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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.35 no.29 Rio de Jeneiro dez. 2013
Artigos
As novas tecnologias de comunicação: questões para a clínica psicanalítica*
The new communication technologies: issues for psychoanalytical practice
Ana Maria Ferrara de Carvalho Barbosa** ; Ana Maria Furtado*** ; Anna Lúcia de Mello Franco**** ; Claudia Gindre da Silva Berino***** ; Claudia Rodrigues Pereira****** ; Marília Etienne Arreguy******* ; Marlene Jesus de Barros********
Resumo
O presente artigo visa discutir o espaço das novas tecnologias de comunicação na práxis psicanalítica contemporânea. Concentra questões decorrentes do exame e da discussão de casos clínicos que extrapolam o setting tradicional. Chama atenção para a intensidade com que o aparato tecnológico atual participa da vida cotidiana, logo, do processo analítico. Mensagens instantâneas (sms, whatsapp), chamadas com vídeo (skype), e-mails, redes sociais e jogos eletrônicos passam a constituir formas de contato com o mundo e com o analista, tornando-se, portanto, objeto de análise. Em que medida alterações na temporalidade da vida contemporânea "alargam" o espaço clínico? Até que ponto a transferência se altera em tempos de virtualidade e imediatismo excessivos?
Palavras-chaves: Clínica psicanalítica, tecnologias de comunicação, contemporaneidade, temporalidade, setting analítico, transferência.
Abstract
This paper discusses the role of new communication technologies in contemporary psychoanalytic practice. The main focus is on issues arising from the study and discussion of clinical cases that surpass the traditional setting. Noteworthy is the intensity with which the current technological apparatus participates in daily life, and therefore in the analytical process. Instant messaging (sms's, whatsapp), video calls (Skype), e-mails, social networking, video games, etc, now constitute forms of contact with the world and with the analyst, thus becoming object of analysis. To what extent the changes in the temporality of contemporary life "widen" the clinical space? Up to which point transference is altered in times of virtuality and excessive immediacy?
Key-words: Psychoanalytic practice, communication technologies, contemporaneity, temporality, analytical setting, transference.
Não se pratica psicanálise no vácuo cultural e histórico e muito menos contra as forças da história. A psicanálise não é uma seita e, menos ainda, uma seita conservadora e reformista. É preciso apoiar-se nos fenômenos e processos da vida – da vida cotidiana – para operar com alguma eficácia. Nessa medida, o saber sociológico não deveria estar apenas corroborando o que a clínica sugere (...) mas deveria também nos ajudar a descortinar outros horizontes (FIGUEIREDO, L. C., 2007, p. 85).
A virtualização da clínica cotidiana
Quando pensamos sobre as mudanças pelas quais a psicanálise, em especial o setting analítico, vem passando nos últimos anos, é notória a influência das novas mídias, que rapidamente invadiram nossas vidas e nossos consultórios. Essas mudanças não são trazidas para o setting apenas pelo discurso ou pela ansiedade dos pacientes, elas estão presentes na relação entre pacientes e psicanalistas de várias formas. Em primeiro lugar, porque nós também estamos submetidos aos mesmos ideais fáusticos da tecnologia (SIBILIA, 2003), partilhando desse mesmo contexto histórico. Em seu livro O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais, Sibilia articula a diferença entre os ideais que nortearam a modernidade – que chama de prometeicos, cujas principais características são o dispositivo disciplinar e o biopoder que incide sobre os corpos – dos ideais fáusticos. Esses estariam presentes numa posição epistemológica contemporânea, guiada pela superação dos limites da natureza e pela construção de seres híbridos, que teriam como meta última ultrapassar a própria finitude. Em segundo lugar, porque novas demandas de comunicação nos são feitas pelos pacientes, novos dispositivos de acessibilidade são colocados a nossa disposição cotidianamente. Uma das consequências disso é que cada vez mais nos vemos frente à dúvida sobre como receber e responder mensagens, e-mails, fazer sessões por Skype ou, mesmo, sobre como nos portarmos nas redes sociais frente à possibilidade de um encontro virtual com pacientes.
Atualmente, não é raro que psicanalistas e pacientes se comuniquem através desses vários dispositivos, em circunstâncias infinitamente diversas. Vivemos num contexto onde as pessoas se fazem presentes e/ou ausentes através do que a tecnologia tem a oferecer; portanto, responder ou não a esse apelo sempre marcará uma posição do analista em sua relação com o analisando. Não há, nesse caso, possibilidade de isenção, e mesmo quando o analista se recusa a utilizar qualquer desses meios de comunicação, não estará, em hipótese alguma, sendo neutro.
Sabemos o quanto a rigidez do setting, a busca da neutralidade – enquanto usurpação do significado que Freud deu ao "princípio de abstinência" (1915) –, a universalização das regras e o excesso de formalismo, típicos de um positivismo incrustado na obra freudiana (PLASTINO, 2012), trouxeram malefícios aos pacientes, aprisionando-os numa teia de significados e enrijecendo o trabalho clínico (KUPERMANN, 2009). A ortodoxia na clínica não nasceu com a psicanálise e tampouco se traduz em condição para analisabilidade, assim também como não oferece garantias de aprofundamento das causas das patologias que chegam aos nossos consultórios. Seguindo o pensamento de Foucault (1980), o apego a normas rígidas serviria muito mais como garantia de estabelecimento do micropoder do analista, apoiado numa perspectiva de controle e dominação do paciente. Em nome da não ortodoxia e da afirmação de que a função simbólica que o analista exerce não se esvazia por e-mail ou sms, muitas vezes flexibilizamos e ampliamos nossa forma de contato com os pacientes. Não podemos, afinal, nos ensurdecer frente a essa nova realidade que invade o setting e espreita um lugar na transferência.
Por outro lado, não é por uma contingência que a psicanálise se consolidou e se difundiu como um movimento de resistência. Resistência às formas de massificação e ao excesso de adequação à moral sexual civilizada (FREUD, 1908). Resistência, em última instância, à alienação dos desejos e à uniformização dos ideais (KEHL, 2009). Mas resistir não significa necessariamente ir contra, e sim questionar, refletir, associar; aquilo que, afinal, faz parte do nosso ofício. O que não se pode é ignorar o impacto que as novas tecnologias têm sobre a dimensão subjetiva da vida. Tampouco convém subestimar o significado dos fragmentos de análise – cada vez mais marcada por restos de textos, vozes e imagens eletrônicas entrecortadas, sinais e símbolos de um afeto expresso de modo estereotipado – com que os pacientes nos interpelam incessantemente.
A virtualização da vida cotidiana
As tecnologias de comunicação, tanto dentro quanto fora do setting, não oferecem apenas novas formas de compartilhamento e visibilidade. Elas se situam dentro de um contexto de mudanças ainda maiores. Com a disseminação de novas formas de viver propiciadas pelo mundo virtual, foi criado um espaço que potencializa manifestações inconscientes, situando-se num intermédio, nem dentro nem fora, nem eu nem outro, um espaço "entre". É nítida a semelhança com a experiência do espaço potencial definida por Winnicott (1975). Contudo, o uso das novas tecnologias e as consequências específicas ainda não são muito claras, dada a obsolescência anunciada dos aparatos, a transitoriedade de seus efeitos e a perda do contato com a carne (MERLEAU-PONTY, 1945). Tratar-se-ia, aqui, da tendência a abolir a distinção entre realidade e virtualidade, ou da valorização de relações sem densidade, desertificadas pela ausência de vínculos concretos (ŽIŽEK, 2002, 2006)? O filme Matrix (1999), dirigido pelos Irmãos Wachowski, é paradigmático dessa nova forma de existir, por vezes confusa, outras vezes hiperpotente, porém, em ambos os casos, uma existência em que a alienação é uma constante (ŽIŽEK, 2006).
Ora, toda sociedade oferece seus modelos ideais na construção das identidades, envolvendo formas de conduta, aspirações e mesmo indicações de um sentido de vida. Esses ideais variam de tempos em tempos, assim como também os discursos capazes de lhes garantir legitimidade e força performática (COSTA, 2004).
Segundo Sibilia (2002: contra-capa)
As metáforas do robô e do homem-máquina, que proliferaram na sociedade industrial, hoje estão em decadência. Numa metamorfose balizada pela teleinformática e pelas biotecnologias, tais imagens estão sendo substituídas por outras: aquelas que começam a esboçar o homem-informação da sociedade pós- -industrial.
No imaginário coletivo atual, o ser humano coincide com seu código genético, ou seja, é definido por um conjunto de informações a serem decifradas. Está tudo lá, inscrito, programado à espera de tecnologias cada vez mais avançadas na tarefa de ler e traduzir o "idioma" da materialidade corporal.
Cada vez mais introjetados, transparentes e diluídos em trocas íntimas e fluidas, os agentes artificiais se misturam com os orgânicos, dissolvendo as fronteiras e tornando obsoleta a antiga diferenciação, visto que ambos os tipos de elementos compartilham a mesma lógica da informação digital (SIBILIA, 2002, p. 133).
É enorme o ganho que tivemos nas últimas décadas no controle de doenças e no aumento da qualidade e perspectiva de vida. Mas devemos discriminar a ação dos conhecimentos sobre o corpo, da extrapolação da linguagem biomédica para o terreno da subjetividade e da moral. Ora, toda linguagem é uma construção e não deveríamos esperar que nossas proteínas, hormônios e neurônios falassem o que quer que seja a respeito de nossos sonhos ou nossos medos. Ao homem resta a passiva tarefa de se deixar revelar pelas máquinas, exames e pelos especialistas em quase tudo. Nesse contexto, a biotecnologia assume o papel primordial de diagnosticar, prevenir e ajustar. De acordo com Sibilia: "Emerge, assim, um sujeito condenado ao upgrade constante, tanto do seu software (mente/ código) quanto do seu hardware (corpo/organismo), visando à ultrapassagem dos limites espaciais e temporais que constringem a condição humana" (2002).
Assim, os ideais que norteiam a constituição da subjetividade pós-moderna estão sendo transformados em grande parte por aquilo que as novas tecnologias podem oferecer: agilidade, permeabilidade, hiper-exposição, conectividade, instantaneidade e simultaneidade.
As novas formas de inserção social, de manifestação e exposição, de trabalho, de relacionamento, as novas formas de pertencimento e de memória e uma infinidade de parâmetros de conduta e ideais disponíveis na cultura estão produzindo novas imagens de Eu, novas definições do que somos e novas perspectivas de vida. De forma concomitante, percebemos uma mudança nas causas do sofrimento psíquico, na prevalência e mesmo a aparição de novos sintomas, como acontece de uma cultura para outra, de um momento histórico para outro. Segundo Costa (2004), isso acontece porque os sintomas são a antinomia dos ideais de construção identitária. Ao criar os modelos de identidade e conduta, a sociedade cria simultaneamente os modelos de anti-ideal, sintomas dialeticamente produzidos e rejeitados. Por isso, ao pensarmos na clínica contemporânea não podemos desconsiderar o fato de que estamos lidando também com uma nova forma de constituição subjetiva, uma forma de estar no mundo, na qual a superação do tempo e a transposição dos limites do espaço se colocam como horizontes possíveis.
É claro que transformações de ideais e paradigmas sempre existiram na história da humanidade. O próprio conceito de identidade pessoal e a concomitante construção e valorização do mundo interno são, segundo Figueiredo (1996) , tributários de mudanças que ocorreram mais profundamente entre os séculos XVI e XIX. Não substituímos o paradigma do sujeito sentimental pelo do sujeito somático cibernético, raso, que prescinde de sua vida emocional. Trata-se de dois paradigmas que convivem mutuamente, concorrendo por ideais e crenças, e, por isso mesmo, geram conflitos e incertezas.
As novas formas de adoecimento psíquico apontam para o fato de que essas mudanças colocam ainda mais em risco os limites da subjetividade, gerando uma crise naquilo que vem há anos nos constituindo como sujeitos: a experiência da interioridade. Os sofrimentos mais atuais como crises de ansiedade, pânico, distúrbios da imagem corporal, sentimento de irrealidade de si, sentimento de insuficiência (EHRENBERG, 1998), entre outros, evidenciam a falta de estabilidade do eu e a ausência de uma área de repouso (WINNICOTT, 1990 [1963]), provavelmente amplificadas pelo excesso de exposição e a predominância dos sentimentos de transparência e permeabilidade. A instabilidade do sentimento de identidade provém, segundo Costa (2004), da incapacidade do sujeito de preservar sua intimidade.
O declínio do homem sentimental trouxe por um lado a revalorização do espaço público, da visibilidade em detrimento do culto à interioridade e, por outro, privou o indivíduo de um importante mecanismo de estabilização da identidade, que depende da capacidade e do direito de escolher o quê da sua identidade deveria ser revelado e a quem revelar. A moral dos sentimentos trazia consigo o espaço da intimidade, oculta aos olhos alheios, que resguardava segredos e a obscuridade dos desejos. Com o espaço público invadindo nossa intimidade, não há como resguardar um eu que não seja acessível aos ditames culturais. Por essa incapacidade, o sujeito se sente exposto em suas virtudes, mas igualmente em suas fraquezas (PEREIRA, 2008, p. 30).
A exposição dos aspectos mais banais e singelos da vida é representada, nas redes sociais, através de portfólios de fotos diárias de si mesmo e de entes próximos, instantâneos de festas e viagens, frases feitas, ditos populares, piadas banais, e, até mesmo, fotografias de pratos de comida, dando uma sensação de realidade, notoriedade e pertencimento. Essas práticas passam a compor um novo imaginário determinante do viver coletivo. Paradoxalmente, revelam o abismo intransponível entre o que se sente e o que as palavras e as imagens são capazes de representar. Ou será que o que se "posta" engendra novas formas de ser, mudando inclusive, as formas de sentir? Do mesmo modo, a busca de testemunhas de cada momento vivido, de sentimentos e sensações, cada vez mais frequente e importante para o indivíduo contemporâneo, revela a fragilidade do sentimento de existência e de realidade das próprias experiências. Procura- -se um significado coletivo na ausência de um sentido individual para o sofrimento. Não obstante, a angústia do encontro consigo e com o outro, pode ser momentaneamente evitada, camuflada, distorcida, mas não inexistente.
Uma pista disso está em duas frases compartilhadas numa conhecida rede social. Numa delas, se diz que as redes sociais "aproximam quem está longe e afastam quem está perto". A outra afirma: "Fale ilimitado. Fale pessoalmente. A melhor operadora é o encontro" – e aqui, duas pessoas estão se abraçando. O tom crítico das frases nos aponta para além de um sentido nostálgico, a constatação de que os encontros virtuais podem redefinir e até ampliar a modalidade das relações. Entretanto, não necessariamente substituem o contato físico, a experiência do tato, da audição, a linguagem corporal, o ritmo respiratório, o olhar e a presença afetiva, que exigem tempo e espaço para se materializar.
Espaço virtual indiferenciado ou um campo de ligação?
Conforme aponta Joel Birman (2012), vivemos em um momento de (a)celerada transformação dos valores que norteavam a vida cotidiana. Acompanhamos o autor, naquilo que propõe nomear de "sujeito contemporâneo", uma figura que, de certo modo, se nos apresenta através de nossas relações diárias, impondo a condição necessária de acompanharmos a roda da história1. Birman (2012) assinala três eixos principais de análise, em que a balança passa a pender excessivamente para um dos polos do binômio, sendo estes: espaço-tempo, dor-sofrimento, desamparo-desalento. Em linhas gerais, é como se algumas dessas coordenadas fossem esvaziadas pela absoluta inflação de outras. O tempo estaria reduzido ao já, como também podemos evocar em Friedrich Jameson (1990), ao postular a pregnância de um "presente perpétuo", em que a história e as memórias seriam desinvestidas na atualidade. O espaço, por outro lado, estaria ultra estendido, de modo que as prerrogativas do ter, dominar e territorializar, inclusive no campo virtual, acentuariam o ímpeto humano de controle e posse do outro. A ideia moderna de "projeto de vida" ou de "projeto de nação", por sua vez, estaria perdida para noções mais contemporâneas, fundamentalmente hedonistas, ligadas aos imperativos superegóicos, signos do Farás (FREUD, 1923), expressos por excelência no marketing ditador das condutas almejáveis, como: "Just do it!" Ou ainda, por exemplo, na propaganda de uma multinacional: "Imagem é tudo!".
Concomitantemente ao bombardeamento de estímulos e excitações constantes, os períodos de descanso e os intervalos entre uma satisfação e outra são, por vezes, vividos como tédio e apatia. Segundo Winnicott (1975), os momentos de ausência de excitação são essenciais para a vida criativa. É neles que o sujeito pode relaxar, viver momentos de não-integração e entrar em contato com um mundo puramente subjetivo.
Não é raro nas sessões de análise, estarmos com pacientes ansiosos à espera do toque do celular ou à espera de mensagens, que são avidamente lidas no momento em que chegam; além dos mais, esses "conectados" tentam se comunicar, falando com o analista ao mesmo tempo em que teclam mensagens no whatsapp. Com a falta de oposição à satisfação dos impulsos, seja pelo imediatismo do objeto ou pela abundância de ofertas, construiu-se um modelo de relação alteritária que impede o sujeito de experenciar um intervalo suficiente entre a demanda e a satisfação, que lhe permita criar, no sentido winnicottiano do termo.2
Costa e Salém (2003: 7) afirmam que, tanto para Winnicott quanto para Balint:
(…) as experiências de segurança, relaxamento e harmonia são tributários da área de criação ou do estado de não-integração (…) A área de criação envolve, portanto, um primeiro momento de retirada do investimento dos objetos para que eles possam ressurgir, posteriormente, como produtos da atividade criadora do self.
Mas, desfrutar desses intervalos sem que isso seja uma ameaça à integração, depende de que se tenha confiança no ambiente. O excesso de estímulos, somado à inconstância do ambiente em oferecer um mundo seguro e tranquilizador, leva à incapacidade de viver estados de não excitação atrelados ao relaxamento, ou seja, torna-se cada vez mais difícil ao sujeito contemporâneo viver momentos de tranquilidade de forma subjetivamente enriquecedora.
O protótipo da vivência de confiança é descrito por Winnicott em "A capacidade de estar só" (1983 [1958]). É através de um paradoxo que ele descreve o que é essencial na confiança: a capacidade de estar só na presença da mãe. Em outros termos, a confiança no ambiente é adquirida através da presença de um outro que apenas está lá e que permite ao bebê, por sua vez, também apenas estar, sem se sentir exigido, cobrado ou submetido. Nesse caso, como escreve em outro artigo (1983 [1963]), "a não-comunicação simples é como repousar". São momentos nos quais o sujeito se ocupa de si para depois poder se ocupar do mundo (PEREIRA, 2008, p. 89).
Nas palavras de Birman (2012), a aceleração da experiência, característica das atuais demandas do trabalho, do consumo e das exigências de excelência para o sucesso, impediria o tempo necessário ao sonhar, coartando, por sua vez, qualquer possibilidade de integração do sofrimento e de elaboração da dor. Esta se torna manipulável, pela fuga para o "admirável mundo" virtual, pelo entorpecimento com as drogas, pela medicalização de qualquer alteração do corpo, ou mesmo, pela construção estética de "super-humanos", que incrementam a corporeidade com os mais avançados aparatos tecnológicos. Assim, do corolário freudiano do desamparo, teríamos descambado para o continente do desalento e da alienação.
De um ponto de vista dialético, entendemos que esse corpo se expande no fluido da aparição em redes sociais, que parecem disfarçar de si mesmo as invitáveis angústias do existir. A dimensão sintomática da dor do sujeito contemporâneo surge pela via da atuação, em personagens que evidenciam um simulacro do desejo através de avatares componentes de uma imagem hiper potente de si vertida ao outro, que nos transforma em personagens fáusticos, fadados à alienação e à artificialidade (SIBILIA, 2002).3
Não se pode eliminar o valor positivo que as mídias possuem em disseminar informações, recompor contatos interpessoais, e, até, em revalorizar um espaço político já bastante esgarçado no período pós-contracultura. Mas, talvez, seja necessário, por ora, "jogar o bebê fora" e ficar com o "resto sujo da água do banho", na tentativa de criar e analisar as alternativas de compreensão e tratamento inerentes ao mal-estar cibernético atual.
Afinal, nem o sofrimento humano escapa das metáforas cibernéticas, que emprestam sentido às formas do sujeito se perceber, descrever a si e às suas mazelas. Os sintomas, que na contemporaneidade tendem a ser associados ao sentimento de insuficiência (EHRENBERG, 1998), são experienciados como a incapacidade de fazer um update de si mesmo. Em termos psicanalíticos, o sentimento de insuficiência se traduz como uma frustração narcisista; ou seja, é a distância entre o eu e o eu ideal que se evidencia (FREUD, 1914; 1923). O eu ideal, forjado à luz da promessa de completude, traz a reboque a ilusão, alimentada cotidianamente e em rede, de que há dispositivos para a sua total e imediata satisfação – compreendida a essa altura como uma forma de êxtase permanente – e, se você não os tem, é por incompetência, por falta de força de vontade ou qualquer outra falha no seu hardware.
As potências de um novo sujeito ágil e informatizado somam-se em uma série de demandas ao terapeuta. Nesse sentido, perguntaríamos: em que medida sustentar os apelos de inúmeras modificações dos horários e dias das sessões, por exemplo, por sms, na última hora? Ou, ainda, como manejar as tentativas de estender a análise ao campo da escrita fragmentária de torpedos e de postagens compostas por 140 caracteres? Ao responder a essas invocações, estaríamos atendendo às demandas de indiferenciação, de "não desligamento", ou à fantasia de onipotência de nossos pacientes, à medida em que cedemos ao uso dos aparatos midiáticos e tecnológicos? É possível estar em vários lugares ao mesmo tempo sem nenhum prejuízo na experiência subjetiva?
Mas o reverso da moeda também se coloca: será que estes mesmos dispositivos também poderiam oferecer sustentação, continência e possibilidades de transformação da experiência emocional (FIGUEIREDO, 2007)? Fazer uma sessão por Skype com um paciente que viaja significa necessariamente estar cedendo à onipotência (dele e do analista)? Responder um email ou um sms significa ir em direção de um estimulo à indiferenciação e à não-espera? Ou contém a possibilidade de criação de um campo de ligação?
Não pretendemos aqui, portanto, entrar na seara nostálgica de uma crítica ácida às práticas da atualidade. Se esses aspectos são verdadeiros e nitidamente observáveis na vida e na clínica, cabe pensar em que medida tamanhas alterações no ethos humano poderiam ser absorvidas, compreendidas e, quiçá, manejadas na clínica. Em que medida a dor de existir teria um contraponto de ganho e alento com as inúmeras chances de "ligação" (FREUD, 1911; LAPLANCHE; PONTALIS, 1967) que nos oferecem as tecnologias contemporâneas?
Intervenções clínicas
As perguntas acima nos levam a pensar que o que está em jogo são as implicações desses dispositivos tecnológicos no manejo da transferência e no estabelecimento do setting analítico. Ler ou não ler o blog do paciente? Quanto ao Facebook, que limites colocar? Ou é melhor não ter? Não seria importante ficar atento para o momento, a frequência, a insistência de mensagens e e-mails?
Figueiredo (2008) aponta para a importância de se basear a transferência sobre as condições de "implicação" e "reserva" do terapeuta. Como isso se daria em 3G, 4G ou via rede? Corre-se o risco de uma implicação excessiva?
É óbvia a insuficiência da pura reserva, entendida como neutralidade, indiferença e silêncio, principalmente diante dos pacientes chamados 'difíceis'. No entanto, seja na análise seja na vida e em qualquer experiência de cuidado são inegáveis os malefícios da implicação pura – os extravios e excessos das funções cuidadoras –, mesmo quando, e principalmente quando, são justificados pela melhores razões humanitárias: salvar, socorrer, curar a todo custo (FIGUEIREDO, 2007, p. 21)!
Será que é possível, neste contexto de agilidade, conectividade, instantaneidade e simultaneidade, o analista manter sua presença reservada, dando tempo e espaço para a presença do outro, esperando, mantendo-se disponível, ao mesmo tempo em que acolhe, reconhece, dá continência e oferece limites aos movimentos pulsionais – presença implicada – (FIGUEIREDO, 2007; 2008)? Enfim, muitas perguntas, muitas dúvidas, muitas oportunidades para pesquisa e observação.
As constantes redefinições das relações dos sujeitos com seu organismo e com seu meio impõem, como vimos, um redimensionamento das formas de intervir na clínica psicanalítica, que se beneficiará de um diálogo com as pesquisas contemporâneas tanto no campo da sociologia como da neurobiologia.
Nosso trabalho é marcado pelo manejo do eixo transferência - contratransferência, que, a partir da leitura winnicottiana, pode ser concebido como um campo transicional por excelência, o que permite que a criatividade se torne uma das metas do tratamento. Um traço fundamental da transferência é a apresentação sistemática de funcionamentos emocionais primitivos na relação entre o par terapêutico. O encontro entre analista e analisando é não só o campo para a revivescência de experiências que desencadearam o funcionamento de uma determinada organização psíquica, como também o campo de instauração de novas criações de sentido (FURTADO, p. 96, 2006).
Trabalhar a transferência é, pois, acolher e intervir sobre um movimento paradoxal que faz com que as paixões sejam mais atuadas que faladas no presente, o que lhe confere um estatuto de constante estranheza. Numa análise, o que é transferido são elementos de natureza diversa – pensamentos e afetos –, dirigidos para o analista. Estes elementos podem ser tão pontuais quanto são os traços de identificação: uma entonação, uma data, a sílaba de um nome, irreconhecíveis à primeira vista e que não só se repetem como podem ser criados. A forma com que nossos pacientes e nós mesmos introduzimos em nosso contato os diversos gadgets eletrônicos é marcada por nossa própria estranheza frente ao paradigma cibernético. No entanto, não podemos recuar na revisão da implicação, da reserva e da ética do analista para não nos tornarmos analistas analógicos, sem espaço num mundo digital (BONAMINIO, 2011).
Como analistas, estamos constantemente sendo interrogados por novas imagens através das quais os pacientes se apresentam (e se ausentam) sem, contudo, naturalizar essa forma de comunicação, como se ela não fizesse parte do repertório que merece ser tratado como material de análise. Usar recursos cibernéticos pode fazer parte da rotina contemporânea. Responder aos sms's e e-mails pode fazer parte do encontro terapêutico. A interrogação do analista, tanto no setting tradicional como no espaço virtual, exige deste a necessária reserva para conduzir o paciente à simbolização, mantendo-se atento ao convite imediatista de agir de forma automática. Na contemporaneidade, quando se apresentam à análise organizações psíquicas em que o Eu muitas vezes ainda não se instaurou satisfatoriamente, faz-se uma exigência ao analista durante todo o percurso de seu trabalho: a de que ele crie condições para que a pessoa se exprima, pois sua expressão manifesta a vitalidade do analisando. Para isso, o analista deverá instituir no setting condições para a atuação de movimentos que, através da continuidade no tempo, possibilitem ao paciente experimentar que o analista pode reconhecê- -lo da maneira que se lhe apresentar. Assim, com a capacidade de reconhecimento do e pelo outro4, criar-se-á no tempo de suspensão, que é a sessão analítica, condições para que se reeditem os terrores primitivos, ao mesmo tempo em que se instaure uma experiência de tranquilização capaz de mobilizar a diferenciação entre mundo interno e externo. Essa relação terá ritmos e modelos de interação próprios, exigindo criatividade do terapeuta (FURTADO, 2006, p. 97).
Como dissemos anteriormente, não há respostas a priori. Há encontro permanente, escuta e busca de discernimento. Se os movimentos virtuais de nossos pacientes estão cada vez mais presentes, nossa atenção às modalidades de respostas deve ser permanente. Caso a caso, vamos experimentando, na transferência, no que consiste a demanda.
A experiência clínica nos apresenta um grande espectro: busca de acolhimento, reconhecimento, amor e inúmeras dificuldades de adiamento da satisfação. Se o aparato tecnológico é utilizado como "anteparo" ao contato com o analista, precisamos ficar conectados com o sentido de nossa resposta ao paciente. Mas, em alguns casos, o "convite" que extrapola o setting consiste em expressão de desamparo, em demanda de cuidado e a resposta pode ser uma ferramenta de trabalho fecunda para novas construções.
Um dos riscos que corremos é o de estar, nós também, impactados pelo sentido de urgência e pela aceleração do tempo com que convivemos em outras esferas do cotidiano. E, assim, mais implicados do que em posição de reserva, seremos capturados pelas demandas que fragilizam o vínculo analítico.
Reflexões finais
Flexibilização do setting não é um tema recente, não surgiu com a internet ou o celular. O próprio criador da psicanálise foi extremamente inventivo com seus primeiros pacientes, correndo riscos ao analisar amigos e familiares, atendendo em sua casa e não medindo o tempo de permanência com os pacientes (GAY, 1988). Freud (1926) também se posicionou contra o corporativismo médico, ao abrir as portas da psicanálise a outros profissionais. Um de seus principais seguidores, Sandor Ferenczi (1921; 1926; 1928; 1930), por sua vez, foi o primeiro a experimentar novas técnicas, por vezes cometendo equívocos, ao criar um verdadeiro laboratório de psicanálise, mesmo contra a vontade do "mestre". Suas tentativas e erros, ao inovar as atitudes terapêuticas, em muito contribuíram para a validação de técnicas psicanalíticas efetivas. Também, grandes pensadores do campo, como Melanie Klein, Jacques Lacan e Donald Winnicott, trouxeram contribuições seminais para a consolidação da clínica, estabelecendo parâmetros para a pluralidade de ações clínicas. Assim, ao fazer psicanálise hoje, constatamos que a fluidez da vida e o sofrimento "encarnado" e encenado nos corpos sempre nos exigem uma atuação singular, que oscila entre o instituído e aquilo que pode vir a ser transformador na transferência. Colocar regras a priori é simplesmente não levar em consideração o significado inconsciente das demandas, sejam elas feitas no divã ou via internet. Acreditamos que os limites que os psicanalistas impõem às mensagens, e-mails, etc, podem ser pensados como quaisquer outros que dizem respeito tanto ao próprio conforto quanto à compreensão da demanda. É preciso, por exemplo, questionar quando o ato de se fazer presente fora das sessões, tornando-se inequivocamente acessível, favorece a voracidade, a ilusão (da não espera) da falta de barreiras entre um eu e um outro, a fantasia da instantaneidade, e, por outro lado, quando essa postura representa o atendimento das necessidades cujas respostas seriam garantidoras de um vínculo, sem o qual seria impossível prosseguir na cura.
Em nossa micropolítica do cotidiano, é a singularidade que buscamos resgatar ou mesmo construir em cada movimento, em cada ato ou palavra dos analisandos. Talvez, resida aí o ponto nodal e imutável da psicanálise apesar das transformações impostas pelas tecnologias que marcam de forma inexorável a passagem do tempo. O imaginário se transforma, mas a condição de elegermos outro a quem nos dirigimos, a quem questionamos sobre nossos sintomas permanece. A função simbólica do analista, portanto, será suplementada por uma função virtual real, ao mesmo tempo simulacro de presença e consolidação da ausência, com que cada um tem sempre de lidar ao longo da vida. Nesse sentido, as mídias de comunicação não precisam ser vistas como uma ameaça a um "analista analógico" (BONAMINIO, 2011), mas como mais uma ferramenta possível e até mesmo necessária e útil num mundo digital consolidado.
Referências
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Endereço para correspondência:
Ana Maria Ferrara de Carvalho Barbosa
e-mail: anamferrara@terra.com.br
Ana Maria Furtado
e-mail: anamariafurtado.rj@gmail.com
Anna Lúcia de Mello Franco
e-mail: alfranco@globo.com
Claudia Gindre da Silva Berino
e-mail: claudia-gindre@uol.com.br
Claudia Rodrigues Pereira
e-mail: pereiraclaudia@uol.com.br
Marília Etienne Arreguy
e-mail: mariliaetienne@id.uff.br
Marlene Jesus de Barros
e-mail: marlenejbarros@gmail.com
Tramitação: Recebido em 19/08/2013
Aprovado em 07/10/2013
* As discussões clínicas ocorreram ao longo dos últimos dois anos de supervisão coletiva, coordenada pela psicanalista Ana Maria Furtado no CPRJ
** Psicanalista, associada ao Fórum/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, mestre Psicologia Social/Fundação Getúlio Vargas-Rio
*** Psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, doutora Saúde Coletiva/Intituto de Medicina Social-Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
**** Psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
***** Psicanalista, associada ao Fórum/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, mestre Educação/Universidade Federal Fluminense
****** Psicanalista, associada ao Fórum/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, mestre Saúde Coletiva/Intituto de Medicina Social-Universidade Estadual do Rio de Janeiro
******* Psicanalista, associada ao Fórum/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, profa. Programa pós-graduação Educação/Universidade Federal Fluminense
******** Psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
1 Não entraremos, aqui, na discussão sobre qual melhor termo conviria para designar a atualidade, nem tampouco temos a intenção de delimitar, no escopo deste artigo, as semelhanças ou diferenças multiculturais no uso das mídias em diferentes contextos socioantropológicos. A questão filosófica acerca da distinção entre hipermodernidade, pós-modernidade, modernidade tardia, etc, é objeto de polêmica no campo acadêmico-político, cuja discussão está delineada em Birman (2012, p. 30). Em relação à clínica, acreditamos na riqueza de uma leitura contemporânea de Freud, assim como na necessidade de sempre repensarmos aspectos datados da sua obra, que, no entanto, não invalidam os fundamentos da clínica psicanalítica, já bastante consolidados, criticados e incrementados ao longo do desenvolvimento da psicanálise enquanto saber atual
2 Como se sabe, o conceito de criatividade no pensamento de Winnicott é singular e fundamental. A criatividade não se confunde com o fazer criativo ou com a produção artística, mas tampouco é definida como uma lente psíquica através da qual enxergamos o mundo, um atributo mental que deixaria a vida mais "colorida" e interessante. A capacidade criativa se manifesta no espaço potencial, que é essencialmente o espaço da ação humana. Para o autor, é no encontro entre o mundo subjetivo e a objetividade do meio que se vive de forma criativa. Por isso, afirma que o uso criativo do objeto requer que ele seja complacente e resistente ao mesmo tempo. Isso pressupõe, por um lado, que o objeto se deixe usar, ou seja, que ele seja flexível o suficiente para se deixar moldar à imaginação. Por outro, é importante que ele ofereça resistência, para que não seja confundido com um objeto da realidade interna. Ver Winnicott (1975), O brincar e a realidade
3 Em seu livro, O homem pós orgânico, Sibilia afirma que a tecnociência tem uma característica fáustica que determina uma evolução pós-biológica, ou simplesmente, a pós-evolução( p. 118), visto estarmos sendo afetados pelas novas propostas de reinvenção de vida em nosso corpo e em nossa subjetividade, num projeto que contempla toda a biosfera da Terra
4 Desenvolvendo a atitude que Winnicott denominou concernimento em relação ao paciente.