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Imaginário
versão impressa ISSN 1413-666X
Imaginario v.11 n.11 São Paulo dez. 2005
PART I
O que os jovens têm a dizer sobre as altas taxas de mortalidade na adolescência?
What do teenagers have to say about the high rates of mortality in adolescence?
Cláudia Fernanda Rodriguez*; Maria Julia Kovács**
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
RESUMO
Este trabalho buscou compreender como os adolescentes percebem e relacionam-se com o tema da morte e também verificar como explicam as altas taxas de mortalidade na sua faixa etária. Essa reflexão é relevante e fundamental, uma vez que as estatísticas mostram dados alarmantes sobre o aumento da mortalidade entre adolescentes, principalmente as mortes relacionadas com acidentes e as violentas. Participaram dessa pesquisa adolescentes do Ensino Fundamental e Médio de duas escolas da cidade de São Paulo. Foi exibido o vídeo “Falando de morte com o adolescente” (do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), e foram propostas discussões com eles. De modo geral, os jovens não percebem a morte como possibilidade pessoal, expressando sentimentos de imortalidade e onipotência. Algumas das hipóteses sobre os altos índices de mortalidade na adolescência foram: uso de drogas; violência; banalização da morte; situações sociais desfavoráveis; AIDS; falta de emprego e falta de perspectivas para o futuro; suicídios; dificuldade na comunicação com profissionais, amigos e familiares; dificuldades para expressar seus sentimentos e pedidos de ajuda; acidentes; falta de limites e a postura para desafiar o mundo; más influências e não-imposição de responsabilidade pela sociedade.
Palavras chave: Adolescência, Taxa de mortalidade, Educação em relação à morte.
ABSTRACT
This work has investigated how adolescents perceive and deal with death, and also it has verified how they can explain the high mortality rates in their age group. This is a relevant and fundamental reflection, because statistics indicates an astonishing data about the increase of mortality among adolescents, mainly deaths related to accidents and violent ones. Teenagers (14 – 17 years old) from two schools in the city of São Paulo had participated in this study. The video “Talking about death to the adolescent” (Laboratory of Death Studies of the Institute of Psychology of University of São Paulo) was shown and discussed with the adolescents. As a general rule, teenagers consider that death is something impossible for happening to them, expressing, in this way, feelings of immortality and omnipotence. Some of the hypothesis about the high mortality rates in adolescence were: the use of drugs; violence; the banalization of death; unfavourable social situations; AIDS; unemployment and lack of perspectives of the future; suicide; difficulty in communicating with professionals, friends and family; difficulty in expressing feelings and help requests; accidents; lack of limits, and the attitude of challenging the world; bad influences and the non-imposition of responsibility by society.
Keywords: Adolescence, Mortality rate, Death education.
Introdução
Atualmente, com a expectativa de vida elevada e com o avanço das técnicas médicas, as mortes de jovens devem ser consideradas “perdas injustificadas”. Porém, as estatísticas mostram dados alarmantes sobre o aumento da mortalidade entre adolescentes, principalmente as mortes relacionadas com acidentes e as violentas. Cabe aqui uma reflexão: qual a opinião dos próprios adolescentes sobre essas taxas?
Segundo o IBGE, que divulgou recentemente a Síntese dos Indicadores Sociais 2000, um levantamento revela as mudanças que ocorreram no país na década de 90: a violência urbana é responsável por 68% das mortes de jovens. A proporção de mortes por causas violentas (homicídios, suicídios e acidentes de trânsito) entre os adolescentes do sexo masculino vem aumentando na faixa etária entre 15 e 19 anos que corresponde a 75% dos óbitos decorrentes de causas violentas. Carvalho (2002) aponta que esses homicídios estão, na maioria das vezes, relacionados com o uso de drogas e com a luta entre gangues.
Barros; Lima & Ximenes (2001) analisaram o grupo de crianças e adolescentes (de 0 a 19 anos) residente no Recife, no período de 1979 a 1995, e os coeficientes de mortalidade por causas externas mostraram crescimento principalmente por homicídios entre os adolescentes. Em 1995, mais de 90% foram por armas de fogo, reconhecendo-se a magnitude da violência na população infanto-juvenil como um grave problema de saúde pública dentro da realidade brasileira atual. Nesse estudo, assim como na maioria, houve o predomínio do sexo masculino na mortalidade por causas externas. Esse aumento é justificado por uma maior exposição desse grupo a fatores de risco individuais como consumo de álcool, fumo e/ou outras drogas, uso de arma de fogo etc.
Goldberg, Iyda & Lyra (1996) observaram altos índices de mortalidade no grupo masculino entre 15 e 19 anos, predominando as causas externas de mortalidade, principalmente acidentes de trânsito, asfixia por afogamento e ferimentos por arma de fogo. Os afogamentos equiparam-se aos acidentes de trânsito. A explicação levantada foi a de que os adolescentes normalmente se consideram invulneráveis e onipotentes.
Cardia (2003) aponta que o homicídio de jovens relaciona-se com a escassez de fatores de proteção e com áreas onde há grande concentração de pessoas nessa faixa etária. Assim, os homicídios de adolescentes têm relação com a superposição de carências e a ampliação da desigualdade de direitos referentes à educação, à saúde, à moradia e ao trabalho. Observa-se, nessas áreas, baixa escolaridade, bem como escolas que não estimulam os jovens ao conhecimento, baixa renda, baixos índices de emprego, casas precárias, habitações com vários núcleos familiares gerando tensão, pouco acesso a rede de esgotos e a leitos hospitalares, ruas sem asfalto e iluminação, poucas áreas de lazer etc. Além disso, a referida autora aponta que a alta competição entre os moradores dessas áreas pelos recursos escassos impedem a integração social entre os indivíduos. Uma alternativa apontada seria o investimento em atividades de lazer, cultura e esporte que poderia influenciar no desenvolvimento físico e emocional dos adolescentes e até numa melhora do desempenho escolar. Essa ocupação do tempo dos jovens, ao oferecer novos interesses e desenvolver novas habilidades coletivamente construídas, pode influenciar no afastamento deles do consumo de drogas e do mundo do crime.
Cardia & Santos (2002) também relacionam as alterações atuais no mercado de trabalho com a ocorrência da violência. A reestruturação industrial eliminou ocupações pouco especializadas, e isso interferiu na entrada dos jovens no mercado de trabalho. Além do mais, adultos que estão desempregados há um tempo prolongado podem perder a legitimidade perante os jovens, não constituindo modelos nem do presente, nem do futuro para os adolescentes. Esse “efeito socializador negativo” do desemprego pode levar os jovens a não se submeterem às regras ou às normas sociais, pois com isso não ganhariam nada e, dessa forma, pode-se acarretar situações de violência.
Dados da UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) mostram que, entre 1991 e 2000, a taxa de homicídios na população em geral cresceu 29%, e entre jovens (de 15 a 24 anos), 48%.
Em 07 de junho de 2004, a UNESCO divulgou os dados da pesquisa “Mapa da Violência 4”1, em que se constatou que o Brasil tem a quinta maior taxa de homicídio de jovens, entre os 67 países analisados. Nesse “ranking” de violência, o Brasil só tem números menores que a Colômbia, as Ilhas Virgens, El Salvador e a Venezuela. Entre os estados brasileiros, os mais violentos são: Rio de Janeiro, em primeiro lugar, seguido por Espírito Santo, Pernambuco, Amapá e São Paulo. Os menores índices estão em Santa Catarina, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte. Além disso, a pesquisa mostra que há um número crescente de casos relacionados à violência fora das capitais e regiões metropolitanas. As hipóteses levantadas foram: expansão da economia em municípios externos às regiões metropolitanas e concentração de investimentos relacionados à segurança nas capitais.
Segundo os resultados, os homicídios e os acidentes de transportes causaram mais da metade (55,5%) das mortes de jovens brasileiros entre 15 e 24 anos, em 2002, último ano em que os dados estão disponíveis. Nessa faixa etária, 39,9% das mortes ocorridas deveram-se a homicídios, dos quais 93,8% eram homens, e 15,6%, (83,5% homens), a acidentes de trânsito, aéreo e em água. Ao avaliar os dados dos últimos dez anos, o estudo aponta um crescimento de 88,6% no número de mortes por homicídios envolvendo jovens, índice bem maior do que os 62,3% da população total.
O sociólogo da UNESCO Júlio Jacobo Waiselfisz, responsável pela pesquisa, destacou que as causas externas (que envolvem homicídios e acidentes) assumiram um registro na mortalidade juvenil que antes era ocupada por epidemias e doenças infecciosas. As armas de fogo têm uma presença forte nesses índices (31,2% das mortes juvenis, em 2002, foram causadas por armas de fogo). As mulheres normalmente são vítimas de violência doméstica, enquanto os homens sofrem violência fora de casa.
Segundo Mizne2, diretor executivo em São Paulo do Instituto “Sou da Paz”, as campanhas de desarmamento existem, mas é preciso “desarmar o espírito”, ou seja, buscar novas formas de educação na família, na escola e na sociedade.
Outro resultado importante da pesquisa da UNESCO foi o de que a taxa de mortalidade entre os jovens passou de 128 em cada grupo de 100 mil habitantes, em 1980, para 137, mesmo com a queda no registro global de mortalidade no Brasil, que passou de 633 em 100 mil habitantes, em 1980, para 573, em 2002. As taxas de homicídios entre os jovens saltaram de 30 para 54,5 em cada grupo de 100 mil no mesmo período. O crescimento do número de mortes por acidentes de transporte entre 1993 e 2002 foi de 19,5%. No entanto, entre a população jovem, esse aumento chegou a 30,5% no mesmo período.
Segundo Balthazar (2000), que analisou a mortalidade de adolescentes no Estado de São Paulo, no período de 1979 a 1995, as causas externas foram as principais causas de óbitos em todas as idades e em ambos os sexos. Os aumentos mais significantes ocorreram entre os homens de 15 a 19 anos e 20 a 24 anos. Para estes, as taxas cresceram, aproximadamente, 200% por homicídios, 400% por armas de fogo e 30% por suicídios. Para as mulheres, nessas idades, as taxas aumentaram, mais ou menos, 100% por homicídios e 200% por armas de fogo.
Segundo as estatísticas do Registro Civil de 2002, divulgadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística3), a violência é a maior causa de morte na população jovem masculina do país na faixa de 15 a 24 anos. Os dados revelam que a tendência de crescimento desse fenômeno continua. Em 2002, 70,67% das mortes da parcela masculina, nessa faixa etária, foram causadas pela violência, ou seja, ocorreram em razão das causas externas (como homicídios, acidentes de trânsito, afogamentos e suicídios), a maior taxa já apurada. Em 1990, era de 60,25%. Na população feminina, o percentual chegou a 34,14% em 2002. Em 1990, a participação das causas violentas em relação às mortes correspondeu a 28,25%.
Todas as regiões do país registraram alta de mortes causadas por violência na população masculina, exceto o Centro-Oeste, onde a incidência permaneceu elevada no período analisado (1990-2002), em torno de 20%. O pior quadro ocorre na região Sudeste, onde a violência chega a ser a causa de 79,64% das mortes dos rapazes de 15 a 24 anos. No caso das jovens, a morte por causa violenta corresponde a 39,23% do total. O Rio de Janeiro registrou o quadro mais grave, com a maior taxa de mortalidade por causa violenta, entre a população masculina de 15 a 24 anos: a cada 100 mil desse grupo, 270 morreram de causa violenta. A seguir, está o Amapá: foram contabilizados 244 óbitos por 100 mil habitantes nesse grupo. São Paulo aparece em terceiro lugar: 234 mortes violentas por 100 mil habitantes. Segundo o demógrafo da Coordenação de Indicadores Sociais do IBGE, Celso Simões, o aumento está relacionado à criminalidade associada à estagnação econômica e ao desemprego nos grandes centros urbanos e aos conflitos por terra nas áreas rurais.
Jorge Werthein, representante da UNESCO4, aponta que os jovens são a parcela da população mais vulnerável à violência em todo o mundo, mas considera como “absolutamente inaceitáveis” esses índices. Para ele, os jovens estão morrendo porque são excluídos da sociedade. Também defende a necessidade urgente de políticas públicas que integrem as atividades já existentes de inclusão e previnam a violência. Ele cita o exemplo bem-sucedido de programas que incentivam a abertura de escolas nos fins de semana para atividades esportivas, de recreação e culturais, como o Segundo Tempo do governo federal, o Escola da Família do governo estadual, entre outros. Esses programas mostram-se ainda mais importantes quando se constata a elevação dos índices de violência e acidentes nos fins de semana, principalmente em decorrência da falta de ocupação para os jovens. Essas atividades, segundo Werthein, deveriam ser associadas a uma política de emprego, com a contratação de jovens monitores nos programas culturais e esportivos dentro do projeto Primeiro Emprego. Ele ainda acrescenta que as medidas preventivas custam mais barato do que as repressivas, como a internação de jovens na Febem.
A violência, que antes era explicada pela busca por ganho material (como comida, dinheiro, carro, jóias etc.) ou entendida como instrumento de oposição ao sistema político vigente, hoje está banalizada e funciona como meio de expressão, principalmente de jovens. Segundo Levisky5, vice-presidente do Instituto São Paulo contra a Violência, esses aspectos estão relacionados à fragilidade e à transitoriedade de valores sólidos, na família ou no contexto escolar que fortaleçam a identidade dos adolescentes. É preciso incentivar a preservação de vínculos afetivos e a transmissão de valores éticos. Destaca-se a participação e o envolvimento dos pais e dos profissionais de educação. Levisky (2004) afirma que jovens, como os das gangues dos surfistas de trem, se unem pela manifestação da violência como forma de expressarem suas tensões, angústias e dizer que eles existem. Além disso, existe a banalização da violência física como forma de solução de conflitos e do jovem que precisa se auto-afirmar perante os outros.
Os pais e os educadores devem estabelecer os limites dos jovens; além disso, devem agir como mediadores a respeito de informações que os adolescentes recebem, por exemplo, pela mídia, mostrando quais são suas opiniões e seus valores em relação a determinados assuntos.
Há um grande risco de incentivar nos jovens, cada vez mais, essas tendências agressivas e criar uma insensibilidade à violência que é absorvida passivamente, em vez de despertar sentimentos de indignação. Essa indiferença está relacionada à sensação atual de que os bens de consumo e até os meios de sobrevivência financeira são descartáveis, ou seja, há uma carência de políticas públicas que incentivem projetos de vida sólidos. Com isso, gera-se uma insegurança generalizada.
Com base nesses dados, acredita-se que os óbitos por causas não naturais são, em grande parte, passíveis de prevenção. São necessários reflexão, compreensão e investimento de adultos, pais, responsáveis, profissionais de saúde e educação em relação aos adolescentes, para que se possa lidar com as peculiaridades da vida, da saúde, do adoecer e do morrer.
Além disso, esses dados mostram a importância de uma análise atenta da questão do gênero sobre os índices de mortalidade descritos. Essa vertente não foi enfatizada nessa pesquisa, mas, em trabalhos posteriores consideramos importante a exploração desse aspecto nos adolescentes.
Esses dados provocam reflexões e questionamentos investigados mais amplamente. E também nos parece muito importante saber o que jovens pensam ao se deparar com os índices de mortalidade apresentados: o que os adolescentes pensam sobre o aumento da mortalidade em sua faixa etária? Qual a razão que eles vêem para essa realidade? Como isso poderia mudar? Será que acreditam que perguntar/discutir/refletir sobre esse tema poderia diminuir os altos índices de mortalidade entre eles?
Essa pesquisa é de grande relevância para a sociedade, uma vez que se pôde ouvir a voz de jovens que compõem esse segmento da sociedade. Embora nem todos os jovens pesquisados façam parte do grupo de risco, considerando-se questões como pobreza, moradia em zona perigosa, uso de drogas, entre outros, eles foram ouvidos sobre as suas hipóteses para esses fatos. Além disso, os dados apresentados podem ter um caráter de denúncia do agravamento da situação atual de mortalidade dos jovens, e que talvez não eja vista e veiculada pelos meios de comunicação. Os jovens puderam falar sobre o alto risco envolvido em muitos dos seus comportamentos e sobre a ocorrência de mortes na adolescência, mesmo que não estivessem envolvidos nessas situações ou próximos do perfil das vítimas. Apesar disso, puderam compartilhar suas experiências e falar de suas angústias, seus temores e suas necessidades.
Com isso, buscamos possibilitar um espaço de comunicação sobre o tema da morte, podendo ampliá-lo dentro da própria rede social do adolescente, com sua família, amigos e professores, a fim de enfatizar a troca de sentimentos, experiências e informações.
Objetivos
(a) Compreender como os adolescentes do Ensino Fundamental e Médio de duas escolas da cidade de São Paulo percebem, refletem e relacionam-se com o tema da morte. (b) Verificar como esses jovens explicam as altas taxas de mortalidade na sua faixa etária.
Método
Participantes e local da pesquisa
Participaram, dessa pesquisa, adolescentes do Ensino Fundamental e Médio de duas escolas da cidade de São Paulo, das quais uma é pública e a outra, é privada. Não foi objetivo desse trabalho a caracterização sócioeconômica e geográfica da população. Acredita-se que os vários segmentos estejam representados na amostra. A relação entre o público pesquisado e os jovens vítimas de violência fatal foi estabelecida mediante discussão sobre esses dados. Ao ler e reler os encontros realizados nas duas escolas, não percebemos diferenças significativas entre as séries e entre as duas escolas. Além disso, o objetivo dessa pesquisa foi compreender como os adolescentes refletem e relacionam-se com o tema da morte e, não, apontar diferenças individuais ou descrever o contexto escolar.
Da coleta de dados
(a) Material
O material utilizado foi o vídeo “Falando de morte com o adolescente” (duração 15 minutos, versão: 2003), que faz parte do Projeto “Falando de morte” (Kovács, Esslinger, Vaiciunas, Bromberg & Marques, 1997/2004) do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Esse projeto tem como objetivo propiciar um espaço de comunicação entre crianças, adolescentes, adultos, idosos, famílias e profissionais de saúde e educação sobre o tema da morte. A comunicação e a possibilidade de troca são vistas como importantes no alívio do sofrimento.
Kovács (2003) aponta que o vídeo “Falando de morte com o adolescente” procura se adequar à linguagem do jovem, focando, principalmente, os comportamentos autodestrutivos. Um dos aspectos principais, apontado pelo material, é que o limite entre o prazer e a autodestruição é uma linha frágil que se rompe diante do exagero e da irresponsabilidade, podendo se transformar em morte. O vídeo inclui cenas de esportes radicais, perda de amigos e irmãos também adolescentes, violência, sexo, uso de drogas, transtornos alimentares, acidentes após dirigir alcoolizado, tentativas de suicídio, entre outras. Estas buscam trazer uma visão realista da situação, focalizando que o adolescente pode estar, às vezes, vulnerável, bem como o quanto a vida destes pode ser frágil. Esse material foi escolhido por ser um recurso facilitador da discussão do tema da morte e dos comportamentos autodestrutivos entre os jovens.
(b) Grupo focal com os adolescentes
Para promovermos a discussão com os adolescentes sobre o tema da morte, inspiramo-nos na modalidade denominada grupos focais. O que propusemos foi uma variante dessa estratégia. Destacamos a proposta de sua utilização em trabalhos futuros com adolescentes, pois percebemos que essa estratégia permite a eles que se percebam com seus pares, assim como possibilita uma riqueza maior de material em relação às entrevistas individuais, favorecendo a troca de experiências, de opiniões, de reflexões, de dificuldades, de dúvidas e de questionamentos entre eles.
Como forma de conhecimento sobre o que a literatura traz sobre os grupos focais, destacamos alguns autores: Silva (2003) aponta que a estratégia do grupo focal possibilita a observação de atitudes e idéias distintas em convivência, sem que se exclua nenhuma. Essa técnica de pesquisa qualitativa “pode ser utilizada no entendimento de como se formam as diferentes percepções e atitudes acerca de um fato, prática, produto ou serviço”. (Carlini-Cotrim, 1996: 286)
Essa técnica teve origem nos anos de 1930 com o desenvolvimento de intervenções não diretivas. A partir da década de 50, foi descrita como uma técnica de pesquisa utilizada por profissionais da área de marketing que visavam à criação de novos produtos para o mercado, sua avaliação e aceitação, bem como ao desenvolvimento de campanhas publicitárias. Essa modalidade de grupo passou a ser usada nas pesquisas em ciências humanas na década de 80 (Flores & Alonso, 1995).
Procedimentos
Foi estabelecido o contato com profissionais de educação das duas escolas participantes. Explicamos os temas principais da pesquisa e quais eram os nossos objetivos no contato com os adolescentes. Foi explicado aos jovens que esse estudo envolvia o tema da morte e a adolescência, tendo sido enfatizado que a participação deles era optativa. Foi feita, então, a seleção dos adolescentes que se dispuseram a participar das atividades e foram distribuídas as autorizações. Os alunos foram convidados a assistir ao vídeo “Falando de morte com o adolescente” como forma de introduzir o tema da morte para eles. Após a exibição do filme, foi aberto um espaço para as reflexões dos jovens, assim como para suas vivências e experiências atuais com o tema da morte. Os grupos foram gravados sempre que possível (com autorização dos adolescentes e responsáveis) e descritos de forma detalhada. Houve a garantia de sigilo, e os relatos não foram vinculados aos nomes reais dos alunos.
Da compreensão dos dados
O caminho possível para a compreensão dos relatos foi baseado e inspirado em algumas das propostas da análise de conteúdo, e buscou compreender criticamente o sentido das comunicações, como abordado por Bardin (1977). Essa autora propõe uma técnica que procura reduzir o amplo número de informações compreendidas numa comunicação a algumas características particulares, eixos ou categorias conceituais que permitam passar dos elementos descritivos à intensa observação e interpretação desses dados. Durante a coleta de dados, ocorreu uma construção compreensiva com os jovens sobre questões relacionadas à morte, o que permitiu uma construção de significados e sentidos (Spink, 2003).
Apresentação e compreensão dos dados
Refletindo sobre o tema da morte, o mais difícil, segundo os adolescentes, é pensar na possibilidade da perda de pessoas queridas e na impossibilidade de elaboração dessas perdas (“penso na morte das outras pessoas”; “deve ser muito ruim perder os pais”; “dá medo perder as pessoas que a gente gosta”). O medo de perder pessoas queridas é mais intenso do que o próprio medo de morrer. Kovács (1992) aponta que, para muitos, é pior o luto de pessoas queridas do que a própria possibilidade de morte. Podemos perceber que esse aspecto também é referido pelos jovens.
Surgiu também o medo de ser dependente de outras pessoas, por exemplo, em decorrência de acidentes. Parece que, para o jovem, esse medo é maior do que o de morrer (“Eu não tenho medo de morrer... tenho medo de ficar paraplégico, de ficar parado, eu não tenho medo de morrer, morreu, morreu, você não sofre...”). E o valor da própria vida? E o sofrimento dos amigos e familiares?
Também disseram que é triste a percepção de que jovens (não eles próprios) podem morrer sem ter vivido muitos anos que ainda tinham pela frente (“... a pessoa poderia ter feito muitas coisas”). A maioria disse que não tem medo de morrer. De forma geral, os adolescentes não percebem a morte como possibilidade pessoal. Mesmo reconhecendo que deveriam ter essa percepção, sempre acham que esta não poderia acontecer com eles (“Eu não penso na possibilidade de a morte acontecer comigo”; “A gente deveria pensar, mas eu não penso não”; “... parece que eu nunca vou morrer... eu não consigo nem imaginar”; “...isso nunca vai acontecer comigo. Aconteceu com ele? Mas isso não vai acontecer comigo”; “Tem tanta gente para isso acontecer primeiro”; “Por que justo comigo que isso iria acontecer?”). Os sentimentos de imortalidade e onipotência são expressos claramente, assim como já citado por Kovács (1992). De modo geral, a própria morte não é motivo de preocupação. Este é um aspecto sério e recorrente nos discursos dos jovens.
Foi apontada a influência direta dos meios de comunicação na vida dos jovens, principalmente da TV e dos jornais, que mostram para eles a existência de tragédias e mortes inesperadas (“... quando eu vejo na TV, nos jornais, esse monte de tragédia aí, às vezes, eu penso... eu posso estar jogando bola, vir uma bala perdida e me atingir”). Esses veículos exibem “mortes escancaradas”, violência, assassinatos, lembrando que as mortes acontecem a todo momento. Foi destacado por um aluno que as pessoas estão “se acostumando” a ver pessoas morrendo e considerando esses acontecimentos como “naturais”; só dão valor para as mortes que acontecem com os mais próximos, ou seja, com quem se tem vínculo (“... as pessoas estão ficando acostumadas com isso. Só vai ser ruim se acontecer com um familiar ou alguém próximo. Para a morte dos outros não se dá muito valor”). Novaes (2002) descreve a cultura do medo como uma naturalização desse sentimento, integrando-a às reações cotidianas mais corriqueiras. Por exemplo, como vivemos sob a cultura do medo, um barulho que ouvimos dentro do ônibus logo é associado com tiros, quando na realidade é apenas um problema no escapamento. Dessa forma, hoje, o medo da morte e da violência é um sentimento partilhado por todos. Percebe-se a vulnerabilidade e a imprevisibilidade, e todos estamos em situação de risco.
Kovács (2003) fala sobre a “morte escancarada” como uma representação de morte do fim do século XX e início do século XXI. Esse retrato aponta a morte como invasiva e repentina, pois esta passa a fazer parte da vida das pessoas sem que estas possam se proteger da sua presença e de suas conseqüências. São exemplos de morte escancarada os acidentes e os homicídios (morte violenta), bem como as exibidas pelos meios de comunicação, principalmente pela TV. Qual será o papel dos pais e dos educadores em relação a essas questões? É importante uma reflexão sobre as melhores formas de lidar com essas situações e de poder ajudar os jovens nessa tarefa, promovendo discussões sobre o que é exibido com a intermediação do adulto.
Debortolli (2002) conclui que as tensões e a violência, as contradições, as desigualdades e a indiferença, que fazem parte atualmente do contexto social, passam a fazer parte, também, da vida dos adolescentes. Porém, a banalização da violência ou o desrespeito à vida alheia não são sinônimos ou características somente dessa fase do desenvolvimento. Costuma-se criar representações sociais que desvalorizam o jovem; portanto, se temos o desejo de auxiliá-los, é fundamental, primeiramente, repensar as opiniões e os preconceitos em relação aos adolescentes.
O aumento da ocorrência de mortes na adolescência é o tema principal dessa pesquisa. Destaco o aspecto de que morrer, nessa faixa etária, não é e não deve ser considerado, de forma alguma, algo esperado, embora esteja ocorrendo numa freqüência assustadora. Essas mortes envolvem comportamentos autodestrutivos, acidentes, mortes violentas. Dessa forma, não podemos considerar esses índices de mortes apenas como se fossem escolhas principais e únicas dos jovens. Muitas vezes, os adolescentes são vítimas do contexto social e econômico ao qual pertencem e não são os únicos autores da violência.
Esta pesquisa buscou refletir sobre o que os jovens pensam sobre esses aspectos e quais as possibilidades de transformação que eles percebem como importantes. Analisar cuidadosamente o que os jovens manifestam é um instrumento importante para o enfrentamento dessas “mortes precoces”.
Nas discussões, os jovens apontaram algumas hipóteses para os altos índices de morte na adolescência, a saber: (a) Uso de drogas (foi citado como razão central), muito dinheiro, problemas sociais e o envolvimento com drogas. Foram emitidas opiniões contra a legalização da maconha. Alguns jovens disseram que mais conscientização e debates sobre as drogas poderiam ajudar. Outros reiteraram que cada pessoa tem o poder de escolha, de se envolver ou não com as drogas; de ser ou não responsável. Carlini-Cotrim (2002) aponta que os profissionais que trabalham com o tema não devem relacionar o proibido e o permitido com a possibilidade de desenvolver dependência ou com a razão de as pessoas terem buscado a droga. É falso o raciocínio de que o permitido não é danoso (por exemplo, o álcool e o tabaco). Os jovens devem estar atentos ao aspecto de que, mesmo não desenvolvendo dependência, o uso de tais substâncias não é inofensivo, uma vez que há o risco de envolvimento com acidentes ou violência. Por essa razão que se busca chamar a atenção para o fato de a linha entre o prazer e a autodestruição ser tão tênue, e de os jovens, na maioria das vezes, não terem a percepção dessa fragilidade.
Carlini-Cotrim (2002) acrescenta que as notícias que envolvem mortes em decorrência do álcool devem causar estranheza e impacto emocional pelos meios de comunicação, não somente as que exibem mortes causadas pelo consumo de outras drogas consideradas “mais danosas”. Assim, a morte por álcool deve ser noticiada com o mesmo impacto daquelas causadas por drogas ilícitas.
(b) Armas, crime organizado, favelas, violência, banalização da morte, inveja por bens materiais e situações sociais desfavoráveis (“o mundo que eles estão vivendo, está tudo muito difícil... e os jovens estão convivendo com isso”). As mortes de jovens revelam algo sobre a sociedade na qual eles estão inseridos e sobre a sua constituição na condição de sujeitos nela inseridos. Bock & Martins (2002) dizem que o próprio conceito de juventude muda, constantemente, engendrando também novos modelos familiares, sociais e culturais. Há pouco tempo, o fim da adolescência e o início da vida adulta eram definidos quando o indivíduo se tornava independente financeiramente e constituía família. Essa definição está se modificando nas condições históricas e sociais atuais.
(c) Falta de emprego e de perspectivas para o futuro. É importante perceber que os jovens referem como aspectos das altas taxas de mortalidade na adolescência, a inserção do jovem na sociedade. Na opinião deles, essa inserção envolve oportunidades maiores de emprego e o senso de responsabilidade que os jovens podem adquirir. Além disso, o ideal seria que o trabalho não impedisse as possibilidades de ascensão social dos jovens, não os impedindo de freqüentar a escola e a universidade. Bock & Martins (2002) discutem que na adolescência pode haver sentimentos de frustração, insegurança e impotência em relação às questões que envolvem a inserção dos jovens no mercado de trabalho. Pode ser freqüente o pensamento de que os empregos não existem mais ou estes são apenas para os indivíduos empreendedores, competentes e qualificados, sendo a única saída possível os trabalhos autônomos e o investimento na educação. Há exigências de escolaridade, conhecimentos de informática, língua estrangeira e, sobretudo, experiência e requisitos, muitas vezes, difíceis de serem cumpridos pelos adolescentes que buscam seu primeiro emprego. Além disso, os meios de comunicação denunciam o aumento das taxas de desemprego no mundo inteiro. Há incertezas em relação à estabilidade e à sobrevivência, bem como dificuldades na construção da identidade por meio do trabalho. Muitas vezes, os fatores “dignidade”, “honestidade” e “merecedores de respeito” estão diretamente relacionados ao trabalho. Além do mais, na nossa cultura, a ocupação é uma importante expressão de status do indivíduo inserido na sociedade. O adolescente, apesar de suas preocupações com as mudanças corporais, sua nova identidade, seus conflitos familiares, entre outros, normalmente demonstra que a escolha da profissão é um aspecto prioritário e fundamental para ele (Becker, 2003).
(d) Suicídios de jovens em razão de problemas/dificuldades e na relação e comunicação com os pais e/ou namorado(a) ou de muitos problemas e a impossibilidade de lidar com eles. Foi lembrado, por outro lado, que muitos jovens têm problemas e poucos chegam a se matar. A diferença, segundo eles, encontra-se na coragem para resolver e lidar com os problemas.
(e) Dificuldade na comunicação e no contato com profissionais, amigos e familiares, assim como entraves para os jovens expressarem seus sentimentos e pedir ajuda para essas pessoas, principalmente para a família (“Existe uma falha de comunicação com profissionais, amigos e, até mesmo, com a mãe”; “tem a ver com o modo de educar... alguns pais tentam conversar, outros preferem não falar nada, deixam o filho fazer o que quiser...”). Foi apontado pelos jovens que esses índices podem estar relacionados a problemas na educação que receberam dos pais, como vivência de situações de violência intrafamiliar; ausência de diálogos e pouca convivência; falta de limites familiares; excesso de dinheiro e falta de atenção etc.
(f) Alto índice de acidentes (“Eu acho que precisa coragem para lidar com os próprios problemas e resolvê-los. Mas tem pessoas que se matam, usam drogas ou saem correndo a 500km/h na rodovia e morrem.”).
(g) Falta de limites, bem como o desejo e a postura dos adolescentes de desafiar o mundo de forma, muitas vezes, irresponsável. Essa realidade poderia se transformar caso os jovens tivessem mais limites externos.
(h) As más influências dos jovens, assim como a não-cobrança e à imposição de responsabilidade pela sociedade, como acontecia na época dos pais deles. A educação recebida pelos jovens é vista como “menos rígida”, mais liberdade.
(i) Depressão na adolescência: os jovens dizem que essa depressão poderia estar relacionada ao uso de drogas ou à perda de alguém querido, podendo levar ao suicídio ou à violência. Quando perguntou-se aos jovens como esses índices de mortalidade na adolescência poderiam mudar, emitiram as seguintes opiniões:
_ Os adolescentes devem ter mais coragem de pedir ajuda e expor seus sentimentos. “Se algum dia um amigo me falasse que ia se matar por causa dos pais ou da namorada, eu falaria para ele tentar conversar com os pais”; “um amigo pode zelar pela vida do outro, se ele se sentir amparado, talvez mude de idéia”; “há uma dificuldade de lidar com os próprios problemas... não há coragem de pedir ajuda para alguém e dizer ‘eu estou precisando, me ajuda’, não tem coragem de falar o que está sentindo”). Foi apontado que a família, muitas vezes, não se dispõe a ajudar os adolescentes, ou seja, não está atenta a eles ou nega os problemas já existentes. Outra possível reflexão seria que os pais tentam falar com os filhos, mas não conseguem.
_ Os jovens devem ter mais limites impostos pelos pais e pela sociedade, o que geraria mais maturidade aos adolescentes, protegendo-os de perigos que podem levar à morte. Parece que os jovens estão, também, pedindo modelos de identificação, um sentido maior para suas vidas e espaços sociais mais delimitados. Adorno (2002) diz que a questão da autoridade é um problema complexo, principalmente a internalização da autoridade e seus efeitos. Afirma que essas crises de autoridade, por exemplo em relação à família, apresentam um lado positivo de procura de novas soluções diante das transformações da sociedade, novos valores, comportamentos etc. Pensamos que o caminho não é culpar os pais pelos conflitos e problemas dos adolescentes, dizendo que eles não educaram bem seus filhos, mas sim tentar refletir sobre os significados das relações, buscando entender como se processa a comunicação entre pais e filhos, sua convivência, a transmissão das vivências e conhecimentos e, assim, intervir nesse processo de maneira criativa e enriquecedora. Devemos refletir sobre o porquê de os jovens pedirem mais limites: seria uma sensação de insegurança diante das condições sociais e dos perigos atuais? Para mais segurança, estariam os jovens necessitando de mais referências, apoio familiar, respaldo social? O fato é que, para os jovens poderem encontrar seus próprios caminhos, precisam se apoiar em valores oferecidos pela família, pelos educadores e pela sociedade em geral.
_ Outra ajuda possível seria a sociedade e a família procurarem ocupar o tempo dos adolescentes e, desde cedo, orientá-los para os “caminhos corretos” ou outras perspectivas, além da violência e do perigo (“... tirar os jovens da rua e complementar o tempo deles com alguma coisa... isso vai ajudá-los futuramente. Eu vejo muitos jovens fazendo aula de dança, expondo sua criatividade, e isso acaba resolvendo mesmo muitos dos seus problemas. Outra coisa que eu acho é o emprego mesmo. É uma coisa básica que ajudaria muita gente”; “deveria ter mais estes centros para os jovens irem brincar porque, às vezes, eles não têm muito o que fazer e acabam se enfiando nos lugares errados, entrando nas drogas”; “isso vem muito da educação dos pais”; “Se os pais não estão nem aí, o filho também não vai se tocar, não nasce sabendo as coisas”). Deveria ter, também, na opinião deles, mais incentivo aos jovens e mais discussões sobre perspectivas. Propuseram a existência de mais programas sociais que os tirassem da rua e ocupassem o tempo ocioso, com atividades como dança ou esportes. Outra proposta seria diminuir as taxas de desemprego na adolescência. Os pais são apontados como fundamentais nesse processo, devendo ficar atentos ao perigo do tempo ocioso e incentivando-os a ocupar esse período com atividades. Bologna (2002) relata como atividades fundamentais para o desenvolvimento e o preenchimento do tempo desses jovens a arte e as atividades esportivas. Estas são vistas como boas alternativas à questão do consumo de drogas. Deve-se estar atento à alegação perigosa de falta de recursos externos, pois poucas condições oferecidas pelo meio não significam condições nulas e sim, a necessidade de aprimorá-las.
As atividades ligadas às artes, como teatro, construção de textos, redações, pequenas obras como revistas, jornais, desenhos, quadros etc., e aos esportes podem dar um sentido melhor à vida dos jovens e oferecer uma percepção maior da realidade em que vivem. Essas atividades podem fazer com que se sintam pertencentes ao mundo, exercendo funções e fazendo diferença. Com isso, os jovens talvez não tenham a necessidade de fugir dessa realidade, já que fazem parte dela, e, conseqüentemente, não tenham a necessidade de usar drogas. Se não é uma certeza, é pelo menos uma alternativa. Portanto, é fundamental oferecer aos jovens novas opções e espaços alternativos para que eles possam expressar sua curiosidade, viver o prazer e sentir-se pertencente a um grupo (Carlini-Cotrim: 2002).
_ O “problema” atual, segundo vários jovens, são as drogas. Na opinião de alguns, deveriam ser realizados mais debates, nos quais os jovens pudessem expor seus pensamentos e sentimentos, e, com isso, levar a uma conscientização maior da sociedade.
O desenvolvimento de ações educativas e de prevenção contra as drogas, segundo Carlini-Cotrim (2002), deve ser um desafio de trabalho nas escolas e nas comunidades. Inicialmente, é necessária uma apropriação do discurso dos jovens que expressam curiosidade pelas transgressões e a necessidade de pertencer a grupos. Deve-se estimular uma participação ativa dos jovens na construção de ações alternativas às drogas. Assim, o fundamental é que o adolescente se perceba como sujeito de sua própria ação e, com isso, da prevenção de comportamentos autodestrutivos.
Bologna (2002) diz que um trabalho de prevenção contra as drogas não deve ser feito no sentido da censura e de discursos lógicos, com a opressão dos jovens. A transformação pode ocorrer se eles forem ouvidos na discussão sobre referências, valores e sentimentos pessoais. Deve haver, também, a busca por construção de ambientes nos quais o diálogo com o jovem pode acontecer, principalmente dentro da família. É importante a expressão dos pensamentos, dos medos, dos receios etc. Além disso, é fundamental o acolhimento de dúvidas e o fornecimento de informações precisas.
Nessa pesquisa, buscou-se a reflexão sobre o poder de escolha, que é individual, mesmo quando o adolescente está em grupo. Assim, uma importante liberdade conquistada pelos jovens, que deve ser discutida e valorizada, é a capacidade e o direito de fazer escolhas, de optar entre diferentes alternativas. Alguns puderam refletir sobre a responsabilidade pelos seus atos, principalmente diante dos perigosos. Esse recurso é fundamental no afastamento de situações de risco. Bologna (2002) afirma que o problema central é a preservação da liberdade do adolescente ao dizer “não quero” perante a pressão do grupo. Essa decisão pode ficar abalada com o aumento do uso habitual das drogas e de sua banalização. Outro aspecto relevante é a pressão econômica que leva a cultivar a droga como hábito social e como grande ganho financeiro.
_ Os adolescentes deveriam também, na opinião de alguns, saber escolher melhor os seus amigos. Erikson (1968/1987) aponta que a crise da adolescência (até mesmo a necessidade de construção e aquisição de nova identidade) muito tem a ver com o aspecto da expressão de idéias num grupo social. Dessa forma, uma escolha adequada de amigos poderia ser bastante positiva, uma vez que esse grupo poderia reconhecer o adolescente como parte integrante da sociedade. Isso poderia ajudá-lo na resolução de alguns conflitos, como sua confusão sobre valores, podendo-lhe fornecer acesso à vida social. Deve-se, por outro lado, estar atento quando esses grupos sociais são totalitários, rígidos ou controladores, pois suas idéias podem ser muito convincentes e de fácil assimilação. O perigo está em tirar do adolescente a liberdade de escolha e a possibilidade de refletir sobre as conseqüências de seus atos.
A comunicação e a possibilidade de troca de sentimentos e experiências entre amigos, profissionais e família sobre o tema da morte e dos comportamentos autodestrutivos são apontadas como caminhos para a transformação dessa realidade da mortalidade juvenil (“às vezes discutindo, o jovem pode se conscientizar”). Alguns adolescentes afirmaram que a discussão sobre o tema da morte pode representar uma ajuda, pois, assim cria-se um espaço para a expressão de sentimentos e a percepção de que outros adolescentes podem estar passando pelas mesmas dificuldades, um podendo ajudar o outro (“... às vezes, a pessoa pode estar quieta num canto e ver que o mesmo está acontecendo com outra pessoa, e isso pode ajudar”). Dessa forma, os conflitos da adolescência podem ser avaliados como potencial de crescimento, transformação e reflexões. Devemos estar atentos também ao que a sociedade tenta rotular como manifestações da “crise normal da adolescência”, vendo causas absolutas e intrínsecas ao jovem, visto que os adolescentes têm liberdade para fazer opções, bem como reformular conceitos e atitudes.
Refletir sobre o tema da morte seria um caminho possível na transformação desses índices se, na opinião dos jovens, o adolescente com quem se estiver conversando tiver a disponibilidade para isso. Então, o poder de escolha e decisão é mais uma vez colocado nas mãos dos jovens, estes têm a responsabilidade pelos seus atos. Becker (2003) aponta que na adolescência aprende-se que se pode escolher livremente. O jovem, diante das primeiras e das muitas escolhas, pode se sentir confuso e angustiado. Porém, ele deve perceber que poder escolher é um privilégio, e as alternativas existem em grande número. Julgamos que o mais importante é o adolescente ter a percepção de que ele faz parte do processo, ou seja, pode e deve participar das próprias escolhas.
Além disso, vários jovens disseram que é fundamental, nestes espaços de discussão, eles não se sintirem julgados. Eles precisam se sentir acolhidos e compreendidos.
Considerações finais
Kübler-Ross (1996) aponta que as epidemias dizimaram inúmeras vidas no passado, e até as mortes de crianças eram comuns nas famílias da época. Hoje, ainda podemos constatar inúmeras vidas de jovens sendo interrompidas, com a enorme diferença de que a realidade atual envolve um progresso imenso das técnicas médicas. Não vemos mais tantos jovens morrendo de doenças e, sim, de suicídios, acidentes, uso de drogas, homicídios etc. Dessa forma, faz-se urgente e necessária a reflexão sobre essa mudança de causas, envolvendo a mortalidade de adolescentes. Julgo fundamental nessa tarefa, estar disponível para ouvir e tentar compreender os pensamentos, as opiniões e os sentimentos deles.
Ao dar voz aos jovens, essa pesquisa pôde propiciar a possibilidade de caminhos de construção de novos olhares sobre a adolescência e como eles podem se relacionar de formas produtivas com a sociedade (família, amigos, educadores etc.). Permitir que os jovens expressem suas opiniões e reflexões sobre o tema da morte pôde-lhes propiciar esclarecimentos que os aproximaram de questões ligadas à busca de vida. É importante que familiares, amigos e profissionais mostrem-se curiosos e atentos aos dilemas dos jovens, bem como estejam dispostos a ouvi-los e a dialogar com eles, esclarecendo possíveis dúvidas, tentando acolher medos, receios etc. Principalmente nas grandes cidades, parte-se do pressuposto de que os jovens já têm informações sobre vários assuntos, e que isso já é suficiente para afastá-los dos perigos presentes. Penso que, nessa afirmação, há duas suposições equivocadas: os adolescentes não dispõem de todas informações e, mesmo assim, não se pode achar que com isso sejam anuladas a curiosidade e o prazer pelo desconhecido e por novas experiências.
O paradoxo vida e morte na adolescência mostra-se presente. Há uma busca intensa pela vida, com sentimentos de onipotência e idéias de imortalidade, o que acaba levando a uma aproximação dos perigos e à possibilidade de morte. Há uma diversidade de opiniões entre os jovens, o que dificulta encontrar maneiras de atingi-los. Porém, pude perceber o quanto os jovens podem estar abertos ao diálogo, à troca de vivências e sentimentos, assim como o quanto pode ser prazerosa essa experiência. Considerando as escolas públicas e privadas, bem como suas diferenças socioeconômicas e geográficas, percebe-se que a discussão sobre o tema da morte é importante nos vários níveis sociais. Essa relação construída com os jovens pode ser vista como uma busca de desenvolvimento pessoal deles. Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer à CAPES pelo financiamento da pesquisa e aos adolescentes e profissionais de educação que colaboraram com este trabalho.
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Endereço para correspondência
Maria Julia Kovács
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Cláudia Fernanda Rodriguez
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E-mail: claudiafr@uol.com.br
Recebido em 05/01/2005
Aceito em 08/03/2005
* Psicóloga e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo)
** Professora Livre Docente e Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte – Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
1 Dados divulgados na Folha de São Paulo em 08.06.04, no Caderno Cotidiano
2 Reportagem “Para seguir um estilo de vida com menos violência” - Caderno Folha Equilíbrio de 04.03.04: 6-8
3 Dados divulgados por Ana Paula Grabois da Folha Online, no Rio de Janeiro em 17.12.03
4 Idem 2
5 Idem 2