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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.36 no.30 Rio de Jeneiro jun. 2014
ARTIGOS
Algumas contribuições de Winnicott e Lacan para a análise de casos e situações-limite
Some contributions made by Winnicott and Lacan to the analysis of borderline cases and situations
Perla KlautauI, II*; Monah WinogradII**; Carlos LannesI***
ICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
RESUMO
Tanto o exame dos textos winnicottianos quanto o estudo das últimas elaborações do ensino de Lacan oferecem contribuições para o manejo de casos e situações difíceis. Apesar de diferenças fundamentais, as abordagens desenvolvidas por estes dois autores têm em comum as noções de processo, gradação e continuidade. Tais premissas são adotadas como essenciais para a superação dos limites impostos pela técnica analítica clássica e, consequentemente, para inclusão de casos refratários ao tratamento erigido como padrão pelas neuroses.
Palavras-chave: Casos-limite, Winnicott, Lacan, técnica psicanalítica, interpretação.
ABSTRACT
Both the examination of Winnicott's texts and the study of the last elaborations of Lacan's teachings, have significant contributions to offer regarding the handling of especially difficult cases and situations. In spite of their fundamental differences, both authors share the notions of process, gradation and continuity in their approach. These assumptions are established as critical to overcoming the limits imposed by the classical analytical technique and, consequently, to including patients who do not fit in the standard treatment of neurotic illnesses.
Keywords: Borderline cases, Winnicott, Lacan, psychoanalytical technique, interpretation.
A expressão casos e situações-limite é uma das formas utilizadas para designar determinados momentos de uma análise em que a técnica psicanalítica clássica encontra um limite no que diz respeito ao seu funcionamento. O tratamento das neuroses, tal como foi postulado por Freud, consiste na investigação do material edípico recalcado sustentada pela associação livre por parte do paciente, pela atenção flutuante e pela interpretação por parte do analista. Quando alguns quadros psicopatológicos não se amoldam ao tratamento erigido como padrão pelas neuroses, torna-se necessário avançar para trás, dirigir-se ao campo pré-edípico e empreender um remanejamento da técnica, apoiado em uma melhor compreensão dos modos de subjetivação que encontram suas raízes em experiências vividas num plano, no qual o que está em tela são a inserção e a ancoragem do corpo no mundo em que ele habita. Isto diz respeito ao plano pré-discursivo, ou seja, à dimensão da vida subjetiva cuja ordenação se dá por meio de critérios e processos que não incluem tudo aquilo que a aquisição do equipamento linguístico oferece - uso de conceitos, produção de significações e operações simbólicas.
Winnicott se aproximou da psicanálise por conta de seu interesse pelos momentos iniciais da constituição da subjetividade e construiu uma teoria voltada para o desenvolvimento emocional primitivo, partindo da dependência do bebê em relação ao meio ambiente. O mesmo não pode ser dito de Lacan que se interessou pela obra freudiana por intermédio da psiquiatria e consolidou sua participação no cenário psicanalítico francês a partir da leitura estruturalista dos escritos de Freud em alemão. Fato este que atesta sua concepção de uma prevalência da linguagem no estabelecimento das primeiras relações da criança com o ambiente. Desta forma, é possível afirmar que um privilégio é dado à representação, à experiência mediada pela significação, reflexiva e compartilhável. Amparados pelas investigações realizadas por Miller (1997, 1999, 2000, 2003), podemos conceber que, somente no final de sua obra, Lacan efetua um recuo em direção aos momentos inaugurais da vida psíquica e abre as portas para a investigação do campo pré-discursivo da experiência humana.
A importância dada à representação e à palavra, tanto nas teorias do aparelho psíquico quanto nas formas de manejo clínico, deixaram, por muito tempo, a discussão do campo pré-discursivo, do não representado, como um tópico lateral. A teorização sobre os momentos iniciais da constituição do psiquismo possui reflexos diretos sobre a prática analítica, ampliando a perspectiva clínica na medida em que se torna possível incluir casos e situações nas quais o tratamento esbarra em obstáculos que limitam o poder das intervenções verbais do analista. A psicanálise contemporânea tem buscado, cada vez mais, recursos para enfrentar os limites impostos pelo instrumental clínico construído para o tratamento das neuroses baseado na transcrição do conteúdo inconsciente. Winnicott e Lacan, cada um a seu modo, forneceram algumas contribuições para analisar casos refratários ao uso da interpretação como principal ferramenta clínica. Antes de abordarmos tais contribuições, examinaremos os limites encontrados por Freud no uso da técnica analítica.
Freud e os limites da técnica psicanalítica
Desde 1920, Freud e seus discípulos se depararam com obstáculos que questionavam a eficácia da técnica psicanalítica. Em nota para a tradução inglesa do artigo freudiano de 1937, Análise terminável e interminável, Strachey se refere ao pessimismo de Freud em relação ao alcance do raio de ação da psicanálise. Uma leitura atenta desse texto deixa claro que as limitações do procedimento analítico constituem o tema principal do referido artigo. Sendo assim, seria possível afirmar que o pessimismo de Freud em relação à eficácia da técnica psicanalítica refletia seu encontro com o que atualmente vem sendo chamado de casos e situações limite?
Certamente, é possível afirmar que Freud encontrava-se diante dos limites da técnica psicanalítica. As marcas do tom pessimista, adotado por Freud no artigo de 1937, podem ser encontradas nas últimas conferências introdutórias sobre psicanálise escritas e proferidas alguns anos antes, mais precisamente, em 1916-17. Na parte final da conferência XXVII, intitulada Transferência, Freud indica um dos limites da técnica ao avaliar que esta não é eficaz em todos os casos: "A observação mostra que aqueles que sofrem de neuroses narcísicas não têm capacidade para transferência ou apenas possuem traços insuficientes da mesma" (Freud, 1916-17, p. 520). Na lógica adotada por Freud, o estabelecimento de uma relação transferencial produtiva é a condição necessária para que a expectativa do analista seja cumprida, ou melhor, para que as resistências que incidem sobre o material recalcado possam ser eliminadas. Neste ponto, é importante ressaltar que a resistência faz parte do eu e é eliminada quando este reconhece uma interpretação: "Em numerosas doenças nervosas - na histeria, nos estados de ansiedade, na neurose obsessiva - nossa expectativa cumpre-se" (Freud, 1916-17, p. 510). Em outras palavras, as resistências muitas vezes são vencidas, as barreiras do recalque removidas e, assim, o material inconsciente pode ganhar acesso à consciência. O mesmo não pode ser observado, tão frequentemente, nos casos de neuroses narcísicas.
Na conferência XXXIV, Explicações, aplicações e orientações, Freud pondera que nunca fora um terapeuta entusiasta e mostra-se ciente dos sucessos e obstáculos inerentes ao processo analítico. A eficácia da técnica encontra-se diretamente ligada ao montante de rigidez psíquica presente e à forma da doença tratada. O último fator retoma a discussão efetuada na conferência XXVII e, portanto, encontra-se diretamente ligado ao êxito da análise: "o campo de aplicação da terapia analítica se situa nas neuroses de transferência - fobias, histerias, neuroses obsessivas - e, além disso, anormalidades de caráter que se desenvolveram em lugar dessas doenças" (Freud, 1933, p. 152). Estes casos são destinados ao sucesso enquanto as condições narcísicas e psicóticas devem ser analisadas com cautela, já que se encontram muito provavelmente fadadas ao fracasso. Até aqui, nenhuma novidade. O que há de novo nesta conferência diz respeito ao primeiro fator responsável pela eficácia da técnica analítica:
O primeiro desses fatores amiúde é negligenciado sem razão. Por maiores que sejam a elasticidade da vida mental e a possibilidade de reviver antigas situações, nem tudo pode ser trazido à luz novamente. Determinadas modificações parecem ser definitivas e correspondem a cicatrizes que se formaram quando um processo completou seu curso. Em outras ocasiões, tem-se a impressão de um enrijecimento geral na vida psíquica; os processos mentais, aos quais se poderia muito bem indicar outros caminhos, parecem incapazes de abandonar os antigos rumos (Freud, 1933, p. 152).
O fator negligenciado - "a rigidez psíquica caracterizada pelas modificações que se cristalizam em forma de cicatriz" (Freud, 1933, p. 152) - será objeto de estudo, quatro anos mais tarde, por intermédio da denominação "alterações do ego" (Freud, 1937, p. 256). Em 1937, no artigo Análise terminável e interminável, as alterações do ego passam a ser um fator determinante dos resultados do processo terapêutico. A análise de tais alterações explica, em parte, o pessimismo freudiano diante da duração do tratamento. Logo no início do referido artigo, três fatores são destacados como decisivos para o sucesso do tratamento analítico "a influência dos traumas, a força constitucional dos instintos e as alterações do ego" (Freud, 1937, p. 256). Os dois últimos são considerados prejudiciais à eficácia do tratamento analítico, podendo até tonar uma análise interminável. Para Freud, responsabilizar o caráter constitucional das pulsões pelo surgimento de alterações do ego torna-se uma tentação que deve ser evitada, pois, como ele afirma, as alterações do ego possuem etiologia própria, mesmo que ainda obscura:
E, na verdade, tem-se de admitir que nosso conhecimento desses assuntos [alterações do ego] ainda é insuficiente. Só agora eles estão se tornando matéria de estudo analítico. Nesse campo parece-me que o interesse dos analistas está bastante erradamente dirigido. Em vez de indagar como se dá uma cura pela análise (assunto que acho ter sido suficientemente elucidado), se deveria perguntar quais são os obstáculos que se colocam no caminho de tal cura (Freud, 1937, p. 252).
Neste artigo, Freud destaca a necessidade de os analistas se voltarem para as dificuldades de procedimento da análise. Sendo assim, uma parte do presente artigo é especialmente dedicada aos obstáculos erigidos no processo analítico diante de alterações do ego. Se recorrermos à metáfora utilizada na conferência de 1933, o termo alterações do ego deve ser entendido como uma cicatriz adquirida nos primeiros anos do desenvolvimento infantil. Nesta época, o eu infantil, a serviço do princípio de prazer, tem a tarefa de exercer uma mediação entre as exigências do isso e do mundo externo. Além de mediar as relações entre essas duas instâncias, cabe ao eu proteger o isso dos perigos oferecidos pelo mundo externo. O que acontece durante esse processo é que o eu passa a adotar uma posição defensiva não só com relação aos perigos externos, mas também em relação aos perigos internos do mesmo modo que se defenderia de perigos externos. Um dos procedimentos utilizados pelo eu nessa batalha é alterar a si próprio, adaptando-se à situação de perigo. Deste modo, é importante ressaltar que as alterações efetuadas no eu são resultado do uso dos mecanismos de defesa desenvolvidos a fim de evitar as primeiras situações de perigo, de angústia e de desprazer.
Os mecanismos de defesa servem ao propósito de manter afastados os perigos. Não se pode discutir que são bem sucedidos nisso, e é de duvidar que o ego pudesse passar inteiramente sem esses mecanismos durante seu desenvolvimento. Mas é certo também que eles próprios podem transformar-se em perigos. (...) Ademais, esses mecanismos não são abandonados após terem assistido o ego durante os anos difíceis de seu desenvolvimento. Nenhum indivíduo, naturalmente, faz uso de todos os mecanismos de defesa possíveis. Cada pessoa não utiliza mais do que uma seleção deles, mas estes se fixam em seu ego. Tornam-se modalidades regulares de reação de seu caráter, as quais são repetidas durante toda a vida, sempre que ocorre uma situação semelhante à original (Freud, 1937, p. 270).
A passagem acima esclarece que, ao fixarem-se no eu, os mecanismos de defesa tornam-se parte do caráter individual de cada um de nós. A consequência disto é que o eu de um adulto continua se defendendo do perigo existente na realidade atual à moda antiga e "vê-se compelido a buscar na realidade as situações que possam servir como substituto do perigo original, de modo a poder justificar, em relação àqueles, o fato de ele manter suas modalidades habituais de reação" (Freud, 1937, p. 271). Na maioria das vezes, o analisando repete as modalidades de reação de seu caráter durante o trabalho analítico. Tal fato impõe obstáculos aos esforços efetuados por parte do analista já que as modalidades de reação de caráter, originárias de alterações do ego, encontram-se distanciadas do conflito recalcado. Desta forma, não se trata de trazer à consciência o conteúdo recalcado, pois este não se encontra inscrito sob o mesmo registro que as modificações inscritas no eu sob a forma de cicatriz. Para atingir as alterações do eu, é preciso que se empreenda uma análise dos mecanismos de defesa.
Para Freud, a análise dos mecanismos de defesa é parte integrante do processo analítico que, por sua vez, deve ser concebido como um movimento pendular que oscila constantemente para trás e para frente, ou seja, entre um fragmento de análise do isso e um fragmento de análise do eu. Como se sabe, o movimento para trás consiste em trazer à consciência o material que tem o isso como morada. Neste caso, tal empreendimento é feito através do uso da interpretação dos conteúdos recalcados. Neste segundo caso, torna-se necessário "corrigir algo no ego" através de uma análise dos mecanismos de defesa (Freud, 1937, p. 271). De acordo com Freud, é neste momento que os obstáculos se colocam no caminho da cura: "a dificuldade da questão é que os mecanismos defensivos dirigidos contra um perigo anterior reaparecem no tratamento como resistências contra o próprio restabelecimento" (Freud, 1937, p. 271). Ou seja, uma atitude anacrônica é adotada: ao lançar mão dos mecanismos de defesa utilizados nos primeiros anos do desenvolvimento infantil, o eu encara o próprio restabelecimento como um novo perigo. Para que o processo analítico avance, é necessário empreender uma análise das resistências:
O efeito terapêutico depende de tornar consciente o que está reprimido (no sentido mais amplo da palavra) no Id. Preparamos o caminho para essa conscientização mediante interpretações e construções, mas interpretamos apenas para nós próprios, não para o paciente, enquanto o ego se apega a suas defesas primitivas e não abandona suas resistências (Freud, 1937, p. 272).
Neste momento, chegamos ao ponto em que Freud se depara com os limites da técnica psicanalítica. Durante o trabalho com as resistências, o eu deixa de cumprir o acordo em que a situação analítica se funda, desobedecendo, assim, à regra fundamental. O corolário disto é que o eu se retrai e a confiança do analista é abalada. Deste modo, o analista passa a ser tratado como um estranho "que está lhe fazendo exigências desagradáveis, e comporta-se com ele exatamente como uma criança que não gosta do estranho e que não acredita em nada do que este lhe diz" (Freud, 1937, p. 272). Cabe, agora, retomarmos a pergunta feita anteriormente: não seria este, também, um encontro com o que atualmente vem sendo chamado de casos e situações limite?
Para conduzir a análise de casos que escapam à lógica das neuroses clássicas (histeria, fobias e neuroses obsessivas) ou casos em que as alterações do ego passam a significar um obstáculo ao processo de cura, torna-se necessário efetuar algumas adaptações no que diz respeito à técnica. Por não estarem relacionados à interpretação do desejo recalcado, esses casos exigem do analista uma mudança de posição referente ao modo de acessar os conteúdos inconscientes. Desta forma, julgamos ser possível afirmar que estamos diante do que atualmente vem sendo chamado de casos e situações limite, bordelines, pacientes difíceis, inclassificáveis, etc. A seguir, apresentaremos as diferentes maneiras como Winnicott, por um lado, e Lacan, por outro, forneceram recursos para abordar clinicamente os casos que escapam à definição clássica de neurose.
Winnicott e os casos difíceis
Winnicott ingressou no cenário psicanalítico, marcado pelas controvérsias Freud-Klein, interessado nas relações fundadoras do processo de constituição da subjetividade. Em virtude disto, construiu uma obra voltada para a investigação do desenvolvimento emocional infantil e destacou a relação que o bebê estabelece com o ambiente como peça fundamental para elaboração de seus principais conceitos. O contato com a clínica pediátrica permitiu a este psicanalista desenvolver uma ótica própria e explorar a relação mãe-bebê a partir de uma sequência de estágios que vai da dependência absoluta rumo à independência, tendo a função de holding como agenciadora. Na terminologia cunhada pelo autor, holding deve ser entendido como uma espécie de manejo cuja direção visa ao estabelecimento de uma provisão ambiental capaz de fornecer o suporte necessário para a integração de experiências vividas nos primórdios da vida psíquica, quando ainda não é possível fazer referência à existência de um eu estruturado.
Clínica do holding, da regressão, do amadurecimento, do continente ou do cuidado são algumas das expressões utilizadas para definir a visada winnicottiana proposta, especificamente, para o manejo dos casos difíceis ou, dito em outros termos, dos casos e situações limite. Nesta visada, o que está em questão é uma espécie de manejo clínico cuja direção visa o estabelecimento de uma provisão ambiental capaz de fornecer o suporte necessário para a integração das experiências vividas numa época em que o ser humano encontra-se desprovido de meios adequados para atribuir sentidos aos fenômenos inaugurais da vida psíquica. O que há em comum entre todas as expressões citadas é a ideia de processo, gradação e de continuidade expressas em termos de crescimento e desenvolvimento.
Em seu exame do desenvolvimento emocional infantil, Winnicott (1945) parte, portanto, da dependência do bebê em relação ao ambiente, postulando-a como fator central para a construção de um eu integrado. Esta é a premissa fundamental para explicar como um indivíduo cresce e adquire existência pessoal. Sob a ótica winnicottiana, nos primórdios da vida, o recém-nascido é completamente dependente do meio ambiente, a ponto de não funcionar como uma unidade. Inicialmente não-integrado, o bebê depende de certos cuidados ambientais para paulatinamente poder reconhecer sua unidade e sua continuidade no espaço e no tempo. Sua célebre afirmação, proferida no seio da sociedade britânica de psicanálise, condensa tal ideia: "Isso que chamam de bebê não existe" (Winnicott, 1952, p. 165). Em outros termos, nos primórdios da vida, o bebê só existe devido aos cuidados maternos.
No vocabulário winnicottiano, ambiente, mãe e cuidados maternos devem ser considerados sinônimos, já que, no início, a mãe funciona, tanto em termos biológicos quanto psicológicos, como o primeiro ambiente para o bebê. Com a criança ainda no útero ou no colo, sendo segurada e cuidada, a mãe fornece o ambiente físico que gradualmente se torna psicológico. O importante nessa equivalência de termos é perceber que a mãe, em um primeiro momento, é mãe-ambiente. E mais, conforme afirmado, ambiente, mãe e cuidados maternos não podem ser pensados de forma separada do bebê. Winnicott concebe um estado inicial de continuidade entre eu-não-eu, cuja unidade não é o indivíduo isolado, mas sim o conjunto ambiente-indivíduo. Propondo que "o centro de gravidade do ser não surge no indivíduo, mas na situação global" (1952, p. 166), Winnicott descreveu as condições necessárias a serem encontradas na relação com o ambiente para a maturação psicológica sadia do bebê. Tal preocupação acabou se traduzindo, em termos teórico-clínicos, na importância de a criança poder confiar no ambiente. Confiar é antes de tudo se fiar no ambiente, crer na permanência e na estabilidade de seu entorno.
Na teoria winnicottiana dependência e confiança se tornam termos inseparáveis. Segundo Winnicott, a confiança começa a se estabelecer na criança com o suprimento, pelo ambiente, das necessidades próprias ao início da vida infantil. Com base em um estado psicológico que toda mulher grávida sadia ingressa pouco antes de dar a luz e que não ultrapassa algumas semanas após o nascimento do bebê - a preocupação materna primária -, a mãe é capaz de fornecer um ambiente especializado, próprio para o desenvolvimento emocional da criança. A partir desse estado aguçado de sensibilidade, a mãe torna-se capaz de identificar-se ativamente com as necessidades do bebê a ponto de, por exemplo, apresentar o seio no momento em que o bebê encontra-se faminto, fornecendo a ele a oportunidade para que se sinta o criador daquilo que, como afirma Winnicott, já estava lá. O conjunto de cuidados necessários ao desenvolvimento da criança, oferecidos pela mãe, em seu estado de preocupação materna primária podem, portanto, ser compreendidos como o fundamento da futura capacidade de confiar. Em outros termos, é precisamente devido à atitude confiável com a qual o outro-ambiente se apresenta à criança, que depende o curso inicial do estabelecimento da confiança.
Na teoria winnicottiana, o estabelecimento de um setting que inspira confiança é uma das formas de possibilitar um retorno a experiências vividas em uma época em que o ser humano ainda encontrava-se completamente dependente do ambiente para sobreviver. Estamos, assim, diante de um tema de crucial importância para a clínica winnicottiana: a noção de regressão. Este termo é usado para traduzir uma ideia de recuo. O uso clínico da regressão faz parte do processo de cura dos chamados pacientes difíceis e, desta forma, é feito em um contexto específico de holding.
Em seu artigo de 1954, Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico, Winnicott afirma que o estudo do lugar da regressão na prática clínica foi uma das tarefas deixadas em aberto por Freud. Para Winnicott, Freud dedicou-se ao estudo do que acontece na situação analítica com pacientes "que teriam recebido os cuidados adequados na primeira infância, ou seja, os psiconeuróticos" (Winnicott, 1954, p. 381). Pacientes que chegaram ao édipo como pessoas inteiras, "prontos para encontrar seres humanos inteiros, e prontos para lidar com relacionamentos interpessoais" (Winnicott, 1954, p. 381). De acordo com o raciocínio de Winnicott, ao se ocupar destes casos, Freud não precisou incluir o holding como medida técnica necessária para o tratamento de neuróticos. Afinal, via de regra, os neuróticos experimentaram uma maternagem suficientemente boa e, portanto, não precisam regredir à situação de dependência dentro do contexto analítico. Winnicott concebe a regressão como uma ferramenta clínica capaz de fornecer a possibilidade de o paciente reviver, através da situação de dependência estabelecida durante o processo analítico, as falhas de adaptação sofridas nos primeiros momentos do desenvolvimento infantil. Desta forma, a análise que inclui a regressão e o holding como medida técnica no processo de cura não é incompatível com a técnica analítica, tal como foi postulada por Freud. Pelo contrário, deve ser considerada parte integrante do processo de cura.
De acordo com Winnicott, o importante é saber precisar o momento adequado de fazer uso do holding. Para precisar esse momento, lançaremos mão de uma espécie de tipologia desenvolvida por Winnicott, na qual este identifica três tipos de paciente, cada qual com uma necessidade que requer uma intervenção clínica específica. Em primeiro lugar, encontram-se aqueles que tiveram uma história primitiva de adaptação suficientemente boa e, portanto, funcionam como "pessoas inteiras". Esses apresentam dificuldades no campo dos relacionamentos interpessoais. Para tais casos, a melhor opção de tratamento consiste em uma análise clássica, baseada no uso da interpretação como ferramenta principal. Em segundo lugar, há os pacientes cuja personalidade se integrou recentemente. As dificuldades em questão relacionam-se ao estágio de concernimento, ou seja, à aquisição do status de unidade. Nesses casos, a análise clássica continua sendo a melhor opção, contanto que se preste atenção ao manejo da transferência, no qual a sobrevivência do analista deve ser o fator fundamental. Em terceiro lugar, estão os casos cuja análise tem a função de lidar com os estágios do desenvolvimento emocional anteriores ao estabelecimento do status de unidade. Nesses pacientes, a situação de regressão à dependência de um ambiente confiável é fundamental. Sendo assim, a técnica adequada consiste no oferecimento de um ambiente de holding capaz de sustentar a regressão à dependência dentro da situação analítica (Winnicott, 1954).
Ao incluir em sua clínica pacientes do terceiro grupo, Winnicott passa a analisar sujeitos que eram considerados não analisáveis pela técnica clássica, por escaparem à lógica que rege a problemática neurótica. Com esses pacientes, a interpretação só funciona até certo limite, sendo necessário, para que o tratamento avance, lançar mão de recursos alternativos à interpretação. Winnicott propõe como alternativa "colocar a ênfase no desenvolvimento do ego e na dependência, e neste caso, quando falamos de regressão, estaremos imediatamente falando da adaptação ao ambiente, com seus êxitos e suas falhas" (Winnicott, 1954, p. 380). Portanto, ao adotar essa direção, Winnicott focaliza a regressão como um retorno à situação de dependência; mais precisamente, dependência dos cuidados inicialmente recebidos de um ambiente confiável.
Para analisar os estágios do desenvolvimento emocional anteriores ao estabelecimento do status de unidade em termos de espaço-tempo, é necessário que o analista forneça um setting que reproduza um ambiente de holding capaz de possibilitar um recuo às experiências vividas numa época em que o ser humano encontrava-se completamente dependente do outro-ambiente. Desse modo, a regressão passa a ser concebida como parte da capacidade de o indivíduo se curar, dando "a indicação do paciente ao analista de como o analista deve se comportar mais do que de como ele deve interpretar" (Winnicott, 1959-64, p. 117). Nesses momentos, o setting encontra-se em primeiro plano e o que está em questão é a construção do sentimento confiança, ou seja, a constância, a permanência e a adaptação empática do analista às necessidades do paciente regredido. Segundo o psicanalista inglês,
É correto falar dos desejos do paciente; por exemplo, o desejo de ficar quieto. Com o paciente regredido, porém, o termo desejo revela-se inadequado. Em seu lugar, usamos a palavra necessidade. Se um paciente regredido precisa de silêncio, nada se poderá fazer se este não for conseguido. Quando a necessidade não é satisfeita, a consequência não é raiva, mas uma reprodução da situação original de falha que interrompeu o processo de crescimento do eu (Winnicott, 1954b, p. 385).
Para Winnicott, não podemos falar de desejo desde o início da vida. No princípio, o que está em jogo são necessidades físicas e psíquicas que devem ser atendidas. A palavra desejo só entra em cena, no vocabulário winnicottiano, quando o status de unidade espaço-temporal já foi estabelecido. Para falar de desejo, é preciso haver uma organização egoica capaz de fornecer uma sustentação, um continente que abarque o conteúdo pulsional, permitindo que as expressões do desejo se manifestem e, consequentemente, possam ser interpretadas. Quando a problemática encontra-se centrada nas necessidades do paciente regredido, o que está em questão é uma "área de experiência viva" (Winnicott, 1969, p. 195). Trata-se de uma dimensão pertencente ao plano da experiência, no qual se destaca a inserção ou a ancoragem do corpo no mundo que ele habita. Nesse plano, a inteligibilidade da experiência não se organiza pela mediação de uma reflexão sobre ela, mas pela percepção sensível dos modos pelos quais o mundo afeta a experiência do corpo e o corpo afeta o mundo no qual ele age.
Desse modo, a área de experiência viva comporta situações iniciais do desenvolvimento humano, em que "a dependência é tão grande que o comportamento daqueles que representam o meio ambiente não pode mais ser ignorado" (Winnicott, 1969, p. 195). Essa afirmação deixa explícito que, nos casos e situações em que a regressão apresenta-se como uma medida técnica alternativa à interpretação, é imprescindível incluir não só o ambiente, mas, sobretudo, o modo como este se comporta. Nesses casos, ambiente, setting terapêutico e a pessoa do analista devem ser considerados equivalentes. De acordo com essa lógica, o setting deve ser encarado como parte integrante da personalidade do analista, tornando-se, assim, peça fundamental para o processo de integração do eu.
Diante dessas considerações, é possível perceber que o material em jogo na análise dos pacientes difíceis não é prioritariamente de natureza representativa, por isso não é passível de interpretação. O que está em questão diz respeito ao vivido numa época em que ainda não havia um eu integrado e, consequentemente, meios específicos para atribuição de significado às experiências primitivas. Sendo assim, estas experiências retornam à cena analítica em ato: ao invés de comunicar verbalmente, via rememoração, o paciente faz com que o analista sinta e perceba uma parte dele. Desse modo, a condução da análise de casos difíceis implica o afastamento do analista de uma posição baseada, sobretudo, na transcrição do material inconsciente recalcado. A consequência disto é uma mudança da qualidade da presença do analista durante a sessão: os processos psíquicos do analista passam a fazer parte do trabalho clínico. Isso nos permite afirmar que o funcionamento perceptivo e cognitivo do analista torna-se parte do processo de integração do sujeito em análise. A nosso ver, uma das consequências das últimas elaborações de Lacan, que promoveram uma investigação do campo pré-discursivo da experiência humana, é uma mudança de posição referente ao modo de acessar os conteúdos inconscientes que permitiu a abertura das portas para a participação do funcionamento mental do analista na tarefa de integrar ao eu as experiências primitivas.
Lacan e os casos inclassificáveis
Os casos inclassificáveis podem ser entendidos como um dos sinônimos para o que estamos chamando casos e situações limite. Ambos os termos fazem referência a pacientes que não podem ser incluídos nas definições estruturais de neurose, psicose e perversão. A entrada em cena da preocupação com este tipo de casos pode ser localizada a partir dos estudos que vem sendo empreendidos a respeito das últimas elaborações teóricas efetuadas por Lacan, mais especificamente, de um dos seus últimos seminários, datado dos anos de 1975-76, no qual Lacan elege James Joyce e sua escrita como figuras centrais (Miller, 1997, 1999, 2000, 2003).
Durante a totalidade do ensino de Lacan, demarcado do início dos anos de 1950 ao final dos anos de 1970, é possível registrar o surgimento e o gradual abandono do modelo linguístico em benefício de modelos topológicos, sobretudo, a topologia dos nós. Nas duas primeiras décadas do ensino de Lacan, o modelo linguístico encontra-se atrelado ao estruturalismo. A lógica estrutural baseia-se em um traço distintivo que permite opor sempre dois termos. Ou seja, há sempre presente a ideia de descontinuidade: ou isto ou aquilo. Na topologia dos nós, a oposição não é condição necessária. Pelo contrário, o que está em jogo é uma ideia de continuidade portadora de uma elasticidade que comporta a estrutura do nó borromeano.
O que ficou conhecido como nó borromeano na teoria lacaniana, consiste em certa maneira de nodular elos importada do brasão da família Borromeu. A nodulação dos elos segue a seguinte lógica: o elo é constituído por três anéis, se um dos anéis for retirado, os dois outros ficam soltos. O que Lacan ressalta é o fato de que um anel só se sustenta encadeado aos outros. É justamente essa estrutura que garante a continuidade, isto é, o processo de nodulação.
No seminário RSI, Lacan (1974-75) estabelece uma equivalência entre os três elos do nó borromeano e os registros Real, Simbólico e imaginário. Se aplicarmos a lógica do nó borromeano; real, simbólico e imaginário podem ser manuseados e, consequentemente, ocupar qualquer lugar na formação do nó a três. Essa mobilidade, adicionada a uma indeterminação de lugar para cada registro, traz consigo uma mudança crucial em relação à lógica estruturalista: real, simbólico e imaginário tornam-se categorias homogêneas. Não há primazia entre eles, cada um amarra os dois outros. De acordo com Miller (2000), essa equivalência estabelecida nos últimos anos do ensino de Lacan implica uma inversão que incide sobre muita coisa que havia sido postulada até então, chegando a modificar o estatuto de conceitos que eram considerados crucias para a sustentação da teoria lacaniana:
Todos os termos que asseguravam a conjunção em Lacan - o Outro, o Nome-do-Pai, o falo -, que apareciam como termos primordiais, como termos que podiam até ser chamados transcendentais, posto que condicionavam toda experiência, ficam reduzidos a conectores. No lugar dos termos, por estrutura, transcendentais, que são uma dimensão preliminar à experiência e que a condicionam, temos o primado da prática. Onde existia a estrutura transcendental, temos uma pragmática, e mesmo uma pragmática social (Miller, 2000, p. 101).
Na primeira década do ensino de Lacan, o simbólico é introduzido de acordo com a ótica estruturalista, isto é, como uma ordem autônoma com existência própria. A marca patente do simbólico é dada pelo grande Outro, instância detentora de significação. De acordo com o funcionamento dos nós, o simbólico só se sustenta conectado ao imaginário e ao real. A consequência disto é que a ordem simbólica não pode mais ser tratada como prévia, como algo que fornece a estrutura e as coordenadas da experiência vivida pelo sujeito. Portanto, o que há de fundamental na lógica da nodulação é o funcionamento do nó que abre um leque de oportunidades não comportado pela lógica estrutural.
Os reflexos clínicos dessa mudança são expostos no seminário dos anos de 1975-76, intitulado O Sinthoma. Neste seminário, Lacan elege James Joyce como personagem principal para introduzir um quarto ele ao nó borromeano: o Sinthoma. Vale à pena notar que a grafia da palavra sintoma é alterada. Aqui sintoma é escrito com th. O título do seminário em francês é LeSinthome que, por sua vez, soa como Le saint homme. Ambiguidade sonora adotada propositalmente por Lacan em função das duas vertentes da arte de Joyce: santo e homem. Portanto, é através da relação do escritor com sua arte e com seu pai que Lacan elabora a noção de Sinthoma.
Em toda sua obra, Joyce narra episódios de sua vida explorando todos os recursos que a língua oferece ao expor o mundo interior de seus personagens que, quase sempre, estavam relacionados com acontecimentos vividos pelo escritor. Primogênito de uma família abastada que foi, com o passar dos anos, aproximando-se da ruína, Joyce, nasceu em 1882 num subúrbio de Dublin e foi educado dentro dos valores da igreja católica, apesar de ser filho de um pai judeu não praticante. Estudou em colégios jesuítas, cultivou a crença religiosa que foi abandonada ao longo de seu estudo universitário. A recusa formal da fé católica foi efetuada quando o escritor recusou-se a ajoelhar e orar diante do leito de morte de sua mãe. Tal episódio é eternizado em Ulisses, obra com a qual Joyce ganha fama internacional. O uso da obra literária para relatar acontecimentos vividos e sentimentos experimentados durante diferentes períodos da história pessoal constitui a marca registrada deste escritor irlandês, definida por Lacan como Sinthoma.
O primeiro romance autobiográfico de Joyce, "Retrato de um artista quando jovem", é publicado em 1916. Nele, Stephen Dedalus, personagem principal do romance, é um jovem escritor irlandês construído à imagem e semelhança de seu criador. Neste retrato, Joyce traça o caminho percorrido por Dedalus desde sua infância, marcada pela depauperação familiar e pela fervorosa crença religiosa cultivada pela educação recebida na escola jesuíta, passando pela rebeldia adolescente contra a família, contra os valores religiosos, até sua ida para Paris. Assim como Joyce, em 1902, com o intuito de estabelecer sua identidade pessoal e artística, o jovem personagem impõe-se uma forma de autoexílio em Paris, que termina com a morte de sua mãe no ano seguinte.
Em 1904, Joyce passa a viver com Nora Barnacle, mas só vai se casar com ela oficialmente em 1931, ano que seu pai morre. O pai de Joyce é descrito por Lacan (1975-76) como um homem que tinha grande talento para a ruína. A instabilidade era a característica fundamental deste pai que se tornou alcoólatra, que não soube dar continuidade, nem tampouco transmitir aos seus a estabilidade financeira herdada. Através do personagem principal de Ulisses, Leopold Bloom, Joyce imortaliza seu pai, caracterizando-o como um judeu não praticante, de boa índole que procura seu filho perdido. Este filho é encontrado no autorretrato de Joyce, Stephen Dedalus, jovem escritor irlandês, que entra na trama após ter chegado de Paris e, logo em seguida, presenciado a morte de sua mãe, em sua terra natal.
De acordo com a análise de Lacan (1975-76), há uma inversão nos papéis descritos acima. Não é Bloom, pai de Joyce na ficção, que procura em Dedalus, autorretrato de Joyce, o filho perdido; mas sim Joyce que escreve Ulisses para dar sentido a carência da figura paterna em sua infância e adolescência. Mesmo sabendo que antes do nascimento de Joyce seus pais haviam perdido seu primeiro filho, Lacan defende a hipótese de que o sintoma de Joyce é a carência de pai. Portanto, segundo a lógica desenvolvida no seminário dos anos de 1975-76, o sintoma de Joyce conduz ao Sinthoma. E vice-versa: o caminho oposto também pode ser efetuado - a escrita, ao servir como apoio suplementar, permite a Joyce compensar a falha da função paterna. Deste modo, a escrita é o Sinthoma, o quarto elo que garante a amarração dos registros real, simbólico e imaginário.
A lógica do seminário em questão é completamente distinta da lógica estrutural. Nesta última é a castração que determina as estruturas clínicas organizadas em torno da inscrição ou da foraclusão do nome-do-pai. A castração é um conceito psicanalítico que designa a experiência inconsciente da ameaça experimentada diante da possibilidade de perda daquilo que é considerado como uma parte importante do próprio corpo. Portanto, a operação de castração vai além da ameaça de supressão do órgão proferida por um adulto em condições de executá-la. Sob esta ótica, é possível conceber a castração como uma ameaça, cujo efeito provoca um corte que cinde o vínculo imaginário e narcísico estabelecido entre a mãe e a criança, instalando, assim, a função paterna como elemento terceiro na relação dual mãe-criança.
Nesse contexto, as estruturas clínicas - neurose, psicose e perversão - devem ser entendidas como três modos de respostas, ou melhor, de defesa do sujeito diante da castração. O mecanismo de defesa usado na neurose é o recalque (Verdrangung). Neste caso, a castração vai ser negada, recalcada, podendo retornar por intermédio do sintoma. Sendo assim, o sintoma pode ser entendido como uma resposta simbólica encobridora de uma significação recalcada, capaz de se tornar consciente pela interpretação do analista. Aí está, de forma resumida, a lógica desenvolvida por Freud, da técnica do tratamento das neuroses. Na perversão, o mecanismo de defesa utilizado é o desmentido (Verleugnung) que funciona como uma renegação da realidade, mais especificamente, do reconhecimento de uma realidade faltosa no âmbito da diferença sexual. Ao desmentir a ausência de pênis na mulher, o perverso faz com que coexistam duas realidades contraditórias: a recusa e o reconhecimento da ausência do órgão masculino na mulher. Tal mecanismo leva a uma clivagem permanente do eu e, na maioria das vezes, à fabricação de um fetiche como substituto do órgão faltante. Assim sendo, de maneiras distintas, tanto a neurose quanto a perversão conservam a marca da operação de castração. O mesmo não acontece com a psicose, cujo mecanismo de defesa é a foraclusão (Verwerfung) da castração. Isto significa que a marca da castração não é integrada no inconsciente e retorna no real pela via dos fenômenos elementares que invadem a fala ou a percepção do sujeito.
Diante do que foi exposto, torna-se possível perceber que a lógica da nodulação é completamente diferente da lógica estrutural. Na topologia lacaniana, a escrita é nomeada como Sinthoma, o quarto elo do nó borromeano. No caso de Joyce, a escrita garante a sustentação dos registros real, simbólico e imaginário. Desta forma a construção de um Sinthoma funciona como algo que vem suprir a função paterna falha. Na loucura, assistimos ao rompimento do registro simbólico, seguido de uma propagação imaginária que se impõe no real sob a forma de fenômenos elementares. Desse modo, os fenômenos elementares - alucinações e delírios - funcionam como uma forma de restituição da falha da função paterna. Ao invés de fazer uso de delírios e alucinações, Joyce usou a escrita. Joyce dedicou o final de sua juventude e toda a sua vida adulta a uma escrita ficcional autobiográfica, que lhe permitiu construir permanentemente um alter ego, ou melhor, uma nova identidade, uma identidade textual. Joyce passa dezessete dos dezenove anos finais de sua vida escrevendo sua última obra, Finnegans Wake. O título só foi dado quando o romance foi concluído: Finnegans Wake iria se chamar work in progress cujo significado em português remete a algo dinâmico, em permanente construção, a um trabalho em elaboração que está sendo efetuado ao longo do tempo. Isto nos permite afirmar que o conceito de Sinthoma inclui a noção de processualidade.
A partir da análise que Lacan (1975-76) efetua da obra de Joyce, é possível conceber que o Sinthoma não é interpretável. Diferentemente do sintoma, o Sinthoma não simboliza, ele nomeia. Com Stephen Dedalus, Joyce constrói uma identidade textual, criando, assim, um nome próprio que restitui a amarração falha dos registros real, simbólico e imaginário. É desta forma que Joyce mantém-se funcionando durante grande parte da sua vida. De acordo com raciocínio de Lacan neste seminário, não é importante ter conhecimento do porquê das coisas, mas sim fazer com que elas funcionem.
Como a introdução da lógica da nodulação e da noção de Sinthoma, neurose, psicose e perversão deixam de ser estruturas clínicas distintas e desconectadas e passam a ser concebidas como estados em continuidade. Isto coloca em cena a noção de processo, de gradação, capaz de conter formas complexas de amarração - como a de Joyce - não comportadas pela divisão estrutural. É importante ressaltar que o que vem sendo chamado de segunda clínica, clínica do real, clínica do Sinthoma, clínica borromeana, clínica dos nós ou clínica da nodulação surgiu para suprir uma carência deixada pela clínica estrutural na qual não há lugar para os casos que demandam um tipo de teoria, manejo e sensibilidade do analista diversa da clínica das neuroses.
Se recorrermos à coletânea de artigos, "Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica: a conversação de Arcachon", publicada em 1998, é possível notar a preocupação com o manejo clínico deste tipo de casos. Em um dos artigos da coletânea, intitulado "Um caso nem tão raro", Defieux (1998) defende que ao invés de preocupar-se unicamente em descortinar o conteúdo recalcado, cabe ao analista estar atento aos "ínfimos detalhes clínicos", pois o "sujeito não deixará entrever o que faz a singularidade de suas amarrações sintomáticas a não ser que o analista o estimule nisso, se o acompanha nesse desvendamento" (Defieux, 1998, p. 14).
Afinal, o que está em jogo não é a interpretação do sintoma, mas sim a construção do Sinthoma. Neste caso, é necessário que o analista não fique restrito a uma posição de escuta flutuante, pelo contrário, é necessário que esteja atento aos "ínfimos detalhes clínicos", passando, assim, a participar, com sua presença sensível, do processo de construção do Sinthoma. Com isto o analista, orientado pelas últimas elaborações da teoria lacaniana, aproxima-se de um tipo de sensibilidade clínica, ressaltada quando descrevemos a abordagem winnicottiana dos pacientes difíceis.
Considerações finais
Depois de termos examinado duas perspectivas tão distintas, torna-se possível afirmar que, apesar das diferenças em termos de vocabulário, interesse teórico e pontos de partida, as abordagens clínicas apresentadas têm em comum as noções de processo, gradação e continuidade. Tais premissas são adotadas como fundamentais, tanto na clínica do holding quanto na clínica do Sinthoma, para a superação dos limites impostos pela técnica analítica clássica e, consequentemente, para inclusão de casos refratários ao tratamento erigido como padrão para as neuroses. Ao invés de priorizar uma posição de escuta e interpretação do material recalcado, ambas trazem para a cena analítica a necessidade de reconhecimento e nomeação do sofrimento em questão. Ao reconhecer e nomear o sofrimento de seu paciente, o analista empresta sua sensibilidade, passa a participar da sessão e incluir todo o seu funcionamento mental, envolvendo mudanças de sensibilidade, de atenção e de percepção. Tal postura muda a qualidade da presença do analista no processo terapêutico: de tradutor do inconsciente, o analista passa a ter papel efetivo no processo de integração do eu, tornando-se parte inseparável deste.
Referências
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Artigo recebido em: 10/11/2013
Aprovado para publicação em: 26/01/2014
Endereço para correspondência
Perla Klautau
E-mail: pklautau@uol.com.br
Monah Winograd
E-mail: winograd@uol.com.br
Carlos Lannes
E-mail: clannes@globo.com
*Psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), p ós-doutoranda do Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica- PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro- FAPERJ.
**Psicanalista, profa. do Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica- PUC-Rio (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
***Psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).