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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.22 São Paulo jun. 2006

 

Os laboratórios de psicologia nas escolas normais de São Paulo: o despertar da psicometria

 

Laboratories of psychology in teaching courses of São Paulo: the rising of psychometry

 

Los Laboratórios de psicología en las escuelas normales de São Paulo: el despertar de la psicometría

 

 

Rogério Centofanti

Bacharel em Psicologia. Consultor da FGV Consult e da Tonioli & Associados. E-mail: centofanti@terra.com.br

 

 


RESUMO

O artigo relata as circunstâncias e personagens que determinaram a instalação de laboratórios de psicologia em algumas Escolas Normais de São Paulo na segunda década do século XX como parte do desejo de fazer da pedagogia uma ciência com bases na psicologia e na antropologia. Introduz a obra de Clemente Quaglio, que dirigiu o laboratório da Escola Normal Secundária de São Paulo em 1912. Traça a retrospectiva de Ugo Pizzoli na Itália e discute aspectos de sua participação no Brasil.

Palavras-chave: laboratórios de psicologia; escolas normais de São Paulo; Clemente Quaglio; Ugo Pizzoli.


ABSTRACT

This article relates the circumstances and the people who order the installation of psychological laboratories in some Normal Teacher's Colleges of São Paulo in the second decennium of twenty century, with the purpose to build pedagogy as a science rooted on the psychology and anthropology basis. It introduces the Clemente Quaglio's work, who directed the Normal Teacher's College Laboratory in 1912. It also describes the Ugo Pizzoli's retrospective in Italy, examines aspects about his participation in Brazil.

Keywords: psychological laboratories; Normal Teacher's Colleges of São Paulo; Clemente Quaglio; Ugo Pizzoli.


RESUMEN

Este articulo es un relato sobre las circunstancias y las personas, que en la segunda década del siglo XX, fueron responsables por la instalación en San Pablo (Brasil) de laboratorios de psicologia en algunas de las Escuelas Normales, con el objetivo de fundamentar la ciencia pedagógica en la psicologia y la antropologia. Presenta, tambien, la obra de Clemente Quaglio, que fue director del laboratório de la Escuela Normal Secundária de San Pablo en 1912, y hace una retrospectiva sobre la importancia de Ugo Pizzoli en Italia y su participación en Brasil.

Palabras clave: laboratórios de psicologia; escuelas normales de San Pablo; Clemente Quaglio; Ugo Pizzoli.


 

 

Introdução

Encontrar o italiano Ugo Pizzoli (1863-1934) na origem de um laboratório de psicologia, no início da segunda década do século passado, em escolas normais de São Paulo, sempre foi um elemento destoante na paisagem da história da psicologia no Brasil. Fosse ele Francês, belga, austríaco, alemão, suíço ou inglês, e seria mais fácil aos investigadores deduzirem suas orientações e aceitarem seus feitos, uma vez que as psicologias que nos influenciaram falavam francês, alemão e inglês, e formaram o nosso pensamento.

Este artigo é um convite para uma releitura do Laboratório de Pedagogia Experimental, de 1914, tal como foi denominado, na esperança de ampliar o entendimento do que representou para o processo de autonomização da psicologia no Brasil, uma vez que ali teve início, pelas mãos dos normalistas, o exercício da psicometria no âmbito escolar paulista.

 

A origem externa

Ugo Pizzoli foi um médico que orientou parte de sua vida à relação da medicina com a educação. Até sua vinda a São Paulo, em 1914, onde ficou por exatos seis meses, não se fez conhecer pelos historiadores da psicologia na Itália (Centofanti, 2002), que ao tempo dele já era uma ciência consolidada e tinha suas figuras de expressão. Pizzoli era livre-docente em Psicologia Experimental pela Universidade de Modena. Idealizou, construiu e empregou instrumentos e aparelhos de laboratório de psicologia experimental, criando vários testes mentais, além de utilizar-se dos de Kräpelin, Binet, Henri, Ferrari e Guicciardi, mas não era psicólogo. Fez dos aparelhos e instrumentos de laboratórios de psicologia experimental, e dos mental tests que criou e utilizou, ferramentas para a edificação de uma Pedagogia científica, e não de uma Psicologia científica. Será melhor definido como médico pedagogista ou como especialista em pedagogia científica e, isso sim, como representante de uma dada psicologia, por intermédio da qual pretendeu edificar a ciência da Educação.

Na Itália, figurou entre outros, que compartilhavam o mesmo interesse, a exemplo da também médica Maria Montessori (1870-1952), conhecida por sua Pedagogia científica. Contemporânea e colega de Pizzoli, tornou-se uma educadora, enquanto ele, até sua vinda a São Paulo, fez da construção da Pedagogia científica uma profissão de fé, e se manteve na condição de seu apaixonado propagandista e articulador.

Do ponto de vista conceitual, o projeto da Pedagogia científica italiana pode ser entendido como um desdobramento do positivismo naquele país, cuja história difere da expressão que teve no Brasil. Foi um movimento científico, antes de ser um movimento filosófico, e teve o evolucionismo como modelo. Nessa diferença reside nossa dificuldade de entendimento da psicoantropologia italiana. De maneira geral, adotamos o positivismo de August Comte (1798-1857) pela via doutrinária.

A diferença é de profundidade. Enquanto Comte acredita nas idéias como força de governo do mundo, Spencer acredita nos sentimentos, dos quais as idéias servem como guia; enquanto Comte acredita que o mecanismo social repousa sobre as opiniões, Spencer acredita que tal mecanismo repousa sobre o caráter; enquanto Comte fala em anarquia intelectual, Spencer fala em antagonismo moral, etc. Os reflexos dessas diferenças na prática educativa são significativos. Como na perspectiva spenceriana as convicções são adquiridas e os desejos herdados, e como a inteligência é produto de refinamento decorrente da sensação, a educação dos sentidos torna-se essencial para o desenvolvimento intelectual do indivíduo. A coincidência dessa psicologia com fenômenos privilegiados pela investigação em laboratórios no final do século XIX e início do século XX, facilitou aos antropólogos e psicólogos de matriz evolucionista o emprego de aparelhos e instrumentos dos laboratórios para avaliação física e mental dos indivíduos na perspectiva da aplicação, inclusive como recursos para educação dos sentidos. É o que vamos recepcionar em 1914.

Do ponto de vista prático, o projeto da Pedagogia científica representou o espelho das convicções de filósofos, cientistas e políticos daquele país, como esperança de resolver, ao menos em parte, os problemas sociais emergentes na época da unificação do Estado italiano, ocorrida na segunda metade do século XIX, tais como fome, analfabetismo, prostituição, alcoolismo, roubo, assassinato, doença, etc. Como forma de promover a melhoria das condições de vida dos cidadãos, tomou-se por base o princípio da regeneração da raça, e, por intermédio de pesquisas realizadas por Paolo Mantegazza (1831-1910) e Cesare Lombroso (1835-1909), procurou-se mapear o estado físico e mental do italiano médio e, ao mesmo tempo, por intermédio dos professores, buscou-se encontrar um remédio para esses desvios através de uma educação sanitária elementar.

Os métodos utilizados por Cesare Lombroso para o tal mapeamento foram os da antropologia descritiva, empregados na zoologia, na busca de indícios que permitissem identificar e quantificar os anormais de inteligência e os delinqüentes. Acreditando ter observado semelhanças entre essas duas categorias, passou a defender a idéia genérica que as perturbações psíquicas vinham acompanhadas de respectivas desordens morfológicas e físicas.

Com o emprego de procedimentos e instrumentos da antropometria e da psicometria, Lombroso classificou alguns segmentos dessas categorias como inferiores, alegando que eles representavam, no presente, estágios passados ao longo da evolução do homem, processo ao qual deu o nome de atavismo. Eram, portanto, degenerações, razão pela qual algumas correntes propuseram medidas regeneradoras, capazes de corrigir o homem na direção do progresso, por isso entendendo uma melhoria da raça - do povo ou nação, se quisermos empregar um termo aceitável aos dias de hoje.

O primeiro a falar de uma Pedagogia científica na Itália foi Andrea Angiulli (1837-1890). De formação filosófica e introdutor do positivismo naquele país, aplicou a teoria de Comte e Spencer à educação, em oposição ao ensino religioso. Defendia a criação de uma pedagogia dentro de um escopo liberal-democrático e anticlerical, e sustentava a idéia de a educação fundar-se sobre uma filosofia científica, cujos pilares foram construídos por homens de ciência, como foi o caso de Giuseppe Sergi (1841-1936), e cujas operacionalidades estiveram a cargo de homens de espírito prático, como foi o caso de Ugo Pizzoli. Sergi irá propor a renovação dos métodos da educação e da instrução como medidas de regeneração humana.

A lógica disso é que não podia o Estado confiar a sorte de seus cidadãos e de suas relações econômicas, políticas e sociais apenas aos caprichos da seleção natural, uma vez que isso daria oportunidade de sobrevivência apenas aos mais fortes. Era necessário implementar mecanismos de seleção artificial, capazes de alavancar as condições de sobrevivência também dos mais fracos. Ao dizer que a escola era um laboratório, apontou para a instituição escolar como um ambiente de pesquisa e como um instrumento de seleção artificial, com vistas ao desenvolvimento do indivíduo para adequação ao mundo do trabalho. A escola deveria ser instrutiva, mas igualmente educativa, agindo sobre a inteligência, mas também sobre os sentimentos e a vontade - deveria "concorrer para formar o caráter" (Sergi, 1892, p. 6). A escola passa a ser um centro de investigação científica e a ter responsabilidade social sobre o desenvolvimento físico e mental das crianças. Conduzir os professores a essa missão regeneradora significava tirálos das mãos da "metafísica abstrata" e dotá-los de bases científicas como guias, para que pudessem trabalhar o desenvolvimento do caráter das crianças dentro dos limites das empiricidades. As bases científicas eram antropologia, psicologia, fisiologia, anatomia, patologia e higiene no âmbito das ciências biológicas, e sociologia na esfera das ciências morais.

Em 1885, Giuseppe Sergi havia sugerido que se recolhessem nas escolas os dados elementares que poderiam servir de base à pedagogia científica, por meio de observações a serem registradas em um prontuário, ao qual deu o nome de folha biográfica. Para encontrar os métodos naturais que seriam os parâmetros da nova pedagogia, Sergi dizia que seriam necessárias numerosas observações exatas e racionais para precisar as condições físicas e psíquicas em que se encontrava o educando nos vários períodos de vida. A folha biográfica permitiria o registro das diferenças individuais, condição pouco observada pelos educadores, que tratavam "as crianças como se fossem todas iguais, como se pensassem e sentissem igualmente, como se tivessem a mesma força física e intelectiva, e a mesma força emocional" (ibid., p. 109).

Era, portanto, um método de observação direta para conhecer o corpo e o espírito do aluno, e composta de duas tabelas: uma para registrar as observações físicas e outra, as psíquicas. As observações de cada aluno deveriam ser registradas na folha quando de seu ingresso na escola, e novamente quando de sua saída da instituição. Seria um guia para que o professor pudesse acompanhar o progresso ou retrocesso das condições físicas e psíquicas de seus alunos, e os dados serviriam para que os educadores pudessem classificá-los por tendência, caráter e inteligência, criando atividades educativas sobre esses dados, como, por exemplo, trabalhos em grupo, etc.

Mas a proposta tinha dimensões maiores. Pretendia-se reunir os dados coletados em Roma e sobre eles estabelecer deduções, que seriam de grande valor sociológico para acompanhar o melhoramento ou decadência da raça. A folha biográfica poderia tornar-se, então, uma ferramenta de controle do Estado sobre a eficiência do aparelho escolar no desenvolvimento dos cidadãos.

Em 1899, Pizzoli inaugura um Laboratório de Pedagogia Científica. Por intermédio dele, a pedagogia deveria encontrar, principalmente na psicologia experimental, na antropologia geral e especial, e na fisiologia do sistema nervoso "o seu principal fundamento positivo e científico" (Pizzoli, 1900, p. 5).

O laboratório tinha por finalidade a preparação técnica dos professores para a realização de exames em seus alunos e, de certa forma, esperava-se que eles promovessem alguma revolução no ensino, aprendendo de forma experimental a avaliá-los. A expectativa era que o professor cientista fosse psicólogo, antropólogo, fisiólogo e higienista. Os cursos de Pedagogia Experimental por eles organizados se tornaram uma referência para os educadores italianos. No terceiro curso realizado em Milão, em 1905, o clima era de otimismo e esperava-se que surgisse, em futuro não muito distante, "o verdadeiro Pedagogium nacional" (Pizzoli, 1905, p. 43). Ironicamente, o Pedagogium brasileiro foi criado em 1890, até mesmo com a instalação de um laboratório de psicologia experimental em 1906, "provavelmente o primeiro em todo o país" (Penna, 1992, p. 57), que foi confiado ao médico brasileiro Manoel José do Bomfim (1868-1932), preparado na Europa em importantes centros de desenvolvimento da Psicologia científica, mas, por declaração própria, não tinha vocação experimental.

O curso de Pizzoli tinha aulas de anatomia e biologia, antropologia pedagógica, psicologia pedagógica, exame da criança e da sensibilidade, e educação dos sentidos. Terminava sempre com o preenchimento da folha biográfica. Pizzoli era o organizador dos cursos e professor em uma ou outra disciplina.

A Pedagogia Científica tornou-se uma epidemia. Os educadores haviam sido convencidos de que o bom exercício de seu ofício dependia, agora, da aquisição e do emprego de conhecimentos das áreas chamadas científicas. Na prática, representou o ingresso de médicos, psicólogos, antropólogos, fisiólogos e tantos outros profissionais na seara da educação. Uma liderança de peso na escalada de desqualificação dos educadores foi o psicólogo suíço Édouard Claparède (1873-1940), que retirou dos educadores a criança como propriedade de conhecimento, e chamou em torno de si os esforços para a formação de um campo de especialidade denominado Pedologia, também definido como Ciência da Criança, ao dizer textualmente que "não foram professores os que lançaram base da Pedologia, mas filósofos, fisiologistas, biologistas, lingüistas, etnólogos, médicos, psicólogos, criminalistas" (Claparède, 1956, p. 56).

Correntes contrárias existiram, dentro e fora do projeto. O filósofo e psicólogo norte americano William James (1842-1910), dirigindo-se aos educadores que dele esperavam luzes da nova psicologia, disse-lhes que "os homens não pensam bem por se aterem aos princípios da lógica científica, [e que] nem a ciência ética faz os homens honrados" (James, 1924, p. 11). Nada foi mais expressivo do que Maria Montessori dizer que o estudo da antropologia e psicologia pedagógica nas escolas elementares da Itália, com o objetivo de renovar a educação por intermédio da psicometria e da antropometria, havia se desviado de suas intenções iniciais, e afirmar que jamais "o psicólogo ou o antropólogo ocupou-se em educar crianças nas escolas, como também os educadores não se tornaram cientistas de laboratório" (Montessori, 1909, p. 7).

 

A origem interna

O ingresso dessas idéias em São Paulo, e que redundaram no Laboratório de Pedagogia Científica na Escola Normal Secundária de São Paulo, não passou entre nós pela elaboração filosófica, cientifica e política que gerou o projeto da Pedagogia científica na Itália e nos demais países europeus de onde se originaram. Não tínhamos os determinantes históricos que a eles estavam postos na constituição de suas culturas, de modo que pudéssemos nos colocar ao menos na condição de partícipes de um diálogo.

Pelo excesso de pontos coincidentes, não há dúvida que a Pedagogia científica, e o próprio Pizzoli, teve ingresso em São Paulo pelas mãos do imigrante italiano Clemente Quaglio (1872-1948), um desconhecido professor primário da pequena cidade de Amparo [SP], mas que chegou a ganhar notoriedade por ter adotado, no Brasil, os mesmos passos de Pizzoli na Itália. Esse professor esteve diretamente relacionado à criação do Laboratório de Pedagogia Científica. São tantas as coincidências, que não há como deixar de tomar por hipótese a suspeita de existir entre eles uma comunicação próxima e prolongada.

Pizzoli e Quaglio tinham em comum o espírito prático. O ingresso de Pizzoli no projeto da Pedagogia científica italiana teve como origem pequenos artigos que publicou entre 1893 e 1898, versando sobre assuntos diversos de interesse da educação. Seu diferencial, entretanto, foi ter inaugurado em Crevalcore o primeiro laboratório de Pedagogia científica da Itália, em 1899. Um laboratório "particular". Nele, em 1901, organizou o primeiro Curso de Pedagogia Científica do país, autorizado pelo Ministério da Instrução Pública, e que foi, em 1902, elogiado por Giuseppe Sergi, o mentor científico do projeto, agora na condição de comissário de governo. No segundo curso, de 1903, a abertura foi confiada a Maria Montessori, a única mulher do corpo docente.

Quaglio irá igualmente publicar pequenos textos, reclamar para si a criação de um laboratório de psicologia "particular", e a partir disso passará a compor o staff dos reformadores da Educação paulista, onde não se encontrariam homens de ciência. Há, entretanto, naquele momento, o interesse de promover mudanças minimamente para fazer frente às demandas internas geradas por insatisfações de parcela do professorado. Na Itália, como nos demais países europeus, havia sempre oculto, no projeto da Pedagogia científica, um ingrediente político. Em São Paulo, ao que parece, havia um ingrediente, e basicamente político.

Na sua formação embrionária, a história do laboratório tem origem em Amparo, de onde Clemente Quaglio, a partir de 1907, dá início às suas pequenas e superficiais publicações na Revista de Ensino, nas quais fala de Pedologia, da necessidade de os professores promoverem experiências em salas de aula, relata uma experiência que realizou sobre psicologia infantil e, ao que se sabe por ele próprio, emprega mental tests para avaliar a memória de seus alunos em um grupo escolar, em um suposto laboratório "particular".

Livros de Pedagogia científica circulavam pela cidade, como Psychologie de l'enfant, de Claparède, Pedagogia Scientifica, de Pizzoli, L'adolescence de Compayré, Lições de Pedologia e Pedagogia Experimental, de Faria de Vasconcellos, e outros. O diferencial de Quaglio foi sua simplicidade, a quase elementaridade pela qual indica caminhos concretos para construção da Ciência da Educação, e, o mais importante, ter a própria prática por testemunho.

Com a provável participação de Quaglio, e com o possível assessoramento de Pizzoli, o professor normalista Oscar Thompson (1872-1938), agora à frente da Diretoria Geral da Instrução Pública, liderou em 1909 um grupo de normalistas que pretendia "integrar a pedagogia, ciência infusa, com outros campos de conhecimento em expansão: psicologia fisiológica, antropologia física e antropometria" (Monarcha, 1999, p. 245). Como reflexo, foi criado o Serviço de Inspeção Médico-Escolar, embora só viesse a se tornar uma prática em 1916, quando Thompson ocupou novamente o mesmo cargo. De qualquer forma, estava oficializado o ingresso dos médicos no reduto dos educadores, "como um desdobramento dos movimentos de renovação científica que sacudiam a antiga pedagogia, principalmente sob os nomes de pedologia, puericultura e higiene escolar" (Tavares, 1996, p. 100).

Como conseqüência das características realizadoras, principalmente diante de um ambiente discursivo, mas pouco afeito às realizações, e tomando por hipótese as suas possíveis relações com Pizzoli, Quaglio é nomeado por Thompson para assumir o cargo de encarregado da Primeira Seção Administrativa, sendo um de seus propósitos o estudo da antropologia pedagógica e da psicologia experimental, duas áreas básicas em qualquer desenho de Pedagogia científica.

Nesse cenário de mudanças rápidas, uma medida contributiva de Thompson, e que deve ter criado facilidades na ambiência intelectual para a recepção dos laboratórios, foi ter oficializado o método analítico para o ensino de todas as matérias e, para a difusão de conceitos, convidado ao professor normalista Carlos Escobar (1862-1941), diretor do Grupo Escolar da Liberdade, para realizar conferências aos professores, intituladas Leitura Analítica. Em publicação alusiva às conferências, Escobar apresentará o evolucionismo na condição de uma doutrina pouco debatida no meio pedagógico paulista. Tomando por pressuposto que a análise é mais elementar que a síntese, estabelece uma correspondência entre a estrutura neurológica simples e a função de analisar, e outra entre a estrutura neurológica complexa e a função de sintetizar, de onde conclui que instruir "é formar estruturas nervosas" (Escobar, 1911, p. 9). Nessa medida, educar tornava-se uma ação com reflexos na natureza constitucional dos organismos dos educandos. Ainda que extravagante na explicação, estava posto o ingresso de raízes do pensamento evolucionista no ensino paulista. Na verdade, o reingresso, pois a Escola Normal já havia estado às voltas com orientações evolucionistas, quando esteve sob direção do médico Antonio Caetano de Campos (1844-1891), em meados dos anos oitenta do século XIX.

Em publicação de 1910, agora de caráter oficial do governo, Clemente Quaglio apresentará ao professorado um texto que, certamente, é um marco na história da psicologia de São Paulo, e o primeiro passo na direção do Laboratório de Pedagogia Científica: "Gabinetes de antropologia pedagógica e psicologia experimental", inovador por ter sido escrito por um autor local. No texto, os instrumentos e aparelhos de laboratórios de psicologia experimental, e de antropologia pedagógica, são apresentados e descritos como ferramental para exame de funções psicofisiológicas, muitas vezes com descrição prática de seus empregos, e explicitados de forma a demonstrar que poderiam ser de utilidade para que os pedagogistas pudessem conhecer a natureza humana, "conditio sine qua non de todo o bom sistema pedagógico e de qualquer eficaz sistema educativo" (Quaglio, 1910, p.162). Ali estavam a receita e os ingredientes para o acesso ao conhecimento das diferenças individuais e das fases de desenvolvimento dos educando: ergógrafo, miocinesioscópio "Pizzoli", cardiógrafo, pneumógrafo, pletismógrafo, neurodinamógrafo, osmoscópio, osmômetro, martelo de Politzer, assobio de Galton, tábuas de Snellen, mental tests, e a escala métrica da inteligência de Binet-Simon. Ao professor estava dada a condição de encontrar seu espaço no mundo dos saberes científicos, por intermédio do conhecimento da natureza humana das crianças. Como o termo antropologia pedagógica é apenas uma força de expressão, o que havia era aparelhos e instrumentos de laboratórios de antropologia e de psicologia, a serem utilizados para isolar e quantificar fenômenos psíquicos e antropológicos, com vistas aos interesses educacionais. Ao final, a proposta da instituição de uma folha biográfica, para que o professor pudesse "facilmente continuar o trabalho educativo" (idem, p. 166), exatamente como recomendado por Pizzoli.

Em 1911, Quaglio publica um pequeno livro, também com ineditismo em São Paulo igualmente pelo fato de ser de autor local: Compêndio de Pedologia, com o aviso de ser um guia prático para a execução da folha biográfica nas escolas primárias. Mais do que antes, na condição de receituário, trazia agora a inclusão de um modelo de folha biográfica. O mérito maior do escrito estava em ensinar aos mestres como construir o seu próprio ferramental de exames, exceto o dinamômetro, "talvez o único instrumento que o professor precisa comprar" (p. 37). A exemplo de Pizzoli, surgia o Quaglio inventivo, construtor de aparelhos, embora simples, produtos de uma bricolagem, mas suficientes aos fins a que se prestavam. No Compêndio, surge também um Quaglio alienista e inspirado nos conceitos das vertentes da antropologia mórbida, dentre eles a recomendação para que o mestre ficasse atento à presença da Orelha de Morel, uma vez que isso "é para a nossa raça indício degenerativo" (ibid., p.19).

Instigante é a comparação do conteúdo do Compêndio com as propostas dos gabinetes de antropologia e psicologia experimental publicadas um ano antes. Sem perder o foco da pedologia, da pedagogia científica, da necessidade de fazer exames e mensurações nos alunos, e de registrar os dados em uma folha biográfica, as aspirações instrumentais haviam sofrido um verdadeiro choque de humildade. O conhecimento da natureza humana da criança, pelas orientações do Compêndio, estava agora ao alcance de todos, sem nem mesmo a necessidade de laboratórios. No acompanhamento da leitura dos dois textos, fica a impressão que Quaglio buscava alternativas para a implantação das folhas biográficas nos pequenos e distantes grupos primários.

No mesmo 1911, Quaglio estará à frente de outro fato inédito em São Paulo, e neste caso, talvez no Brasil. A pedido de Thompson, investigou o desenvolvimento da infância anormal em crianças de São Paulo, "utilizando-se de várias técnicas de medida, dentre elas a escala métrica da inteligência de Alfred Binet e Théodore Simon, provavelmente a primeira aplicação da escala no âmbito escolar brasileiro..." (Monarcha, 1999, p. 252). Utilizou-se também das técnicas de cefalometria. O indicativo do emprego dessa técnica é o interessante registro de um inspetor escolar sobre o episódio. Os campanudos termos macrocéfalo, microcéfalo, braquicéfalo, etc., disse ele, "soavam a cada instante e cada instante se registrava mais um anormal" (Santos apud Monarcha, 1999, p. 253).

De qualquer forma, tratava-se de uma realização absolutamente contemporânea, uma vez que a escala Binet-Simon surgiu em 1905 e foi criada para atender ao Ministério da Instrução Pública da França, que queria identificar nas escolas os "incapazes de acompanhar seus colegas por insuficiência de meios intelectuais" (Binet-Simon, 1929, p.VII). Quanto ao emprego de técnicas de cefalometria, nada há de surpreendente, se lembrarmos que foram utilizadas também por Binet, antes que inventasse os testes que o notabilizaram.

Além de executor das medidas, Quaglio mostrou-se parceiro na crença de que os anormais, essas "vítimas irresponsáveis de uma fatalidade injusta, são indivíduos perigosos, porque, incapazes de qualquer trabalho honrado, viverão a expensas da coletividade ou se insurgirão contra ela" (1913, p. 4). Como se observa, as negatividades que deram origem à natureza de aplicação da psicologia, nos países de origem, também aqui determinaram a sua importação.

Enquanto solução para esse problema, que denominou pedagógico-social da educação, propôs a criação de asilos-escola com o respectivo gabinete de antropologia pedagógica e psicologia experimental, e a organização de um curso anexo às escolas normais, para a preparação de professores ao ensino especial dos anormais psíquicos "verdadeiros".

Ao dizer que o anormal psíquico verdadeiro era assunto de asilo-escola, Quaglio legitima a figura do médico escolar, que acabava de ser oficializado. Ao dizer da necessidade de preparação do professor para o ensino especial dos anormais psíquicos verdadeiros, prenuncia a figura do psicólogo.

Essas realizações, promovidas pela participação de Quaglio, compatíveis com as reformas propugnadas por Thompson, e em conformidade com o que se fazia nos países "avançados", certamente motivaram decisões das autoridades no sentido de incluir a aquisição e instalação dos laboratórios de antropologia e psicologia experimental em algumas escolas, possivelmente na qualidade de recursos tecnológicos dentro de planos da reforma.

Os meios vieram logo a seguir. Promoveu-se mudança na organização curricular de 1912 e, como conseqüência, foi criada a cadeira de psicologia experimental. Na condição de complemento dessa cadeira, "instala-se no instituto um Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental a cargo de Clemente Quaglio, que ministra aulas teóricas e exercícios práticos para alunos do quarto ano do Curso Normal" (Monarcha, 1999, p. 257). Além da capital, a cadeira é também instituída no currículo das escolas normais secundárias recémcriadas em Itapetininga, São Carlos, o que explica a chegada dos laboratórios ao interior paulista.

É provável que o convite formulado pelo governo do estado de São Paulo em 1913, para que Ugo Pizzoli aceitasse a estada no laboratório da escola da capital em 1914, deveu-se em parte às dificuldades operacionais geradas pela condição do autodidatismo dos recém-inventados professores de psicologia experimental e seus respectivos encarregados de laboratório. Tavares encontrou, nos arquivos da escola de Itapetininga, "várias notas manuscritas, explicando como devem ser utilizados alguns dos aparelhos" (1996, p. 169), o que denota a situação precária dos que iriam com eles trabalhar. Mais determinante que isso, entretanto, é a hipótese, quase certa, de que tal convite teve em vista a sua vinda para emprestar credibilidade e visibilidade política ao que seria o momento de materialização das mudanças prometidas na reforma.

 

Os feitos e os desdobramentos

Com as solenidades de praxe, às 14 horas do dia 17 de setembro de 1914, tem lugar o ato solene da inauguração formal do Laboratório de Pedagogia Científica na Escola Normal Secundária de São Paulo, na Praça da República, onde Pizzoli é apresentado como Catedrático da Universidade de Modena e diretor da escola normal da mesma cidade. Não foi catedrático, mas professor de Psicologia Pedagógica e Ciências Afins na Universidade de Modena de 1909 a 1913 (Gandini, 1985), período que marca toda a sua passagem por aquela instituição.

Do Laboratório de Pedagogia Científica, afora uns poucos aparelhos e instrumentos de interesse exclusivamente pedagógico, a grande maioria se prestava aos exames e medidas de fenômenos de natureza fisiológica, psicológica e antropológica. O que havia eram aparelhos e instrumentos de Laboratórios de Antropologia e de Psicologia Experimental, como os existentes nos demais, que pesquisadores de história da psicologia simplesmente denominam Laboratório de Psicologia Experimental, uma vez que, no período, a pesquisa e a medida psicológica se faziam por intermédio de funções fisiológicas, e por deduções sobre aspectos morfológicos, de onde o emprego da expressão antropológica e não anatômica. Era uma formatação padronizada. Tinham toda uma liturgia, até mesmo em virtude da importância que eles, os laboratórios, representavam naquele tempo - eram ícones da cientificidade. O instrumental compreendia os aparelhos registradores, os de eletricidade, os de psicometria, os de estudo das sensações, da memória, de antropometria, etc. Foi para atender a essa padronização que Pizzoli, em 1914, "organizou e montou" (Thompson, 1914, p. 18) os laboratórios, por isso compreendendo o desenho e acompanhamento de construção do mobiliário para alojar os aparelhos e instrumentos, e decidindo pela distribuição deles nas salas onde ficariam alojados. O instrumental já existia nas escolas de São Paulo e de Itapetininga em 1912, e na de São Carlos em 1913. A inauguração serviu para formalizar o que já existia. Há indícios de que já estavam até mesmo em operação. O crédito pela instalação dos laboratórios parece devido a Clemente Quaglio, que certamente influenciou a aquisição deles, e dirigiu o da capital desde 1912, de onde deve ter exercido algum controle sobre os do interior.

Vários desses instrumentos aqui já se encontravam adjetivados pelo nome de seu idealizador, Pizzoli, o que sugere que foram adquiridos da empresa Carlo Righini, de Milão, que fabricava e comercializava os aparelhos por ele projetados. Do lado brasileiro, ao que parece, a importação esteve a cargo "da Casa Fretin, por ordem da Secretaria do Interior" (Tavares, 1996, p.176). Muitos foram fabricados em São Paulo, pois correspondiam a modelos que podiam ser copiados das sempre presentes ilustrações nas obras de Pizzoli ou por intermédio de projetos por ele enviados anteriormente ao Brasil.

Fez uso desse instrumental em suas aulas práticas do Curso de Cultura Pedagógica, que reuniu um certo número de professores, inspetores e diretores de grupos escolares, como complemento às aulas teóricas de fisiologia, psicologia e antropologia, tendo por finalidade exclusiva os exames a serem realizados nos alunos, com vistas à aposição dos resultados na folha biográfica, para que os mestres orientassem suas ações educativas, de forma a atendê-los de maneira individualizada, na missão de lhes desenvolver o caráter (Sergi) ou a personalidade (Pizzoli).

O objetivo do curso era que os mestres pudessem ter "uma idéia clara da personalidade normal e anormal da criança" (Pizzoli, 1914, p.140). É possível conhecer parte dos conteúdos de seus ensinamentos por intermédio das poucas publicações que deixou no Brasil, sendo as mais significativas justamente as duas que se referem à vulgarização do conceito de personalidade normal e anormal. Nelas, o apelo básico à identificação de aspectos da personalidade das crianças pelas suas exterioridades e o estabelecimento de classificações tipológicas - tipo normal, tipo inteligente normal médio, tipo débil de espírito, tipo hiperativo, tipo passivo e tipo inexpressivo. De importante, nos artigos, ele se referir ao "olhar psicológico" do "professor psicólogo". Havia um motivo prático. Apesar dos tantos instrumentos, não havia os que pudessem isolar e medir funções como inteligência, temperamento sentimental, afetividade, conduta, caprichos, excentricidades e vocação.

A psicologia de Pizzoli tem espelho na de Giuseppe Sergi, fundada na antropologia, e alicerçada no organismo, com fundamentos na biologia e na fisiologia, e funcional. Fundeia na biologia, pelo fato de essa ciência tratar dos fenômenos vitais de todos os seres vivos, de suas origens e desenvolvimento. Como os fenômenos vitais se definem como os modos de atividade dos organismos, sua finalidade é a conservação dos próprios organismos. Há, portanto, segundo Sergi (1895), um finalismo implícito nas atividades dos organismos. Como as atividades se dão em um ambiente repleto de forças físicas e orgânicas que agem com energia própria, a conservação desse organismo está sempre diante de riscos. Os órgãos dos sentidos têm, nos organismos complexos como o do homem, a função de protegê-lo da ação dessas forças. Sendo os órgãos dos sentidos as interfaces do organismo com a ação das forças exteriores, a sensação passa a ser um elemento de grande importância na função de proteger tal organismo e viabilizar a sua conservação. Na ótica do finalismo evolucionista de Sergi, as funções psíquicas ou de proteção completam as funções biológicas ou de conservação.

Polêmicos, principalmente entre historiadores, os desdobramentos das aulas sobre os caracteres somato-antropológicos dos anormais, considerados críticos em um Brasil que já havia convivido com esses conceitos quando de seu ingresso pelas portas do Direito Penal, que resultou o Direito Positivo, esse sim, em boa parte animado pelos princípios da criminologia de Lombroso. Crítico, também, por terem ingressado no país pela literatura que, a exemplo das demais formas de expressão, esteve muitas vezes permeada pelo discurso científico, fez-se literatura positiva, notadamente por intérpretes da sociedade. Nos dois casos, o evolucionismo ficou marcado como o que classifica, exclui, legitima ou explica a contrastante realidade econômica, política e social sobre o conceito de raça. Naquele momento, ameaçava as escolas normais com a Educação Positiva. Isso não aconteceu.

As aulas referentes ao exame psicológico estão em grande parte centradas na sensibilidade e nas sensações, que também merecem espaço nas aulas relativas ao exame fisiológico. A razão disso, como sabemos, é que tais fenômenos alicerçam as psicologias que tomaram o evolucionismo como modelo, situando o próprio conhecer como uma derivação dos sentidos - a afirmação do sensualismo e, ao mesmo tempo, o seu evidenciar empírico, experimental. As observações sobre os órgãos sensoriais, dirá Sergi, "farão descobrir mais facilmente a prontidão e a vivacidade intelectual - ou a lentidão - pois são as vias de entrada de nossas idéias e cognição de todo o ambiente que nos circunda. (...) Estudamos essa via e observamos se são normais ou irregulares" (1892, p. 118).

Note-se que não há interesse de saber se a criança é normal ou anormal, mas se os seus órgãos dos sentidos são normais ou irregulares (anormais), sob o pressuposto que as idéias e a cognição, como produto da interatividade educativa, estariam comprometidas por conta de eventuais deficiências funcionais do organismo.

No exame da sensibilidade, colocava-se uma questão ainda maior: a relação qualitativa do homem com os demais homens. Até mesmo Lombroso irá dizer que "no homem criminoso, a insensibilidade moral é tão grande quanto a insensibilidade física", e que, "sem dúvida uma é efeito da outra" (Lombroso, 2001, p. 363). Ao mestre, o convite para desenvolver a sensibilidade física dos alunos tinha por meta aprimorar a sua sensibilidade psíquica e, como decorrência, sua sensibilidade moral. Nisso estava contido, não um paralelismo, mas um associacionismo, concepção filosófica e psicológica da qual Spencer foi ardoroso representante. A associação foi tema das aulas de Pizzoli ao tratar do exame psicológico, provavelmente restrito à associação de idéias.

Para o exame da atenção e memória, Pizzoli utilizou-se de mental tests, certamente fazendo-se valer de instrumentos e aparelhos de sua invenção, que eram realmente bons. Para o exame das volições, solicitou aos professores psicólogos o emprego do olhar psicológico, sustentado pelas classificações que adotou.

O fato histórico relevante não se deveu ao que Pizzoli falou, escreveu ou mesmo praticou, mas pelo que deixou aos professores (e não aos médicos): a tarefa de fazerem uso efetivo da folha biográfica, agora denominada Carteira Biográfica Escolar, e tornada obrigatória em todas as escolas públicas do estado de São Paulo a partir de 1915. Ao observar, mensurar e registrar dados de natureza psicofisiológica e antropológica, o professor psicólogo converte-se em psicometrista, no sentido que estuda a psicologia do escolar "por intermédio de cifras" (Binet, 1899, p.115). Poderia ser denominado antropometrista? Certamente que sim, mas é necessário considerar que os dados antropométricos encontravam emprego nas atividades psi, compartilhadas por partidários da psicologia e da psiquiatria.

Ainda que com o emprego do princípio de recorrência, pode-se dizer que estava sendo inaugurado um momento revelador, ao menos no cenário das escolas normais, e particularmente em São Paulo: como se esperava que os professores orientassem a prática educativa sobre os resultados de suas observações, com base nas cifras ou nas deduções do olhar psicológico, aventuraram-se eles como psicologistas, uma vez que da síntese dos dados formavam uma espécie de diagnóstico. Como pretendiam alterar esse quadro pela prática educativa, em certa medida dela fizeram um instrumento terapêutico. Recorrência, é claro, mas inegável que aí se encontram algumas das raízes que, em 1962, no Brasil, irão determinar o nascimento da Psicologia como ciência e profissão autônoma.

Bem verdade que a Carteira Biográfica Escolar era desnecessariamente extensa, e continha aspectos desprovidos de sentido. Complicou-se, como vimos, em virtude dos campos do exame antropométrico, associados quase sempre à história dos estigmas. A entender.

O registro do índice cefálico, da cor da pele, da íris e do cabelo, por exemplo, tinha uma razão específica na configuração italiana, e servia para identificar a raça do indivíduo na população da qual fazia parte. Giuseppe Sergi estava convencido de que a diferença racial era física e mental. Como reconhecia pouco se saber sobre as diferenciações de desenvolvimento intelectual e emocional da raça européia, e acreditava que a coleta de dados antropológicos nas escolas permitiria, no futuro, o alcance de algum entendimento sobre esse aspecto, fez da escola um laboratório de pesquisas, pois, "quando os dados forem numerosos [seria possível saber], se e quanta variação se vê no desenvolvimento e na manifestação psíquica das diferentes raças que compõem a população" (Sergi, 1892, p.116). No Brasil, isso não teria nenhuma utilidade, exceto se houvesse o interesse de mapear o estado físico e mental do estudante paulista médio, como feito por Mantegazza e Lombroso na Itália, o que parece pouco provável. Em qual perspectiva, então, esses dados foram introduzidos na Carteira Biográfica paulista? Indícios que havia alguma orientação para a coleção desses dados são apontados por Tavares (1996), ao informar que o diretor da escola de São Carlos, em 1917, relata que os exames restritos aos aspectos antropológicos não permitiam "generalização", que naquele momento seria "precipitada". Havia, portanto, o desejo de se obter algum produto sobre os dados contidos nas Carteiras? Que produto era esse? Talvez possamos um dia descobrir, se é que há o que descobrir. Um excesso cientificista ou uma prova que a cefalometria despertou interesse dos professores, até mesmo porque era onde se podia exercitar a mensuração, com a esperança de encontrar algo revelador. O lado professor psicólogo poderia se manifestar mais intensamente. Geraria interesse até mesmo nos dias de hoje.

Não se sabe do destino das Carteiras Biográficas, embora seja fácil deduzir. Elas deveriam ficar sob a guarda da escola até que a criança saísse do sistema escolar, e depois ir para o "governo", seja lá o que se entendia por isso. Não há dúvida que as mensurações se tornaram uma atividade burocrática a mais, dentre outras que os professores tinham que atender. Depois de um certo tempo, não mais sabiam o que era e para que servia. O fim delas foi inicialmente algum arquivo morto, e depois o lixo ou o incinerador. Faltou alma, mas principalmente coordenação, o que comprova que não havia projeto. Sem projeto e sem coordenação, não há alma capaz de suportar absolutamente nada.

Poderia ao menos ter mantido um aspecto do humanismo de Montessori, que igualmente usava o expediente da folha biográfica, mas que era entregue à criança quando saía definitivamente da escola, pois representava "para o indivíduo a sua própria história: documento humano e social de interesse primeiro para que ele possa conhecer a si mesmo, e continuar a própria auto-educação" (Montessori, 1910, p. 377). Havia uma diferença de objetivos. Como observa Paola Trabalzini, Montessori não se contentou com uma psicologia experimental que mensura a sensibilidade e aperfeiçoa as reatividades, "mas que não melhora o indivíduo" (2003, p. 142). De qualquer forma, a experiência Pizzoli foi muito significativa na história da psicologia no Brasil.

Ainda do ponto de vista do interesse histórico da psicologia, cabe perguntar o que foi produzido nos laboratórios das três escolas normais. Nada de excepcional, pelo que se sabe. Não se tem notícia de produções científicas dos que foram os professores de psicologia experimental das escolas normais secundárias de São Paulo, Itapetininga e São Carlos. Seus aparelhos e instrumentos devem ter se prestado para ilustrar aulas, como faziam e fazem os professores que estão à frente de laboratórios de química, física, psicologia, etc. Devem ter servido de treinamento aos normalistas que iriam examinar alunos com vistas a preencher as Carteiras Biográficas, embora devam ter feito uso dos instrumentos alternativos propostos no Compêndio de Quaglio, quando em atividade nos grupos primários, e, certamente, para dar um tom de modernidade aos seus curiosos visitantes, como ainda acontece nos dias de hoje. Por eles, ao que parece, não se produziu conhecimento de pedagogia, antropologia ou psicologia. Não levaram ao caminho da Pedagogia científica. Como nos dias atuais, professor não era sinônimo de pesquisador.

Findos os seis meses, ele deu por concluída a missão. Enquanto um obstinado gendarme da Pedagogia científica, havia finalizado o Curso de Cultura Pedagógica, orientado a publicação das monografias de alguns de seus alunos, ao que parece superado a fase de autodidatismo dos que iriam se ocupar dos laboratórios de psicologia experimental, publicado artigos, deixado aos professores psicólogos o convite para o olhar psicológico, e uma atribuição que iria torná-los psicometristas, ainda que não psicólogos. Retorna à Itália e continua a sua carreira, que foi depois orientada ao estudo das vocações, onde finalmente encontrou um espaço na história da psicologia de seu país. Cumpriu seu papel e nos deixou importantes contribuições.

Clemente Quaglio, que atuou como assistente de Pizzoli no Curso de Cultura Pedagógica, e que teoricamente seria seu herdeiro, não deixou registro de pesquisas que passaram pelo laboratório que dirigiu. A perceptível redução em sua produtividade sugere que tenha se submetido a alguma espécie de isolamento.

Essa história vai ser retomada em publicação também oficial de 1927, da agora apenas denominada Escola Normal de São Paulo, e do agora apenas denominado Laboratório de Psicologia Experimental. Divorcia-se da outra metade que o mantinha vinculado à imagem dos conceitos e métodos das ciências naturais - o de antropologia. Estava sob a condução de Lourenço Filho desde 1925. Com o título Psicologia e Psicotécnica, naquele momento registrava a passagem de Henri Piéron (1881-1964) pela capital paulista.

Em clima de entusiasmo com o anúncio de revitalização do laboratório, informa o redator da introdução do opúsculo que "por alguns anos, ainda sob o impulso inicial [de Pizzoli], o gabinete de psicologia experimental colheu algumas vantagens, mas pouco a pouco, a força impulsora foi diminuindo até ficar preste a extinguir-se" (1927, p. 4). A não ser um ou outro ensaio de organização de carteiras biográficas, diz o redator, "nada mais se tem produzido" (ibid., p. 5). Não expõe as razões.

Na ocasião, Henri Pierón utilizou-se dos aparelhos do mesmo laboratório para as suas aulas práticas. Tomou medida das sensações cutâneas, pesquisou as sensações estáticas, dinâmicas e de movimentos, determinou a percepção táctil, mediu os fenômenos sensoriais complexos, fez experimento sobre a medida da fadiga motora, precisou o tempo de reação das pessoas, mediu as sensações e avaliou a acuidade visual. Em resumo, fez as mesmas coisas que se fazia em 1914, mas chegou falando em behaviorismo, na psicologia como ciência da conduta.

O fato é que a era dos laboratórios foi substituída pela era dos testes coletivos. Aparentemente uma decisão de caráter racional, uma vez que os testes também mediam de forma mais econômica, mais prática, e "sem aparelhamento complicado, podíamos mesmo dizer, sem aparelhamento algum, que habilita todo mestre a tentar a experimentação psicológica, por si só, e a observar por ela, melhormente, seus discípulos" (Lourenço Filho, 1929, pp. 5-6).

Na procura da inteligência, o homem de casaca preta, que volteava a cabeça com compasso reluzente, foi substituído pelo homem de avental branco, que media o tempo de reação às provas com cronômetro de precisão. A psicologia continuaria sendo a ciência de sustentação da Pedagogia, e a prática da psicometria foi retomada como atribuição dos professores, apenas com mudança dos instrumentos.

O Laboratório de Psicologia Experimental na Escola Normal de São Paulo, enquanto um conjunto articulado de aparelhos e instrumentos, encerra a sua vida em 1930. Os do interior, pelo que sabe, não foram além dos anos 20. O da capital, dentro da mesma instituição, teve uma longevidade de 18 anos, completou a maioridade e abrigou o ingresso de duas psicologias de diferentes orientações. Nele, a inteligência migrou do aperfeiçoamento das sensações para a manifestação da racionalidade operatória.

O trabalho de Pizzoli terá continuidade no Brasil, mas fora de São Paulo. Pedro Deodato de Moraes, que foi professor de psicologia experimental de 1914 a 1920 na Escola Normal de Casa Branca [SP], e aluno de Pizzoli no Curso de Cultura Pedagógica de 1914, será contratado pelo governo do estado do Espírito Santo para organizar e ministrar, entre 1929 e 1930, um Curso de Cultura Pedagógica. Com introdução da psicanálise, o curso teve duração de seis meses, foi destinado também a professores, inspetores e diretores de grupos primários, e seguiu praticamente a mesma formatação do curso do mestre italiano, desta vez no Gabinete de Antropologia e Psicologia Experimental da Escola Normal Pedro II, em Vitória [ES]. Deodato de Moraes escreveu e publicou artigos e um livro com o sugestivo título Pedagogia Científica. Demonstrando domínio sobre os pressupostos e princípios da escola naturalista italiana, seus textos são muito interessantes.

 

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Recebido em novembro de 2005.
Aprovado em maio de 2006.

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