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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.23 no.4 Ribeirão Preto dez. 2015

https://doi.org/10.9788/TP2015.4-14 

ARTIGOS

 

Representações sociais de conjugalidade e fibromialgia: desdobramentos na dinâmica conjugal

 

Social representations of marriage and fibromyalgia: developments in marital dynamics

 

Representaciones sociales del matrimonio y la fibromialgia: desarrollos en la dinámica conyugal

 

 

Danielle Constancia Felício MacedoI; Priscilla de Oliveira Martins-SilvaII; Maria Bernadete Renoldi de Oliveira GaviIII; Ana Paula Dias MacedoIV

IPrograma de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
IIDepartamento de Administração da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
IIIHospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
IVDepartamento de Recursos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A fibromialgia consiste em uma doença caracterizada, entre outros sintomas, por dor generalizada, fadiga, sono não reparador, apresentando etiologia complexa e resposta incerta ao tratamento. Tais características podem precipitar o surgimento de sentimentos de vulnerabilidade capazes de impactar a rotina familiar dos doentes. Diante disso, o presente trabalho objetiva compreender e analisar, na perspectiva da Psicologia Social, como as representações sociais (RS) de mulheres com fibromialgia e de seus respectivos cônjuges sobre conjugalidade e sobre a própria condição de adoecimento estão articuladas a sua dinâmica conjugal. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa que realizou entrevistas com quatro casais em que as esposas são diagnosticadas com fibromialgia. Os participantes também responderam a um questionário sociodemográfico. Para a análise dos dados empregou-se a técnica análise de conteúdo que desvelou uma ampla rede de significações acessada pelos participantes nos processos de ancoragem das RS de fibromialgia e de conjugalidade, contendo elementos como: o amor; os papéis masculinos e femininos; o adoecer e o cuidar; a fibromialgia e seus desdobramentos na rotina do doente e sua família. Por fim, constatou-se a existência de um campo de fragilidade das mulheres com fibro-mialgia e pessoas próximas a elas no processo de enfrentamento da doença. Faz-se necessário que os serviços de saúde atuem precocemente no esclarecimento sobre a doença e na identificação de possíveis conflitos no âmbito familiar e conjugal que podem ser desencadeados tanto na investigação diagnóstica como no decorrer do tratamento e nas particularidades da convivência diária com a doença.

Palavras-chave: Fibromialgia, conjugalidade, representações sociais.


ABSTRACT

Fibromyalgia consists of a disease characterized among other symptoms by widespread pain, fatigue, non-restorative sleep, and complex uncertain etiology and response to treatment. Such characteristics may precipitate the emergence of feelings of vulnerability capable of impacting the familiar routine of patients. Therefore, this study aims to understand and analyze, from the perspective of Social Psychology, such as social representations (SR) of women with fibromyalgia and their spouses on conjugality and about the condition of illness are linked to their marital dynamic. This is a qualitative study that conducted interviews with four couples in which the wives are diagnosed with fibromyalgia. Participants also completed a sociodemographic questionnaire. For the data analysis was employed the technique of content analysis which unveiled an extensive network of meanings accessed by participants in the processes of anchoring of RS of fibromyalgia and conjugality, containing elements such as: the love; the male and female roles; the sick and caring; the fibromyalgia and its consequences in the routine of the patient and his family. Finally, we found the existence of a field of fragility of women with fibromyalgia and those close to them in the process of coping with the disease. Necessary to make the health care act early in information about the disease and the identification of possible conflicts in family and marital framework that can be triggered both in the diagnostic investigation and in the course of treatment and the particularities of daily living with the disease.

Keywords: Fibromyalgia, conjugality, social representations.


RESUMEN

La fibromialgia consiste en una enfermedad que se caracteriza entre otros síntomas por dolor generalizado, fatiga, sueño no reparador, y compleja etiología incierta y respuesta al tratamiento. Tales características pueden precipitar la aparición de sentimientos de vulnerabilidad capaz de impactar en la rutina familiar de los pacientes. Así, este estudio tiene como objetivo comprender y analizar, desde la psicología social, como las representaciones sociales (RS) de las mujeres con fibromialgia y sus cónyuges en el matrimonio y sobre la condición de la enfermedad están vinculados a su dinámica conyugal. Se trata de un estudio cualitativo que realizó entrevistas con cuatro parejas en las que las mujeres son diagnosticadas con fibromialgia. Estos también completaron un cuestionario sociodemográfico. Para el análisis de los datos se utilizó la técnica de análisis de contenido reveló una extensa red de significados que contiene elementos tales como: el amor; los roles masculinos y femeninos; el enfermo y el cuidado; la fibromialgia y sus consecuencias en la rutina del paciente y su familia. Por último, encontramos la existencia de un campo de la fragilidad de las mujeres con fibromialgia y personas cercanas a ellos en el proceso de hacer frente a la enfermedad. Necesario para hacer el acto de atención médica temprano en la información sobre la enfermedad y la identificación de posibles conflictos en la familia y el marco conyugal que puede activarse tanto en la investigación de diagnóstico y en el curso del tratamiento y de las particularidades de la vida diaria con la enfermedad.

Palabras clave: Fibromialgia, matrimonio, representaciones sociales.


 

 

A fibromialgia (FM) é das doenças reumáticas mais frequentes (Castro, Kitanishi, & Share, 2011) e caracteriza-se por sintomas como dor crônica e generalizada, fadiga, distúrbios do sono, entre outros (Heymann et al., 2010). A resposta ao tratamento é, em geral, incerta (Asbring & Narvanen, 2004), o que pode provocar sentimentos de vulnerabilidade e desamparo (Berber, Kupek, & Berber, 2005) de modo a influenciar o cotidiano familiar e social dos que recebem esse diagnóstico. Possui alta prevalência na população em geral, considerando os critérios diagnósticos estabelecidos pelo American College of Rheumatology, que varia de 0,66% a 4,4% (Wolfe et al., 1990). A relação mulher-homem é de 8:1, especialmente na faixa etária entre 35 e 60 anos (Castro et al., 2011). Sua etiopatogenia é ainda obscura e complexa e desafia estudiosos do campo (Heymann et al., 2010). A complexidade de variáveis tangentes tanto à questão do diagnóstico de FM quanto à abordagem adequada pelos profissionais de saúde, mostra a necessidade crescente de estudos que se proponham a ampliar o entendimento das vivências particulares dos pacientes com esse diagnóstico (Saltareli, Pedrosa, Hortense, & Sousa, 2008).

Uma vez que a doença crônica é geralmente dolorosa e de longo prazo pode resultar em mudanças no cotidiano da pessoa, na família e no ambiente doméstico (Burille, 2012), de modo que seu enfrentamento não fica restrito ao indivíduo adoecido. Estudos voltados para a compreensão de doenças marcadas pela cronicidade indicam que o reconhecimento da condição de doente crônico não se dá sem entraves e consiste em um ato de assimilação que envolve sofrimento do doente e dos que com ele convivem (Lima, Santos, Sawada, & Lima, 2014; Stuhler & Camargo, 2012; H. V. Xavier, Zanotti, & Ribeiro, 2013). Destaca-se a figura do cônjuge a qual são atribuídas responsabilidade e encargo familiar, sendo um importante membro da rede de suporte social do doente crônico. No entanto, esse aspecto pode configurar condições de risco e fragilidade de saúde física e mental para o cônjuge (Figueiredo, Chaves, & Duarte, 2012; Lopes da Costa, Mourão, & Gonçalves, 2014). Sabe-se que o grau de incerteza associado à frequência e à intensidade dos sintomas são fatores perturbadores tanto para o doente com FM quanto para os que com ele convivem (Reich, Olmsted, & van Puymbroeck, 2006). Nesse contexto, contemplar o cônjuge do doente com FM e explorar aspectos relacionados à conjugalidade em pesquisas sobre a doença faz-se pertinente e pode ampliar o alcance das discussões sobre os desdobramentos da FM no cotidiano do doente e de sua família.

Estudos demonstram que várias podem ser as reações do cônjuge diante da incapacidade experimentada pelo seu parceiro, desde comportamentos de suporte, superproteção ou de desencorajamento (Reich et al., 2006; Saltareli et al., 2008). Soderberg, Strand, Haapala e Lundman (2003) ressaltam que o apoio dos familiares, com destaque para os cônjuges, é importante fonte de suporte social e também de empoderamento para o doente crônico. No entanto, Bernard, Prince e Edsall (2000), em estudo sobre a influência da FM na vida conjugal, encontraram que a doença acarreta impactos negativos na vida sexual do casal e identificaram ainda a FM como um dos principais fatores responsáveis pela separação conjugal dos participantes divorciados.

A incerteza acerca da doença e sua evolução é descrita por Reich et al. (2006) como um fator perturbador para mulheres com FM e seus respectivos cônjuges, o que afeta o relacionamento conjugal. Reich et al. (2006) avaliaram o papel da incerteza acerca da doença em relação a satisfação conjugal em pacientes com FM, tendo como grupo controle pacientes com osteoartro-se (OA). Pacientes com FM relataram, um nível significativamente mais elevado de incerteza sobre a doença do que os pacientes com OA. Embora ambos os grupos tenham obtido níveis comparáveis de sobrecarga do cuidador/parceiro, no grupo com FM a sobrecarga do parceiro esteve associada a níveis mais baixos de suporte do companheiro. Observou-se nesse estudo que, quanto maior o nível de incerteza acerca da doença, menor o nível de satisfação com o relacionamento e mais forte a relação com a baixa condição física agravada pela falta de suporte por parte do parceiro.

Para temáticas como a abordada nesse trabalho, que propõe uma exploração do fenômeno através da percepção do próprio sujeito, a Teoria das Representações Sociais (TRS) oferece suporte adequado na medida em que pauta sua investigação a partir do conhecimento do sujeito ou grupo estudado e busca compreender como esse conhecimento objetiva as suas práticas cotidianas (Chaves & Silva, 2011). Ressalta-se que pesquisas com o quadro teórico da TRS que tem como objeto de pesquisa a doença crônica já têm sido realizadas como a pesquisa de Stuhler e Camargo (2012) que investigam as representações sociais do diabetes mellitus tipo 2 e do tratamento de pessoas que vivem com essa condição de saúde.

As representações sociais (RS) são definidas como teorias sobre saberes do senso comum, elaboradas e partilhadas coletivamente, que compõe o dinâmico processo de interpretação e construção das realidades sociais (Moscovici, 2003; F. O. Oliveira & Werba, 2011). Na medida em que as teorias, informações e acontecimentos se multiplicam elas são reproduzidas em um nível mais imediato e acessível, de modo a serem transferidas a "um mundo consensual, circunscrito e re-apresentado" (Moscovici, 2003, p. 60). No entanto, em um primeiro momento, sendo avaliadas como estranhas, soam ameaçadoras e evocam resistências, o que é diluído e apreendido, segundo Moscovici (2003), por meio de dois mecanismos baseados na memória e nas conclusões passadas chamados de ancoragem e objetivação. Ancoragem é o processo de reconhecimento de algo não familiar com base em categorias previamente conhecidas, seus sistemas de classificação e de nomeação (Mos-covici, 2003), de modo que, frente a esse estranhamento, o "novo" objeto ou conhecimento precisa ser integrado ou reconhecido em nosso emaranhado de crenças particulares já existentes e às nossas teorias sobre o ser humano e a sociedade (Chaves & Silva, 2011; Moscovici, 2003). As representações preexistentes também são de certo modo modificadas nesse processo (Moscovici, 2003). Já a objetivação é o processo em que conceitos abstratos são materializados em realidades concretas (Chaves & Silva, 2011). Para tanto, acessa-se um núcleo figurativo, isto é, "um complexo de imagens que reproduzem visivelmente um complexo de ideias" (Moscovici, 2003, p. 72).

As RS não são um mero reflexo da realidade, de modo que ocorre uma reorganização da realidade para integrar aspectos objetivos do objeto representado bem como as experiências prévias do sujeito vinculadas ao seu arcabouço de valores e normas (Chaves & Silva, 2011). Esses autores deixam claro que "é esta realidade rea-propriada que constitui, para o indivíduo ou grupo, a própria realidade" (Chaves & Silva, 2011, p. 300). Os autores esclarecem que na TRS a influência do social não é abordada como determinista, mas sim como um contexto de relações no qual o pensamento é construído, sendo assim, um elemento constitutivo dos fenômenos psicossociais. Tal contexto, segundo Arruda (2005) não se limita ao contexto imediato, situacional, mas considera sua esfera estrutural socio-histórica e "recobre, portanto, camadas diferentes no tempo e no espaço, podendo ir do passado ao presente, da história à circunstância" (p. 453).

No intuito de esquematizar uma esfera do processo representacional compreendido no tempo e num dado contexto, Jovchelovitch (2004) apresenta o modelo "Toblerone" proposto por Bauer e Gaskell em 1999. Para Jovchelovitch (2004) as RS consistem em uma estrutura de mediação entre o sujeito-outro e sujeito-objeto e é estruturada através de um trabalho de ação comunicativa que conecta o sujeito a outros sujeitos e ao objeto-mundo. Assim, esclarece que o trabalho comunicativo das representações, que perpassa pelo universo da linguagem, produz símbolos cuja força reside em sua capacidade de produzir sentido. Destaca também que esse processo de construção do simbólico, em sua interface com a cultura, revela "um acúmulo de significados e símbolos que se articulam ao longo do tempo" (Jovchelovitch, 2004, p. 22). Segundo Jovchelovitch (2004), são constituintes desse processo total do fenômeno representacional os elos entre sujeito-sujeito-objeto-projeto-tempo-contexto-ação comunicativa, o que desvela a polivalência das representações, em suas simultâneas dimensões ontológicas, epistemológica, psicológica, social, cultural e histórica.

Chaves e Silva (2011) ressaltam que a identificação das RS é fundamental para a compreensão da dinâmica e dos determinantes das interações e práticas sociais. Os autores apresentam quatro funções, propostas por Abric (1998). A primeira função é a de conhecimento e está relacionada à possibilidade de compreensão e explicação da realidade pelos indivíduos por meio das RS, do compartilhamento e da difusão do saber prático do senso comum. Já a segunda função das RS é identitária e compõe, portanto, a identidade, permitindo a proteção das idiossincrasias dos grupos. A terceira é a função de orientação, na qual as RS servem como norteadoras de comportamentos e práticas sociais. Trata-se de um sistema pré-codificador da realidade que guia o indivíduo para uma ação. E, por fim, as RS também possibilitam, a posteriori, a função justificadora de determinados comportamentos ou posicionamentos escolhidos em dadas situações.

Ademais, ressalta-se que a conjugalidade, um dos objetos alvo deste trabalho, compõe um sistema representacional que foi pesquisado por Martins-Silva (2009). Ele é formado por elementos como: o casamento, o amor, a separação/divórcio, o recasamento, os papeis femininos e masculinos na relação conjugal e fidelidade/infidelidade. Não se pretende aqui explorá-los conceitualmente, mas sim apontar o aspecto interdependente e complementar que assumem no constante e dinâmico processo de (re)construção de suas RS.

Sendo assim, o objetivo geral do presente trabalho é compreender como mulheres com FM e seus respectivos cônjuges representam, na perspectiva da TRS, o fenômeno da conjugalidade e essa condição de adoecimento. Buscou-se ainda investigar os aspectos envolvidos na composição das RS de FM e de conjugalidade a partir das experiências com a FM, identificar os desdobramentos do adoecimento no cotidiano do casal e, por fim, verificar como as RS de FM e de conjugalidade se relacionam com as práticas de manutenção ou alteração da dinâmica conjugal após o diagnóstico de FM.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa que assume a postura teórica da composição cultural da realidade social e subjetiva (Flick, 2004) em que foi utilizado o tipo estudo de uma série de casos (Yin, 2010). Participaram do estudo quatro casais em que as esposas foram diagnosticadas há pelo menos 12 meses com FM, segundo os critérios diagnósticos estabelecidos pelo American College of Rheumatology em 1990 (Wolfe et al., 1990) em um serviço de Reumatologia da rede pública de saúde de um município da Região Sudeste. Nenhuma das participantes apresentava outras doenças reumáticas. Considerou-se ainda necessário que o tempo de união dos casais fosse de pelo menos 12 meses antes do diagnóstico de FM de modo que as mulheres estivessem com seus respectivos cônjuges desde o período de investigação diagnóstica e início do tratamento.

Foram utilizadas entrevistas individuais compostas por roteiros não estruturados (narrativas) e semiestruturados que abordaram questões tangentes ao histórico do adoecimento, ao grau de conhecimento do casal sobre a doença, ao que eles pensam sobre casamento e como percebem a dinâmica conjugal antes e após o diagnóstico de FM. Os participantes também responderam a um questionário contendo dados sociodemográ-ficos. As entrevistas foram realizadas por uma terapeuta ocupacional mestre em psicologia social no serviço de saúde onde os participantes fazem acompanhamento reumatológico, exceto um casal que foi entrevistado em sua residência, por incompatibilidade de horário. Os relatos foram gravados, transcritos na íntegra e submetidos à Análise de Conteúdo (AC), seguindo as etapas de aplicação desse tipo de análise definidas em Bardin (2000) e também descritas por D. C. Oliveira (2008):

1. Pré análise do material;

2. Transformação, agregação sistemática dos dados em unidades e descrição das características identificadas no conteúdo analisado;

3. Tratamento dos resultados, ocorrendo inferências e interpretações dos dados;

4. Análise geral das categorias e subcategorias geradas para identificá-las e organizá-las em grandes eixos temáticos. A validação externa das categorias pode ser realizada de duas formas, são elas: utilização de juízes e discussão em grupos de pesquisa (Campos, 2004). No âmbito deste trabalho optou-se pela discussão no grupo de pesquisa da qual os pesquisadores fazem parte. Ressalta-se que essa pesquisa seguiu os padrões éticos estabelecidos na versão de 2012 da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (2012), sendo aprovada pelo Comitê de Ética (parecer nº 258.386 de 06/05/2013).

 

Resultados

Para garantir o anonimato dos participantes, optou-se pelo uso de nomes fictícios, sendo assim, cada casal recebeu o nome com a mesma letra inicial, para possibilitar essa associação ao elencar os extratos de fala. A apresentação e caracterização dos participantes encontram-se na

Tabela 1. Os participantes apresentam uma média de idade de 50 anos (variando de 47 a 59 anos), tempo médio de união de 22 anos (variando de 18 a 32 anos) e apenas um casal não possui filhos.

A partir da AC, os dados foram organizados em três eixos temáticos e suas respectivas categorias (Tabela 2). As categorias estão ainda sublinhadas ao longo da apresentação dos resultados.

Os eixos temáticos foram identificados a partir de todo o conjunto dos dados. É imprescindível pontuar que os eixos temáticos são complementares em seus conteúdos e interligados em suas categorias e subcategorias, compondo redes de significado. Assim sendo, esclarece-se que, em alguns momentos da exposição dos resultados, os extratos de fala cujo conteúdo parcial apresenta ligação temática com outra categoria, foram mantidos propositalmente em meio a determinados excertos de outras categorias. Tal escolha tem o objetivo de deixar transparecer a complementaridade e a complexidade dos temas, minimizar possíveis arbitrariedades em suas subdivisões e também favorecer a compreensão do leitor acerca da integração geral dos dados. Informa-se que a ordem de exposição dos excertos não foi uniforme, buscando identificar a melhor configuração de apresentação para cada categoria em seu respectivo eixo temático. Assim, os extratos de falas de um casal, dos maridos ou das esposas separadamente foram apresentados em sequências variadas. A decisão da quantidade de extratos de fala dos participantes em cada categoria foi a de contemplar os mais representativos e também os mais idiossincráticos.

Eixo Temático 1: FM, Primeiros Sintomas e Convivência com a Doença

A descrição das vivências dos primeiros sintomas ao diagnóstico, perpassando pelos sentimentos a eles associados, foi a primeira categoria identificada na análise dos dados.

"Eu comecei a sentir essas dores e andei fazendo tratamento e não passava e o médico também não sabia... cinco anos sentindo essas dores sem saber o que eu tinha" (Marli).

"Eu já tinha ido em vários ortopedistas ... no neurologista. Até no psiquiatra eu fui. A gente não descobriu nada, fiz é tomografia, raio-x da coluna e tal e não descobri' (Lúcia).

A demora pelo diagnóstico bem como a incerteza frente à ocorrência e intensidade dos sintomas parecem corroborar a percepção da invisibilidade dos sintomas da FM. Foram identificadas situações em que familiares, pessoas próximas e o cônjuge das participantes questionaram a veracidade dos sintomas.

"Ele fala, 'Ah isso aí é fricote, isso não é motivo pra ninguém ir pro pronto socorro'... Quem tá por fora, vê e te acha uma pessoa saudável" (Taís).

Diante da vivência de uma situação nova que culmina no estabelecimento de um diagnóstico desconhecido, os participantes citaram alguns percursos do processo de busca por informação. No entanto, mesmo com tanto tempo após tomar conhecimento do diagnóstico, de questionamentos diretos com profissionais de saúde e pesquisas sobre a doença, muitos relatos sugerem que as participantes ainda não se sentem suficientemente esclarecidos sobre a doença.

"Quando tava começando a coisa da fibromialgia, li na internet que o maior número são mulheres" (Amélia).

"Já perguntei a doutora. Pra te falar a verdade, eu não sei decifrar o quê que é fibromial-gia, o que é depressão, o que é ansiedade (Taís).

Constatou-se ainda a influência do conhecimento sobre a doença na conduta do cônjuge. Quando presente, a busca por melhor compreensão sobre a FM por parte do cônjuge favoreceu mudanças positivas em seu comportamento, apesar de, muitas vezes, ser um processo conflituoso. A compreensão dos sintomas e da limitação para a realização de tarefas habituais da esposa gerou mudanças na participação do marido no lar e também tentativas de acompanhar o tratamento. No entanto, houve relatos que sugerem que alguns cônjuges não vivenciaram clara ou suficientemente tal processo de busca, o que foi acompanhado da descrição de condutas que as esposas classificam como de desinteresse ou descaso.

"Hoje em dia tá mais participativo, depois que foi tomando mais consciência da doença, antes não ... tá mais consciente com relação as dores, tá me ajudando" (Lúcia).

"Pesquisei na internet... e ela não aceitava [as minhas sugestões], às vezes até se aborrecia ... A gente não sabe o que fazer, o que falar" (Lucas).

"Ele não entende nada, não pergunta nada ... não se interessa muito não, pelo assunto ... Eu acho um descaso [chora]" (Marli).

"Nome complicado, nem sei falar! Aí veio isso aí mais pra complicar" (Tadeu).

A caracterização da FM por parte dos participantes desvelou aspectos da convivência com a doença, suas principais implicações no cotidiano do doente e seus desdobramentos na convivência familiar/conjugal. Foram ressaltados o aspecto da incerteza da ocorrência e intensidade dos sintomas, e a percepção de que estão interligados com aspectos emocionais.

"Posso estar maravilhosamente bem e daqui a pouco não aguentar movimentar. É variável. Sinto um pouco dependente ... vejo as minhas coisas sem fazer, é um martírio" (Taís).

"Se ela não ficasse tão nervosa, pode ser que ela melhorasse um pouco mais ... É muito complicado, qualquer coisa que ela faz, se ela tá passando aqui e encosta em um móvel, diz ela que sente uma dor enorme, parece que é mais sensível." (Tadeu)

"Síndrome que faz doer bastante as articulações, tira o sono, deixa a pessoa bem impaciente, abala todos ao redor, a pessoa quer superar e descobre que não tem cura, o desespero é maior [chora]" (Lucas).

Eixo Temático 2: Modelo de Conjugalidade Ideal

Os participantes descreveram o que pensam sobre casamento, sendo abaixo apresentados alguns extratos de fala que apontam acordos, crenças, condutas e sentimentos que julgam ser necessários para a constituição e manutenção de um casamento.

"Construir uma família ... para ter aquela união, para ter um companheirismo ... tem que ter muito diálogo, participação dos dois na vida dos filhos" (Marli).

"Estamos aí, fazendo 17 anos nessa peleja toda. Um tendo que aguentar o outro!" (Tadeu).

"É uma coisa que é determinada por Deus, é puro, uma coisa eterna, até a morte" (Marcos).

"Tem que abrir mão de muitas coisas, tanto um quanto outro pra poder dar certo, são duas pessoas completamente diferentes. Tem que amar de verdade pra dá certo" (Amélia).

A descrição do que seria um bom companheiro/boa companheira contribuiu para o aprofundamento dos aspectos acima descritos relacionados ao casamento.

"Companheiro, ser um bom pai, bom esposo, carinhoso ... a mulher tem que tá ali junto ... tanto é que eu não larguei ele em nenhum momento" (Lúcia).

"A pessoa tem que tá ali disponível pra outra, ajudar, colaborar, cooperar ... viver bem, ser feliz, amar o outro" (Amélia).

a dedicação, é a atenção, respeito" (Amaro).

Observou-se ainda que alguns participantes fizeram um julgamento do parceiro ou uma autoavaliação durante a caracterização do que consideram ser um bom companheiro/boa companheira.

"Quem tem atenção e respeito à família, aos filhos. Não deixa, assim, a conta só na mulher. Ninguém éperfeito né? [chora]. As vezes, é porque ele é desligado. Não são todos os maridos que são dedicados ao casamento, com esses amores, que cuida da mulher." (Marli)

"Ela é uma grande companheira, jamais falei isso pra ela. Cuida muito bem do lar, está sempre ao lado ... Tenho que mudar muito pra chegar a ser um bom esposo ... acabo sendo um pouco grosso ... Vou sempre empurrando." (Tadeu)

Eixo Temático 3: Impactos da FM na Dinâmica Conjugal

Os participantes avaliaram que houve interferências negativas da FM em sua vida conjugal, sendo a doença apontada como um fator que pode configurar uma fonte de conflito, além de dificultar a sustentação das características que atribuem a um bom companheiro/boa companheira. No entanto, ao longo dos relatos os participantes também elencaram dificuldades e desafios pré-existentes ou paralelos à convivência com a doença.

"Você não consegue ser aquela companheira nota dez. Por mais que você tente, tem vez que eu sinto dor, a gente é agressiva às vezes ... fico arrependida depois e ele fica entristecido comigo, claro ... interfere sim e muito, infelizmente." (Lúcia)

"Com a fibromialgia as diferenças já de antes se intensificaram ... fica impossível a convivência, o diálogo ... Tá refém de dor, privada do sono, nervosa, tomando medicação ... . Procuro compreender, mas a gente fica perdido, essa é a verdade, dá até desespero, vontade até de largar tudo e sumir. A gente não sabe como lidar." (Lucas)

"A gente já começa a reclamar até automático, incomoda todo mundo, marido, filhos, a família da gente né. Quando eu percebi que eu tava reclamando muito eu falei: 'epa, pera aí!' As dores são minhas!" (Amélia).

Alguns participantes relataram brevemente e, por vezes, com reservas, os impactos na vida sexual, de modo que procuraram apontar sua importância ao passo em que apresentaram as dificuldades vivenciadas em decorrências dos sintomas.

"O sexo não é tudo, mas é importante ... a reclamação de dores a gente fica 'como é que eu vou namorar assim' afeta tudo" (Lucas).

"Ficava chateada porque ele não acreditava, aí a noite vinha querendo se achegar e eu já não aceitava ... ele falava pra mim ' tenho uma mulher e não tenho'" (Lúcia).

"Eu devido a eu tomar muita medicação, a vontade sexual diminui ... um dia falou que eu sou uma ótima dona de casa, só que eu tava deixando ele de lado" (Taís).

Este último extrato de fala, ao mencionar atribuições domésticas à mulher, anuncia outra categoria identificada na análise relacionada à distribuição de tarefas referentes à manutenção do lar. Algumas esposas descrevem a redução de sua participação principalmente nas tarefas que requerem maior esforço físico, as quais passaram também a ser realizadas por seu marido ou pessoa contratada. Destaca-se que uma participante associou a colaboração do marido com seu melhor entendimento sobre a doença e, alguns cônjuges - inclusive quem declarou não colaborar - defenderam que uma divisão de tarefas deve ocorrer em qualquer lar, reforçando que em suas famílias esse processo configura-se também como uma necessidade frente à doença. No entanto, nota-se que as demandas do lar, de modo geral, ficam mais concentradas na rotina das esposas.

"Lá em casa não tem muita divisão ... ele ajuda pouco nas tarefas de casa ... faço tudo, com dificuldade, mas faço" (Marli).

"Sempre fui uma pessoa que ajudei. Eu não vou deixar de ser homem porque eu tô lavando vasilha. Só que depois, foi uma coisa mais de necessidade devido à FM" (Marcos).

"As tarefas de casa eu tenho uma pessoa que me ajuda, até porque é difícil... Cansa muito e eu sempre trabalhei muito ... Se precisar, ele colabora também" (Amélia).

A categoria indícios de sobrecarga e/ou esgotamento do cônjuge engloba excertos que sugerem vários desafios para um cônjuge de uma mulher com FM e, especificamente, parece desvelar uma sensação de sobrecarga frente às demandas do lar e da família, conflitos conjugais e falta de conhecimento sobre a doença.

"Num já basta o meu cansaço, chego em casa, a mulher sempre reclamando. Quando é que isso vai passar? ... Meu Deus, será que eu vou ter um descanso com a saúde dessa mulher? Poxa vida! Tudo que eu faço é só pra cuidar da sua saúde?"(Tadeu)

Outro ponto identificado na entrevista de um cônjuge compreendeu a ausência de reconhecimento frente a seus esforços para lidar com a FM, o que também parece corroborar possíveis vivências de processos de sobrecarga/esgotamento.

"Será que nada que faço tá bom? 'Você tem um jeito de fazer, eu tenho o meu, o importante é que está sendo feito' Aí a gente já tá chateado, fica até menos sensível a doença, não compreende. Não porque não queira, a gente fica limitado, muitas obrigações, de pai, marido ... Fui lá querendo acompanhar no tratamento, ela tá brigando, não tá reconhecendo, não fui mais." (Lucas)

 

Discussão

Nesse estudo foram investigadas as RS de FM e de conjugalidade, desvelando processos da atividade de apropriação dos participantes de realidades que abrangem a vivência da conjuga-lidade, tendo o processo saúde-doença como um elemento constante no cotidiano do casal, o que se dá em meio a um complexo sistema de crenças e normas. O estudo das RS possibilita depreender elementos tangentes à visão de mundo de pessoas ou grupos, entendidos como norteadores de suas formas de agir e de se posicionar, ao passo em que sua premissa pauta-se no entendimento das RS "como produto e processo de uma atividade de apropriação do mundo social pelo pensamento e da elaboração psicológica e social da realidade" (Chaves & Silva, 2011, p. 306). Observou-se que os processos de reflexão dos participantes referentes à sua dinâmica conjugal perpassaram por todo o sistema representacional da conjugalidade (Martins-Silva, 2009), ao falarem da durabilidade de um casamento e das características esperadas de um cônjuge, considerando um contexto de adoecimento crônico como pano de fundo de suas reflexões.

Braz (2010) alerta para os chamados mitos conjugais, que são expectativas e crenças do casal a respeito do matrimônio, por vezes, tidas como verdades absolutas. Dentre os mitos enumerados pela autora, os seguintes se assemelham com o conteúdo do segundo eixo temático encontrado nos resultados desse trabalho: "conforme-se com o que você tem"; "temos que lutar para salvar o casamento"; "você deve fazer o outro feliz no casamento"; "os bons maridos consertam tudo em casa e as boas esposas fazem a limpeza"; "um casamento infeliz é melhor do que um lar desfeito". A autora pontua que esses mitos podem sustentar condutas que culminam em processos de culpa e sofrimento. No entanto, os resultados de seu estudo apontam que, por vezes, alguns mitos conjugais puderam contribuir para uma melhor harmonia dos cônjuges, ocasionando numa qualidade de vida mais satisfatória dos mesmos (Braz, 2010). Na presente pesquisa também se constatou que essas crenças tendem a corroborar a manutenção da união conjugal, mesmo frente a adversidades ou processos conflituosos viven-ciados em função do adoecimento das mulheres com FM. Os entrevistados descreveram que o casamento é para sempre e é um projeto divino, possui funções como constituição de uma família, requer cumplicidade, companheirismo, cuidado um com o outro, união, diálogo, e implica em dividir tarefas momentos bons e ruins e consideram as divergências entre o casal intrínsecas ao relacionamento. O bom companheiro seria aquele que possui características como gentil, carinhoso, sensível e, também, aquele que é um bom pai ou mãe. Aquele que cuida frente à fragilidade do outro, respeita opiniões divergentes e que está junto nas horas de alegria e de tristeza.

Esse trabalho sinaliza desafios específicos do doente com FM, que tem a dor como um sintoma principal em sua rotina e produz interferências negativas na dinâmica junto ao cônjuge e à família. Os dados encontrados assemelham-se a estudos anteriores realizados uma vez que o apoio familiar é uma fonte de suporte social importante (Soderberg et al., 2003), contudo a convivência com a FM pode impactar negativamente a vida conjugal (Bernard et al., 2000).

Destaca-se ainda que processos semelhantes aos resultados desse estudo são descritos na literatura, embora impostos por diferentes características e sintomas de outras doenças crônicas. Eles indicam que a convivência com a cronicida-de não ocorre sem processos de sofrimento, angústias, perdas e dores (Lima et al., 2014; Stuhler & Camargo, 2012; H. V. Xavier et al., 2013). O conteúdo das entrevistas realizadas nesse estudo, tal como apontado em outras situações de adoecimento crônico (H. V. Xavier et al., 2013), principalmente ao se referir às limitações que a doença impõe na rotina dos participantes, sugerem a arbitrariedade do papel que a doença assume em suas vidas. Destaca-se que o nível de incerteza acerca da doença, pode interferir na satisfação com o relacionamento, resultado também encontrado por Reich et al. (2006).

A clássica função das RS, de tornar o estranho familiar (Moscovici, 2003), é visualizada nas tentativas dos participantes em falar sobre o fenômeno da FM e no lidar, em maior ou menor grau, com o estranhamento que esse lhes causa, mesmo após anos de convivência com a doença. Constatou-se que o processo de composição dessas RS de FM pelos casais abarcou as diversas experiências vivenciadas desde o período de investigação dos sintomas, início e decorrer do tratamento e enfrentamento da doença, bem como a descrição das alterações ocorridas no cotidiano conjugal e familiar. Esse processo, de acordo com os relatos dos participantes, valeu-se ainda de pesquisas na internet e conversas com profissionais de saúde, o que, no entanto, não fora vivenciado por todos os participantes. Desse modo, não somente a presença, mas também a ausência dessa busca por informação ou interesse sobre a doença mostrou-se um aspecto determinante para alguns casais no enfrentamento da doença. Uma revisão sistemática da literatura investigou as ferramentas disponíveis na internet que vêm sendo utilizadas nas pesquisas em FM (Andrade, Steffens, Crocetta, Liz, & Brandt, 2013). Para os autores ficou evidente nos estudos revisados a preocupação em apurar a qualidade das informações disponibilizadas em sites especializados em FM, com o intuito de aprimora-las, principalmente por se tratar de um instrumento potencial formador de opinião e acessível à população em geral.

Dessa forma, os elementos envolvidos no processo de composição das RS de FM e de conjugalidade foram sendo desvelados ao longo dos relatos de vivências do adoecer e do conviver com a doença e com o doente, bem como na apresentação de sistemas dinâmicos de crenças e pensamentos que norteavam comportamentos e práticas descritas pelos participantes. Diante disso, é válido pontuar o período da infância e união marital dos entrevistados, em uma perspectiva sócio-histórica. Os casais desse estudo nasceram em meados das décadas de 1950 e 1960 e uniram-se maritalmente nas décadas de 1980 e 1990. Dessa forma, tal como as mulheres de estrato socioeconômico médio e baixo participantes do estudo de Coutinho e Menandro (2010), eles cresceram e foram educados em um modelo tradicional de constituição familiar em que o "até que a morte nos separe" não vislumbrava substituição para uma prática que se observa na atualidade fortemente caracterizada pelo "que seja eterno enquanto dure" (Coutinho & Menandro, 2010). Os relatos dos casais do presente estudo sugerem uma identificação de modo mais preponderante com valores tradicionais. Tal tendência foi observada, apesar de os entrevistados vivenciarem processos atuais de mudança, que tem produzido um novo lugar para o indivíduo na configuração da família e da sociedade (Aboim, 2006), inclusive com a possibilidade de ocorrer a ruptura do casamento sem grande rejeição social (Coutinho & Menandro, 2010).

Para avançar no entendimento de vivências cotidianas familiares e conjugais, em sua dimensão sócio-histórica, é importante considerar os recursos que cada família apresenta para enfrentar suas crises, a exemplo da convivência com uma doença crônica como a FM. Assim, é fundamental "conhecer o contexto de cada família e a força que suas crenças, valores e atitudes têm na definição e distribuição das tarefas e papéis familiares" (Wagner, Predebon, Mosmann, & Verza, 2005, p. 186). O processo de socialização masculino e feminino estabelece basicamente os papéis que ambos os cônjuges irão desempenhar em sua relação conjugal e compreendem a maneira como o casal percebe a conjugalidade, a individualidade, o vínculo social e afetivo (Dias, 2013; Martins-Silva, Trindade, & Silva Junior, 2012; C. Xavier, 2011). Desse modo, mesmo no bojo das mudanças na dinâmica das relações conjugais, verifica-se, não raro, que elementos tradicionais ligados ao papel da mulher (cuidadora do lar) e do homem (provedor do lar) ainda persistem (Gonzalez, 2014; Mitre, 2013; Trindade, Menandro, Nascimento, Cortez, & Ceotto, 2011). Os extratos de fala referentes à categoria "divisão de tarefas de manutenção do lar" do terceiro eixo temático estão em consonância com esse cenário, o que pode ser observado pelo uso de expressões condicionais associadas aos verbos ajudar, precisar, colaborar. São elementos sinalizadores que, de fato, os participantes percebem essas atividades como uma atribuição principalmente feminina. No entanto, os maridos disseram colaborar ou aumentar sua participação frente às necessidades emergidas pela mudança na condição de saúde da parceira. Os dados sugerem que, antes do diagnóstico, processos de sobrecarga já eram vivenciados pelas mulheres na sobreposição de funções como o cuidado do lar e a de trabalhadora. Esses processos de sobrecarga foram descritos na realidade dos maridos quando solicitados a realizar novas tarefas e ao serem chamados a assumir novas responsabilidades, após o adoecimento das esposas. Reich et al. (2006) encontraram que a sobrecarga iden-tificada em cônjuges de pessoas com FM esteve associada com níveis mais baixos de percepção de suporte por parte do doente.

No decurso dessa pesquisa, percebe-se que as bases do processo de ancoragem (Moscovici, 2003; F. O. Oliveira & Werba, 2011) das RS de conjugalidade e de FM dos participantes estiveram vinculadas a uma ampla e dinâmica rede de significações que perpassou:

Pelos elementos representacionais relacionados à conjugalidade tais como o amor e a valorização do casamento (na recusa ao divórcio e à uma união não legalizada ou não abençoada por Deus), às concepções do que é ser homem e mulher, marido e esposa, pai e mãe;

Pelo entendimento que o doente e seu cônjuge têm da dor e outros sintomas, seus componentes físicos e emocionais; pela definição do que são e como se deve lidar com incapacidades geradas por uma doença e os desdobramentos que podem alcançar na rotina de uma pessoa e sua família;

Pela avaliação se as incapacidades - ligadas à estranha, pouco conhecida e "invisível" FM - justificam alterações na dinâmica de distribuição de tarefas e responsabilidades até então estabelecidas;

Por como compreendem ações de cuidado ao parceiro e se há deveres do cônjuge a ele associados.

Desvela-se assim, que as RS estão inscritas em sistemas de representações interligados (Coutinho, 2008), que opera de modo dinâmico orientando práticas cotidianas no enfrentamen-to da doença e seus reflexos na reorganização da rotina familiar e conjugal. Os dados sugerem, de fato, a centralidade das RS de conjuga-lidade para a manutenção do casamento, sendo que elas também se apresentaram como um elemento de suporte tanto da mulher com FM, como de seu cônjuge. Esse processo pode ser mais bem aclarado identificando-se as funções das RS de conjugalidade e de FM nos casais pesquisados.

Assim sendo, é válido identificar os elementos correspondentes às quatro funções das RS, propostas por Abric (1998) e discutidas por Chaves e Silva (2011). Em relação a função de conhecimento das RS, os participantes apresentaram suas teorias acerca dos fenômenos investigados - FM e conjugalidade - com maior ou menor grau de estranhamento dos mesmos, buscando alguma compreensão da origem das muitas queixas e sua intensidade, especialmente no que se refere à dor. Outro ponto que contempla essa função perpassa pelo entendimento de como uma doença é capaz de causar limitações na rotina do indivíduo e, no entanto, não deixar marcas no corpo, não é "comprovada" em exames de imagem e muitos médicos não a identificam; e que, ao mesmo tempo em que a pessoa toma remédios, a resposta ao tratamento é incerta e não há expectativa de cura. Quanto a função identitá-ria das RS, pode-se verificar que os esposos apresentaram sua pertença a determinadas categorias sociais ligadas ao masculino e ao feminino e à condição de saúde, tais como homem, marido, pai e pessoa saudável. E as mulheres com FM recorreram a seus elementos de pertença - mulher, esposa, mãe e pessoa doente - para fundamentar seu processo de argumentação de seus relatos. Pode-se afirmar que as funções de justificação e de orientação das RS foram as mais desveladas nas estruturas narrativas. Os casais apoiaram-se nas representações que tem sobre conjugalidade para fundamentar a manutenção de sua união, nortear e sustentar comportamentos frente às adversidades no contexto familiar e conjugal e às divergências de opinião, bem como conflitos de origem diversa, sendo um deles o enfrenta-mento da FM. Em vários excertos (exemplo: grau de conhecimento sobre a doença, papéis masculinos e femininos) foram evidenciados que aspectos dessas representações, por vezes, atuam como barreiras para o enfrentamento do adoecimento das participantes com FM, além de balizar o grau de suporte oferecido pelo cônjuge, impactar na divisão de tarefas entre o casal e favorecer a ocorrência de sentimentos de sobrecarga de um dos cônjuges. Logo, as funções de orientação e de justificação das RS mostraram-se determinantes nas situações de conflito e divergências relatadas pelos casais. É válido pontuar que RS e práticas sociais não estabelecem uma relação causal direta, determinante e linear, sua ligação se faz numa perspectiva dialética, de influência mútua, de modo que as RS configuram um guia para as práticas e, estas últimas não são mero reflexo das RS, mas atuam como agentes na mudança das RS (Subtil, 2014).

A partir do modelo "Toblerone" (Jovchelovitch, 2004) pode-se avançar na análise do fenômeno explorado nesse estudo, sendo que seus principais aspectos foram esquematicamente apresentados na Figura 1.

 

 

Tal como representado na Figura 1, o objeto de investigação dessa pesquisa perpassa o entendimento das relações conjugais na FM e das RS configuradas na dinâmica ação comunicativa entre mulheres que têm a doença e seus cônjuges, compondo a tríade que interliga os espaços do "entre" nas mediações entre o sujeito-outro e sujeito-objeto. Dessa forma, verifica-se que as RS não estão localizadas em nenhum dos vértices do triângulo de mediação, mas nos espaços do "entre" do triângulo que perpassam por todos os seus elementos constituintes. Assim, a RS de conjugalidade e FM se organizam por meio do engajamento das pessoas em processos de comunicação que as situam em relações concretas vinculadas a uma dada configuração cultural, social e histórica por elas ativamente (re)produzidas. Entretanto, é importante ressaltar que a representação humana é uma forma de mediação que não consegue capturar a totalidade de um objeto, isto é, não dá ao processo representacional o poder de definir completamente o objeto (Jovchelovitch, 2004).

 

Considerações Finais

Os resultados desse trabalho identificam os elementos do adoecer e conviver com a FM, especificamente no contexto familiar e conjugal, que indicam sua complexidade e importância no cenário do enfrentamento da doença. Esses elementos estão emersos em um sistema repre-sentacional, cuja identificação de suas facetas principais foi iniciada nesse estudo ao se pesquisar as representações sociais de conjugalidade e FM. Ao falar sobre o início, a descoberta e a convivência com os sintomas, de suas implicações no cotidiano do doente, de seu cônjuge, abrangendo o âmbito doméstico, os núcleos de significação associados aos objetos-alvo desse estudo - conjugalidade e FM - também perpassaram por representações do masculino e do feminino e de saúde-doença. Após debruçar-se sob a trajetória conjugal e familiar dos casais participantes desse estudo, fica evidente que o cuidado em saúde é limitado se restrito apenas à atenção ao doente. Os dados sugerem ainda que, minimamente, uma avaliação de caráter preventivo e orientador acerca de demandas específicas de cada família de um doente crônico deveria ser conduta frequente e disponível nos serviços de saúde. Reforça-se tal constatação, principalmente naquelas doenças em que aspectos da incerteza tangente aos sintomas sejam uma constante, como é o caso dos doentes com FM. A TRS, em sua complexidade e abrangência, mostrou alcance profícuo para a investigação do fenômeno estudado. Pode-se afirmar que foi evidenciado a transversalidade das RS desde o pensar ao agir nas práticas sociais dos casais participantes. O apropriar-se dos conceitos e pressupostos da TRS favoreceu o desvelar de experiências e trajetórias idiossincrásicas, repletas de sensibilidade e emoção transparecidas em cada relato. Relatos esses que podem não encontrar espaço para ecoar seus significantes em consultas corriqueiras e ações unilaterais no processo de tratamento comumente ofertado a pessoas com FM.

Como limitações do estudo verifica-se o número reduzido de participantes; e a não inclusão de divorciados, e respectivos ex-cônjuges, portadores de FM. Esses outros atores sociais poderiam iluminar aspectos não observados nesta pesquisa. Desse modo, aponta-se a pertinência do desenvolvimento de novas pesquisas envolvendo maior número de participantes, abrangendo homens e mulheres doentes com FM, seus cônjuges e/ou ex-cônjuges com foco nas questões evidenciadas neste trabalho como por exemplo os impactos de longo prazo de convivência com a FM na conjugalidade.

 

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Endereço para correspondência:
Danielle Constancia Felício Macedo
Universidade Federal do Espírito Santo
Avenida Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras
Vitória, ES, Brasil 29075-910
E-mail: danielle_cfm@yahoo.com.br, priscillamartinssilva@gmail.com, mbernadetegavi@gmail.com e anapaula083@yahoo.com.br

Recebido: 17/02/2014
1ªrevisão: 28/07/2014
2ª revisão: 05/11/2014
Aceite final: 05/12/2014

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