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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

Os automóveis e seus donos

 

The automobile and its owners

 

Los automóviles y sus dueño

 

 

Renato da Silva Queiroz*

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio focaliza o automóvel e a simbologia que o envolve no universo das representações publicitárias e nas relações sociais.

Palavras-chave: Automóvel, Simbologia automotiva, Antropologia do consumo.


ABSTRACT

This essay focuses on the automobile and the symbology related to it in the universe of the advertising representations and in social relations.

Keywords: Automobile, Automotive symbology, Anthropology of consumption.


RESUMEN

Este trabajo se refiere al automóvil y a la simbología que lo involucra en el universo de las representaciones publicitarias y en las relaciones sociales.

Palabras clave: Automóvil, Simbología automotriz, Antropología del consumo.


 

 

O automóvel figura em destaque no rol dos bens mais cobiçados, sendo sobrepujado apenas pela casa própria e pelo próprio negócio – associados, respectivamente, à conquista de segurança e à independência. Mesmo assim, ocupa, para muitos, o primeiro lugar nessa lista, pois expressa status, prestígio, poder, realização, liberdade. “A imagem de que mais gosto é me ver refletido naquelas vidraças dos prédios dirigindo o meu carro”, declarou um motorista a uma revista especializada em automóveis. O carro é uma vitrina.

Bens inacessíveis para a expressiva maioria da população – alguns de seus modelos chegam a custar mais do que imóveis de médio padrão –, os automóveis podem ser classificados em diferentes categorias: novos e usados, nacionais e importados, instrumentos de trabalho e de passeio, esportivos e conservadores, populares e luxuosos etc.

Os mais desejados são, sem nenhuma dúvida, os novos. O carro OK exala o característico cheirinho de novo. O plástico que recobre seus bancos evoca a integridade do hímen. Para o seu proprietário, a nota fiscal da concessionária equivale a um atestado de virgindade – “eu fui o primeiro!”. Recente anúncio publicado em jornais diários de circulação nacional estampava os seguintes dizeres: “Nova concessionária Honda. Venha tirar o plástico dos bancos”. Macluhan (1979, p. 246) já rotulara o automóvel de objeto sexual, chamando-o de “noiva mecânica”.

Em contrapartida, o carro usado tem um passado raramente conhecido, e não seria exagero considerar que se encontra impregnado de propriedades imateriais de seu(s) outro(s) dono(s). Ou seja, pode ser um carro “poluído”, contaminado, sujo. Donde a afirmação, com o intuito de valorizá-lo, proclamada em anúncios e enfatizada pelos vendedores, de que o carro à venda é de um único dono e pouco rodado – o termo “rodada” estigmatizando também as mulheres de muitos parceiros.

Nessa medida, os habituais procedimentos adotados para melhorar a aparência e a atratividade de um automóvel usado posto à venda (lavagem, polimento, dissimulação de odores e imperfeições etc.) podem ser compreendidos como um ritual de limpeza, de purificação, uma intervenção visando remover impurezas deixadas pelo(s) seu(s) dono(s).

Décadas atrás, os automóveis de cor preta, assim como os de quatro portas e aqueles equipados com teto solar eram desvalorizados e preteridos: os primeiros, porque evocavam veículos fúnebres e policiais; os segundos, os táxis; e os terceiros, porque eram carros de cornos. Em São Paulo, a rejeição afeta agora os de cor branca, que padroniza os táxis do município.

Entretanto, automóveis de médicos, senhoras e “diretores” atraíam mais compradores, e muito dessa atração parecia decorrer não de um suposto bom estado de conservação do carro, mas em razão dos atributos positivos que o senso-comum atribui a essas categorias de pessoas: integridade, confiabilidade, responsabilidade, pureza.

Os automóveis associam-se a preconceitos alusivos a certos grupos de pessoas. Mulheres, japoneses e idosos são considerados barbeiros. Quando indivíduos de cor negra estão ao volante de um automóvel luxuoso, suspeita-se que estejam dirigindo carros dos patrões ou que os tenham furtado.

De uns tempos para cá, os carros usados passaram a ser, eufemisticamente, anunciados como seminovos, expediente empregado para dissimular sua idade e as imperfeições técnicas e simbólicas que possam exibir, com o intuito de aproximá-los dos OK.

Os importados, a despeito da desvalorização que costumam sofrer por ocasião da revenda e de sua manutenção sempre mais dispendiosa, dão prestígio e status aos proprietários – talvez menos pela presumida qualidade mais apurada do carro, mas, sobretudo, pela distinção que lhes conferem. Por isso, situam-se no pólo oposto dos veículos de transporte coletivo, cujo trajeto é pré-estabelecido e que a todos nivelam. A liberdade equivale, aqui, à individualização e às possibilidades de livre escolha.

Desperta a atenção o relativo desinteresse pelos automóveis automáticos. Decerto são mais caros que os mecânicos; contudo, o controle das marchas representa a sensação de controle que o motorista exerce sobre o carro, como se tivesse nas mãos a condução da própria vida. Além disso, os automáticos ainda não superaram os estigmas que os associam aos portadores de necessidades especiais.

O mais valorizado e desejado é o automóvel dotado de motor potente, quatro portas, direção hidráulica, bancos revestidos em couro, travas, espelhos e vidros elétricos, ar-condicionado, pintura metálica, rodas especiais, air-bag e CD Player. Trata-se do carro completo – a completude denotando não apenas conforto e comodidade, mas, acima de tudo, perfeição, potência, integridade, ausência de falhas, deficiências, carências ou defeitos. Essas qualidades, tão repletas de sentido, se originam da vida sócio-cultural, mas são transferidas para dar significados ao automóvel e retornam, por assim dizer, ao mundo dos homens.

Exagerando um pouco: os que circulam em automóveis “completos” (e principalmente nos blindados) são os postos à parte (à condição dos santos), os que desfrutam de condições sócio-econômicas que os elevam acima das restrições inerentes às regras sociais e à vida coletiva.

Em contrapartida, os populares, desprovidos das características e dos equipamentos supracitados, são desconfortáveis e básicos. Em vez de distinguir seus proprietários, constrangem-nos e os rebaixam. Foi noticiado que até mesmo os manobristas se sentem incomodados ao volante de automóveis populares ou de um “pois é”. Um motorista é tão impotente quanto o seu carro 1.0 – a propósito, na traseira de um enorme utilitário pude ler a seguinte frase: “quem gosta de motorzinho é dentista”. Em condição mais rebaixada encontra-se apenas o pedestre, esse cidadão de segunda classe (MACLUHAN, 1979, p. 250).

Não sendo possível adquirir um carro completo, o popular só se torna aceitável se contar com acessórios (limpador traseiro, desembaçador, ar quente etc.). O despojado carro pé-de-boi da década de 1960, precursor do popular, teve vida curta. Mesmo os orgulhosos proprietários de automóveis potentes e luxuosos são capazes de gastar importâncias elevadas para personalizar seus carros. A distinção que o carro confere ao proprietário reflete, pois, a distinção concedida ao próprio carro. O carro é um espelho.

Nas regiões nobres dos centros urbanos circulam automóveis novos e luxuosos, ao passo que nas áreas mais periféricas e pobres sobrevivem modelos antigos, desgastados e depreciados – os forade- linha –, que já tiveram seu período de glória. Esse fenômeno ilustra o princípio da sobrevivência marginal formulado por Linton (1981, p. 316) para melhor compreender a difusão de traços culturais (a coexistência de elementos ultrapassados e modernos), que, em larga medida, corresponde à apropriação desigual do espaço urbano pelas diferentes classes sociais.

É de hábito, nas famílias abastadas, que a transição do jovem para a maioridade e seu ingresso na universidade se façam acompanhar de um valioso presente: o carro, que simboliza esse rito de passagem para o mundo adulto, a carteira de motorista habilitando-o para a nova condição de ampliada liberdade. Macluhan (1979, p. 246) percebeu que o jovem norte-americano aguarda com mais ansiedade a idade que o habilita a dirigir do que a de votar.

É curioso observar como determinadas expressões são intercambiáveis, surgindo inicialmente para descrever aspectos dos automóveis, mas aplicadas depois aos homens, e vice-versa: o carro “corre”, “anda”, “é nervoso”, “valente”, “está na banguela”. De outro lado, fulano “derrapa”, “queima óleo 40”, “troca óleo”, “está de farol baixo”, “com o freio de mão puxado”, “em ponto morto”, “bate pino”. Um modelo do Fusca recebeu o apelido de “Fafá” em razão das dimensões volumosas de suas lanternas traseiras. Relativamente às mulheres, são bem conhecidas as expressões pejorativas: “Maria gasolina” e “alta quilometragem”. E quem se esquece do filme “Se meu fusca falasse”, protagonizado por um Volkswagen humanizado, batizado de Herbie e dotado de sentimentos e iniciativas? Os automóveis se humanizam, enquanto os homens se reificam.

Quando um novo modelo é lançado, aparece primeiramente em sua versão masculina (hatch ou sedã); surgem posteriormente as versões femininas – as peruas –, o que sugere um paralelo com o relato bíblico segundo o qual Eva foi feita de uma costela de Adão. As peruas, aliás, são mais associadas às mulheres, ao lazer e ao grupo familiar, enquanto os automóveis esportivos ou de apenas dois lugares exibem um perfil mais masculino, jovial, independente, competitivo e agressivo.

Deve-se seguramente à notoriedade do agronegócio e ao destaque de itens materiais e simbólicos da cultura country – feiras, rodeios, canções, vestimentas etc. – o sucesso dos utilitários, mais compatíveis com o campo do que com a cidade. Associados a determinadas concepções de aventura, robustez e independência, esses veículos off-road apontam para o não-convencional, para a visibilidade singular dos que não estão sujeitos às rotinas urbanas diárias nem aos trajetos preestabelecidos.

Os nomes dos diferentes modelos e de suas variadas versões são homônimos de animais selvagens e velozes – Fox, Corsa, Corcel, Impala, Mustang –, localidades sofisticadas – Monza, Parati, Siena –, pedras e metais preciosos – Opala, Aurius –, artistas notáveis – Picasso –, entidades mitológicas – Clio. Sugerem situações agradáveis, vinculadas ao lazer – Fiesta, Weekend –, ou evocam requinte e destaque – Blazer, Golf, Polo, Scénic, Classic, Classe A, Prime, Stilo, Focus. Em suma: nenhum veículo recebe nomes prosaicos, pois não se trata de um bem qualquer, e sim de um dos objetos mais desejados e fascinantes do mundo moderno.

Os anúncios publicitários recriam e enfatizam emoções, desejos, paisagens, valores, imagens e sentimentos e os associam aos automóveis, procurando alcançar o ego dos consumidores, relegando a plano secundário as especificações técnicas. Assim, o carro é envolto em representações de liberdade, riqueza, poder, autonomia, requinte, aventura, velocidade, escolha, sucesso, beleza, juventude, sofisticação, ascensão social, sensualidade, realização, conquista, individualização e lazer.

Ao que tudo indica, os consumidores do sexo masculino (e, em segundo lugar, o grupo familiar) constituem o público-alvo por excelência desses anúncios, não obstante todas as conquistas femininas e seu reconhecido potencial de consumo. Quando se pretende atingir as mulheres – que, costumeiramente, figuram como meras passageiras ou coadjuvantes nos comerciais – destacam-se as comodidades do automóvel, tais como a existência de espelho nos protetores solares, bancos reguláveis, porta-objetos funcionais e porta-malas espaçoso. Poder, velocidade e desempenho são exaltados como atributos masculinos.

A título de ilustração das representações pertinentes ao carro, vejam-se duas recentes campanhas publicitárias. Uma delas explora a inveja, a dor-de-cotovelo de um personagem quando toma ciência de que seu colega adquiriu um EcoSport. A segunda retrata um jovem casal envolvido nos jogos preliminares do amor no interior de um automóvel (Fiat Strada). Adepta do sexo seguro, a moça solicita ao rapaz que faça uso de preservativo; todavia, em vez de recorrer à camisinha, ele protege os bancos do carro, recobrindo-os de plástico. Vê-se também que a cabina do veículo, de cor vermelha, se expande, assemelhando-se a uma ereção.

Nesta segunda peça publicitária o automóvel aparece como metáfora do pênis. Já foi assinalado que carros esportivos e potentes, especialmente os vermelhos e dotados de capô avantajado, equivaleriam ao próprio falo. Não se pode deixar de notar que, no pódio, os vencedores das disputas automobilísticas fazem jorrar o champanhe como se fosse uma ejaculação. Vale lembrar que os carros esportivos exibem cores bem fortes e chamativas, notadamente a vermelha.

Numerosas canções populares retratam e exaltam todo esse conjunto de representações, ampliando o imaginário automotivo. À guisa de exemplo: “O Carango” (Carlos Imperial e Nonato Buzar); “Mustang cor de sangue” (Marcos Valle); “Entrei na Rua Augusta a 120 por hora” (Erasmo Carlos); “O Calhambeque” (Roberto Carlos); “Estrada de Santos” (Roberto Carlos); “Fuscão Preto” (Almir Rogério), “Brasília Amarela” (Mamonas Assassinas) e diversas outras.

Acredita-se que a “fisionomia” do automóvel tenha muito a dizer a respeito do seu proprietário. Assim, carros bem cuidados e limpos expressariam uma personalidade organizada, metódica e equilibrada, ao passo que os descuidados e mal conservados espelhariam o perfil de uma pessoa indisciplinada e displicente.

Muitos proprietários são tão apegados aos seus automóveis que não os emprestam sequer aos próprios filhos. Gastam horas e horas a lavá-los, perfumá-los e lustrá-los, como se estivessem lidando com obras de arte, jóias ou uma parte importante de seu próprio ser. Nesses casos, a expressão “polir o ego” é bem adequada. O automóvel é um bem venerado.

Vizinhos, amigos, colegas e parentes chegam a competir entre si, velada ou abertamente, por intermédio de seus automóveis. Muitos se sentem inferiorizados e aborrecidos porque consideram que seus carros não os representam à altura, não sendo raros os casos de endividamento e sacrifícios orçamentários resultantes de aquisições visando inverter essa incômoda percepção de desvantagem. O carro é um cartão de visita.

Quem circula pelas ruas no interior de um automóvel encontra-se num espaço ambíguo, no qual se mesclam o público e o privado. Em alguma medida, essas pessoas se expõem publicamente e devem, portanto, seguir as regras de trânsito e de boa educação, válidas para todos. Contudo, o interior do carro não deixa de ser um nicho privado, protegido, suscitando condutas que deveriam permanecer restritas a ambientes reservados: abraços sensuais, beijos prolongados, dedos introduzidos no nariz, retoque da maquiagem, discussões acaloradas e aparelhos de som no volume máximo.

Paradoxalmente, quanto mais inseguros os motoristas se sentem no trânsito, mais se protegem recobrindo os vidros de seus veículos com películas que os escurecem. Tornam-se, assim, menos visíveis, de que decorre a redução do efeito vitrina – embora, nos automóveis modernos, boa parte da lataria tenha cedido espaço às áreas envidraçadas. Ademais, pari passu com o crescente sucesso das montadoras japonesas e coreanas, os faróis dos carros tornaram-se “puxados”, orientalizados, em substituição aos ocidentalizados faróis circulares.

Cada motorista é muito cioso da bolha imaginária criada em torno do seu automóvel. Esses limites virtuais devem ser respeitados pelos demais. Por isso, todos se irritam profundamente quando tais fronteiras são desconsideradas, seja porque alguém “colou” em sua traseira, forçou ou bloqueou a passagem, buzinou de forma insistente, manteve altos os faróis, seja porque dificultou uma ultrapassagem. Da transgressão dessas regras resultam ofensas verbais e gestuais, discussões ríspidas, agressões físicas e mesmo assassinatos. Macluhan (1979, p. 254) assinala que “o automóvel tornouse uma carapaça, a concha protetora e agressiva do homem urbano e suburbano”. O carro é um bem sagrado.

Os homens se relacionam e se definem por meio dos objetos, das coisas. Quando a coisa é um automóvel, eles se revelam ainda mais ciosos de suas posições. Nas situações em que vendedores e compradores particulares de carros usados se defrontam, esse enfrentamento se torna perfeitamente evidente. O vendedor valoriza seu carro, minimiza as suas imperfeições e refuta as ressalvas apontadas pelo comprador, que busca depreciá-lo. Não se trata apenas de uma negociação em torno do valor do bem, mas do valor que o vendedor se atribui, rejeitando, ofendido, as desqualificações feitas pelo comprador interessado. Trata-se, no fundo, de um julgamento, de uma relação agonística, de um autêntico embate ritualizado.

O automóvel, uma das mais fascinantes maravilhas tecnológicas já produzidas, é, a um só tempo, responsável pelo modo de vida contemporâneo e objeto-símbolo desse mesmo modo de vida. Se, de um lado, propicia a intensa mobilidade espacial das pessoas, de outro expressa a condição de classe e o desejo de ascender socialmente. Não se configura apenas como uma máquina, mas como um totem impregnado de significados, um espelho da vida social e para o homem. Só pode ser bem compreendido à luz de uma razão simbólica, porque é investido dos valores mais prezados na civilização dos homens de quatro rodas.

 

Bibliografia

LINTON, R. O homem: uma introdução à antropologia. Tradução de Lavínia Vilela, São Paulo: Martins Fontes, 1981.         [ Links ]

MACLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução de Décio Pignatari, São Paulo: Cultrix, 1979.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: requeiro@usp.br

Recebido em 30/08/2006
Aceito em 20/09/2006

 

 

* Professor Titular do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

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