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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006

 

PARTE I

 

Jovens pobres na favela: múltipla escolha para quê, se no fim nada dá em nada?

 

Poor younger in favela: why do we have multiple choice if there are no results in the end?

 

 

Maria Inês Caetano Ferreira*

Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir os impactos das recentes transformações sociais na vida de jovens pobres, pelos resultados de pesquisa com famílias de jovens residentes em uma favela na cidade de São Paulo. Para tanto, é apresentado o estudo do caso da família de Jéssica, cuja gravidez precoce relaciona-se a um contexto marcado por sentimentos de angústia e vazio. A favela pesquisada localiza-se em região nobre da cidade, permitindo captar como o acesso a informações de valores da sociedade moderna e de formas de consumo de luxo em um contexto de vulnerabilidade social incide sobre as personalidades desses jovens. Nas entrevistas, em profundidade, foram recolhidas trajetórias nos mercados de trabalho, consumo, lazer etc. O estudo da trajetória da família da jovem Jéssica possibilita analisar fenômenos importantes da sociedade atual, como a revisão das representações temporais, em razão da infinita oferta de escolhas, o apelo às satisfações imediatas, o desenvolvimento de um modelo cultural que valoriza a juventude, que contribui para o adiamento do amadurecimento. Todos esses fenômenos confluem para um contexto social que impõe dificuldades para os jovens alcançarem a independência, situação que, no caso da favela, pode intensificar a condição de vulnerabilidade das famílias.

Palavras-chave: Juventude, Modernidade, Pobreza, Favela.


ABSTRACT

This article intends to consider results of contemporary social changes on poor younger by findings of research on young families who live in a favela at Sao Paulo city. It is introduced Jessica’s family case, whose earlier pregnancy is connected to a context characterized by sadness. The favela is located in a rich area. It makes possible to investigate how poor younger personality is affected for being approached social modern values and luxury consumer goods. Trajectories on market labor, consumer, leisure and so forth are grasped by deep interviews. Jessica’s family trajectory study makes possible to examine important new social phenomena: changing on social representations by time because infinity offers, seduction to immediate satisfactions, new cultural model development what postpones young process to became adult. All these phenomena are related to a social context that put difficulties to young reach independence. Findings show that in favela difficulties to poor young reach independence can intensify families’ vulnerability conditions.

Keywords: Younger, Modernity, Poverty, Favela.


 

 

O objetivo deste artigo é refletir sobre os impactos relacionados às recentes transformações nas mais diversas esferas da sociedade – como no mundo do trabalho, nas ofertas do mercado de consumo e também no cultural, a elevação nos anos de escolaridade da população, as revisões nos valores morais, e tantos outros temas – na vida de jovens pobres. Desse modo, discutimos algumas maneiras de os jovens situarem-se no mundo nos tempos atuais, as suas possíveis relações com o tempo e as questões envolvidas na elaboração de projetos de futuro. Nessa ponderação, um dos temas que se impõe de modo pujante é a revisão dos conceitos que até então organizaram as fases da vida, determinando os períodos de ingresso e superação da infância, da juventude e da maturidade.

Essa reflexão é decorrência de pesquisa realizada com famílias de jovens numa favela na capital paulista. Neste artigo, desenvolvemos o estudo do caso de uma família composta pela mãe (Jacira), chefe do grupo, pela filha grávida com 14 anos (Jéssica) e por uma outra, de sete anos, com sérios distúrbios neurológicos. A análise das trajetórias da mãe e da filha adolescente possibilita desvendar relevantes questões vinculadas a fenômenos atuais da nossa sociedade e como eles incidem sobre as expectativas e as possibilidades de jovens pobres organizarem as suas vidas. Isso porque os relatos de vida da mãe, Jacira, revelam as dificuldades, mas também as oportunidades para a mobilidade social ascendente de migrantes até anos recentes. A curta trajetória da filha Jéssica, por outro lado, aponta novos obstáculos impostos aos jovens que, apesar das oportunidades de estudo e de acesso às mais diversas redes de informação, enfrentam dificuldades para integrar-se no mercado de trabalho e conquistar a independência, provocando, assim, alterações no movimento da conquista da vida adulta.

 

A pesquisa

Inicialmente, a breve informação da pesquisa, que deu origem ao estudo do caso aqui apresentado, possibilita a melhor compreensão dos motivos que justificam a discussão dos diversos temas e contextualiza a família abordada.

A pesquisa foi realizada com famílias de jovens numa favela que se localiza no distrito de Vila Andrade, região nobre da cidade de São Paulo, com o objetivo de investigar as conseqüências do fato de ser um morador desse local sobre as trajetórias dos indivíduos1. A opção pelo estudo dessa determinada favela vinculou-se, por outro lado, ao interesse nos possíveis impactos da contradição relacionada com um modo de vida marcado pela condição de vulnerabilidade social, e, por outro, ao contato próximo com um mundo de valores modernos e sofisticados das classes médias e altas. A precariedade da infra-estrutura da favela contrastava com o contíguo sofisticado universo simbólico dos vizinhos de elevado poder aquisitivo.

O recorte no estudo de famílias de jovens explica-se pela preocupação em desvendar os recentes processos de transformação da nossa sociedade nas esferas do mercado de trabalho, de consumo, das novas oportunidades de estudo e do acesso a inúmeras redes de informação. O cotejo dos relatos de pais e filhos jovens possibilita reconhecer realidades típicas das gerações anteriores, as que foram superadas e as que se mantêm nos tempos atuais. A determinação da investigação de famílias deve-se ao fato de que as estratégias dos indivíduos são elaboradas dentro do espaço doméstico. Cabanes (2000: 17) atenta para a riqueza do estudo da biografia dos grupos domésticos, pelo fato de eles representarem mais do que unidades sociais determinadas, uma vez que é na família que os indivíduos questionam o mundo.

Nas entrevistas de longa duração, os indivíduos relataram suas trajetórias de migração, ocupação, moradia, a instalação na Capital, as formas de lazer e de consumo, enfim, as suas movimentações pelo espaço urbano e pelos modos de inserção social. A metodologia do estudo das trajetórias possibilita reconhecer realidades sociais marcadas pela instabilidade e pela descontinuidade, como ensina Pais (2001: 110), e a estas caracterizam os modos de inserção social dessa população, além de flagrar as formas de movimento dos indivíduos nos tempos recentes, quando se esvaem as estruturas bem definidas do modelo fordista.

Por fim, a relevância do estudo de trajetórias de indivíduos e de suas famílias relaciona-se à sua capacidade de desvelar o movimento de trajetórias coletivas. Isso porque, como bem explica Cabanes (op. cit:31), as trajetórias individuais manifestam estruturas mais amplas da sociedade por meio de fatos da vida cotidiana. Isso não significa que pretendemos generalizar os resultados alcançados pelo estudo das trajetórias; todavia, eles apontam processos que participam de fenômenos sociais mais amplos. Afinal, Bourdieu (1979) ensina que os deslocamentos dos indivíduos pelo espaço social não são aleatórios, orientados pela sorte ou pelo azar, mas obedecem a forças que estruturam esse espaço, a eventos coletivos relacionados à ampla estrutura social.

O interesse no estudo do caso da família da jovem Jéssica explica-se pelo fato de os dilemas que atravessam as trajetórias de seus integrantes, afetando todo o conjunto, esclarecerem elementos da sociedade mais ampla. Isso porque as questões que são impostas aos indivíduos, assim como os modos de solução por eles adotados, derivam ou influenciam as regras sociais, em vez de simples conseqüência do livre arbítrio. As alterações nos destinos, assim como as semelhanças captadas nos relatos de Jacira e de Jéssica, apontam para processos estruturais de mudanças e ensinam a incrível flexibilidade das formas como eles incidem nas vidas individuais. Daí a relevância do estudo sociológico dessa determinada família.

 

Uma família feminina

O contato com Jéssica ocorreu numa das creches da favela, onde ela freqüentava cursos profissionalizantes. Muitas razões despertaram o interesse na investigação da família; todavia, a principal foi a gravidez dessa adolescente de 14 anos, que apontava a oportunidade para a compreensão desse fenômeno, bastante comum no local da pesquisa.

A entrevista com a mãe, Jacira, foi realizada num único dia, com duração de quase três horas; a de Jéssica foi realizada em dois dias, com duração de pouco mais de uma hora. A diferença de tempo nas entrevistas de mãe e filha exprime, entre muitos aspectos, o descompasso no modo de envolvimento com os problemas impostos pela vida. Jacira expressou vivacidade, energia, coragem e necessidade de anunciar as impressionantes crises que ela se viu obrigada a enfrentar, bem como os sacrifícios contidos nesse enfrentamento. Essa mãe procurou responder a todas as perguntas e emitiu opinião sobre os diversos temas abordados, demonstrando, assim, disposição para debater a realidade social. Ao contrário, Jéssica evitou opinar, mais em razão da atitude de não se preocupar com os fatos sociais que a atingiam, do que propriamente de uma recusa a envolver-se com a entrevista. A atitude de não se preocupar com os fatos sociais manifesta-se na tranqüilidade com que Jéssica informou não ter desenvolvido nenhum projeto de futuro. Essa afirmação contrasta com a postura de Jacira, que orientou sua trajetória para realizar projetos de futuro. Jéssica anunciou que vivia o presente, que por sinal não a agradava, sem praticar nenhum exercício de imaginação sobre o que poderia ser (ou como ela gostaria que fosse) o seu futuro. Por fim, a jovem confessou que não havia absolutamente nada na vida que a interessasse. Jéssica vivia num vazio de perspectivas e de interesses.

A apresentação das trajetórias de mãe e filha revela os contrastes das histórias de vida e das posturas de cada uma delas, assim como desvenda as imbricações que permeiam esses contrastes.

 

Jacira: a arte de caminhar sobre o arame

Apesar de seus poucos 32 anos de idade, Jacira, a chefe do grupo doméstico, já tinha vivido intensamente. Ela nasceu na zona rural do sul da Bahia, onde cresceu com os irmãos e com o pai autoritário. Sem a mãe – que migrou para São Paulo, fugindo do marido, Jacira não teve quem lhe ensinasse nada da vida. Ela e os irmãos levantavam antes das cinco horas da manhã para trabalhar na roça, condição para que pudessem se alimentar. O pai caminhava muitos quilômetros diariamente para trabalhar na roça de terceiros e, assim, ter o que oferecer aos filhos. Jacira contou que ia à escola aos domingos porque nem mesmo sabia em que dia da semana vivia. Com esse comentário, ela expressou o seu inconformismo com um viver tão limitado. Segundo ela, por falta de informação, engravidou antes dos 18 anos de um homem violento, que estava sempre embriagado. Antes de a filha Jéssica completar um ano, Jacira fugiu para São Paulo atrás de sua mãe, a fim de livrar-se do companheiro.

Ao desembarcar em São Paulo, ela se ocupou como doméstica. É importante destacarmos que apesar de Jacira recorrer à mãe, ela já havia conquistado a condição de adulta, dona de sua própria vida, enfrentando inúmeros obstáculos, aos quais não estava acostumada.

Poucos meses após a migração, o companheiro também desembarcou em São Paulo. Ela abandonou o emprego para acompanhá-lo no trabalho numa chácara, do qual ele logo foi demitido. Jacira conseguiu novamente emprego de doméstica na casa de uma advogada, próxima à favela. Desempregado, o marido passou a depender dos recursos de Jacira, que comprara um pequeno barraco na favela, em sociedade com um irmão. O marido passou a infernizar a vida dela, a fim de convencê-la a abandonar o barraco para ele. Para tanto, ele a agredia, abusava sexualmente da filha, insultava a patroa de Jacira e passou a ter um caso amoroso com um das irmãs de Jacira. Disposta a não transferir para o marido o seu único bem (o barraco), ela suportou as provocações. Os inúmeros problemas do casal ocasionaram a demissão de Jacira. Mas ela conseguiu rapidamente um novo emprego na casa da dona da cantina de uma escola para classe alta, localizada na região, onde permaneceu por oito anos.

Os conflitos com o marido só se encerraram quando ele foi expulso da favela pelo grupo que controlava as atividades criminosas no local. Isso porque o marido engraçou-se com uma das namoradas de um dos líderes desse grupo que, enciumado, decretou a sua partida definitiva no período máximo de 24 horas ou a pena de morte. Ciente da aplicação implacável da lei, o marido abandonou Jacira para sempre. Nessa época, Jéssica tinha cerca de quatro anos. Mais tarde, aos 14, confessou guardar poucas lembranças do pai.

Jacira permaneceu na casa da dona da cantina; as condições materiais do grupo não se agravaram com o abandono do companheiro, até porque ele nunca contribuiu no orçamento. Ela comprou um outro barraco, mais simples e ainda menos confortável, e, livre das pressões masculinas, implementou o projeto de construir sua própria casa, embora em área de ocupação ilegal. Diante das dificuldades, a concretização do projeto representou, na verdade, a materialização de um sonho, quase impossível.

O projeto da casa própria exigiu sacrifícios de Jacira e da então pequena Jéssica (na época com sete anos). A descrição das condições do barraco, com as quais as duas tiveram que conviver por um ano, antes do início da construção da casa, oferece pistas da intensidade do sacrifício requerido:

“Quando eu comprei era um barraquinho, tinha tanto buraco que eu dormi por dez dias sentada na cadeira com os pés sobre um bloco e o guarda-chuva aberto. Eu coloquei minha filha no colchão estendido no único lugar onde não chovia. Cheguei a trabalhar com os pés inchados. Eu já era preta e as minhas olheiras ficaram mais pretas ainda, a boca não parava de tremer. No chão estava espalhado um monte de papelão e plástico. Eu falava: meu Deus, por que ser tão pobre? Se tivesse vontade de comer bolacha, além de não ter dinheiro para comprar, não tinha lugar para guardar, por causa de tanto rato que andava pelo barraco. Só tinha lugar para uma cama, um fogão, um armarinho e um sofá, mais nada.”

Se os rendimentos do emprego foram essenciais para Jacira concluir as obras da casa, a intensa dedicação ao trabalho exigiu sacrifícios dela e de Jéssica. Jacira saía de casa muito cedo, retornando apenas no início da noite. Ela cuidava das duas filhas pequenas da patroa: alimentava, vestia, banhava, acompanhava as lições da escola e brincava, enquanto a pequena Jéssica permanecia trancada no barraco desconfortável, sozinha, sem ninguém que lhe cuidasse, sem companhia para brincar. A única companhia de Jéssica era um cachorro, com quem a menina dividia o prato de comida disposto no chão da casa. Enquanto cuidava das filhas da patroa, o coração de Jacira sangrava ao lembrar da própria filha abandonada e desprotegida. Desse modo, podemos perceber as imbricações nos destinos de mãe e filha. Afinal, as intenções de Jacira eram nobres, ela queria oferecer uma vida melhor para Jéssica. Entretanto, em razão dos efeitos da inserção social precária, o investimento num futuro melhor demandou sofrimentos que marcaram as duas mulheres. A contrapartida da preocupação da mãe foi a solidão, a insegurança, o medo, o abandono que acompanharam Jéssica por quase toda a sua infância.

Um dos receios de Jacira era que alguém invadisse o barraco e molestasse a menina. Sem dinheiro para pagar alguém que cuidasse da filha e sem vaga na creche local, ela apelou para a proteção de um dos líderes da favela, vinculado à exploração de atividades criminosas. A necessidade de aproximar-se de um homem tão poderoso e violento deixou Jacira apavorada, porém a preocupação com a segurança da filha fez com que ela enfrentasse o medo e se submetesse à autoridade de uma pessoa com quem ela preferia não se relacionar2.

Jacira viveu uma segunda relação conjugal com um homem de quem ela nunca soube nada da vida, nem quem eram seus parentes e onde viviam. Antes de completarem um ano de namoro, ele se mudou para a casa dela. Esse homem não interferia no seu trabalho e nem na sua relação com Jéssica; todavia, não contribuía para o orçamento doméstico. Ele não provocou prejuízos materiais à Jacira até o momento em que ela foi abatida pela mais grave crise de sua vida: a doença da filha do casal. Essa filha foi rejeitada no início, porque ele se recusava a ter filhos com Jacira. Com o tempo, ela fez com que ele concordasse com a gravidez. Porém, problemas na hora do parto levaram à perfuração da cabeça da criança, que provocou graves lesões no cérebro, deixando a menina em coma por vários dias. O diagnóstico final apontou seqüelas irreparáveis, as funções cerebrais da garota desenvolveriam-se apenas ao equivalente à idade de quatro anos. Desesperado, o pai desapareceu sem nunca mais enviar notícias.

Jéssica foi testemunha dos graves efeitos dessa outra decepção amorosa da mãe. Ela passou a acompanhar Jacira no tratamento da menina, que requeria cuidados especiais e dispendiosos. Elas freqüentavam assiduamente serviços públicos de saúde, espalhados por diversas regiões da cidade. A dedicação exclusiva que o tratamento da menina exigiu afastou Jacira do mercado de trabalho, que passou a realizar eventuais serviços de faxina. Desse modo, a precariedade material do grupo intensificou-se.

Com o passar dos anos, Jacira já podia contar com Jéssica para cuidar da irmã. Então, ela partiu em busca de uma colocação. No entanto, deparou-se com dificuldades quase intransponíveis no mercado de trabalho, pois apesar do comprovados longos vínculos de trabalho doméstico, ela era recusada pelos empregadores em razão dos poucos anos de escolaridade. Jacira revoltava-se com o fato de exigirem certificado de curso médio para cortar cebola e ralar cenoura. Além da escolaridade, os empregadores passaram a exigir padrões de comportamento que incluíam servir a mesa de modo sofisticado, caminhar elegantemente e outras etiquetas que não participavam do universo de Jacira. Na faixa dos 30 anos, ela se sentia expulsa do mercado de trabalho e com medo de seu futuro e com o de suas filhas.

Jéssica, inconformada, assistia às recusas recebidas pela mãe e constatava que seu investimento nos estudos talvez não lhe trouxessem muitos benefícios, uma vez que, talvez, nem mesmo ela conseguisse reproduzir a trajetória de doméstica de sua mãe, apesar dos certificados escolares.

A gravidez de Jéssica, assustou Jacira, que temia pelo agravamento das condições materiais do grupo. O pai da criança não tinha emprego e nem perspectivas de vir a conseguir algum, para contribuir no sustento do filho. Na verdade, ele nem tinha onde morar.

 

Jéssica: “nada me interessa”

Jacira demonstrou coragem e disposição para enfrentar as vicissitudes a fim de conquistar um mínimo de segurança diante de um viver marcado pela instabilidade, bem como oferecer um futuro melhor para a filha. A ação caracteriza a sua trajetória: ela agiu ao fugir do marido, ao ingressar num mercado de trabalho desconhecido, ao sustentar sozinha a sua filha, ao enfrentar as provocações do marido violento, ao construir sozinha a sua casa, ao assumir sozinha os cuidados com a filha doente. Mas Jéssica não indicou a mesma disposição para agir, para interferir no seu próprio destino; um exemplo é a sua despreocupação em planejar o futuro.

Apesar de insatisfeita com o seu presente, Jéssica não parecia se mobilizar para transformar esse presente, para investir num futuro diferente. No presente, Jéssica não fazia nada que a interessasse. Ela não gostava de viver na favela, onde os vizinhos a controlavam. Ela não passeava, embora tivesse vontade. Jéssica frustrou-se com a venda da quadra local para a Igreja Universal do Reino de Deus, pois ali aconteciam os bailes do pancadão, animados por um ex-ator da tevê Globo, que a agradavam muito. Depois da instalação da igreja, ela não tinha mais onde passear na favela. Combinava passeios com as colegas, mas elas nunca se concretizavam.

Jéssica sentia-se muito sozinha, porque não tinha ninguém em quem confiar ou para conversar, exceto sua mãe. Ela contou que não se confessava com as amigas, com quem só falava de temas superficiais. Jéssica não tinha um namorado e nem esperava encontrar algum no futuro. Ela nem mesmo imaginava como poderia ser um namoro ideal. O único relacionamento de Jéssica com o sexo oposto aconteceu com o pai de seu filho, um primo distante que se hospedou na casa da família, enquanto se ajustava na sua nova vida de migrante. Jéssica disse que não sentia nenhum afeto pelo primo e que aceitou fazer sexo com ele apenas por curiosidade. Ela confirmou que sabia dos riscos da gravidez, porém não considerou essa possibilidade. Embora estivesse animada, a jovem não imaginava como seria a vida depois de o filho nascer.

A jovem nunca tinha trabalhado e não tinha nenhum plano de futuro profissional. Ela contou que gostaria de trabalhar, embora não soubesse no que e como conseguir uma colocação. Apesar de testemunhar as dificuldades enfrentadas pela mãe no mercado, a jovem informou que nunca refletira sobre os problemas atuais do mercado.

Jéssica guardava a frustração com a experiência escolar, pois ela estava concluindo o ensino fundamental sem saber resolver nenhum dos exercícios da prova de matemática. Ela tinha consciência de que o certificado não comprovava a sua capacidade intelectual. Mais do que feliz com a aprovação, Jéssica guardava um sentimento desagradável por não ter condições de aprender a lição, a despeito da reconhecida falta de vontade da professora de ensinar os alunos. Ou seja, a desatenção da professora não fazia com que Jéssica se sentisse menos culpada por concluir uma etapa dos estudos sem saber resolver nenhum dos exercícios da prova.

Por fim, a jovem confessou que absolutamente nada na vida a interessava; muito provavelmente por esse motivo ela não se sentia estimulada a agir para interferir no seu futuro. A gravidez acidental pode ser interpretada como resultado da atitude de Jéssica em não se preocupar com o futuro e simplesmente viver o presente, do modo como ele se apresenta. Jacira não se conformava com a gravidez acidental porque Jéssica tinha informações suficientes, além de saber onde a mãe guardava os anticoncepcionais, para não engravidar. O inconformismo da mãe explica-se pelo seu investimento para oferecer à filha melhores condições a fim de que ela própria controlasse o seu destino e não se sujeitasse aos incidentes, como ocorrera com Jacira. Todavia, Jéssica optou por dar chance ao azar. O que chama a atenção na curta trajetória da jovem é essa disposição de optar pelo azar, apesar de - aparentemente - dispor de mais recursos para controlar o seu destino.

A adolescência de Jéssica era incomparavelmente mais suave do que a de Jacira na zona rural da Bahia. Na capital, Jéssica tinha acesso a recursos indisponíveis à sua mãe na adolescência. Um exemplo é que ela não precisava trabalhar, podendo dedicar-se integralmente aos estudos e a eventuais cursos profissionalizantes oferecidos por instituições na favela3. Ao contrário da mãe, que nem mesmo sabia o dia da semana em que vivia, Jéssica concluía o ensino fundamental e preparava-se para ingressar no médio, freqüentava cursos profissionalizantes na creche local, onde aprendia a operar microcomputadores, tinha acesso a um mundo amplo por meio da mídia, das idas ao shopping center, dos bailes animados por atores globais e com colegas que partiam para os Estados Unidos para trabalhar. Enfim, Jéssica tinha acesso a um mundo moderno e diversificado que vendia a ilusão de um viver intenso e agitado.

Devemos destacar a influência das características da favela estudada sobre as condições de vida de jovens como Jéssica. A localização privilegiada desta possibilita aos moradores o acesso a informações acerca das novidades da sociedade moderna. Nessa região, eles podem freqüentar shopping centers e outros centros comerciais que informam os novos lançamentos da tecnologia, da moda nos ramos de vestuário, alimentação, automóveis, arquitetura e decoração e um sem-número de itens voltados para despertar o desejo de consumo das classes altas e médias, que, em virtude da proximidade, provocam algum tipo de impacto nas populações pobres, que também terminam seduzidas por eles4.

Além do contato com oportunidades de consumo de luxo, os moradores tomam conhecimento dos valores da sociedade moderna. Isso porque, na favela, há inúmeros projetos sociais patrocinados por organizações não-governamentais voltadas para atividades artísticas e educativas em geral5. Jéssica, por exemplo, freqüentava cursos profissionalizantes na creche local; outros jovens freqüentavam cursos de música e dança, realizando apresentações pelo país e até no Exterior, desenvolvendo contato com artistas e outras personalidades do mundo artístico, intelectual, empresarial e da mídia. Tudo isso, sem dúvida, amplia os horizontes dos jovens, que passam a dispor de um repertório cultural mais diversificado, favorecendo a circulação por diferentes ambientes sociais. Além do universo da favela e de suas condições materiais precárias, os jovens convivem com outros estilos de vida, o que certamente influencia as suas expectativas de futuro.

No caso de Jéssica, a contrapartida do acesso aos valores modernos e a produtos de consumo era a precária realidade que lhe apontava caminhos limitados. A jovem testemunhava as recusas recebidas pela mãe – em decorrência da pouca escolaridade – quando buscava colocação em um trabalho doméstico, apesar da longa experiência na área. Jéssica reconhecia a perda de prestígio dos estudos para obter melhores oportunidades no mercado, pois observava no local a massa de jovens desempregados, apesar de elevada escolaridade. As conclusões de Jéssica são confirmadas pela pesquisa sobre juventude no estado de São Paulo de Yazaki e Morell (1998). Segundo os autores, recentemente as jovens tendem a estudar mais do que os rapazes e gerações anteriores, mas a sociedade não cria oportunidades de trabalho para elas. Melo e Telles (2002) informam que, no Rio de Janeiro, o grupo de indivíduos ocupados como ambulantes – trabalho caracterizado pela precariedade e que requer força de trabalho pouco qualificada – com 12 anos de estudo ou mais expandiu em um terço no total dos ocupados do setor. As informações dos autores acima confirmam o mal-estar de Jéssica que, apesar das ofertas sedutoras e ilusórias que lhe eram ofertadas no seu trânsito pela diversidade de redes de informação a que tinha acesso, tinha consciência das dificuldades para vir alcançar uma ocupação, mesmo em um posto simples como no emprego doméstico, ao qual sua mãe dedicou toda a sua trajetória. O mais grave é que, mesmo se conseguisse ingressar no emprego doméstico e reproduzir a trajetória de sua mãe, ela já havia tangenciado um mundo amplo demais para contentar-se com um destino que lhe parecia limitado, se comparado às ofertas sedutoras do mundo moderno.

Melucci (1997: 9) chama atenção para o fato de que a construção das biografias atualmente não persegue o modelo previsível de décadas atrás. Isso porque antes, o leque de opções dos indivíduos era limitado. No entanto, hoje, os indivíduos deparam-se com um sem-número de alternativas para traçar os seus destinos. Isso se expressa claramente na comparação das histórias de vida de Jacira e Jéssica. Apesar das oportunidades de trabalho e, conseqüentemente, da independência financeira, Jacira não teve a opção de escolher profissões nem estilos de vida. No caso de Jéssica, a escassez de oportunidades de colocação no mercado de trabalho ocorre concomitante ao alargamento dos campos de profissão, de estilos de vida, de objetivos de destino. Além de lidar com as elevadas taxas de desemprego e com as ofertas de trabalho precário, Jéssica deve refletir sobre o que lhe proporciona prazer ante um vasto leque de promessas de felicidade. A escassez de oportunidades para concretizar a infinidade de promessas do mundo atual não minimiza os desgastes emocionais vinculados à necessidade de selecionar uma alternativa entre tantas outras tão sedutoras.

Bauman (2000: 73) pondera sobre alguns fenômenos da sociedade atual; entre eles, a infinita oferta de possibilidades para os indivíduos, a impressionante capacidade de livre escolha e como isso influencia as personalidades. Todavia, o autor ressalta a restrita oportunidade para converter as ofertas em realidade. O autor (op.cit.: 179 a 180) destaca os efeitos das transformações transcorridas no mundo do trabalho sobre o comportamento dos indivíduos e considera as reflexões sobre a racionalidade instrumental, desenvolvidas pelo sociólogo alemão Max Weber, operante em fases anteriores à modernidade. Bauman destaca a relevância da anterior disposição dos indivíduos para adiar as satisfações para o futuro.

Nesse caso, o que atribuía sentido ao presente e à própria vida destes era o projeto de perseguir a promessa futura. Na esperança de alcançar o sonho maior, os indivíduos suspendiam as pequenas satisfações imediatas. O importante era nunca zerar as oportunidades, ou seja, jamais realizar por completo o projeto de futuro, para que sempre fosse possível almejar novos objetivos e, assim, preencher de sentido a vida presente.

A trajetória de Jacira pode ser interpretada segundo os argumentos de Bauman. Afinal, ela orientou suas ações para alcançar objetivos futuros. A favor desses objetivos, ela suportou as agruras do cotidiano. Uma das explicações da sua energia é o fato de que ela dispunha da possibilidade de alcançar uma posição mais confortável, caso enfrentasse bravamente os obstáculos.

Apesar dos graves problemas com a filha doente, com as seguidas recusas dos empregadores, com a gravidez precoce de Jéssica, com a falta de dinheiro e tantos outros entraves, Jacira transmitia orgulho por ter obtido algumas vitórias na vida. A capacidade de sustentar sozinha sua família e de concluir o sonho da casa própria possibilitava à Jacira construir um sentido para a sua vida e também interpretar uma existência tão difícil.

Em contrapartida, a despreocupação de Jéssica em executar projetos para interferir no seu destino relaciona-se com as atuais características da sociedade, em que escapam as oportunidades de realização de planos futuros e os indivíduos restam aprisionados no presente. As promessas de possibilidades infinitas e cintilantes no tempo imediato ratificam a permanência no presente, que não mais se justifica pelo passado ou futuro, mas por si mesmo. Bauman (op. cit.: 187) explica que a falta de segurança no futuro estimula a satisfação imediata, pois, na medida em que o tempo vindouro é um enigma, a melhor opção é usufruir as ofertas do presente. O autor chama atenção para o fato de que a satisfação no presente tende a ser imediata, reduzindo-se a um momento de êxtase.

As reflexões de Melucci (op.cit.:10) atenta-nos para o fato de que o problema de Jéssica não se limita aos obstáculos impostos pelas dificuldades materiais para converter as ofertas da sociedade atual em realidade. O autor destaca que o tempo disponível é insuficiente para essa conversão, ou seja, o tempo não é suficiente para tantas realizações. A consciência dessa impossibilidade estimula o sentimento de vazio.

A gravidez precoce de Jéssica talvez possa ser compreendida como um resultado da busca do prazer imediato, afinal ela relatou que estava consciente da possibilidade de engravidar, mas preferiu arriscar a fazer sexo com uma pessoa que não a atraía de modo especial. Mas a atitude tranqüila de Jéssica diante do fato, que tanto abalava a sua mãe, sugere que o filho talvez pudesse vir a representar um projeto de futuro, a despeito de sua dificuldade para projetar apostas futuras. Talvez essa criança pudesse ser uma aposta para fugir do vazio.

Jacira não se conformava com a gravidez acidental da filha que recebera orientação sexual. Ela sabia que bastaria Jéssica aplicar os seus conhecimentos e a gravidez teria sido evitada. Pesquisa de Melo e Yazaki (1998) revela que apenas 16,3% das jovens paulistas que engravidaram entre 15 e 19 anos afirmaram desconhecer métodos anticoncepcionais, enquanto 32,5% sabiam que podiam engravidar, conheciam métodos anticoncepcionais, porém não esperavam fazer sexo naquele momento nem engravidar naquela oportunidade. A maior parte do grupo (34,9%) confessou que não se preocupou com a possibilidade de engravidar, mesmo sabendo que isso poderia ocorrer.

Em seu estudo sobre famílias pobres em subúrbios franceses, Avenel (2000: 38) explica a centralidade do grupo em situações de extrema precariedade social. O autor aponta a importância que os pais atribuem aos filhos, uma vez que eles se convertem na medida de todas as coisas, no único projeto de futuro. Segundo Avenel, em situações de mobilidade social descendente, o filho torna-se o último recurso dos pais para preservar a identidade. Enfim, não nos parece impossível que para Jéssica o filho pudesse se reverter nesse instrumento, que ela nunca havia identificado em si própria.

 

Transformações nas relações de pais e filhos na família e nos ciclos de vida

O inconformismo de Jacira com a gravidez precoce de Jéssica expressava uma certa decepção com os caminhos que a filha se permitira trilhar. Por outro lado, essa decepção expressa o movimento de transformação das relações de pais e filhos nas famílias, especialmente no caso de populações urbanas empobrecidas, como a da família abordada.

A decepção de Jacira relacionava-se com os investimentos que ela realizara a fim de oferecer uma vida melhor para Jéssica. Todavia, essa vida melhor não se limitava apenas às condições materiais mais confortáveis e à aquisição de recursos para controlar o destino, mas também ao desenvolvimento de relações amistosas de mãe e filha. Para Jacira, era importante construir com a filha uma relação oposta à que ela experimentou com o pai autoritário. Ela buscou ser uma mãe amiga, compreensiva, companheira, merecedora da confiança da filha.

Jacira inquietou-se em oferecer à Jéssica condições para que ela escolhesse seu próprio destino, que tivesse a liberdade de ter a vida que lhe interessasse, em vez de reproduzir o seu destino, atravessado por crises e por azares inesperados. Para tanto, Jacira preocupou-se em oferecer condições para a filha freqüentar a escola e adquirir conhecimentos que lhe possibilitassem administrar melhor a vida, procurou mantê-la afastada do mercado de trabalho para que a jovem se dedicasse aos estudos, transmitiu orientação sexual para evitar a gravidez acidental, também informou onde guardava os anticoncepcionais, concordou com a possibilidade da vida sexual fora do casamento e a tolerância com temas que eram moralmente reprovados pelas gerações mais velhas, além do apoio para as decisões da filha.

Em contrapartida, Jéssica sentia profunda gratidão por sua mãe, a quem considerava sua única amiga. A jovem confessou que, no episódio da gravidez, o único elemento que a preocupou foi a possibilidade de decepcionar sua mãe. Reconhecia o sacrifício de Jacira para oferecer uma vida melhor para ela, o que, de certo modo, a fazia se sentir em dívida com a mãe. O fato é que a intensa amizade de mãe e filha indica mútua dependência emocional.

A centralidade da família para jovens como Jéssica é explicada pelos argumentos de Roquera (1997: 110) que contestam as previsões de que o grupo perderia suas funções para outros. Roquera reconhece que a família mantém-se como unidade básica de apoio e solidariedade em virtude de sua capacidade de adaptação ao recente processo de transformação das relações sociais. Essa adaptabilidade possibilitou à família posição de destaque na organização das relações dos indivíduos, atualmente atravessadas e influenciadas por múltiplas redes.

Os novos padrões de relações na família para despertar um outro fenômeno da atualidade: a revisão da definição dos ciclos da vida. Pimenta (2001: 21,22) explica que, até décadas atrás, o limite entre a juventude e a idade adulta era marcado pela ultrapassagem de fases da vida bem definidas; geralmente, o fim do período dos estudos combinava com a fase reprodutiva do indivíduo e o ingresso no mercado de trabalho. Ao se responsabilizar pela manutenção de sua própria família, o jovem tornava-se então um adulto. Nos tempos atuais, há desconexão entre as fases, o início da vida sexual não necessariamente coincide com a formação de um novo núcleo familiar, bem como o encerramento dos estudos não necessariamente implica o ingresso no mercado de trabalho, até mesmo por causa do elevado índice de desemprego.

Peralva (1997: 21) destaca que as mudanças das relações de trabalho foram cruciais no processo de alteração dos ciclos de vida. A autora aponta as transformações das representações sociais sobre o percurso etário. Novamente, retornamos ao fenômeno relacionado a novos significados atribuídos ao tempo. Pois, como explica Peralva, a idéia de progresso da sociedade industrial, orientada pela seta de um tempo linear, atribuía à juventude a promessa de futuro. Na atualidade, as infinitas possibilidades de realização no tempo presente e as incertezas acerca do futuro embaraçam o projeto de um tempo linear. Peralva ainda atenta para as conquistas da biologia e para o conseqüente retardamento do envelhecimento e prolongamento da juventude. Segundo a autora, mais do que promessa de futuro, a juventude converte-se em “modelo cultural do presente”. Isso implica a valorização da juventude e do tempo presente, porém, como explica a autora, a noção de juventude não se ancora mais em um grupo etário específico e sim em estilos de vida associados a um modo juvenil de estar no mundo.

A crise do modelo dos ciclos de vida, refletida por Peralva, indica embaraços para os indivíduos atingirem a maturidade, ou seja, tornarem-se adultos. Um dos mais graves impedimentos para o jovem alcançar a maturidade é o fenômeno do desemprego. Os índices das pesquisas de emprego e desemprego nas regiões metropolitanas, em geral, comprovam que os jovens compõem um dos grupos mais prejudicados pelo desemprego. Não sem razão, na favela pesquisada, o desemprego dos jovens era uma das principais preocupações das lideranças locais e das famílias. Sem autonomia financeira, torna-se mais complicada a independência em relação aos pais. Há ainda a influência do modelo cultural que valoriza a extensão do período da juventude, levantado por Peralva. Mas o estudo do caso da família de Jéssica indica que a forte dependência emocional de mãe e filha minimiza a erupção de conflitos que provocam a intolerância dos filhos com o poder dos pais, bem como o possível desejo de abandonar a casa materna para construir uma vida independente. Isso pode ser compreendido pelo contraste da atitude do pai de Jacira em relação à sua gravidez e a de Jacira em relação à de Jéssica. Quando Jacira engravidou, o pai obrigou a união da filha com o pai da criança, que se tornaram responsáveis pelo sustento desta e de si próprios. Ou seja, o próprio pai impôs a necessidade de Jacira tornar-se independente do poder paterno. No caso de Jéssica, a mãe optou por apoiar a filha, assumindo o sustento do neto, dispensando, de certo modo, a participação do pai da criança. Essa atitude estimulava a permanência de Jéssica com a da mãe. Certamente, Jacira preocupava-se menos em manter a filha ao seu lado do que em ampará-la, protegê-la. Todavia, uma das conseqüências desse apoio era a manutenção da dependência de Jéssica em relação à sua mãe.

Os possíveis significados atribuídos aos jovens na atualidade para a conquista da independência em relação aos pais, ao desejo de tornarem-se dono de suas próprias vidas ainda merecem ser pesquisados. O estudo não tinha o objetivo de estudar esse determinado tema; todavia, ele se desvendou, independentemente de nossas preocupações. O fato é que esse não é um fenômeno exclusivo da juventude que vive em favelas. Pelo contrário, estudos indicam a tendência global de os filhos manterem-se na casa dos pais mesmo após ingressarem no mercado de trabalho e alcançarem independência financeira6. No entanto, os resultados da pesquisa revelam que, para as populações empobrecidas, essa tendência pode provocar o agravamento das condições de vulnerabilidade. Isso se esclarece pelas conseqüências da elevada incidência da gravidez precoce, que não raramente intensifica as dificuldades materiais das famílias. Afinal, diversos entrevistados informaram a trivialidade da gravidez de adolescentes na faixa de 14 anos na favela que, na maioria dos casos, os jovens pais permanecem separados, vivendo com suas respectivas famílias, por causa da dependência econômica em relação aos pais. As informações coletadas com as outras famílias ensinam que o caso de Jéssica é bastante comum. E o que ele torna claro é a intensificação da vulnerabilidade da família, pois se os rendimentos do grupo eram insuficientes para atender às três mulheres, em breve ele seria repartido com mais um novo membro. Essa situação sugere a contradição envolvida nas condições sociais que possibilitam a emergência de formas mais democráticas de relacionamento nessas famílias. Isso porque, concomitantemente à satisfação dos indivíduos com as relações amistosas, a troca de afeto e o respeito à livre escolha, constatamos o entrave à concretização do principal motivo que leva os pais a desenvolver relações democráticas na família: criar condições para que os filhos possam fazer o que eles querem de sua vida.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência
Maria Inês Caetano Ferreira
R. Morgado de Mateus, 615
04015-902 São Paulo, SP
tel.: (11) 5574-0399, Fax (11) 5574-5928
E-mail: inescaetano@uol.com.br

Recebido em 19/07/2005
Aceito em 10/08/2005

 

 

Notas

* Pesquisadora Pós-Doc do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)/CEBRAP.
1 A pesquisa foi realizada para o doutoramento em Sociologia, no Departamento de Sociologia da USP, em 2003.
2 É importante ressaltarmos que o projeto de construção da casa e o próprio processo de mobilidade social ascendente de Jacira foram beneficiados por condições particulares da favela. A facilidade com que ela conseguiu ocupar-se com o emprego doméstico, por exemplo, relaciona-se a essas características. Pois, na região, há muitos condomínios residenciais de luxo que oferecem oportunidades de trabalho doméstico entre outros. O elevado número de moradoras da favela ocupadas nesse tipo de emprego estabelece uma densa rede de informações e indicação de parentes, vizinhas e conhecidas em geral para novas vagas. Jacira informou que suas empregadoras sempre a apoiaram, a advogada, por exemplo, empregou-a mesmo já dispondo de mensalista. Ou seja, na região, há moradoras com condições materiais para criar emprego doméstico, com o qual as mulheres da favela podem sustentar suas famílias. Outro aspecto que deve ser destacado é o tipo de arranjo possível de ser estabelecido na favela a fim de solucionar os problemas que afetam a sobrevivência dos moradores. No caso, a dedicação de Jacira ao trabalho era ameaçada pela falta de vagas na creche local, então, ela acionou as redes de poder local que passaram a proteger sua filha.
3 É importante destacar que muitos jovens da favela não eram constrangidos a trabalhar para participar do orçamento, apesar de esse ser um imperativo comum a muitos jovens pobres. Isso se deve a algumas características da favela. Entre elas, destaca-se a economia com impostos e taxas que incidem sobre moradores de bairros legalizados, no caso dos que moravam nas suas próprias casas (apesar da ocupação ilegal do terreno) ainda havia a economia com o aluguel. Por outro lado, muitas instituições distribuíam cestas básicas e outros itens para as famílias. Apesar da implícita vulnerabilidade expressa nesse tipo de benefício, de certo modo, eles possibilitavam às famílias dispensar os seus jovens de participar do orçamento, favorecendo, então, a freqüência escolar e em outros cursos oferecidos na própria favela.
4 É necessário destacar que os resultados da pesquisa indicam que os moradores da favela freqüentam espaços voltados para atender às classes médias e altas da região, apesar de parte da literatura especializada nos estudos urbanos concluir o radical isolamento das diferentes classes sociais, que habitam o mesmo espaço.
5 O motivo para o desenvolvimento de vários projetos sociais na favela era a harmonia nas relações sociais, resultado da imposição do poder de um determinado grupo - que explorava atividades ilegais - e que impelia a explosão da violência no local. Isso possibilitava às ONGs estabilidade para o desenvolvimento de projetos sociais.
6 A respeito, ver artigo de Frank Furedi, publicado no Caderno Mais, do Jornal Folha de S.Paulo (2004).