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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.25 no.1 Ribeirão Preto mar. 2017

https://doi.org/10.9788/TP2017.1-14Pt 

ARTIGOS

 

Projeto de ter filhos: uma revisão da literatura científica nacional e internacional

 

Los planes de tener hijos: una revisión de la literatura científica nacional e internacional

 

 

Mariana Biffi; Tania Mara Marques Granato

Programa de Pós Graduação em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nas sociedades ocidentais, o tema do projeto de ter filhos tem ganhado destaque devido à redução das taxas de natalidade e o adiamento da parentalidade, o que tem trazido repercussões sociais, políticas e econômicas, além de implicações para o âmbito da saúde física e mental. Nesse contexto, buscamos compreender como o projeto de ter ou não filhos vem sendo investigado na literatura científica nacional e internacional. Por meio de uma revisão sistemática realizada no período de 2009 a 2014, foram selecionados 18 artigos. Os estudos analisados indicam a possibilidade de escolha entre ter ou não filhos; a entrada da figura masculina nesse âmbito; o estabelecimento de pré-condições que configuram o momento certo para ter filhos; além dos conflitos e ambivalências que permeiam esse processo de escolha. Observamos que os estudos internacionais focalizam a tomada de decisão dos indivíduos e visam a promoção de políticas públicas, enquanto os trabalhos nacionais buscam compreender fenômenos recentes, como a opção de não ter filhos. Destaca-se assim, a relevância do tema e a necessidade de sua exploração no âmbito da pesquisa nacional, em busca da apreensão dos novos sentidos que emergem do relacionamento conjugal e familiar.

Palavras-chave: Parentalidade, conjugalidade, contemporaneidade, revisão de literatura.


RESUMEN

En las sociedades occidentales, el tema de tener hijos há ganado atención debido a las tasas de natalidad más bajas y el postergación de la parentalidad, que ha traído repercusiones sociales, políticas y económicas, así como las implicaciones para el ámbito de la salud física y mental. En este contexto, se busca entender cómo los planes para tener hijos o no se investigan en la literatura científica nacional e internacional. A través de una revisión sistemática realizada de 2009 a 2014, se seleccionaron 18 artículos. Los estudios analizados indican la posibilidad de elegir entre tener hijos o no; la entrada de la figura masculina en esta área; el establecimiento de condiciones previas que integran el momento adecuado para tener hijos; además de los conflictos que atraviesan este proceso de elección. Observamos que los estudios internacionales centran se en el proceso de elección y son destinadas a la promoción de políticas públicas, mientras que los esfuerzos nacionales tratan de comprender los fenómenos recientes, como la decisión de no tener hijos. Cabe destacar de esta manera la importancia de la cuestión y su explotación en la pesquisa nacional, en busca de los nuevos significados que emergen de las relaciones matrimoniales y familiares.

Palabras clave: Parentalidad, matrimonio, contemporaneidad, revisión de literatura.


 

 

Nas sociedades ocidentais, temos observado nos últimos cinquenta anos o constante declínio nas taxas de natalidade, o aumento da idade em que homens e mulheres têm seu primeiro filho, bem como do número de casamentos e divórcios (Badinter, 2011). Esse quadro traz implicações sociais diversas, como nos sistemas de proteção social e da saúde, sinalizando transformações na vida conjugal e familiar (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2012). Embora tenham surgido inicialmente nos países desenvolvidos, as mudanças nos padrões reprodutivos seguem a mesma tendência no contexto brasileiro o que aponta para a necessidade de compreender os elementos que participam da escolha contemporânea entre ter ou não filhos.

A possibilidade de escolha acerca da parentalidade remete a um fenômeno contemporâneo que se consolidou no decorrer do século XX, como destaca Scavone (2001), ao pontuar a dimensão reflexiva que passou a permear essa decisão. Conforme os argumentos da autora, destacamos que ter ou não filhos passa a ser uma decisão influenciada pelas condições subjetivas, biológicas, econômicas e sociais do casal. Além disso, quanto maior a possibilidade de acesso à informação e ao conhecimento especializado, maior será a reflexão antes da tomada de decisão.

É nesse contexto de parentalidade por opção que vislumbramos a emergência de um projeto de vida que se mostra menos padronizado e, portando, mais personalizado, diferenciando-se do modelo tradicional anterior que incluía casamento e filhos em qualquer relacionamento amoroso estável (Borges & Magalhães, 2013; Furstenberg, 2010). Assim, consolida-se na atualidade, um modelo de união em que predomina a relação igualitária entre os parceiros, a valorização do companheirismo no vínculo conjugal, e a ausência de obrigações quanto à reprodução (Merli, 2012).

Barbosa e Rocha-Coutinho (2012) reconhecem que vivemos um momento de transição em que os modelos antigos coexistem com os novos papéis que passam a fazer parte do cotidiano. Tal processo culmina em uma experiência paradoxal para os casais que se defrontam com as exigências do viver contemporâneo, uma vez que este prioriza valores individualistas, como autonomia e desenvolvimento profissional, ao mesmo tempo que enfatiza a importância da conjugalidade e o desenvolvimento de ideias e projetos em comum (Neves, Dias, & Paravidini, 2013).

Rios e Gomes (2009a) sinalizam, ao realizar uma revisão de literatura acerca da opção por não ter filhos, a importância que a dimensão da escolha assume na vida dos casais contemporâneos, ultrapassando inclusive as questões relacionadas à parentalidade, pois o fato de poder escolher se converte em fonte de satisfação pessoal e conjugal. Entretanto, as autoras também referem os conflitos e angústias que podem acompanhar o processo de decisão, sobretudo quando há preconceito contra casais sem filhos.

Tais apontamentos convergem para as colocações de Nunes (2011) sobre o ideal da "mulher contemporânea", na medida em que este permanece atrelado à maternidade, produzindo intenso sofrimento na mulher que busca conciliar a vida familiar e a profissional. Tal cenário pode conduzir à opção pela maternidade tardia, processo que pode se fazer acompanhar de intensa ambivalência, devido a dificuldade de conciliar a função materna com os papéis que já se encontram estruturados (Cooke, Mills, & Lavender, 2010; Travassos-Rodriguez & Féres-Carneiro, 2013).

Por ser um fenômeno recente, especialmente no contexto brasileiro, Rios e Gomes (2009a) destacam que a opção por não ter filhos ainda é um tema pouco estudado, o que explica o predomínio de artigos internacionais, pelo fato de que os países europeus testemunham tais transformações há mais tempo. Segundo as autoras, o envelhecimento da população e a diminuição nas taxas de natalidade são problemáticas que sinalizam, no cenário atual, a necessidade de novas políticas sociais, além da produção de conhecimento científico que promova uma compreensão mais afinada com as questões contemporâneas.

Tendo em vista a relevância social do tema, e nossa intenção de estimular a produção científica nacional, propomos este estudo com o obje-tivo de compreender como o projeto de ter ou não filhos vem sendo investigado na literatura nacional e internacional. Compreendemos o projeto de ter ou não filhos como a dimensão reflexiva do processo de escolha conjugal no campo da parentalidade, cujos elementos constituintes remetem ao biológico, ao psicológico e ao social.

 

Estratégias Metodológicas

Para organizar a literatura consultada, elaboramos uma revisão sistemática por compreender que esse método viabiliza a avaliação crítica e a síntese da temática focalizada, possibilitando o acesso ao conhecimento produzido e o aprofundamento das questões abordadas (Mendes, Silveira, & Galvão, 2008). A busca dos artigos foi realizada nas bases Scientific Electronic Library Online (SciELO) Brasil, SciELO Regional, Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), PsycINFO e Academic Search Premier, a fim de garantir a abrangência de produções nacionais e internacionais.

Nas bases indexadoras SciELO Brasil, SciELO Regional, LILACS e PePSIC, realizamos quatro buscas distintas, combinando as palavras-chave "casamento" e "casal" com os descritores "filhos" e "parentalidade" (casamento "e" filhos; casamento "e" parentalidade; casal "e" filhos; casal "e" parentalidade). Adotamos termos genéricos para essa busca ao constatar que a literatura nacional não conta com termos específicos para o tema investigado, além do fato de que tal procedimento ampliaria o número de estudos encontrados, corroborando os resultados obtidos por Rios e Gomes (2009a) que, ao realizarem uma revisão sistemática acerca da opção por não ter filhos, também se depararam com a ausência de descritores especializados na literatura nacional.

Nas bases PsycINFO e Academic Search Premier, realizamos duas buscas combinando o descritor "decision making" com as palavras-chave "parenthood" e "childbearing", o que permitiu vislumbrar que a literatura internacional conta com termos mais específicos.

Elegemos como critérios de inclusão que os artigos empíricos estivessem indexados, redigidos em português, espanhol ou inglês, e atendessem aos objetivos da revisão, ou seja, abordassem o tema do projeto de ter ou não filhos, exclusivamente em homens e mulheres heterossexuais. Compreendemos que a abordagem das diversas configurações familiares, como as famílias homoafetivas, monoparentais ou recompostas ampliaria demasiadamente o foco desta revisão, além destes temas já delimitarem uma área de pesquisa própria, merecendo, portanto, um trabalho à parte.

Com o intuito de delinear o campo das publicações mais recentes acerca do projeto de ter filhos, consideramos os trabalhos publicados nos últimos cinco anos como objeto desta revisão, entendendo que esta refletiria o panorama da pesquisa contemporânea. Dessa forma, as buscas nas bases de dados foram realizadas no período de Janeiro de 2009 a Maio de 2014. Foram privilegiadas as publicações recentes, não sendo estabelecidas restrições no que se refere ao delineamento metodológico, abordagem teórica ou área do conhecimento em que o estudo foi desenvolvido, sendo incluídas publicações de diversas áreas, como Psicologia, Antropologia, Economia e Enfermagem.

Atendendo a critérios de exclusão, descartamos artigos teóricos ou de revisão de literatura, capítulos de livros, resenhas, dissertações e teses. Também excluímos aqueles que se afastavam do tema ou que partiam de recortes muito específicos, como a decisão de ter filhos em contextos de enfermidades, tais como câncer e HIV-aids, ou em relações homoafetivas ou, ainda, em casos de esterilidade.

Após a realização das buscas, obtivemos o total de 372 artigos; entretanto, após unificarmos os resultados das pesquisas, excluindo artigos que estivessem repetidos, obtivemos um total de 243 publicações. Realizamos a leitura dos títulos e resumos dos 243 artigos e selecionamos aqueles que estavam em consonância com a questão norteadora deste estudo, ou seja, que se relacionassem ao projeto de ter filhos na contemporaneidade. A partir de tal procedimento, apresentado na Figura 1, obtivemos um total de 18 artigos que passaram a compor o corpus desta revisão de literatura.

Na etapa seguinte, realizamos a leitura completa de cada um dos trabalhos, elaborando uma síntese das principais informações, tais como seus objetivos, participantes, metodologia, e resultados obtidos, dados estes que foram sumarizados em tabelas, a fim de facilitar a visualização dos achados. Os achados deste estudo foram discutidos com os demais pesquisadores de nosso grupo de pesquisa, atendendo à demanda de triangulação, proposta por Stake (2011) como procedimento que incrementa a fidedignidade da pesquisa qualitativa, assegurando a validade dos dados extraídos e a congruência dos resultados.

 

Resultados

A presente revisão foi composta por 18 artigos, sendo quatro nacionais e 14 internacionais, publicados em periódicos pertencentes a diversas áreas do conhecimento. Metade dos estudos selecionados são interdisciplinares, enquanto a outra metade distribuem-se em disciplinas específicas, como a Antropologia, a Economia, a Enfermagem e a Psicologia. Destacamos ainda que, na literatura nacional, a maior parte dos trabalhos selecionados encontra-se em revistas da área da Psicologia, enquanto os artigos internacionais foram publicados em periódicos interdisciplinares.

Quanto ao delineamento dos estudos, 10 adotam métodos quantitativos, enquanto oito são estudos qualitativos. Em relação ao país de origem, quatro estudos foram realizados no Brasil, dois na Alemanha, Austrália, Canadá, Portugal e Suécia e um em cada um dos seguintes países: África do Sul, Hungria, Inglaterra e Itália.

Quanto às características metodológicas (delineamento, participantes, procedimento de coleta, registro e análise dos dados) os trabalhos nacionais são apresentados na Tabela 1 e os internacionais na Tabela 2.

Observamos que no âmbito dos estudos nacionais, identificam-se exclusivamente trabalhos qualitativos, não sendo encontrado nenhum trabalho quantitativo. Nas pesquisas qualitativas, a entrevista semiestruturada foi adotada como procedimento padrão em todos os casos, assim como a análise de discurso como método de análise dos dados, embora tenham se orientado por referenciais teóricos distintos.

No caso das pesquisas internacionais, verificamos um predomínio de pesquisas quantitativas (77,8%), sendo que em metade dos casos foram utilizados dados de pesquisa populacional (Hutteman et al., 2013; Iacovou & Tavares, 2011; Kaufman & Bernhardt, 2012; Öst, 2012; Testa et al., 2014). Em todos os estudos quantitativos, os dados se produziram a partir de questionário ou escala próprios, sendo os procedimentos estatísticos adotados para a análise dos dados.

Nos estudos qualitativos internacionais (22,2%), observamos a mesma tendência dos estudos nacionais, sendo a entrevista semiestruturada o único procedimento adotado, enquanto a análise de discurso figurou como método de análise de dados.

Os objetivos e resultados dos estudos que compõem essa revisão estão sumarizados nas Tabelas 3 e 4.

 

Discussão

Com base nos resultados assinalados, sumarizamos os principais achados em quatro categorias: Ter ou não filhos: um processo de escolha; Transição para a parentalidade: um projeto conjugal; Momento certo para ter um filho e Conflitos relacionados à escolha entre ter ou não filhos.

Ter ou Não Filhos: Um Processo de Escolha

Diversos autores discutem a dimensão da escolha, sinalizando suas implicações tanto no âmbito familiar como no social (Borges & Magalhães, 2013; Morison, 2013; Rios & Gomes, 2009b). A possibilidade de escolher parece se consolidar como importante aspecto da vida conjugal contemporânea, questão já indicada por Rios e Gomes (2009a), embora dela decorram novas problemáticas, como a maternidade tardia e a estigmatização de casais que escolheram não ter filhos, que passam a figurar como objeto de novos estudos (Holton et al., 2009; Sohne & Wedling, 2011).

Borges e Magalhães (2013) sinalizam a emergência de um novo conceito de família centrada no projeto de ter filhos, e não mais no matrimônio. Segundo as autoras, tal mudança parece reduzir a assimetria entre os gêneros, aproximando o discurso masculino do feminino, na medida em que mantém o foco no desenvolvimento profissional e independência financeira, superando a dicotomia mulher-mãe e homem-provedor.

Embora o novo contexto social possibilite múltiplas configurações familiares, Morison (2013) assinala que a persistência de crenças heteronormativas pode comprometer a reflexão que antecede a tomada de decisão sobre ter ou não filhos, conduzindo para uma naturalização da parentalidade.

Os estudos que ressaltam o preconceito contra casais que decidem não ter filhos sugerem que esse tipo de escolha ainda está em processo de consolidação, sobretudo no cenário nacional (Rios & Gomes, 2009a). Parecem prevalecer, apesar das transformações, expectativas sociais para que os casais optem por ter filhos, o que aparenta uma resistência à multiplicidade de arranjos que se delineiam, conforme indicam Rios e Gomes (2009b).

A relação entre possibilidade de escolha e adiamento da parentalidade é outro ponto explorado pelos pesquisadores, devido ao estabelecimento de projetos de vida que visam unicamente o desenvolvimento profissional e a independência financeira (Holton et al., 2009). Em consonância com os achados da revisão de literatura realizada por Cooke et al. (2010), o adiamento da parentalidade que se manifesta como escolha informada é, na verdade, desinformada, na medida em que são negligenciados os limites e riscos impostos por uma gravidez tardia.

Considerando as implicações dos padrões de fertilidade contemporâneo para a economia e a saúde, alguns pesquisadores desenvolveram instrumentos psicométricos a fim de compreender os elementos que participam do processo de escolha dos casais (Guedes et al., 2013; Matias & Fontaine; 2013). Fatores como a troca afetiva, o desenvolvimento pessoal, a transmissão de legado e o reconhecimento social parecem contribuir para a decisão de ter filhos, enquanto as responsabilidades do exercício parental, os problemas financeiros, as dificuldades na educação dos filhos e o sofrimento psíquico da gestação estão associados à escolha de não ter filhos.

Transição para a Parentalidade: Um Projeto Conjugal

Os estudos selecionados assinalam a importância da inclusão da visão masculina no processo de escolha, descentralizando-o da figura feminina, como tradicionalmente observamos (Gauthier & deMontigny, 2013; Roberts et al., 2011). Desse modo, uma nova dinâmica conjugal caracteriza o relacionamento entre homens e mulheres que se veem convocados a refletir e tomar uma decisão acerca da futura parentalidade (Scavone, 2001).

Testa et al. (2014) concluem que não existe igualdade de poder entre homens e mulheres na tomada de decisão de ter filhos, porém não se comprova a hipótese de que as mulheres atuem predominantemente sobre essa questão. Os autores explicam que, uma vez que a parentalidade traz implicações para ambos, torna-se necessário o estabelecimento de um acordo entre os parceiros; entretanto, o companheiro que pretende ter mais filhos parece ter mais influência no processo de escolha.

Os achados de Iacovou e Tavares (2011) seguem na mesma direção, quando indicam que os indivíduos levam em consideração os planos de seus parceiros quando planejam ter um filho. Hutteman et al. (2013) confirmam que o planejamento do primeiro filho é realizado pelo casal; porém, a partir do segundo filho, a intenção da mulher atua como fator decisivo.

Neste cenário em que homens e mulheres são convocados a refletir sobre a parentalidade, antes de tomar uma decisão, Kaufman e Bernhardt (2012) salientam que as condições de trabalho do casal podem influenciar seus projetos, sendo este um fator considerado por ambos os parceiros. Segundo os autores, homens com empregos que viabilizam a licença paternidade, bem como o trabalho em tempo parcial, expressam uma maior intenção de ter filhos, assim como as mulheres que se beneficiam da licença maternidade.

Diferentemente dos estudos que se referem ao contexto europeu, Silva et al. (2013), que analisam o planejamento familiar no contexto brasileiro, destacam a existência de um acordo entre os parceiros sobre o momento para ter filhos, o que indicaria um planejamento conjunto; contudo, há ainda a responsabilização da mulher pela contracepção. As autoras sinalizam que a participação do homem no âmbito da assistência sexual e reprodutiva no Brasil é ainda incipiente, o que indica a necessidade dos profissionais da saúde considerarem o casal, e não apenas a mulher, como unidade de cuidado.

Apesar das diferenças encontradas na literatura nacional e internacional, observamos que a participação masculina vem sendo frequentemente estimulada no debate social sobre a parentalidade e o cuidado infantil. Tal conduta rompe com uma tradição que delegava tais tarefas para a mulher, para incluir o homem como sujeito de direitos e deveres.

Momento Certo para Ter um Filho

Em parte dos estudos buscou-se identificar os elementos que indicam aos casais o momento certo para ter filhos, como é o caso dos trabalhos de Cooke et al. (2010), Gauthier e deMontigny (2013), Hollos e Bernardi (2009), Öst (2012), Roberts et al. (2011) e Thompson et al. (2013).

Os pré-requisitos identificados pelos homens remetem a características pessoais, como o desejo ter filhos e formar uma família; interpessoais, associados à influência do parceiro e do contexto social; socioeconômicas, que se relacionam à estabilidade pessoal e à aquisição da casa própria e, finalmente, características temporais, que aludem às questões biológicas e à maturidade pessoal (Gauthier & deMontigny, 2013; Roberts et al., 2011, Thompson et al., 2013). Cabe ressaltar que considerações relativas aos aspectos biológicos parecem ser mais relevantes para o homem mais velho, como destacam Roberts et al. (2011).

Em meio a um amplo conjunto de pré-condições, Thompson et al. (2013) enfatizam a emergência do conflito entre ter filhos nas condições certas ou na idade certa, visto que a consideração de tantos elementos levaria ao adiamento da parentalidade até que estes objetivos fossem atingidos. Os autores destacam, ainda, que os homens se defrontam com modelos conflitantes de paternidade, já que a visão tradicional do pai como provedor financeiro coexiste com o ideal contemporâneo de um pai mais participativo e envolvido na criação dos filhos.

Quando entrevistam casais, Hollos e Bernardi (2009) identificam critérios semelhantes aos anteriormente citados, como renda estável, segurança financeira, bom relacionamento com o parceiro, parceria estável e acesso a creches. Embora a satisfação de todas essas condições conduza à parentalidade tardia, parece persistir uma despreocupação em relação às questões biológicas, como apontado na revisão de literatura realizada por Cooke et al. (2010).

A partir da análise dos estudos, observamos que a incorporação dos valores do capitalismo nos relacionamentos afetivos parece contribuir para a concepção de que existe um momento certo para ter filhos, o que pode culminar na idealização da experiência parental e na consequente frustração de expectativas (Neves et al., 2013; Nunes, 2011; Travassos-Rodriguez & Féres-Carneiro, 2013). Além disso, as implicações da parentalidade tardia, tais como a necessidade de reprodução assistida, e sua parcela de sofrimento e altos custos financeiros, parecem ser desconsideradas pelos casais que supõem um controle sobre as questões biológicas, do mesmo modo como controlam suas vidas (Cooke et al., 2010).

Conflitos Relacionados à Escolha de Ter ou Não Filhos

Ao investigar a opção conjugal de não ter filhos, Rios e Gomes (2009b) destacam que o modo como cada casal lida com essa escolha relaciona-se ao nível de ambivalência e conflito durante o processo, mas também ao tipo de vínculo estabelecido. Segundo as autoras, nos casos em que a ambivalência é maior, pode haver uma maior necessidade de reparação ou outra forma de defesa para lidar com a estigmatização e o preconceito ainda vigentes.

O estudo de Pinquart et al. (2010) refere um predomínio da ambivalência quando o conflito entre a parentalidade e os demais objetivos é influenciado pelo alto custo financeiro envolvido, além da indecisão dos parceiros. Os autores acrescentam que as mulheres tendem a ser mais ambivalentes que os homens, e que estes almejam ter mais filhos que elas.

Tais questões confirmam as colocações de Travassos-Rodriguez e Féres-Carneiro (2013) sobre a impossibilidade de expressão da ambivalência materna na sociedade contemporânea, diante dos ideais de mãe e profissional vigentes. Na direção dos argumentos de Nunes (2011), destacamos o ideal da "mulher contemporânea", que alia o desenvolvimento profissional à maternidade, como gerador de sentimentos de culpa, ao propor um modelo que desconsidera as necessidades pessoais.

 

Considerações Finais

A partir desta revisão de literatura, identificamos quatro pontos fundamentais que permeiam a temática do projeto de ter ou não filhos: o processo de escolha entre ter ou não filhos, a transição para a parentalidade como projeto conjugal, o momento certo para se ter um filho, e os conflitos que permeiam o processo de escolha. Os estudos científicos destacam a complexidade desse percurso conjugal, cuja emergência e crescente visibilidade aponta para a relevância de seu estudo. A compreensão dos padrões reprodutivos contemporâneos permite subsidiar tanto práticas profissionais na área da saúde, quanto a proposição de políticas públicas mais afinadas com as demandas sociais contemporâneas.

A maior parte da produção científica sobre o tema investigado é internacional, questão esta que pode estar relacionada ao fato dos países europeus, bem como a Austrália e o Canadá, estarem testemunhando as novas configurações conjugais e familiares há mais tempo que o Brasil, conforme já apontado por Rios e Gomes (2009a). Essa convivência com uma maior diversidade de padrões reprodutivos e seus efeitos, como o envelhecimento da população, explica o fato de que somente nos estudos internacionais se manifeste a intenção de que seus resultados revertam para o desenvolvimento de políticas públicas que visem elevar as taxas de natalidade (Hutteman et al., 2013; Kaufman & Bernhardt, 2012; Öst, 2012; Roberts et al., 2011).

Esse fato tem implicações, inclusive na opção metodológica dos estudos, já que no cenário internacional predominam os trabalhos sobre o processo da tomada de decisão, ou seja, a abordagem do participante antes de sua escolha (Hollos & Bernardi, 2009; Holton et al., 2009; Iacovou & Tavares, 2011; Pinquart et al., 2010; Roberts et al., 2011; Testa et al., 2014; Thompson et al., 2013). Em contrapartida, nos trabalhos nacionais o participante é abordado após a tomada de decisão, o que pode ser explicado pelo fato de que os novos arranjos familiares, a opção de não ter filhos e o adiamento da maternidade são fenômenos ainda recentes (Rios & Gomes, 2009a, 2009b; Silva et al., 2013; Sohne & Wendling, 2011).

A abundância de estudos no contexto internacional, em oposição à incipiente produção brasileira, aponta para a necessidade de investigações empíricas no âmbito nacional que discutam o processo de escolha conjugal quanto a ter ou não filhos. Identificamos na produção cientifica nacional as mesmas lacunas apontadas por Rios e Gomes (2009a): a incipiência da pesquisa brasileira acerca da temática aqui investigada, a concentração dos estudos em grandes centros urbanos e a adoção unânime do delineamento qualitativo.

Apontamos como limitações deste estudo de revisão, a adoção de descritores distintos para a busca nacional e internacional que, embora estratégica, devido à ausência de correspondência de termos entre os idiomas, pode dificultar a apreensão do fenômeno, bem como a replicabilidade do estudo. Além disso, o fato de não termos complementado a pesquisa inicial com a análise das publicações constantes na lista bibliográfica dos artigos selecionados pode ter impedido que outros estudos elegíveis fossem incluídos nesta revisão.

Os resultados obtidos oferecem subsídios para a prática clínica com casais e famílias, inclusive no que se refere à elaboração de ações profiláticas que podem abordar questões como a ambivalência envolvida no processo de escolha e as implicações da parentalidade tardia. Além disso, a crescente visibilidade da temática no contexto nacional e suas repercussões no âmbito sociopolítico, permitem-nos conjecturar sobre o papel da produção de conhecimento na promoção de políticas públicas que atendam efetivamente as necessidades das famílias.

Esperamos que este estudo de revisão incentive a produção de conhecimento sobre o projeto de ter filhos, possibilitando a reflexão sobre as demandas familiares contemporâneas e a desconstrução de estereótipos relacionados aos modelos familiares. No âmbito da Psicologia, promover a compreensão crítica acerca do processo de tornar-se pai e mãe configura-se como uma importante questão, ao romper com a longa tradição de centralizar os estudos sobre a infância ou a família na figura materna.

Finalizamos esta revisão sugerindo novos objetivos de pesquisa, tais como a elaboração conjugal do projeto de ter ou não filhos, a transformação da conjugalidade ao longo da transição para a parentalidade, além da elaboração de novos desenhos de pesquisa que incluam a figura masculina, explorem novas metodologias e ampliem os contextos de pesquisa para além dos grandes centros urbanos.

 

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Endereço para correspondência:
Mariana Biffi
Avenida Abdo Najar, 1221, Apto. 24
Americana, SP, Brasil 13466-615
E-mail: biffi.mariana@gmail.com

Recebido: 04/05/2015
1ª revisão: 1º/10/2015
2ª revisão: 23/12/2016
Aceite final: 21/02/2016
O presente manuscrito foi desenvolvido com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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