chegar, sabe, pra eu poder desabafar, que eu tava com aquilo guardado dentro de mim e não podia soltar, eu não sabia o que fazia. Mas na hora que eu contei pro meu marido eu me desesperei. Chorei tudo o que eu tinha que chorar, e ele me consolou, falou um monte. (Regina)

"Eu procurei uma amiga minha... Daí eu comentei tudo isso, do que eu achava, do que te falei, né. Mas mais pra desabafar mesmo" (Neuza).

"Conversei com as minhas filhas mesmo. Mas só que, quando eu descobri, demorou ainda pra aceitar, porque eu não podia olhar pra ele. Daí as meninas: 'mas largue mão, você não percebia? Dava pra ver'" (Luiza).

Para conseguirem aceitar, as mães tiveram que enfrentar o preconceito social incutido nelas mesmas, e percebem o valor de sua aceitação para @s filh@s.

"E falei uma vez pra ele que eu ia sumir de casa, abandonar ele. Mas só que o coração de mãe é mais mole" (Luiza).

Se eu não aceitasse, imagine como que elas vão se resolver também. Vão sofrer, porque independente do que... eu sei que elas me amam.... E eu tenho a minha forma de demonstrar que eu amo elas, elas sabem. Então eu não ia querer que elas ficassem sofrendo porque elas escolheram transar com mulher. (Neuza)

Mas eu acho que a gente se tornou mais amigo, porque hoje ele se abre comigo, sabe. A gente se dá bem, ele confia em mim, conversa, me conta as coisas, eu escuto. Já não sinto aquela dor por dentro de escutar as coisas que ele tem pra me contar.... A minha aceitação eu acho que é o principal pra ele, que a gente, mãe ou pai, a gente é a base pros filhos. Então agora pense eu não aceitar ele como e ele é. Ele vai pedir apoio pra uma outra pessoa, e será que essa pessoa vai apoiar o certo pra ele? (Regina)

As homossexuais que têm o apoio da família conseguem lidar com sua sexualidade mais facilmente, já que el@s, não com menos sofrimento, também vivenciam o processo de aceitação. Como aponta Modesto (2010), existe uma diferença de temporalidade entre os processos de aceitação de mães e filh@s. Enquanto filh@s vivenciam a sua homossexualidade processualmente, num movimento de descoberta, as mães geralmente vivem este momento mais pontualmente. Esta diferença é bastante importante para compreender a aceitação das mães desta pesquisa que passaram a elaborar dando-se conta de um fenômeno que, para elas, tratava-se de uma outra realidade.

É também por esse motivo que as mães e os pais tomam um choque ao saber da homossexualidade d@ filh@, mesmo que, como no caso de Luiza, o filho já se apresente "diferente" desde criança, pois a heteronormatividade (Butler, 2003) não permite o vislumbre de outras possibilidades.

 

Considerações Finais

Com a realização da pesquisa pode-se perceber as dificuldades que fazem parte do processo de aceitação da homossexualidade d@s filh@s. Um dos pontos que pode ser destacado é a dificuldade em lidar com o desvio da orientação sexual em relação à heterosexualidade compulsória (Butler, 2003). A perspectiva do estudo das relações de gênero (Louro, 1997, 2004; Scott, 1995) apontam que este aspecto é muito importante para desmistificar o binarismo homem-mulher construído na sociedade contemporânea.

Este processo do desvio se desdobra para a questão da invisibilidade (Prado & Machado, 2008), que é hierarquizada de acordo com o que é mais ou menos desviante e, de certa forma, passa pela postura muitas vezes adotada pelas mães, em sua preocupação com o sofrimento d@s filh@s homossexuais. O processo de culpabilização (Badinter, 1986) atua no sentido de que há uma outra construção social - que também envolve as relações de gênero e o binarismo de gênero (Louro, 1997, 2004; Scott, 1995) - que é o de ser mãe. O processo de culpabilização vai se elaborando à medida em que estas mães buscam explicações, sejam de ordem biológica, social ou psicológica, sobre a homossexualidade d@s filh@s, promovendo a sua aceitação.

Assim como já elucidado por outros estudos (Costantin, 2011; Modesto, 2010; Prado & Machado, 2008; Toledo, 2007) fica clara a necessidade de aumentar a discussão acerca do papel da mãe no processo de vivência da homossexualidade, pois ainda são muitos os estereótipos e preconceitos direcionados aos desviantes da norma, que se evidenciam nas narrativas também deste estudo. Para além dos meios acadêmicos, foi pauta também deste estudo relacionar as discussões da Psicologia com os Estudos de Gênero (Butler, 2003; Louro, 1997, 2004; Scott, 1995), a fim de ampliar a discussão e a construção de entendimentos, desde uma mirada da psicologia para um olhar psicossocial.

Ainda muito incipiente, estes estudos podem desdobrar-se em outras pesquisas sobre o tema, delimitando como foco outras mães, pais, famílias inteiras, tendo a narrativa como escolha metodológica, que possibilitou o encontro e o respeito a um processo de elaboração que gera sofrimento, como pôde-se observar nos resultados aqui apresentados.

 

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Endereço para correspondência:
Rafael Siqueira de Guimarães
PR 153, Km 7, Riozinho
Irati, PR, Brasil 84500-000
E-mail: mariane.h@ hotmail.com e rafaorlando@gmail.com

Recebido: 11/06/2013
1ª revisão: 08/07/2014
Aceite final: 08/08/2014

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